MITO E LOGOS NA PERSPECTIVA DA GESTÃO DO CONHECIMENTO Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. rive2001@gmail. com O mito pode ser definido como uma explicação do atual por um acontecimento primordial que está sempre presente, havendo um liame, através do rito, entre o atual e o primordial. Em decorrência do fato de o mito se referir a um acontecimento primordial para explicar o atual, situa-se num espaço e num tempo sagrados, que conferem validade ao espaço e tempo profanos, constitutivos da cotidianeidade. Dessa forma, o mito pressupõe uma dimensão vertical, que se ergue por sobre a horizontalidade dos fatos humanos. O mito explica o tempo e o espaço cotidianos pelo espaço e tempo sagrados. Daí que na linguagem mítica os relatos comecem, geralmente, com a seguinte expresão: “Naquele tempo...”, (“in illo tempore...”). O mito é um modelo. É o ponto de referência de toda atividade e de toda eficácia. Pelo fato de o mito, através do rito, estabelecer um liame entre o atual e o primordial, possui uma dimensão mágica, ou seja, produz resultados. O rito não é apenas uma encenação, uma repetição. É uma ação eficaz. Produz resultados, como dizem os teólogos “ex opere operato”, ou seja imediatamente. As mesmas palavras que moldaram o Universo são utilizadas nos ritos de fecundidade. Os ritos de orientação repetem essa mesma dinâmica, ou seja, trazem para a cotidianieidade humana os atos arquetípicos de fundação do mundo e de estabelecimento dos pontos cardeais. O mundo é considerado como emergindo de um caos e de um espaço não organizado. Os ritos que lembram a fundação da cidade (como, por exemplo, os que se referiam à fundação de Roma), referem-se, analogamente, à formação do cosmo. A cidade é um microcosmo, imita o mundo. Precisamos distinguir dois tipos de mito: cosmogônicos e de origem. Os primeiros referem-se à organização primeira do Universo. Os segundos tentam explicar o início de uma instituição ou de um costume. Exemplo dos primeiros é o poema mesopotâmico Enuma Elish, que relata a formação do mundo, a partir das águas primordiais. Exemplo dos segundos é o mito da fundação de Roma por Rômulo e Remo, depois de terem sido salvos e amamentados por uma loba. Centremos a atenção nos mitos cosmogônicos. Em que pese a sua diversidade, encontramos neles uma estrutura semelhante: são triádicos. Do ponto de partida unitário e original, emergem dois princípios que se contrapõem, sendo um deles masculino e ativo e o outro feminino e passivo. A contraposição desses elementos secundários repete-se em todos os seres do cosmo, sendo que todos eles tendem à busca da unidade perdida. Na cultura indiana encontramos três relatos cosmogônicos desse feitio. Na tradição dos Vedas, por exemplo, tudo provém de Purusha (o homem côsmico), de onde emergem o Céu e a Terra, a partir dos quais se formam todos os seres. Na tradição dos Brâmanes, por sua vez, tudo decorre de um princípio único, as Águas Primordiais, de onde surgem o Ovo Côsmico e Prajápati, sendo que desses dois elementos é feito o mundo. Já na tradição dos Upanishads encontramos uma origem de tudo, Rajas (elemento ativo), de onde provém Sattva (elemento luminoso) e Tamas (elemento escuro), princípios a partir dos quais se forma o cosmo. Na cultura chinesa encontramos uma unidade originária, Pan-Kou ou Pan-Gou (o homem primordial), de onde surgem Yang (princípio ativo e masculino) e Yin (princípio passivo e feminino), a partir dos quais se forma o mundo, sendo que em todos os seres há um princípio ativo e um princípio passivo. Uma estrutura mítica semelhante encontramos na cultura mesopotâmica, no relato do Enuma Elish (que era recitado pelos sacerdotes no Ano Novo) e segundo o qual tudo provém de uma origem única, Apson (as águas primordiais), de onde surgiram dois princípios contrapostos, Marduk (a luz) e Tiamat (as trevas), que travam um combate no qual Marduk vence Tiamat e o divide em dois, formando com uma metade