3 A linha filosofar-aquarelar-escrever: tornar o

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A MENINA ALINE E A AULA DE ARTES NA FILOSOFIA: OS
EXERCÍCIOS ARTÍSTICOS COMO FATOR DE ENVOLVIMENTO DO
ALUNO NAS DISCIPLINAS
Ana Lygia Vieira Schil da Veiga1
Universidade Federal de Juiz de Fora (Brasil)
[email protected]
Resumo
O trabalho apresenta experiência de atividade artística vivenciada no decorrer de uma disciplina de
Filosofia, ministrada na Faculdade de Educação para os cursos de licenciatura: “Tópicos Especiais
em Educação: Conhecimento e Verdade”. As aulas acontecem no imbricamento da filosofia com a
arte, por meio da leitura do texto dos autores e da pintura em aquarela. Enquadramento
Conceptual: a experiência ocorre no âmbito da História da Filosofia, tendo como base o estudo
comparativo do pensamento de Nietzsche e Descartes, no que tange suas concepções de
conhecimento e verdade. Objetivos: os exercícios de veladura em aquarela visam motivar e envolver
o aluno nas aulas e colaboram para a visualização das forças do pensamento, em seus aspectos
representacionais e de composição de fluxos, permitindo o contato experiencial com as concepções
de mundo dos autores estudados. Metodologia: a experiência se dá em aulas prático-teóricas que
intercalam leitura e exercícios de veladura em aquarela, acompanhados dos registros narrativos
compostos pelos alunos onde o vivido e o estudado se revelam. Resultados: o trabalho recorta,
exemplarmente, a narrativa da graduanda, Aline, onde é possível observar o envolvimento positivo da
aluna com o estudo, levando-a ao questionamento filosófico da própria experiência, na perspectiva
dos autores estudados. Conclusão: a experiência retratada permite perceber a potencialidade que as
atividades artísticas, quando agenciadas a disciplinas fora do âmbito das artes, podem adquirir na
sua aplicabilidade como fator ampliador da motivação e do envolvimento do aluno nas aulas.
Palavras-chave: Envolvimento, Artes, Filosofia, Aula.
Abstract
This paper presents the artistic activity experienced during a Philosophy class, “Special Topics on
Education: Knowledge and Truth”, given to graduating students at the College of Education. The
classes are based on the overlapping of philosophy and art and consist in the reading of the authors’
text and watercolor painting. The conceptual framework: The experience takes place within the
context of the History of Philosophy and on the basis of the comparative study of Nietzche and
Descartes school of thought in regards to their concepts of knowledge and truth. The purpose: The
goal of watercolor veil painting is to motivate and involve the students in the classes and contribute to
visualize the thought forces in their representational aspects and composition of flows, allowing for the
experiential contact with the authors’ idea of the world. The method: This experience takes place in
practical and theoretical classes which intersperse reading and watercolor veil painting, followed by
the students’ narrative registers where what they experienced and what they studied is revealed. The
outcome: This work distinctively outlines magnificently the narrative of the graduate student Aline.
One can notice her positive involvement with the study, her philosophical questioning of the whole
experience seen from the author’s viewpoint. The conclusion: The depicted experience shows the
potential that artistic activities can have to increase motivation and the student’s participation in
classes, when such activities are linked to subjects unrelated to the scope of arts.
Key words: Participation, Arts, Philosophy, Class
1
INTRODUÇÃO
A aula de artes na filosofia traça uma diagonal, conceito pensado junto a Deleuze e Guattari (2008),
como um espaço de produção de relações que se dão em um entre. Traz a visualização de uma linha
de tensão entre a filosofia, a pintura e a escrita na proliferação de modos de existir, proposta
facilitadora do envolvimento do aluno na aula. O recorte apresentado nasce a partir das observações
surgidas durante a experiência realizada em um estágio docente como parte de uma pesquisa de
doutorado em curso. A atividade artística se deu no decorrer da disciplina “Tópicos Especiais em
Educação: Conhecimento e Verdade”, ministrada na Faculdade de Educação para os cursos de
licenciatura. Entre os alunos, graduandos dos cursos de Matemática e Pedagogia. As aulas semanais
aconteciam no imbricamento da filosofia com a arte, no âmbito da História da Filosofia, tendo como
base o estudo comparativo do pensamento de Nietzsche e Descartes, no que tange suas concepções
de conhecimento e verdade.
Uma inquietação: como se dá a verdade? Na inquietação, a produção de
um problema: o encontro verdade-conhecimento. Produção de verdades.
