A consulta médica como drama social – um olhar

Propaganda
Artigo Original
A consulta médica como drama social –
um olhar etnográfico
The medical appointment as a social drama – an ethnographic view
Jaqueline Ferreira1
Resumo
Erwing Goffman, quando se refere ao drama social, o faz em analogia a uma peça teatral, na qual cada ator tem uma posição,
uma fala e uma ação previamente estipuladas, ou seja, um papel a desempenhar. O que caracteriza o drama são atores
representando um determinado papel e que contracenam entre si, de forma que suas falas e ações adquirem sentido dentro
da trama. Se pensarmos na consulta médica como uma ação que se desenrola em um tempo e espaço definidos na qual
o médico e o paciente são os atores sociais porque possuem atos e falas que seguem uma sequência predeterminada,
podemos entender este contexto da consulta médica também como um drama social, no mesmo sentido de Goffman. No
momento em que um indivíduo procura uma consulta, ele e o médico passam a contracenar, de forma que ambos ficam
submetidos à uma posição, às falas e gestos de acordo com a atuação correspondente a dois papéis específicos que aquele
contexto imediatamente impõe: a consulta médica. A partir de pesquisas etnográficas no Brasil e na França, este trabalho
busca analisar a interação entre médico e paciente na consulta médica em contextos de exclusão social e de como esses
determinam a performance dos atores.
Palavras-chave: anamnese; relações médico-paciente; antropologia cultural; cuidados médicos.
Abstract
Erwing Goffman, when referring to the social drama, makes an analogy with a theater play in which each actor has a position,
lines, and an action that are previously defined, that is, a role to play. What characterizes the drama is the actors playing a
certain role and performing among themselves in a way that their lines and actions acquire a meaning within the plot. If we
think about the medical appointment as an action that is developed in a defined time and space where the physician and
the patient are the social actors because they possess acts and lines that follow a predefined sequence, we are able to
understand the medical appointment context as a social drama too, in the same sense as Goffman. At the moment, when an
individual seeks for an appointment, he/she and the physician start to perform with each other, in a way that both are submitted
to a position, lines, and gestures according to the acting corresponding to two specific roles that are immediately imposed
to them by that context - the medical appointment. Based on ethnographic research in Brazil and France, this paper aims to
analyze the interaction between physician and patient at the medical appointment in contexts of social exclusion and how
these determine the performance of the actors.
Keywords: anamnesis; physician-patient relations; cultural anthropology; medical care.
Professora Adjunta do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Endereço para correspondência: Jaqueline Ferreira – Rua Raul Pompeia, 144-602 – Copacabana – CEP: 22080-000 – Rio de Janeiro (RJ), Brasil –
E-mail: [email protected]
Fonte de Financiamento: nenhuma.
Conflito de interesses: nada a declarar.
1
Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (2): 215-224 215
Jaqueline Ferreira
Introdução
O presente trabalho apresenta aspectos analisados de pesquisas etnográficas realizadas através da técnica da observação
participante em centros de saúde destinados a receber pessoas
que estão vivendo em exclusão social em Porto Alegre, sul do
Brasil e em Paris, França. O objetivo é analisar como fatores
socioeconômicos e culturais influenciam a interação do médico e paciente bem como as características comuns da consulta médica nestes contextos onde os pacientes apresentam
precariedade social e econômica.
A primeira pesquisa, para dissertação de mestrado, foi
realizada entre 1991 e 1993 em um bairro popular de Porto
Alegre chamado Lomba do Pinheiro. A segunda, para doutorado, foi realizada em um centro de saúde humanitário da
ONG Médecins du Monde (MDM) entre os anos 2000 e 2002.
A Lomba do Pinheiro, no momento da pesquisa, contava
com uma população de 100.000 habitantes com saneamento
básico, transporte público e estruturas de saúde deficientes. A
pesquisa foi realizada em um consultório cedido pela Pastoral da Criança, onde a pesquisadora atuava como médica. A
maioria das consultas era realizada com mulheres, donas-decasa, com renda familiar de um a dois salários mínimos.
O centro de saúde MDM foi criado em 1986 para receber
moradores de rua e imigrantes clandestinos, os sans papiers,
atendidos por profissionais de saúde e trabalhadores sociais
voluntários. Localizado na Avenue Parmentier, era uma importante referência de assistência à saúde para essa população
excluída da assistência médica pública francesa. Após contato
com a coordenação local, fui aceita para realizar uma etnografia, pois era do interesse da coordenação e voluntários conhecer os aspectos culturais de seus pacientes. Estes aspectos
estão desenvolvidos em profundidade em Ferreira1.
O fato de eu ser médica, além de antropóloga, me permitiu realizar uma observação participante das consultas e após
o consentimento dos envolvidos. O anonimato foi garantido e
os nomes utilizados são fictícios.
De acordo com Arthur Kleinman2, o fato de alguns
médicos realizarem estudos antropológicos em contextos
biomédicos auxiliou o avanço de uma nova perspectiva
etnográfica. Segundo o autor, isso contribui para o reconhecimento de que a medicina é um sistema cultural passível de
análise antropológica como qualquer outro contexto. Para
tal, uma primeira questão se impõe: como exercer um olhar
antropológico enquanto médico? Na verdade, todo antropólogo tem necessidade de construir um olhar antropológico
que lhe possibilite apreender a realidade transformando-a
em dados. Melhor dizendo, todo pesquisador deve estar preparado para observar e descobrir fatos novos que o obriguem
a desconstruir ideias preconcebidas. Da mesma forma, sabe216 Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (2): 215-224
mos que na pesquisa qualitativa a neutralidade e a ausência
de subjetividade não são possíveis, questão amplamente
tratada pelos cientistas sociais Whyte3 e Wacquant4. Estes
autores nos mostram como o posicionamento do antropólogo e sua inserção no universo de pesquisa devem sempre
estar presentes no corpus analítico da pesquisa. No mesmo
sentido, as pesquisas de Menezes5 e Chazan6 contextualizam
a sua dupla identidade.