a abóbada celeste e com a outra a terra. Essa estrutura mitológica foi o quadro de referência do mito da criação que aparece no livro do Gênese, na Bíblia judaico-cristã, no relato cunhado à luz da Tradição Sacerdotal, que recolheu a influência mesopotâmica durante o Cativeiro da Babilônia. Efetivamente, nessa narrativa bíblica, o Ruaj de Elohim (o sopro de Deus) paira sobre a superfície das águas, criando em primeiro lugar a luz, colocando a seguir no cosmo astros e estrelas, separando logo as águas inferiores das superiores, fazendo surgir das águas inferiores a terra e colocando nela, por último, pedras, vegetais, animais e homens [Gen. 1, 1-31]. No livro do Gênese, aliás, encontramos um relato da criação do cosmo mais arcaico do que o mencionado: trata-se da narrativa configurada à luz da Tradição Yahvista [Ge. 2, 4-25], segundo a qual do Barro primordial Yahvé formou o homem, soprando no seu nariz o seu Sopro de Vida e fazendo-o, assim, à sua imagem e semelhança. É evidente, aliás, na tradição bíblica, seja na versão sacerdotal, seja na yahvista, a concepção monoteísta, que não aparece, entretanto, em outros mitos cosmogônicos. Na cultura grega encontramos, por sua vez, uma origem primordial de tudo, o Caos, de onde surgem o Céu (Uranos), princípio ativo, luminoso e masculino, e a Terra (Gaia), princípio passivo, escuro e feminino. Ora, a partir de Uranos e Gaia forma-se primeiro o cosmo e depois o homem. Da luta entre Uranos e Gaia surge uma primeira geração de figuras mitológicas monstruosas (Titãs, Ciclopes e Hecatôngiros), que simbolizam as forças cegas da natureza. O homem é formado a partir da união entre Chronos (um dos Titãs, portanto filho de Uranos) e Rhea, filha do Caos. A vida humana é simbolizada como uma luta que o homem deve travar entre a consciência (representada por Zeus) e as tendências instintivas e inconscientes (simbolizadas nos irmãos de Zeus: Poseidon – satisfação perversa do desejo -, Hades – inibição perversa do desejo -, Hestia – pureza que despreza a libido -, Demeter – instinto da fecundidade – e Hera – símbolo do amor e da libido -). O relato mítico grego foi legado à posteridade através da obra de Hesíodo intitulada A Teogonia. A natureza é apresentada ali como manifestação progressiva dela mesma, através de uma série de etapas. Trata-se de uma revelação com caráter ôntico, porquanto a natureza se revela em várias ordens de ser. Mas, de outro lado, há uma certa organicidade nesse se revelar a natureza, pois cada grau dela está implicado no anterior. A respeito, frisa Jean Ladrière nas suas Lições de Crítica das Ciências e de Cosmologia, comentando os aspectos fundamentais do mito cosmogônico grego: “Há um sentido ontológico, pois essa sucessão de níveis deve ser interpretada como um encaixar os fundamentos. Cada etapa, efetivamente, permanece no interior das etapas ulteriores. O que significa que cada dobra da realidade continua exercendo a sua virtude no interior das dobras subseqüentes. Isso significa, ainda, de um ponto de vista mais abstrato, que cada uma dessas dobras da realidade representa verdadeiramente uma condição da realidade global. A sucessão significa que cada etapa permanece presente no interior das seguintes, que cada etapa é condição para as ulteriores. Temos, assim, um encadeamento de condições, ou ainda um encadeamento de fundamentos. De outro lado, todo esse processo se origina no Caos. Este não é uma simples desordem, nem uma mistura primordial. É, pelo contrário, o pano de fundo em que tudo aparece. É a unidade que abarca e sustenta tudo. Além disso, a formação do mundo é explicada por uma oposição de princípios contrários. Temos um princípio ativo e um princípio passivo, um princípio celeste e um princípio terrestre. O Céu é o espaçio concebido como receptáculo universal. Ao mesmo tempo, é o elemento luminoso, formador, legislador, o elemento que é princípio de ordem. A Terra ou Gaia, de outro lado, é uma