Produção de conhecimentos. Produção de pensares e viveres. Na
inquietação-problematização implicar o corpo que produz e se produz
com/na arte. Pensar a educação com suas produções de verdade e
conhecimento junto ao pensamento de Descartes e Nietzsche (Ementa da
disciplina Tópicos Especiais em Educação: Conhecimento e Verdade,
Faculdade de Educação, 2013).
Tendo como texto base o livro “Razão e conhecimento em Descartes e Nietzsche”, de Olímpio
Pimenta (2000), as leituras se faziam também nos fragmentos das obras de Descartes e Nietzsche. O
Discurso do método, As Paixões da alma e as Meditações de Descartes eram recordadas e se faziam
estar com trechos de Crepúsculo dos Ídolos, A Gaia Ciência, Sobre Verdade e Mentira no Sentido
Extra-Moral, de Nietzsche. Entre elas, a poetagem de Manoel de Barros e Fernando Pessoa. A
pintura em aquarela abria-se ao encontro da leitura dos textos desses autores, um exercício de
aproximação, traçando uma diagonal que se narrava nas composições textuais feitas pelos alunos,
onde os ecos do vivido e do estudado se mostravam, revelando a potencialidade que as atividades
artísticas, quando agenciadas a disciplinas fora do âmbito das artes, podem adquirir na sua
aplicabilidade como fator ampliador da motivação e do envolvimento do aluno nas aulas. A produção
textual dos alunos, para preservar seu anonimato será identificada como “Aline + cor”.
Tabela 1 – A pintura em aquarela e o texto de Aline Azul, aluna da Licenciatura em Matemática.
Pensamento e Vida
Durante o banho... pensei sobre
pensamento e vida!
O que escrever? Nada em mente.
Verdade!
Um pouco antes de dormir: ainda sobre
pensamento e vida.
Oh, Descartes... você que me mostrou que
existo...
e mais ainda, que penso!
Oh, Nietzsche... o que você fez com a minha
vida? Melhor nem pensar.
Neste recorte¹, pretende-se apresentar alguns efeitos dessa experiência, especialmente os que
fazem ver a potencialidade da aula em diagonal nos processos de subjetivação que mostram o
envolvimento do aluno na aula. Na percepção desses processos, pode-se pensar os modos de
subjetivação, uma produção de mundos que eclode no espaço da aula e invade a vida. As produções
textuais dos alunos deixam ver os vestígios dessa experiência. Marcas que se imprimem no encontro
da atividade artística com a aula de filosofia. Imprevisibilidade curricular que produz conhecimento no
agenciamento da arte com uma disciplina filosófica. Desenho de uma dimensão da aula como
procedimento educativo na vida.
2
UMA DIAGONAL É TRAÇADA: A OPORTUNIDADE DO ENVOLVIMENTO
Agora refletirei mais precisamente se talvez
não se encontrem em mim outros
conhecimentos que ainda não haja
percebido (DESCARTES, 1999).
O que acontece quando uma diagonal inesperada é traçada na aula? É possível riscar uma linha que
deslize um saber sobre o outro? Que se dá quando a aula reúne elementos de campos distintos?
Questões se apresentam e se põem a problematizar a aula. A problematização da aula é sua
desacostumação. É a composição de um traçado de aula que se inaugura na discordância com os
modelos, esquemas e estruturas aconselháveis para a elaboração de uma aula. O problematizar se
dá no fazer uma outra coisa, porém no mesmo espaço onde os modos de aula compartimentizam,
dividem o saber e o estudar em disciplinas estanques. Problematizar faz discordar, provocar um
estranhamento nas faculdades, um desassossego do pensar. E, assim, produzir outros modos
estudar, de escrever, de pintar. E, assim, produzir outros modos de existir. E, assim, intensificar as
forças criadoras do nosso educar. E, assim, criar vínculos entre o aluno e a aula. E, assim, envolvê-lo
na aula, envolver a aula na vida.
[...] liberar a linha e a diagonal,
traçar a linha em vez de coordenadas,
produzir uma diagonal imperceptível [...]
(DELEUZE; GUATTARI, 2008, p. 94)
Poderia uma diagonal produzir uma flexão nas forças do filosofar e do aquarelar colocando-as em
relação², tornando possível a constituição de uma aula como procedimento educativo na vida? Que
se dá nessa aula? Que efeitos essa diagonal produz? Que implica a configuração de uma aula
assim? Que modos outros de filosofar, escrever e pintar passam a existir neste agenciamento? Que
intensidades movimentam a aula quando a filosofia e aquarela se relacionam com a escrita? Seriam
as intensidades o motor do envolvimento? Há envolvimento sem intensidades? Questões que se
inventam e se mantém na constituição de uma pesquisa. Questões que se produzem na aproximação
de campos heterogêneos. Questões que se mostram nos escritos dos alunos em composições
textuais que dão voz ao vivido e ao estudado. No texto abaixo, a voz de um envolvimento:
Numa faculdade de Educação uma aula nada comum acontece. Tem-se por
proposta: problematizar conhecimento e verdade. Mas será isso que se
espera num curso de Pedagogia? Acho que não. Problematizar verdade?