Quando iniciei minha pesquisa na Lomba do Pinheiro,
percebi como se incorporava um outro olhar sobre as questões médicas. Dessa maneira, pude compartilhar das idéias de
Gilberto Velho quando se refere ao antropólogo observando
em seu ambiente familiar: “familiaridade e proximidade física
não são sinônimos de conhecimento”7. Portanto, o meu maior
desafio foi assumir o estranhamento como condição do trabalho antropológico8.
No que diz respeito à minha pesquisa na França, se o fato
de eu ser estrangeira me levava “naturalmente” a um distanciamento do campo de trabalho, a utilização do espaço da
consulta médica para a pesquisa me exigiu, igualmente, uma
constante relativização de meu olhar médico em relação à
análise antropológica. Nesse contexto, no início da consulta
eu sempre era apresentada pelos médicos como colega, o
que era sempre bem aceito pelos pacientes : “Você tem sorte,
hoje tem dois médicos para vê-lo”; “Minha colega é também
médica, não se preocupe”. Essa apresentação era necessária
para a aceitação de minha presença durante a consulta médica
e os pacientes se mostravam claramente tranquilizados após
essas falas. Por outro lado, o fato de me posicionar ao lado do
médico e não participar ativamente da consulta, uma vez que
eu me restringia a observar, fez com que muitas vezes eu fosse
percebida como estagiária ou estudante de medicina. Essa
“inferioridade hierárquica” favorecia o contato na medida
em que atenuava as barreiras sociais, normalmente existentes
entre médico e paciente, uma vez que o paciente se sentia
mais à vontade em me colocar questões que normalmente não
colocava ao médico. Assim, quando o médico se retirava do
consultório por alguns instantes, surgiam questões do tipo: “É
grave o que eu tenho?”, “O que significa isto?”. Da mesma forma, os pacientes solicitavam meu auxílio com o olhar quando
o médico explicava coisas que não compreendiam, fosse pela
dificuldade com a língua francesa ou pela dificuldade de compreender determinados termos técnicos.
Apesar de contextos culturais muito diversos dos universos de pesquisa, o que implica particularidades específicas, o
fato dos pacientes viverem em precariedade socioeconômica
determina alguns aspectos comparáveis da consulta médica,
o que fez com que essa pesquisa assumisse uma perspectiva
socioeconômica e cultural.
A consulta médica como drama social
A consulta médica como drama social
Segundo Erwing Goffman9, o que caracteriza um drama
social é a representação, realizada por atores contracenando
entre si, de um papel predeterminado e previamente preparado para esse fim. Goffman mostra que a realidade social é
análoga com uma encenação teatral na qual cada ator (social)
tem uma posição, uma fala e uma ação já estipuladas de
acordo com o contexto social, ou seja, um papel a exercer. Da
mesma forma, na vida em sociedade os indivíduos cumprem
comportamentos específicos, isto é, papéis sociais ditados por
regras sociais. Se pensarmos a consulta médica como uma
ação que se desenrola em um tempo e espaço definidos em
que os atores sociais, no caso o médico e o paciente, possuem
atos e falas que seguem uma sequência preestabelecida, podemos entender esse contexto como um drama social no mesmo
sentido de Goffman. A consulta médica é caracterizada por
etapas que se iniciam na chegada do indivíduo ao consultório,
seguida pela apresentação de seu problema ao médico, que
imediatamente interpreta as mensagens verbais e físicas, até
o final do atendimento, com a definição do diagnóstico e
tratamento10.
No momento em que uma pessoa entra em um consultório médico, ela passa a ser o paciente. O médico, por seu
lado, passa a “contracenar” com esse indivíduo, de forma que
ambos terão uma posição, falas e gestos adequados a um desempenho: cada qual com o seu papel específico. A consulta
médica é, portanto, um espaço de interação simbólica, uma
vez que, segundo esta perspectiva, o comportamento humano
envolve não somente uma resposta direta às atividades, mas
também dirigida à intenção dos outros. Essa resposta está
condicionada ao social, pois os gestos de um ser humano só
adquirem um sentido comum quando ele passa a compartilhar significados com o seu semelhante.
No entanto, se na consulta médica os códigos relativos aos
papéis de médico e paciente são compartilhados, trata-se de
um contexto no qual a alteridade socioeconômica e cultural
afeta os dois polos. No nosso caso isso é mais evidente no contexto francês e reflete as tensões sociais existentes na estrutura
social. Nesse sentido, torna-se aqui pertinente a proposta de
Victor Turner11 que afirma que os rituais dramatizam as tensões sociais em toda a sua ambivalência. Segundo Turner11,
a forte presença do conflito de natureza processual na vida
social é integrada ao ritual.
A consulta médica é um momento exclusivo, com etapas
bem definidas. O paciente ocupará um espaço predefinido em
frente ao médico, discorrerá sobre seus sintomas, responderá
às perguntas que ele fará e se submeterá ao exame físico. O
médico, por sua vez, desde o momento em que o paciente
entra no consultório, já inicia a coleta dos dados que possam
auxiliar no diagnóstico, tais como o andar, o trajar e a linguagem do paciente.