potência de desordem, é um princípio de opacidade, é aquilo que opõe resistência à difusão da forma, é o que em virtude dessa resistência explica a limitação e a divisão. A união do Céu e da Terra enseja o processo gerador. Dessa forma, o movimento fundamental da realidade é o encontro dos dois elementos, Terra e Céu. Esse encontro é ao mesmo tempo luta, oposição e complementariedade” [Ladrière, 1967]. O mérito dos presocráticos consistiu em terem traduzido as imagens do mito cosmogônico grego em conceitos. Mas essa tradução não foi instantânea. Primeiro começaram a falar em elementos de que tudo se constituía. Uns enfatizam a água, outros o fogo, outros a terra, outros o ar. Mas o que lhes interessa é ir traduzindo as imagens em algo que não deixa de ser imagem, mas que, ao mesmo tempo, diz algo mais. Quando Tales de Mileto, por exemplo, diz que o constitutivo de tudo á água, não se refere exclusivamente ao elemento físico, mas quer se remontar até o princípio de onde tudo provém. É por isso que Nietzsche considera que Tales é o primeiro metafísico, porque buscava enxergar a origem última dos seres, aquilo que seria a conditio sine qua non de tudo. Embora fose também um físico, preocupado com a análise experimental dos elementos. Mas é no mito onde a metafísica grega, já mais evoluída após o ciclo presocrático, vai encontrar a inspiração para a estrutura concentual com que tenta representar a realidade. A imagem do Caos será substituída na metafísica aristotélica pelo conceito de Ser, ao passo que Uranos será traduzido como Ato e Gaia como Potência. Temos, assim, os elementos fundantes da metafísica da potência e do ato, que servirá de base conceitual à filosofia ocidental até o início do período moderno. Mas as categorias filosóficas não surgiram da noite para o dia. Ao longo dos séculos VI ª C.até IV ª C, houve um convívio estreito entre mitologia e filosofia. Vejamos, por exemplo, a presença de imagens plásticas originárias dos mitos, bem como de conceitos filosóficos, no seguinte trecho de Heráclito de Éfeso, que data do século VI ª C.: "O fogo se converte em mar, e uma metade do mar vira terra, enquanto a outra se converte em nuvem ardente. No entanto, o mar não cessa de provir do mesmo lógos, a partir do qual ele se originou, antes mesmo de que nascesse a terra". Ora, no trecho em apreço encontramos imagens provenientes dos mitos gregos: mar, terra nuvem ardente, que nos lembram os quatro elementos, sendo que na última imagem achamos o ar (nuvem) e o fogo (ardente). Mas aparece, de forma explícita, o conceito filosófico-mor: lógos, a palavra da razão que dá nome ao mundo e aos seres nele presentes. O próprio Platão, outrossim, em pleno século V ª C., já no momento do florescimento da Filosofia Grega, exprime-se utilizando figuras míticas e conceitos. A sua obra filosófica é expressa poeticamente em forma de diálogos, que se referem aos mitos tradicionais da Grécia clássica, colocando genialmente, ao lado das figuras míticas, conceitos fundamentais da Filosofia como ser, arquétipo, ética, razão, finalidade, amor, felicidade, etc. Platão, aliás, na sua obra A República, escreve: "O mito foi salvo do esquecimento e não se perdeu. Ele pode, se lhe dermos crédito, salvar-nos a nós mesmos". Ou seja, sozinha a razão não encotra um norte para a sua caminhada. Precisa se projetar sobre a rica tradição mítica da Humanidade, a fim de se renovar, voltando a indagar, com força renovada, acerca do começo de tudo. Mas a tradição mítica, recordemos, encarna-se hoje na Literatura e na Religião, bem como na Ciência, que é a moderna manifestação do mito de Prometeu. Somente no diálogo humanístico entre a Filosofia e as outras grandes criações da cultura humana, (Ciência, Arte e Religião), é como a Filosofia conseguirá dar respostas adequadas aos problemas insolúveis que, hoje como há cem mil anos, angustiam ao ser humano. Augusto Comte tinha formulado, no seu Curso de Filosofia Positiva, a