Considerações sobre as teorias das relações interétnicas Prof. Jacó César Piccoli – UFAC O estudo das relações entre sociedades, entre culturas e entre etnias tem sido uma preocupação constante da história das ciências sociais e, particularmente, da antropologia. Em alguns países, como por exemplo a França, estas questões foram estudadas sob o prisma da interpenetração de civilizações, enquanto que, em outros, especialmente nos Estados Unidos da América, o tema foi investigado sob um viés eminentemente cultural e serviu para justificar o desenvolvimento da escola culturalista americana. Contudo, a tradição antropológica não se limitou as explicações fornecidas por estas orientações e, desde o início deste século, vem acumulando, seletivamente, múltiplas contribuições teóricas e metodológicas sobre o problema. Este trabalho tem por objetivo examinar e avaliar as principais correntes da tradição antropológica que abordaram a questão do contato interétnico, bem como situar e discutir a idéia de resistência (social) e a possibilidade de sua inserção no conjunto de procedimentos operativos à análise das relações interétnicas. No sentido de precisar as contribuições que serviram de base à elaboração desta análise, procedeu-se, inicialmente, a uma breve revisão crítica da documentação bibliográfica disponível sobre o tema, procurando não apenas examiná-las mas também avaliá-las. Em seguida, procurou-se estabelecer algumas inferências relativas à idéia da resistência e suas implicações para o entendimento das situações de contato. A teoria da aculturação A teoria da aculturação foi a primeira tentativa de se sistematizar um quadro de referências teórico-metodológicas para analisar e interpretar a questão do contato. Esta teoria tem sua origem a partir das pesquisas e estudos antropológicos elaborados, nos Estados Unidos, a partir do início do século XX, por pesquisadores filiados ao difusionismo e ao funcionalismo. A ênfase em descrever os fenômenos do contato cultural e em explicar os fatos relacionados à mudança cultural como um troca de traços culturais deram origem a inúmeras pesquisas de campo que foram sistematizados e difundidos internacionalmente pela escola culturalista norte-americana. Os conceitos elaborados por esta escola privilegiam a dimensão cultural, partindo do pressuposto de que a sociedade nada mais é que um conjunto funcional de instâncias culturais e de que todo o processo de mudança resulta da simples transmissão e aceitação de traços culturais que causam alterações nos padrões de cada cultura. Ralph Linton, Robert Redfield e Melville Herskovits foram os pioneiros do culturalismo, os primeiros antropólogos a sistematizar um conceito para explicar o contato entre sociedades dentro de uma perspectiva intercultural. Em “Um memorando para o estudo da aculturação”, publicado em 1936, assim definiram a aculturação: 2 O conjunto de fenômenos que resultam de grupos de indivíduos, de culturas diferentes, quando entram em contato contínuo de primeira mão, acarretando mudanças subseqüentes nos tipos culturais de cada grupo1. Posteriormente, os culturalistas reelaboram o conceito de aculturação. Primeiro, considerando não ser mais necessário contato direto e contínuo para a existência do processo aculturativo. Procuram, desta maneira, enquadrar os contatos culturais que não dependem da intervenção física dos agentes culturais: é o caso do contato através dos meios de comunicação. Assim, através de um novo memorando, publicado em 1954, os culturalistas procuraram enfatizar e reforçar o caráter autônomo da cultura nos processos de contato e, após um amplo levantamento sobre a aculturação, realizado nos mais diversos países, redefiniram o conceito como: uma mudança cultural produzida pela conjunção de dois ou mais sistemas culturais autônomos2. 1 LINTON, Ralph; REDFIELD, Robert and HERSKOVITS, Melville. A Memorandum for study acculturation. American Anthropologist, 1936, Vol. XXXVIII, p. 149. 2 SIEGEL, VOGT, WATSON and BROOM. Aculturation: An Exploratory Formulation. American Anthopologist, Vol. 56, nº 6, 1954. Wisconsin. 