Com a cena da consulta médica concorrem outros tempos e espaços. O paciente se prepara para ir à consulta, toma
certos cuidados com o corpo que vão desde a higiene até a
escolha do traje adequado, elabora mentalmente as queixas
que apresentará ao médico e, por fim, se dirige ao consultório
onde aguardará ser atendido na sala de espera. Nesse espaço,
os indivíduos geralmente conversam entre si, trocam informações sobre doenças, diagnósticos e tratamentos; é a hora de
compartilhar informações, ansiedades e expectativas.
Joana, por exemplo, apresentava um aspecto de sofrimento físico quando veio ao consultório médico na Lomba do
Pinheiro: face contraída, uma postura curvada e dificuldade
para caminhar. Quando fez seu relato, começou descrevendo que, ao levantar-se pela manhã, sentira uma “fraqueza”
e uma “dor em agulhada” em ambas as pernas. Como esses
sintomas a impediam de realizar as tarefas cotidianas, e com
a percepção de que poderia ser algo mais grave, decidiu procurar auxílio médico. O exame físico dos membros inferiores
nada revelou além da força muscular diminuída em ambas
as pernas. Porém, no exame geral, Joana apresentava uma
medida de tensão arterial acima do esperado e a ausculta do
coração revelou batimentos cardíacos menos audíveis que
o normal, levando à suspeita de diagnóstico de hipertensão
arterial sistêmica.
Com esta descrição sucinta, quero evidenciar alguns
aspectos relevantes na situação de consulta médica: a forma
como o paciente apresenta seus sintomas e os sinais encontrados no exame físico não se limitam aos sintomas em questão.
Deste modo, sintomas e sinais (os achados do exame físico)
são mensagens corporais passíveis de uma leitura e interpretação, tanto por parte do paciente como do médico. É assim
que o corpo do paciente passa a ser sígnico, na medida em
que ele – o corpo – carrega mensagens, sintomas e sinais que
podem ser tomados como significantes e traduzem um determinado significado: a doença ou a ausência dela.
Muitas vezes, a sintomatologia apresentada pelo paciente
e os sinais verificados pelo médico não têm o mesmo grau
de valor para esses atores. As leituras e interpretações das
mensagens dizem respeito a uma construção social, o que não
significa negar os aspectos físicos e biológicos envolvidos. No
exemplo, não se questiona as sensações físicas de Joana, a fraqueza ou a dor nas pernas, mas, sim, como a percepção dessas
sensações enquanto alterações fazem parte de um aprendizado
que diz respeito a significados socialmente compartilhados.
Quanto a este fato, Becker12 já havia demonstrado como os
usuários de marijuana necessitam “aprender” a reconhecer
os sintomas associados aos efeitos da droga. Este aprendizado
Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (2): 215-224 217
Jaqueline Ferreira
faz parte de um conhecimento que é dado pelo grupo social e
que acaba por influenciar na percepção dos sintomas enquanto tais e a maneira como são interpretados. Isso implica dizer
que fenômenos físicos dependem de um aprendizado social
para serem reconhecidos:
... e eu acredito que de alcance mais geral, podemos investigar a Sociologia do funcionamento fisiológico normal: a
respiração que está “mais curta” do que o normal, o apetite
que está “menor” do que o normal, a dor que está além da
expectativa normal, o movimento dos intestinos que é “pouco comum”, e assim por diante12.
Da mesma maneira, Luc Boltanski13 se refere a como
certas sensações físicas dependem de uma aprendizagem para
adquirir significado:
... as sensações doentias não possuem o exorbitante privilégio que lhes atribui frequentemente o senso comum, de se
exprimir sem linguagem: a percepção e a identificação das
sensações mórbidas ‘ato de decifração’ que se ignora como
tal e que, assim sendo, exige uma aprendizagem específica
ou difusa, implícita ou consciente, é primeiramente função
do número e da variedade das categorias de percepção do
corpo, ou seja, da riqueza e da precisão de seu vocabulário
da sensação, e da sua aptidão, socialmente condicionada, a
manipular e memorizar as taxionomias mórbidas e sintomáticas.13 .
O profissional, de acordo com uma racionalidade biomédica, necessita identificar certos sintomas e sinais como significativos de doença. Este artigo se concentrará na entrevista
médica, a anamnese, para ilustrar alguns aspectos performáticos da consulta médica.
A anamnese médica
O significado da palavra anamnese é recordação, querendo dizer que a partir da memória, da lembrança das sensações
do paciente e de como se deu sua verbalização é que o médico
busca os dados referentes à saúde do mesmo. Essa narrativa,
ou história, deve compreender desde os dados de identificação
até o motivo da consulta, passando por todos os antecedentes
relativos à saúde do paciente em geral. Como essa etapa tem
uma importância crucial para a relação médico-paciente
e para o diagnóstico, os manuais de semiologia “ensinam”
o médico a “ouvir” para melhor interpretar as sensações de
seu paciente. Transcrevo alguns destes ensinamentos de um
manual de semiologia médica para exemplificar:
218 Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (2): 215-224
Um dos ingredientes mais importantes para o bom relacionamento médico-paciente e consequente colheita adequada
de dados é a disponibilidade do médico. A narrativa do paciente precisa ser atenta e calmamente ouvida. A premência
de tempo pode impedir a aproximação ideal. Escrever muito
durante a narrativa do paciente pode ter consequências
igualmente prejudiciais. Atenção, interesse e disponibilidade são também de grande valor terapêutico. O tempo amplo
para a coleta da anamnese permite ao médico o uso generoso do seu maior instrumento – a palavra.14 .