Conhecimento? Lá, criam-se verdades, criam-se conhecimentos. E nessa
aula nada comum, o que acontece? Ah! Acontece. Quem chega, estranha.
Eu me assustei. Essa aula tem cheiro, tem cor, tem movimento, tem
escrita, tem sofrimento, tem vibração, tem alegria, tem...tem...Tem algo que
me toca, que me inquieta, que me silencia, que me tira do lugar estático,
me faz até chorar. É, eu chorei! Meu corpo se envolveu tanto que não
conseguiu segurar as lágrimas. O fazer artístico brigava comigo. O pincel
não obedecia aos meus comandos. Eu fazia, ele desfazia, eu construía, ele
desconstruía... E para falar disso? A professora pediu que eu falasse, e eu
apenas chorei! Nem sei por quê... Me envolvi...Minha vida entre a produção
escrita, entre a produção artística. Já nem sabia mais quem eu era... A
verdade tornou-se um problema! (Aline Rosa, grifos nossos).
Na voz de da menina Aline Rosa é possível observar o envolvimento positivo da aluna com o estudo,
levando-a ao questionamento filosófico da própria experiência, na perspectiva dos autores estudados.
A atividade artística, através da materialidade da pintura implica o corpo junto ao pensar filosofia.
Ação que coloca em movimento, desloca territórios, lugares estabelecidos, envolvendo e motivando o
aluno nas aulas e colaboram para a visualização das forças do pensamento, em seus aspectos
representacionais e de composição de fluxos, permitindo o contato experiencial com as concepções
de mundo dos autores estudados.
Tabela 2 – A sala de aula de pintura na Faculdade de Educação e o texto de Aline Amarela, aluna da
Licenciatura em Pedagogia.
A escrita coletiva é produzida por vozes.
Quais vozes?
Múltiplas para se fazer um coletivo.
Quais vozes estão ecoando?
Vozes cartesianas? Vozes nietzschianas?
Vozes embaraçadas?
Vozes baixinhas. Sussurros e alguns
silêncios.
Um conhecimento fazendo seus caminhos:
territorializar e desterritorializar.
Isso mesmo, um oferecendo chão e outro
tirando o chão.
As singularidades fazem rebolir os
conhecimentos.
Nesse reboliço, quanto um corpo suporta?
Quanto cada corpo pode aguentar?
A aula-diagonal se configura provisoriamente na compreensão da aula enquanto composição de
linhas (DELEUZE; GUATTARI, 2008). Linhas que juntas formam a superfície da aula. Linhas em
multiplicidade, configuradas em tensão, no surgimento de uma singularidade provisória, no meio de
um mundo em devir. Uma ação que procura instituir a aula como um entre, uma fronteira mantida,
onde a tensão do existir pode habitar e implicar a aula junto à vida.
[...] Com efeito, não é o ponto que faz a linha,
é a linha que arrasta o ponto desterritorializado,
que o arrasta para sua influência exterior;
então, a linha não vai de um ponto a outro,
mas entre os pontos ela corre
numa outra direção que os torna
indiscerníveis [...]. (DELEUZE;
GUATTARI, 2008, p. 97).
A aula como um acontecimento singular: filosofar-aquarelar-escrever. Um indistinto atuar,
desinstalador de hierarquias, instaurador de simultaneidades. Uma aula produzindo e inventando
simultaneidades: a simultaneidade entre o pensar da pintura e fazer da filosofia. A simultaneidade
entre o abordar temas filosóficos em sala de aula e o construir artístico de um escrever. Zona de
tensão e envolvimento.
[...] A linha está entre os pontos,
no meio dos pontos,
e não de um ponto a outro [...].
(DELEUZE; GUATTARI, 2008, p. 97).
A aula como um acontecimento singular, registrado em composições textuais: vestígios de um vivido,
deixando marcas. Marcas que vão produzindo um existir, disparando diferenças, engendrando
rupturas que se abrem à passagem do inédito em outras produções. Marcas que são a gênese de um
devir.
3
A LINHA FILOSOFAR-AQUARELAR-ESCREVER: TORNAR O
ENVOLVIMENTO VISÍVEL
“Toda verdade é simples.”
– Isso não é uma dupla mentira?
(NIETZSCHE, 1983).
Uma linha tensiona: filosofar-aquarelar-escrever, linha em fuga na aula. Processo de
desterritorialização. Potência de produção de uma filosofia, de uma pintura, de uma escrita.