3 Alguns autores culturalistas, preocupados em interpretar uma série ampla de fatos interculturais, que fugiam ao modelo teórico proposto conceberam e desenvolveram a idéia da bidirecionalidade. Assim, Herskovitz concebeu a aculturação como um processo de dupla direção. Com isso pretendia dar conta de uma série de fatores intervenientes no processo de contato como, por exemplo, as reações das sociedades tradicionais face às influências externas produzidas por sociedades de cultura ocidental, a rejeição das inovações, enfim, a não passividade diante dos fatos do processo aculturativo entre culturas diferentes3. No quadro teórico do culturalismo ainda se podem situar as contribuições de Bronislaw Malinowski, ainda que preso à sua teoria funcional da cultura. Procurou interpretar os fatos resultantes do contato de forma diversa daquelas até então realizados pelos demais autores culturalistas. Para explicar o contato toma como exemplo a África Colonial, afirmando que no contexto africano devem-se distinguir três conjuntos culturais coexistentes: a antiga cultura africana, a cultura importada da Europa e a nova cultura compósita. Segundo Malinowski, a cultura compósita ou cultura de contato resulta das trocas e substituições culturais realizadas ao nível de cada instituição cultural entre as demais culturas envolvidas na situação de contato. A partir da substituição de traços e valores culturais resultaria uma nova cultura como se fosse um composto das duas anteriores. Utiliza para explicitar os fatos relativos à mudança cultural um esquema metodológico próprio, à semelhança de uma tabela de três entradas, onde cada um dos três conjuntos culturais ou culturas participantes integram três colunas verticais, tendo 3 Ver neste sentido HERSKOVITS, Melville. Man and Hits Works: Antropologia cultural, Tomo II, São Paulo, Mestre Jou, 1973, p.342-5. Também: MALINOVSKI, Bronislaw. Dynamics of Culture Change.. 4 correspondentes homólogos nas diversas entradas horizontais que representam o conjunto dos traços culturais4. No Brasil a corrente culturalista constitui o primeiro referencial teórico para entendimento dos fenômenos relacionados ao contato sociocultural e à mudança cultural. Influenciados e até formados de acordo com os princípios da escola da aculturação, diversos antropólogos nacionais desenvolveram estudos e pesquisas de campo através dos quais procuraram interpretar uma série de situações de contato, sobretudo aquelas entre índios e brancos, sob um prisma eminentemente cultural. Ao longo das décadas de 1940, 1950 e 1960 surgem diversos autores da mudança cultural a partir dos paradigmas culturalistas, tomando como universos de investigação os diversos contextos culturais do Brasil multiétnico: índios, negros, etnias de origem européia etc. Gilberto Freire, um dos mais destacados culturalistas, dedicou-se a estudar as influências da miscigenação social e cultural entre índios, negros e europeus (portugueses, holandeses, franceses, etc) na formação da nacionalidade brasileira. Fundamentado nos conceitos e princípios da escola culturalista, abstraiu todo processo de conflito e contradição que envolveu a formação da nacionalidade brasileira. Arthur Ramos, por sua vez, ao discutir o problema do negro no Brasil, chegou a elaborar um esquema teórico- 5 metodológico para entendimento da aculturação negra5. Entre 1950 e 1959 Eduardo Galvão realizou inúmeras pesquisas de campo, algumas em parceria com o antropólogo culturalista americano Charles Wagley, sobre os fenômenos de mudança cultural observados na região do rio Negro, na região do alto Xingu e no Pará. Nestes estudos Galvão já constatava aspectos críticos nos modelos teóricos tradicionais para a compreensão da totalidade de situações de contato experienciadas pelas sociedades tribais brasileiras6. Egon Schaden contemplou prioritariamente as transformações sofridas entre as diferentes parcialidades guarani; desenvolveu estudos não apenas de caráter etnográfico sobre a aculturação, mas também trouxe contribuições teóricas que renovaram esta linha de investigação antropológica7. Após esse breve esboço dos diferentes enfoques da teoria da aculturação, faz-se necessário um balanço dos seus pressupostos e argumentos. A avaliação que segue possui um caráter geral. 1º. Embora seja possível ver nos estudos da aculturação o mérito de descrever e caracterizar o processo de mudança cultural através de conceitos como “assimilação”, “aculturação”, “sincretismo”, “transmissão”, “atualização”, “invenção”, etc., eles não são suficientes para explicar a complexidade de relações que caracteriza o contato entre diferentes conjuntos sócio- 6 culturais. Os fatos aculturativos não supõem, em última instância, a natureza e o tipo de situação em que o contato e a mudança se efetuam. Assim, para os estudos da teoria da aculturação resulta desnecessário considerar, por exemplo, as situações e relações históricas e sociológicas que definem e determinam o contato cultural. 