Esses ensinamentos, descritos minuciosamente, fazem
sentido na medida em que se tenta compreender o que o
outro está sentindo, pois traduzir sensações subjetivas é uma
tarefa complexa que implica, acima de tudo, uma interpretação por parte do médico. Mas como interpretar sensações
subjetivas trazidos pelo outro? Vários aspectos envolvem essa
questão. As palavras com que o paciente se dirige ao médico,
por exemplo, variam muito de acordo com as características e
o contexto individual. Há também o que não foi dito, o que o
paciente não quis ou não conseguiu expressar por meio de palavras, mas que pode ser analisado por comportamentos não
verbais, como a postura corporal, gestos e expressões faciais e
que também fornecem informações tão ou mais importantes
quanto o relato verbal. No que diz respeito às pesquisas aqui
apresentadas, a linguagem dos grupos de baixa renda é muito
distante da biomedicina, como bem observam Luc Boltanski13
e Maria Andrea Loyola15, podendo gerar obstáculos na interação entre os dois atores referidos. Mesmo que a linguagem
dos pacientes seja “desqualificada” pelos médicos, o que é bem
demonstrado por esses autores, geralmente é, pelos mesmos
médicos, reconhecida a necessidade de valorizá-la para que a
interpretação venha a ser correta. Isso fica claro quando nos
deparamos com manuais de semiologia:
É essencial, por exemplo, que o médico escreva ‘comichão
pelo corpo’, pois foi isto, e não ‘prurido’, ‘coceira’ ou ‘formigamento’ que o paciente referiu.16.
Da mesma forma a literatura médica ensina como as patologias podem ser identificadas pelas sensações físicas:
A dor que se origina do esôfago usualmente se apresenta
como dor torácica profunda. É descrita como uma sensação de queimação que se irradia desde o epigástrio para
cima.17.
A prática médica fornece elementos que ensinam o médico
sobre o contexto em que vivem seus pacientes, como Maria e
A consulta médica como drama social
João, moradores da Lomba do Pinheiro. Maria, dona-de-casa,
descreveu sua dor na perna como se “tivessem jogando sal e
vinagre em cima” e Mário, mecânico, descreveu sua dor de
ouvido pela sensação de “como se fosse um pneu esvaziando”. Expressões como “batata da perna” e “grão do olho” são
outros exemplos que encontrei em minha pesquisa na Lomba
do Pinheiro, permitindo vislumbrar aspectos do cotidiano
envolvidos nas representações de corpo dos doentes.
Assim, através da linguagem, pode-se entrever todo um
sistema de crenças que faz parte de uma representação de
corpo e doença. Muitas vezes uma descrição de dor ou uma
expressão de alívio - como, por exemplo, “foi como se tivessem tirado a dor com a mão” ou “como se tivesse um bicho
que come” - dão ao médico a ideia de que um elemento externo e agressivo, que invadiu o corpo, participa do sofrimento.
Portanto, a observação da linguagem usada pelo paciente
durante a consulta médica é de vital importância, pois é causa
de barreiras na comunicação entre médicos e pacientes. É o
que expressa um comentário de uma informante moradora
da Lomba do Pinheiro:
Eu disse para a minha vizinha, porque tu não vai na minha
médica? Ela explica os exames, o que tu tem, tudo direitinho,
vai a fundo na questão. Não é como uns que não explica ou,
se explica, é com umas palavras que tu não entende (Zelia,
42 anos, dona-de-casa).
O que esse relato evidencia é que o discurso médico será
melhor recebido e compreendido quanto mais próximo estiver da realidade dos pacientes.
A familiarização com termos técnicos da biomedicina de
uso clínico e a aquisição de novas categorias de percepção
do corpo também são o resultado do contato com o médico.
Nesse sentido, Luc Boltanski13 menciona como o consultório
médico é um importante espaço de difusão do conhecimento
clínico. Assim, para os pacientes, cada consulta médica representa uma oportunidade de ampliar a sua experiência. Os conhecimentos técnicos são muitas vezes compartilhados com a
família e vizinhos, que tendem, assim, a confrontar sintomas,
diagnósticos e tratamentos. Por outro lado, a linguagem técnica biomédica sofre uma reapropriação pelos grupos de baixa
renda, como, por exemplo, “eletroencefalograma”, conhecido
popularmente por “elétrico”. Esta reinterpretação também
alia aspectos do contexto individual e social. É o caso de um
informante da Lomba do Pinheiro:
Tenho uma fraqueza nas juntas que dói e quando eu me
movimento e quando eu levanto, tenho uma dor que puxa
prá dentro das virilhas, não é uma dor forte, mas enjoada.
Acho que é reumatismo. Também quando eu como, eu incho, um troço enjoado, às vezes incha dos lados, às vezes no
estômago. Talvez seja pedra na vesícula. E no peito tenho
uma dorzinha enjoada, mas respiro bem, então não deve ser
nada, né? (Mário, 65 anos, aposentado).
Dessa forma, determinados sintomas são interpretados
como pertencentes a uma patologia específica, como reumatismo e pedra na vesícula, e seguem critérios que vão desde
experiências passadas, contatos com o médico ou redes de
relações interpessoais.