Lei dos Três Estados, segundo a qual a razão humana percorre três etapas ao longo da sua evolução, tanto do ponto de vista da ontogênese (nos indivíduos), como da filogênese (na espécie). Ora, segundo esse postulado, tanto o homem individual quanto a espécie humana primeiro representaram e explicaram o mundo teologicamente ou seja em imagens míticas, e somente depois foram capazes de pensar de maneira filosófica ou metafísicamente, para, por último e como fruto da evolução progressiva da razão, chegarem a elaborar explicações positivas ou científicas, que constituiriam a mais perfeita e definitiva forma de conhecimento, que dispensaria as outras duas. A explicação de Comte tem uma parte verdadeira e outra falsa. A verdadeira consiste em ter reconhecido três formas de conhecimento intimamente ligadas entre si, a mítica, a metafísica e a científica. A parte falsa consiste em ter formulado essas três modalidades como se excluindo temporalmente, pensando que a metafísica excluiria o mito e que a ciência excluiria as outras formas de conhecimento que lhe possibilitaram o surgimento. Trata-se, pois, de recuperar a validade da teoria comteana, inserindo as três formas de conhecimento num quadro de contemporaneidade. Afinal mito, metafísica e ciência, são três formas de conhecimento complementares, que se pressupõem e que não podem se invalidar mutuamente. Cada uma delas fornece um tipo de conhecimento qualitativamente diferente. Mesmo que dominemos as ciências, não podemos negar a validade dos mitos (que se exprimem hodiernamente nos credos religiosos ou nas tradições populares), e tampouco poderemos exorcizar a filosofia (que resgata a dimensão holística e de sentido da existência). O homem do século XXI, aliás, em que pese o desenvolvimento fantástico das ciências e da tecnologia, como demonstrou o filósofo polonês Leszek Kolakowski na sua obra intitulada A presença do Mito, é tributário de tradições mitológicas que aceita sem maior discussão e que formam parte essencial do seu entorno cultural. Míticas são personagens como o herói ou o bandido (que povoam o universo das histórias em quadrinhos e dos westerns); míticas são figuras como os monstros primordiais (que inspiram os dragões das estórias infantis e que ainda nos assombram em certas produções cinematográficas); míticas são as representações das forças cegas da natureza (presentes no cinema-catástrofe); de inspiração mitológica é a automação (já prevista por Aristóteles e pelos mitos gregos nas lendárias figuras de Vulcano e Prometeu); magia mítica dá ensejo aos filtros de amor ou aos xaropes mágicos, precursores da alquimia e dos hodiernos analgésicos (há poção mágica para tudo: dor de cotovelo, dor de cabeça, depressão, etc.). Não se trata, pois, de banir o mito das nossas vidas, mas de não deixar que ele nos narcotize, fazendo sucumbir o reto uso da razão. Nada melhor para conservá-lo vivo e nos seus limites, do que praticar a sistemática reflexão filosófica acerca das modalidades culturais em que ele se encarnou na Literatura, nas tradições populares que formam o Folclore, na Religião e na Ciência. Bibliografia consultada ABREU, Antônio Daniel (Editor). Mitologia chinesa (Mitologia Primitiva) Quatro mil anos de Hisitória através das Lendas e dos Mitos Chineses. São Paulo: Landy Livraria Editora, 2000. CHIA CHING, Suo e Luo SI WEI. China - Lendas e Mitos. (Adaptação literária de Margarida Finkel). São Paulo: Roswitha Kempf Editores, s/d. COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. (Tradução de José Arthur Giannotti). 1ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1973, Coleção Os Pensadores. DROZ, Geneviève. Os mitos platônicos. (Tradução de Maria Auxiliadora Ribeiro Keneipp). Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997. ELIADE, Miercea. Aspectos do Mito. (Tradução de Manuela Torres). Lisboa: Edições 70, a986. ELIADE, Mircea. 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