2º. A aculturação parte do pressuposto ideal da bilateralidade do contato intercultural. Isso somente teria validade se o processo de relações interculturais se realizasse dentro de um quadro de trocas mútuas e sem contradição alguma. Entretanto, uma rápida análise dos processos de intercâmbio cultural em curso leva a constatar a unilateralidade de tais processos. Esse fato foi desqualificado pelos culturalistas. A realidade de todo tipo de contato intersocial é historicamente pautada pela troca desigual. Esse fato serve por si só para antecipar que o conceito da “aculturação” não dá conta do fenômeno das relações intersociais e interétnicas em toda sua totalidade. A tentativa de enquadramento de fatos novos e atípicos foi resolvida sem prejuízo do caráter de reciprocidade dos efeitos do contato entre duas ou mais culturas e da persistência das antigas noções difusionistas sobre mudanças. Essa reciprocidade era, na realidade, negada pelos próprios fatos de relação, uma vez que não há um ideal de reciprocidade ou troca equivalente mas, sempre, um grau maior ou menor de desigualdades no jogo das relações intersociais e, conseqüentemente, nas relações interétnicas e interculturais. Nesse sentido, o esquema proposto por Malinowski para apreensão dos fenômenos de mudança cultural permite estabelecer, a priori, que essa tentativa de resolver o problema das 7 culturas em contato e da mudança cultural é amplamente tributária da sua teoria funcional sobre a sociedade. Com base nela é que extrai a teoria das necessidades e da compartimentalização das esferas culturais, necessárias ao entendimento da sua concepção sobre mudança social. Em decorrência, ao analisar o contato, concebe-o como fato ao mesmo tempo integrado e coerente, apesar de contraditório e heterogêneo. Ao considerar as situações de contato enquanto sobreposição de três conjuntos culturais, cai no artificialismo e na explicação fundada num modelo naturalizado de sociedade. Criar um terceiro modelo mantendo as mesmas bases naturalizantes da sociedade significa subtrair à realidade do contato sócio-cultural aquilo que a constitui e forma sua essência, e seu dinamismo: as contradições e os conflitos sócioeconômicos. Há que se reconhecer, no entanto, que Malinowski foi o primeiro a se referir sobre a assimetria no processo de mudança social. 3º. Da postura culturalista deriva uma concepção unilateral e parcial da realidade de contato resultante da supervalorização da idéia de cultura. O culturalismo supõe, no processo de mudança cultural, a inter-relação de duas culturas como autônomas e independentes. Ao estabelecer e fundar o contato sobre a autonomização da cultura, a teoria da aculturação deixa de considerar outros fatores que intervêm na constituição da realidade de contato e deixa persistir uma certa lacuna na sua interpretação. A perspectiva de uma abordagem unilateral restringe uma compreensão total do fato de contato. Decorre daí que os estudiosos dos fenômenos aculturativos operam com culturas dadas, autonomizadas, sem preocupar-se com a dinâmica da sua origem e constituição. Ora a mudança cultural não pode ser entendida apenas através da descrição de 8 empréstimos, transmissões, difusões e rejeições culturais, é preciso explicar as suas determinações, condições, processos, relações e implicações. Isto, só se é possível através de uma interpretação do contato enquanto fenômeno histórico, dinâmico, resultante de um conjunto amplo de determinações e não enquanto simples conjunção ou resultado de instituições ou configurações culturais concebidas estaticamente. Ignorar os fatores que dão organicidade e constituição ao contato significa negar a possibilidade da sua explicação e sentido. Isso equivale a dizer que as mudanças de ordem cultural não ocorrem isoladamente, elas têm na própria dinâmica e contradição inerente ao ser social, sua causa e seu fundamento explicativo. 4º. A resultante lógica da teoria da aculturação e das suas premissas são o desaparecimento ou a assimilação de um dos conjuntos culturais intervenientes no processo de contato. No caso das sociedades indígenas brasileiras, por exemplo, elas estariam fadadas ao destino final da assimilação como única alternativa razoável possível. Ao longo de um processo que poderá ser longo ou lento, a sociedade nacional envolvente, formação social constituída de maior poder aculturador, findaria, de acordo com as próprias condições e situações do contato, por absorver as formações sócio-culturais nativas, conduzindo-as à miscigenação e assimilação plenas. Entretanto, a realidade sociológica e antropológica dos índios brasileiros nega