Relatar a doença para o médico muitas vezes ajuda o paciente a organizá-la e o leva a tentar estabelecer uma relação causal,
possibilitando associações com problemas pessoais, excesso de
trabalho ou crises familiares. Em determinadas situações os
sintomas são vários, como no caso anterior em que o paciente
não conseguia expressá-los em uma sequência lógica. Vejamos
outro exemplo de uma paciente da Lomba do Pinheiro:
Segunda-feira estive ruim, com vômitos e a cabeça pesava, a
língua e o lábio dormente e dor no pescoço. Fui na emergência
da PUC e lá me deram Adalat embaixo da língua. O médico
me disse que era dos nervos. Talvez fosse mesmo, porque eu
tenho um filho que mora comigo que bebe e me incomoda
em casa (Maria de Lourdes, 50 anos, doméstica).
Dessa forma, pode-se perceber que o paciente tem que
traduzir a confusão de suas sensações para o médico. Esse, por
sua vez, terá que retraduzir para si e para ele. Isso implica que
significados diferentes podem ser depreendidos entre médico
e paciente no que diz respeito às interpretações da localização
e intensidade dos sintomas e à natureza das enfermidades e
demais representações do corpo, saúde e doença envolvidas.
Como interpretar a “dor enjoada” de Mário ou a “cabeça pesada” e a “língua e o lábio dormente” de Maria de Lourdes?
Talvez o médico já tenha vivido uma experiência semelhante
ou sua experiência com a prática possa lhe indicar que determinada sensação descrita pode significar tal doença, uma
vez que somente seu aprendizado técnico não dará conta das
representações envolvidas no processo saúde e doença.
Enfim, uma comunicação eficiente entre médico e paciente dependerá do quanto houver de compatibilidade entre as
realidades de ambos. No caso da pesquisa no centro médico
humanitário na França, isso fica mais evidente pela descrição
das barreiras linguísticas existentes.
A passagem de uma língua para outra aumenta as possibilidades de mal-entendidos, o que se agrava em situações às
quais é somada a distinção de classes sociais e culturais, como
é o caso dos médicos e pacientes desse contexto. Aqui entram
Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (2): 215-224 219
Jaqueline Ferreira
em cena todos os níveis que envolvem o ato da palavra e da
linguagem (voz, entonação e constrangimentos impostos pelo
conteúdo da comunicação). Língua e palavra são indissociáveis no processo de comunicação, como nos lembra Roland
Barthes18: “Em suma, a Língua é tanto o produto como o
instrumento da Palavra”.
Assim, nesses casos, o principal meio de realização do
diagnóstico é o dos sinais, ou seja, os aspectos objetivos constatados no exame físico. A comunicação não verbal – desde
a mímica até a observação do comportamento e o exame do
paciente – torna-se indispensável a fim de complementar a
linguagem no que diz respeito a possibilitar a comunicação.
No caso do centro em que os pacientes não falavam francês, frequentemente alguém de sua rede social os acompanhava e servia de intérprete. Passemos aos aspectos imbricados
nesta situação.
O doente, o médico, o intérprete e as competências
interacionais
O cruzamento de línguas, introduzido pela presença do
intérprete, leva a um cruzamento de relações entre os três protagonistas: paciente-médico-intérprete. Em outros termos, o
tradutor linguístico nem sempre possui todas as informações
relativas ao doente solicitadas pelo médico. Por outro lado,
mesmo que conheça a biografia do paciente, cabe ao intérprete decidir o que é pertinente ou não trazer à consulta.
Vejamos aqui como o intérprete pode interferir no desfecho do atendimento. A consulta com sua presença é tão corriqueira no centro que nem é questionado entre os profissionais
quando algum se põe a falar no lugar do paciente. Foi o que
aconteceu no episódio descrito a seguir, o da “falsa intérprete”: uma jovem mulher da Costa do Marfim apresentou-se
com sua irmã mais velha procurando consulta no centro de
saúde, pois estava com dificuldades para engravidar. Ela foi
encaminhada à consulta ginecológica, durante a qual as irmãs
conversavam em dialeto africano, sendo que a mais velha
fazia a tradução para a médica ginecologista. Isso nos levou a
acreditar que a paciente não falava francês.
Irmã: Ela tem uma coisa na barriga que não lhe deixa engravidar.
Médica: Ela teve algum aborto?
Irmã: Não, ela teve um atraso menstrual de três meses e
depois ela sangrou
muito. Ela teve um filho na África.
Neste momento, a paciente fala em dialeto africano e elas
discutem. A irmã complementa:
220 Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (2): 215-224
Irmã: É que ela não tem filho. Ele morreu.
Médica: Ele nasceu morto?
Irmã: Sim.... Não....
Médica: Ela chegou a criá-lo?
Irmã: Não, ele nasceu morto na África.
Médica: Tudo bem, é só para saber se alguma vez ela já
engravidou. Ela mora com o seu companheiro?
Irmã: Não, com amigos
Médica: Por que?
Irmã: Por que ele trabalha no interior.
Médica: Ele mora em um hotel?
Irmã: Não sabemos. Pode ser em um hotel ou com amigos.
Médica: Quantas relações sexuais eles tem?
Neste momento a paciente fala pela primeira vez:
Paciente: - Uma vez por mês.
Somente nesse momento descobrimos que a paciente
falava francês e que compreendia todas as questões. A ginecologista prossegue, sem aparentar surpresa:
Médica: Não é muito.
A médica passa ao exame físico e finalmente dá o seu
diagnóstico:
Médica: Ela não tem problema nenhum, o problema é não
ter relações sexuais suficientes
Irmã: Não é possível! Ela está com atraso menstrual. Como
ela pode estar atrasada e não estar grávida?
Médica: Por que ela não tem muitas relações sexuais.
Irmã: Não, não é possível...