Manutenção de tensão, de entre. Manutenção da aula, fazendo fugir certos modos de produção da
aula. Fazendo fugir algo dela: potências de vida. Zona fronteiriça onde os modos de existir fazem
fugir um sistema, escapando dentro dele.
Tabela 3 – A pintura do velado e a voz de Aline Verde, aluna da Licenciatura em Matemática.
Um projeto: produzir uma obra.
Como?
Criar superfícies em tons bem claros,
fazendo uma sobre a outra, ao final, terá as cores
e formas desejadas.
Um projeto: viver a vida.
Como?
Organizar as tarefas, dividir o tempo,
ponderar as relações, ao final, alcançará o
sucesso.
Um papel em branco, tintas, pincéis, secador.
Um corpo, espaço tempo, tarefas, metas.
Começo com as cores primárias, azul, vermelho,
amarelo.
Começo do mais simples, escola, graduação,
trabalho, mestrado...
Papel demarcado, deixo a surpresa para depois.
Vida planejada, deixo o melhor para depois.
Assim, na Faculdade de Educação, uma escrita se fez junto ao que se estudou e pintou. Viu-se a
materialidade da pintura implicando a escrita junto ao pensar filosofia. Viu-se uma diagonal movendo
espaços de aula, deslocando lugares estabelecidos, impossibilitando estruturas prévias, deslizando
saberes uns sobre os outros. Invenção de planos moventes. Linhas em produção. Linhas de
atividades artísticas produzindo superfícies. Superfícies ocupadas por conceitos da filosofia.
Conceitos imbricados em instâncias outras: papel, água, tinta, pincel.
Que vidas se produziram neste experenciar? Que corpos se inventaram nessa produção? Entre as
inquietações de como se dá a verdade, os exercícios de cor e forma escaparam à figuração e
produziram véus de cor por onde o ar e o pensamento puderam passar, atravessar. Encontros
inquietos, moventes, desterritorializando saberes constituídos. Nesta inquietação, a produção de um
problema outro: que conhecimento? Que verdade? A materialidade da pintura produzindo efeitos na
filosofia. Encontros inventados. Inventos. Uma produção de verdades. Uma produção de
conhecimentos. Uma aquarela-filosofia-escrita disparadora de intensidades sensíveis e inteligíveis.
Produção de uma aula em educação.
Tabela 4 – O trabalho final de uma aquarela e a voz de Aline Verde, aluna da Licenciatura em Matemática.
Um susto: a obra precisa ser terminada em 20 minutos.
Um susto: a vida nem precisa de 20 minutos para terminar.
A obra não pode terminar assim.
A vida não pode terminar assim.
Um papel em branco, tintas, pincéis, secador, cores, cheiros.
Um corpo, espaço, tempo, tarefas, metas, afetos e desafetos.
Sentado não dá mais para ficar.
O corpo se levanta.
Pinta, corre, dança, se movimenta...
Posso pegar o seu amarelo?
Vou pegar seu vermelho!
Uma mão pinta, a outra seca.
O que é derramado vira parte da obra.
Como buscar a surpresa deixada para o futuro?
O melhor deixado para depois?
Não há tempo de planejar,
apenas fazer para salvar a obra, para salvar a vida...
No fazer, o colorido surge no entre das cores primárias.
E as potências no entre das relações das forças.
O tempo acabou.
O colorido vivificou.
A singularidade de cada pincelada produziu a pluralidade das formas.
A obra não acabou, mas ficou pronta.
A vida foi salva pela obra...
A obra foi salva pelo devir...
A vida virou obra de arte...
Devires...
NOTAS
1 Este recorte fará parte do capítulo que discutirá currículo na tese de doutorado ainda em fase de pesquisa no Programa de
Pós-Graduaçãoem Educação, da Universidade Federal de Juiz de Fora.
2 Colocar em relação está próximo ao conceito de agenciamento em Deleuze: “se está em presença de um agenciamento
todas as vezes em que pudermos identificar e descrever o acoplamento de um conjunto de relações materiais e de um regime
de signos correspondente” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 20), onde a produção de sentido se dá na articulação de heterogêneos.
REFERÊNCIAS [Arial, 12, bold, alinhamento à esquerda]
Deleuze, G. & Guattari, F. (2008). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34.
Descartes (1999). Discurso do método. As Paixões da alma. Meditações. São Paulo: Abril Cultural.
Nietzsche, F. W. (1983) Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural.
Pimenta, O. (2000). Razão e conhecimento em Descartes e Nietzsche. Belo Horizonte: Editora
UFMG.
Zourabichvili, F. (2004). O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Conexões.
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