essa tendência. Durante mais de quatro séculos de contato as sociedades indígenas não foram assimiladas à sociedade nacional ou regional. Nesse período o que predominou foram o extermínio e o genocídio em ampla escala. As sociedades que lograram sobreviver permanecem indígenas. Mesmo transfiguradas resistem enquanto indígenas, na sua auto-identificação e reconhecimento 9 externo, diferenciando-se, nitidamente, da sociedade nacional, apesar do amplo processo de dominação a que foram submetidas8. A assimilação e miscigenação só podem ser constatadas a nível individual e jamais a nível coletivo. Na verdade, o que explica a diferenciação e a não diluição das sociedades e culturas indígenas na sociedade ou cultura envolvente é a capacidade de luta e resistência, ativa ou passiva, restaurada e renovada, oferecida pelas sociedades indígenas ao processo de dominação e colonização que caracteriza as relações interétnicas e, conseqüentemente, as relações interculturais. Esta evidência não integra o conjunto teórico da aculturação. Antropologia dinamista. A Segunda e principal tentativa de análise e interpretação do contato interétnico resulta das elaborações da antropologia dinamista. Durante os anos 50 e 60 surgem uma série de estudos que estabelece uma ruptura teórica com a tradição funcionalista e culturalista e renova os fundamentos da antropologia. Entre os autores que se destacaram nesse momento e nas décadas seguintes e cujas contribuições trouxeram novas perspectivas ao fazer antropológico, estão Max Gluckman e, particularmente, Georges Balandier. 8 Ver crítica desenvolvida sobre a aculturação. RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. Petrópolis, Editora Vozes, 1977, p.8 10 Max Gluckman parte de uma crítica aos modelos naturalizastes e autonomizantes da sociedade, colocados e recolocados pela tradição funcionalista e culturalistas e por ele considerado anti-históricos. Concebe a idéia de situação social onde interagem grupos sociais, classes sociais ou etnias em condição de oposição desigual e assimetria e a desigualdade manifestam-se ao nível econômico, social e ideológico. A própria situação social em que se dá o contato é determinada e estruturada por relações antagônicas definidas pelos setores hegemônicos ou dominantes que a integram. Assim a idéia de situação social subjaz a todas as situações de contato entre duas sociedades distintas, como fator de organização, como elemento ordenador da nova entidade social decorrente do contato. Gluckman apresenta como exemplo a história das múltiplas situações sociais de interação entre brancos e negros na África do Sul, de oposição desigual entre os Zulu e os europeus9. A partir da idéia de descontinuidade entre as unidades sociais afirma que as unidades sociais que intervém no contato não podem ser analisadas enquanto entidades fechadas ou homogêneas. Assim, Gluckman, chega à concepção do contato interétnico como fator organizador básico para determinadas comunidades, um elemento ordenador constitutivo da organização social. Ao investigar a existência de uma única comunidade africana branca em Zululand10, Gluckman traz para os estudos das sociedades em contato as idéias de “processo” e, sobretudo, de “campo social”, que irão influir decisivamente 9 GLUCKMAN, Max. Análise da situação social dos modernos Zulu. In: Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo, Editora Globo, 1987. 10 GLUCKMAN, Max. Order and rebelion in Tribal Africa. London, Cohen and West, 1963, p. 214-216. 11 na orientação de diversas pesquisas posteriores. Para ele há no contato um único campo social, um único organismo social onde participam em interconexão dois tipos de sociedade. As contribuições e sistematizações mais significativas da antropologia dinamista para a análise e interpretação do contato interétnico foram desenvolvidas por Georges Balandier. Tomando como paradigma de análise e exemplo a realidade colonial africana discutida amplamente na obra “Sociologie Actuelle de l’Afrique Noire”. Esse antropólogo será responsável por uma revisão e revitalização nos estudos de contato. Balandier inicia a discussão criticando que as pesquisas antropológicas que se preocuparam com as mudanças sociais no contexto colonial sempre o fizeram de forma segmentada, impondo determinações unilaterais aos agentes e processos de transformação11. Assim restringiram-se a examinar fatores específicos como a intervenção da economia monetária, a difusão do ensino moderno, a ação missionária ou evangelizadora, as transformações na estrutura familiar, etc. A totalidade da realidade colonial foi preterida em função do estudo de algumas instituições tendo por referência orientações fundamentalmente culturais, e os conflitos sociais sequer foram analisados ou abordados. Sua crítica à aculturação tem como alvo principal Bronislaw Malinowski, para quem a situação de contato é analisada como uma terceira cultura, cultura compósita, distinta das demais. A situação colonial não resulta de um conjunto de instituições 11 BALANDIER, Georges. Sociologie actuelle de L’Afrique Noire. Paris, Presses Universitaires de France, 1963, p. 3. 