Médica: Sim, é possível.
Irmã: Ela deve fazer uma radiografia para saber o que está
acontecendo...
A médica começa a se irritar:
Médica: Ela deve tomar a sua temperatura (para saber o seu
período de ovulação). E, além do mais, ela fala bem francês,
eu preciso é falar com ela, ela é que é a paciente!
Irmã: É a mesma coisa.
Médica: (visivelmente irritada): Não, não é a mesma coisa,
é o SEU corpo, e é ELA a paciente!!
A paciente e a irmã falam em dialeto durante alguns
instantes e a paciente diz à médica que pode dirigir-se diretamente a ela. Assim, a consulta termina com a médica dando a
curva de temperatura à paciente.
A consulta médica como drama social
O desejo de ter filhos era motivo frequente de consulta no
centro de saúde parisiense e os médicos estavam habituados
a isto. Aqui o conflito se instalou devido à intervenção da tradutora que, ao mesmo tempo em que contesta o saber médico,
toma o lugar da paciente para explicar o problema. Assim, nós
podemos recorrer à noção de “competências interacionais”
no sentido utilizado por Aaron Cicourel19 no qual, na lógica
biomédica, a legitimidade do relato sobre a doença só diz respeito ao doente. Assim, os papéis socialmente construídos de
médico e paciente na cultura ocidental não preveem que este
último seja substituído. Por outro lado, na lógica das mulheres
africanas, ter um filho é um empreendimento assumido pelo
grupo, seja pela importância da maternidade na cultura africana20, seja pela possibilidade de permanecer na França com
uma criança nascida nesse território21. O que justifica que,
para essas mulheres africanas, a consulta lhes diga respeito
de forma igual.
Os silêncios, os mal-entendidos e as mentiras
Para uma boa relação médico-paciente e realização do
diagnóstico é necessário inscrever a história do paciente na sua
cronologia e espaço precisos. No entanto, as histórias trazidas
pelos pacientes aos médicos do centro eram frequentemente
fragmentadas, pontuadas por silêncios e mal-entendidos.
Conhecendo a população, sabia-se que há eventos que não se
pode ou não se quer contar. A impossibilidade de falar pode
estar relacionada a uma história de sofrimentos físicos e morais. Isso era particularmente pertinente no caso de exilados
políticos. Tratava-se de um silêncio que buscava o esquecimento. É o caso de uma mulher da Costa do Marfim que se
encontrava na França há dois anos. Em seu país, ela exercia a
profissão de parteira. As condições de trabalho eram difíceis:
10 meses sem salário. Assim, ela partiu, deixando seus filhos
na África. Ela buscou o centro para se tratar de uma “dor de
cabeça”. O médico insistia em saber mais de sua história:
Médico: Você gostaria de voltar para a África?
Paciente: Sim.
Médico: Mas você não pode?
Paciente: Não, problema político...
Médico: É embaraçoso?
Paciente: Não, é que é triste...
Ela silencia e o médico não insiste mais.
Se, para o paciente, rememorar alguns eventos implica
revivê-los, seu silêncio é uma maneira de expressar seu sofrimento. O médico deve buscar um equilíbrio entre respeitá-los
e insistir na fala destes pacientes. Assim, ele “tateia”, fazendo
pequenos comentários na busca de abordar o assunto por
diversos ângulos.
A recusa em falar nem sempre é evidente. Existem várias
maneiras de omitir as informações do médico. A estratégia do
“mal-entendido”, por exemplo, era frequentemente utilizada.
Isso pode ser ilustrado pelo caso de uma mulher da República
dos Camarões que falava perfeitamente bem francês, mas que
não “compreendia” determinada questões do médico. Este, após
o exame físico, suspeitando de uma gravidez, a questionou:
Médico: Você vive com seu parceiro?
Paciente: Eu vivo aqui há quatro anos.
Médico: Sim, mas e seu parceiro?
Paciente: Não, ele está na República dos Camarões.
Médico: Mas você tem outros parceiros aqui?
A paciente faz uma expressão de quem não entendeu a
pergunta e começa a mexer em sua bolsa. O médico sorri.
O paciente pode igualmente utilizar a incompreensão
da língua. Tomamos o exemplo de um paciente polonês que
buscou o centro para obter uma receita de comprimidos para
dormir. Ele parecia ter mais de 60 anos e a forma como estava
vestido nos fez pensar que vivia na rua: roupas rasgadas, sapatos muito gastos e exalava um odor característico. O médico
tentou coletar sua história:
Médico: O que você fazia na Polônia?
Paciente: -.......
O médico insiste: O que você fazia na Polônia?
Paciente: Eu tinha uma empresa
Médico: Porque você deixou o seu país?
Paciente: Eu vivi também na Alemanha...
Médico: Com quem você mora aqui?
Paciente: .........
Médico: Você é casado?
Paciente: ... divorciado.
O médico não insiste e vai buscar o medicamento. Quando ele sai, eu também tento saber mais alguma coisa, mas
tudo o que consigo é que “na Alemanha era bem pior que na
França”. Lá, ele era interpelado por policiais, constantemente:
“A vigilância era bem mais severa do que aqui”.
Se o médico necessita da história verdadeira dos pacientes
para estabelecer o diagnóstico, a utilização da mentira para
estes imigrantes em situação de clandestinidade, em virtude
do medo ou desconfiança de serem denunciados, é uma estratégia de proteção.
Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (2): 215-224 221
Jaqueline Ferreira
O médico também deve aprender a distinguir um relato
real de um falso para obter o que deseja dos pacientes. Esses,
por sua vez, devem aprender quais são as histórias convincentes, o que devem falar e o que esconder.