1ª ed., 1955., p. 3. 12 que respondem a necessidades, preenchidas nas situações precedentes por instituições similares. O contato e a mudança cultural não se dão através de instituições com funções homólogas12. A situação particular - de qualquer maneira caricata - da África do Sul mostra o quanto os aspectos econômicos, políticos e raciais estão estreitamente ligados e o quanto o estudo atual dos povos da União podem ser feitos senão considerando-se todos estes aspectos. Nós entendemos assim a necessidade imperiosa de considerar a situação colonial como um complexo, uma totalidade13 O colonialismo constitui um processo que envolve uma multiplicidade de aspectos de ordem econômica, social, cultural, ideológica, histórica, etc. e, portanto, requer para sua compreensão uma análise multidisciplinar. Nesse sentido Balandier repassa as diversas contribuições de historiadores, economistas, cientistas políticos e psicólogos no sentido de articular uma visão do problema colonial como uma totalidade. Ao analisar o conjunto de mudanças sociais e culturais ocorridas da África Central, Balandier propõe um enfoque analítico, cuja validade ultrapassa o contexto antropológico e sociológico da África Colonial, tornando-se parâmetro para a análise de outras situações. Concebe a situação colonial como: 12 13 Ibid., p. 10. Ibid., p. 22-27. 13 ... dominação imposta por uma minoria estrangeira, racial e culturalmente diferente, em nome de uma superioridade racial e cultural dogmaticamente afirmada, a uma maioria autóctone materialmente inferior; a tomada de contato de tipo industrial, com uma economia poderosa, de ritmo rápido, e de origem cristã, impondo-se a civilizações carentes de técnicas complexas, com economia atrasada, de ritmo lento e radicalmente não cristã; o caráter antagônico das relações entre ambas as sociedades, explicável pelo papel de instrumento a que se condena a sociedade dominada; necessidade, para manter o domínio, de recorrer não só à força mas também a um conjunto de pseudojustificações e comportamentos estereotipados...14 . Dessa forma a noção de situação colonial recupera à antropologia do contato a noção de situação concebida como totalidade que envolve múltiplas determinações. Esse conceito será amplamente aplicado e testado por pesquisas posteriores a partir da década de 1960. Sua contribuição resultou em uma nova abordagem dos problemas relacionados à mudança cultural e contato entre sociedades que findou por revolucionar os enfoques antropológicos tradicionais. A uma questão cujas análises procediam do plano cultural, calcadas na unilateralidade da interpretação funcional de cultura, Balandier aduziu elementos de interpretação interdisciplinar ao fenômeno. Ao examinar a situação de contato colonial, lançou mão da idéia de totalidade, cuja origem e acepção original foi creditada a Marcel Mauss (Fato Social Total), enfocadas como uma categoria analítica básica para o estudo da situação de contato. Decorre daí a 14 Ibid., p. 34-35. 14 necessidade de que todas as investigações sobre a questão da mudança social devam ser realizadas em situação. Balandier reelaborou as formulações sobre situação construídas por Gluckman, fornecendo ao conceito uma conotação nova, ou seja, de contextualização histórica e de um conjunto integrado e determinado por fatores sociológicos, antropológicos, psicológicos, históricos, econômicos, ideológicos, políticos, etc. Segundo Balandier, só assim, é possível chegar a um estudo válido e completo das sociedades em contato15 . Uma avaliação geral sobre a teoria da situação colonial conduz à seguinte considerações: 1º. Ao retomar e reelaborar a noção de situação, gestada por Malinowski, Balandier a transformou, acrescentando-lhe o caráter de totalidade e historicidade. Para ele a situação colonial constitui o resultado de um encontro assimétrico e conflitivo da sociedade negra colonizada com a sociedade branca colonizadora. Ambas participavam de uma única sociedade (de um único conjunto, de um “fato social total”) oriunda de relações históricas e concretas entre dois povos diferentes. Todos os fatos relativos à mudança cultural têm como pano de fundo esta totalidade social no qual se constituem, se desenvolvem e se enquadram. Resulta dessa perspectiva de análise uma subordinação dos fatos da aculturação à totalidade da sociedade colonial e, conseqüentemente, a desconsideração da cultura como um sistema autônomo com quer a escola culturalista. Sociedade e cultura estão mutuamente articuladas, cumprindo à 15 Ibid., p. 27; p. 35 e p. 36 15 estrutura econômica da sociedade papel determinante no sistema. Essa avaliação positiva que decorre da formulação do conceito de “situação colonial” provém, sobretudo, de haver incorporado as idéias de conflito, contradição e dinamismo, inerente a relações da situação colonial, bem como da idéia de historicidade subjacente a todas as situações de contato. 2º. Apesar dos reconhecidos méritos da sua elaboração teórica, Balandier deixa de explorar a idéia de conflito em toda sua extensão e compreensão. Da mesma forma que Max Gluckman, também concebe o conflito enquanto matéria-prima da coesão social, ou seja, o conflito é considerado como parte integrante do sistema social. Seguindo esse raciocínio, as relações de conflito e cooperação representam redes que, em última análise, visam à manutenção do sistema social. Entretanto, embora as observações de Gluckman encontrem respaldo em situações concretas de algumas sociedades africanas onde é possível subordinar o conceito de conflito à noção de sistema social, elas constituem limitações quanto ao aspecto de ruptura e transformação sistêmicas que as relações conflitivas podem acarretar. O conflito não se esgota em simples transtornos ou perturbações necessárias ao revigoramento de um determinado sistema. Ele carrega em si a possibilidade de superação dos antigos sistemas por outros novos, ou seja, de transformação substantiva e não apenas adjetiva. Há uma potencialidade revolucionária de transformação dos sistemas nos conflitos, mesmo quando enquadrados neste ou naquele sistema. Trata-se, portanto, da negação da ordem sistêmica. Esse aspecto, no entanto, não foi suficientemente elucidado pela teoria da situação colonial. 16 Teoria da transfiguração étnica A terceira tentativa de análise e interpretação do contato interétnico que convém avaliar para os objetivos deste estudo diz respeito à teoria da transfiguração étnica. Desde 1952 Darcy Ribeiro vem demonstrando, através de sucessivos ensaios e pesquisas, a transfiguração das sociedades indígenas brasileiras. Após vasto trabalho de campo, Ribeiro sentiu a importância e necessidade de restaurar a idéia de conflito na análise da mudança cultural. É preciso recuperar em toda sua extensão as contradições e tensões que acompanham as diferentes identidades sociais em relação. A dinâmica das relações sociais evidencia movimentos irreconciliáveis entre as diferentes sociedades indígenas e os diversos segmentos que formam a sociedade nacional. Segundo Darcy Ribeiro, Agora como no passado são sempre as mesmas entidades que se defrontam: uma etnia nacional em expansão e múltiplas etnias tribais a barrar o seu caminho. Compreender os antagonismos e os conflitos resultantes das situações de contato interétnico requer uma ... busca de explicações não apenas nos mecanismo de aceitação e rejeição, orientados por critérios seletivos prévios à situação de contato, mas em termos de agentes causais de natureza cultural e extracultural; no poder de coerção dos fatores sócio17 econômicos envolvidos nas situações de interação; e na capacidade de resistência de cada sistema sócio-cultural a estas diversas contingências16 . Assim, Ribeiro, após avaliar os estudos da aculturação e aqueles que a eles se contrapõem, por enfatizar e superdimensionar os fatores culturais no processo das relações de contato, os segundos, por adotar uma explicação exclusivamente sociológica, considera como Balandier ser necessário e relevante uma abordagem ampla, globalizante e integrada sobre tais fenômenos. Urge, pois, que os fenômenos de contato e mudança cultural, decorrente da conjunção interétnica obtenham enfoques que tenham por base a explicação dos processos econômicos, sociais e culturais como um todo 17. Propõe, em contrapartida, para resolver a unilateralização das abordagens tradicionais, a noção de transfiguração étnica, enquanto conceito capaz de dar conta do conjunto de situações nas quais se dão as relações entre índios e os diversos componentes que integram a sociedade nacional. A transfiguração étnica constitui O processo através do qual as populações tribais que se defrontam com as sociedades nacionais preenchem os requisitos necessários à sua persistência como entidades étnicas, mediante sucessivas alterações em seu substrato biológico, em sua cultura e em suas formas de relação com a sociedade envolvente... 