Se a verdade é atribuída ao saber científico, é o médico que
detém o monopólio do discurso legítimo. É aí que repousa
o poder médico22. Michel Foucault23 nos mostra como o poder e o saber estão profundamente imbricados. É através do
saber sobre o corpo que o médico concretiza o poder sobre
os indivíduos. Deste modo, o ato de “duvidar” do paciente é
plenamente legítimo na prática médica: “Ao mesmo tempo
em que se solicita a palavra do paciente, desconfia-se dela”24.
Assim sendo, a tarefa do médico consiste na busca de uma série de provas da verdade na palavra do paciente, um exercício
de objetividade em relação a dados que são essencialmente
subjetivos. No centro, isso é explicitado na fala de um médico
após constatar a gravidez de uma paciente do Mali que afirmava não ter relações sexuais há mais de um ano: “Eu verifico
tudo o que eles dizem”.
Desta maneira, os sinais corporais podem confirmar ou
não a palavra do paciente. Isso comprova que uma das formas
em que o poder médico se inscreve na relação médico-paciente é através do domínio da técnica. Entretanto, a eficácia
dos atos médicos depende também do paciente.
A circulação da desconfiança: qual eficácia?
A instabilidade que cerca a vida do imigrante clandestino
repercute na consulta médica na forma de desconfiança. Desconfiança esta proveniente do medo de ser denunciado pelos
profissionais e instituições de saúde. Didier Fassin25 analisou
as repercussões negativas desse contexto. Segundo o autor,
os doentes desconfiam sobretudo das questões “indiscretas”
dos assistentes sociais e dos médicos. Isto tende a agravar o
seu estado de saúde na medida em que acabam procurando
assistência somente quando este se agrava.
A situação descrita acima é recorrente nas nas consultas
dos imigrantes clandestinos que buscaram atendimento no
centro de saúde francês. Aqui é importante questionarmos sobre a eficácia simbólica, no sentido de Claude Lévi-Strauss26,
que sublinha como a cura é atribuída à confiança aportada à
pessoa ou ao instrumento que cura: “... o doente crê, e ele é
membro de uma sociedade que crê”.
Uma jovem colombiana procurou o centro de saúde em
razão de suas fortes dores de cabeça. Recém-chegada da
Colômbia, não falava bem francês e estava acompanhada por
uma amiga para auxiliá-la na tradução.
Durante a consulta, o médico pergunta diretamente à
paciente:
222 Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (2): 215-224
Médico: Você está triste?
Amiga: Ela chora todos os dias.
Médico: Por que você saiu de seu país?
Paciente: Por que lá não tinha “plata” (dinheiro). Aqui não
é bom, mas está melhor.
Médico: Você vai voltar para a Colômbia?
Nesse momento, a intérprete faz sinais para a paciente
não falar, e ela permanece em silêncio. O médico não vê e
continua.
Médico: Você trabalha aqui?
A amiga traduz para a paciente.
Paciente: Sim
Médico: Você faz o quê?
A amiga traduz.
Paciente (hesitante): Auxiliar de limpeza (em um tom
pouco convincente, fazendo com que a amiga dissimule
o riso).
O médico conclui que se trata de uma simples enxaqueca.
A amiga intervém:
- Com todo o respeito que eu tenho pelo senhor, que é
médico, mas as dores são terríveis. Seria bom fazer uma
ressonância.
Mas o médico não dá atenção e prescreve um analgésico
para enxaqueca. A paciente e a tradutora partem visivelmente
não convencidas a usarem a medicação.
Essa consulta mostra que quando a mesma é pontuada
por desconfiança, sua eficácia fica seriamente comprometida. É importante observar aqui que essas mulheres tiveram o
cuidado de não afrontar a competência médica, mas ao mesmo tempo, a palavra do médico francês não é crível para elas.
Isso é observado em várias consultas. Mas, então, o que faz
esses imigrantes buscarem a consulta no centro? A conclusão
que a observação nos apontou é que a crença na cura não
repousa na figura do médico, mas, sim, na “medicina francesa”. Uma fala recorrente na declaração destes pacientes é: “A
gente acredita na medicina francesa”. É uma busca de assistência que se apoia em elementos concretos: medicamentos e
recursos tecnológicos. Assim, é com estranhamento que um
médico escuta de um paciente algeriano: “Eu não quero ser
examinado, eu quero medicamentos”. Ora, é fato conhecido
dos antropólogos que a sequência de eventos significativos
para os pacientes não é somente a consulta, mas tudo que
lhe diz respeito: a realização de exames, a hospitalização e
A consulta médica como drama social
a série de tratamentos. Isso é mais verdadeiro por causa da
importância que os recursos tecnológicos diagnósticos assumem na cultura ocidental e que repercute para os africanos.
É desta forma que podemos assumir que a eficácia simbólica
da consulta médica, no sentido dado por Lévi-Strauss, se
baseia no conjunto desses elementos e não exclusivamente
na figura do profissional de saúde.
Considerações finais
Este trabalho procurou discutir alguns elementos interacionais da consulta médica. Convém lembrar que a perspectiva
interacionista não se restringe ao microssocial mas diz respeito a um conjunto de relações inscritas em estruturas gerais da
organização social. Olivier Schwartz aponta as propriedades
“situacionais” e “estruturais” da perspectiva interacionista e
sua importância no panorama etnográfico:
“É fácil compreender de que forma o interacionismo é
particularmente favorável à pesquisa etnográfica e para o
status epistemológico da mesma. Graças a uma linguagem
conceitual bem analítica, a decomposição de fenômenos
sociais em unidades empíricas isoladas, o interacionismo
cria condições para uma observação ampla de processos
sociais”27.
Assim, é possível, na observação das interações, constatar
as lógicas macrossociais da sociedade em questão. Na perspectiva de drama social adotada por esta pesquisa, a proposta
se coaduna com a de Turner28 sobre como os dramas sociais
relacionam os processos sociais à estrutura social.
O contraponto entre consultas médicas no Brasil e França
permite vislumbrar algumas problemáticas em diferentes contextos e de como estes interferem na performance dos atores.
Trata-se de questões relativas tanto aos aspectos culturais bem
como aos relativos às populações desfavorecidas socialmente.
A relação médico-paciente face à dor, por exemplo, pode ser
relativizada quanto às representações de corpo, mas mostra
como este sintoma porta um caráter físico-moral comparável
nos dois contextos. A relação dos médicos com as mulheres
africanas é outro exemplo de como as diferenças culturais
entre as duas sociedades se refletem na situação da consulta.
Por outro lado, a consulta médica junto a pacientes vivendo
em exclusão social traz uma perspectiva de alteridade entre
os dois polos.
No que se refere aos aspectos da pesquisa propriamente
dita, a experiência etnográfica em contextos tão diversos, bem
como as trocas estabelecidas com os diferentes pesquisados
proporcionou para ambos os polos, pesquisadora e pesquisados, uma reflexão instigadora sobre o caráter comparável e
relativo dos cuidados em saúde.
Referências
1. Ferreira J. Soigner les Mal Soignés. Ethnologie d´un centre de soins
Gratuits. Paris: L´Harmattan; 2004.
9. Goffman E. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis:
Vozes; 1985.
2. Kleinman A. Patients and Healers in the context of culture. Berkeley:
UC Press; 1980.
10. Bonnet O. Saber e Sentir: uma etnografia da aprendizagem da
biomedicina. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2004.
3. Whyte WF. Treinando a observação participante. In: Zaluar A.
Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1997.
p. 77-86.
11. Turner V. Floresta de Símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói:
EDUF; 2005.
4. Wacquant L. Corpo e alma: Notas etnográficas de um aprendiz de boxe.
Rio de Janeiro: Relume Dumará; 2002.
5. Menezes RA. Em busca da boa morte: Antropologia dos cuidados
paliativos. Rio de Janeiro (Brasil): Fiocruz/Garamond; 2004.
6. Chazan LK. Vestindo o jaleco: reflexões sobre a subjetividade e a
posição do etnógrafo em ambiente médico. Cadernos de Campo. 2005;
14(13):15-32.
7. Velho G. Observando o Familiar. In: Nunes EO. A Aventura Sociológica.
Rio de Janeiro: Zahar; 1978. p.131.
8. Ferreira J. Semiologia do Corpo. In: Leal OF. Corpo e Significado.
Ensaios de Antropologia Social. Porto Alegre: Ed. da UFRGS; 1995.
p.89-104.
12. Becker H. Uma Teoria da Ação Coletiva. Rio de Janeiro: Zahar editores;
1977. p.203
13. Boltanski L. As Classes Sociais e o Corpo. Rio de Janeiro: Graal; 1984.
p.131
14. Romeiro V. Semiologia Médica. Rio de Janeiro: Guanabara; 1980. p.6.
15. Loyola MA. Médicos e Curandeiros: Conflito Social e Saúde. São Paulo:
Difel; 1984.
16. Kloetzel K. Raciocínio Clínico. São Paulo: Edart Editora; 1977. p.94.
17. Kanter F, Soibelman M. Medicina Ambulatorial. Porto Alegre: Artmed
Editora; 1990. p.225.
18. Barthes R. L’Aventure Semiologique. Paris: Seuil; 1985.
Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (2): 215-224 223
Jaqueline Ferreira
19. Cicourel A. Cognition Sociale et Niveaux d’Expertise. In: Joseph I,
Jeamorat G. Métiers du Public. Les compétences de l’agent et l’espace de
l’usager. Paris: CNRS ed. 1995. p.19-39.
20. Journet O. La Quête de l’enfant. Journal des Africanistes. 1981; t. 51;
(1-2) : 97-115.
21. Quiminal C. De l’indigène à l’immigré: figures de la politique étatique
de l’immigration. In: Buci-Gluccksman C. La Gauche, le pouvoir, le
socialisme. Paris: PUF; 1983. p.167-71.
24. Rey R. Histoire de la Douleur. Paris: La Découverte; 1993. p.120.
25. Fassin D. La santé en souffrance. In: Fassin D, Morice A, Quiminal C.
Les Lois de L’inhospitalité - Les politiques de l’immigration à l’épreuve
des sans-papiers. Paris: La Découverte; 1997. p.107-23.
26. Lévi-Strauss C. Anthropologie Structurale. Paris: Plon; 1958.
27. Schwartz O. L’empirisme irréductible. L’Hobo, sociologie du sans-abri.
Paris: Anderson, N. Nathan; 1993. p.292.
22. Thomas JP. Qu’est-ce que le pouvoir médical? Revue Raison Présent.
Premier trimestre; 2001. 39-52.
28. Turner V. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis:
Vozes; 1974.
23. Foucault M. Histoire de la Sexualité I. La volonté de savoir. Paris:
Gallimard; 1976.
Recebido em: 21/07/2010
Aprovado em: 10/05/2011
224 Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (2): 215-224
Download