16 17 RIBEIRO, Os índios e a civilização..., p. 8. Ibid., p. 12. 18 E acrescenta, Esta acepção é, na realidade, uma aplicação particular e restrita de um processo mais geral que diz respeito aos modos de formação e transformação das etnias 18 . Para dar operacionalidade à sua proposta teórica de transfiguração étnica Ribeiro apresenta um conjunto de conceitos e princípios teórico-metodológicos, alguns totalmente novos, outros reaproveitados das diferentes tradições antropológicas. Dessa forma, estabelece como condição básica de todo contato um conjunto de fatores causais e níveis que também são necessários à análise das transfigurações, a saber: o “nível ecológico e biótico”, o “nível sócio-econômico” e o “nível ideológico”, os quais se encontram, na realidade, inter-relacionados constituindo um único e mesmo processo19. Além destes níveis, Ribeiro elabora e consigna aos estudos do contato interétnico uma escala ou esquema interpretativo para verificação da transfiguração étnica denominado “graus de integração”, constituído pelas categorias conceituais de “isolamento”, “contato intermitente”, “contato permanente” e “integração”20. Uma análise crítica da transfiguração étnica permite realizar as seguintes ilações: 18 Ibid., p. 13. Ibid., p. 13. 20 Ibid., p. 15; 441. 19 19 1º. A proposta da transfiguração étnica não rompe definitivamente com as orientações anteriores. Há uma preocupação em sintetizar, através de um único enfoque teórico, as contribuições mais recentes advinda da antropologia dinamista, via Gluckman e Balandier, com a tradição aculturativa. Essa síntese, entretanto, vai além de uma simples composição ou integração teórica: ela inova e traz, ao campo particular da antropologia indígena, instrumentos conceituais que permitem uma investigação mais adequada da realidade dos índios brasileiros. Apesar da assimilação plena como resultado ou etapa final do longo “processo aculturativo” não se verificar e ter constatado que, não obstante, as compulsões que atravessam, as sociedades indígenas permanecem indígenas, mesmo que transfiguradamente, é um dos méritos da obra de Darcy Ribeiro. É necessário, contudo ampliar a explicitar as razões pelas quais as sociedades indígenas não se assimilam plenamente. 2º. Apesar de enfatizar o conflito existente nas relações de contato interétnico entre índios e sociedade nacional, a teoria proposta que permeia as relações interétnicas. A questão da resistência, ou a capacidade das sociedades reagirem face a diversas etapas e mecanismos do processo de dominação, apesar de aparecer pela primeira vez um conjunto conceitual, também reclama por ulteriores discussões e aprofundamento. Não basta enquadrá-la como necessária à existência de relações contraditórias. É preciso explicá-la como fator integrante e determinante dessas relações. As atitudes de luta e resistência das populações indígenas para com os agentes da sociedade nacional constituem um contra-processo que se opõe ao sistema de relações 20 dominantes; não podem, portanto, ser abordadas ora como rejeição ora como aceitação, de acordo com a posição do grupo étnico nas diversas situações que constituem a escala de contato. Nesse sentido, apesar de ter avançado na análise, definido a atitude aguerrida dos índios perante a sociedade envolvente, o esquema teórico de Ribeiro deixa em aberto terreno para novas elaborações. Há uma lacuna explicativa que necessita ser superada. A própria teoria da transfiguração étnica a permite. No Brasil, além das influências exercidas pelos conjuntos teóricos da aculturação, situação colonial e transfiguração étnica, diversos autores preocuparam-se com a questão do contato interétnico, sem contudo deixarem de lado os sistemas teóricos de análises e interpretação. Curt Nimuendaju, precursor da etnologia no país, ao desenvolver inúmeras pesquisas etnográficas entre dezenas de grupos indígenas brasileiros, deparou-se como o problema do contato interétnico e chamou a atenção para os efeitos nocivos das relações entre as sociedades tribais e os diversos agentes da sociedade nacional. Na década de 1940 o antropólogo de origem alemã Herbert Baldus, considerado fundador da etnologia brasileira, tributário do funcionalismo germânico, desenvolveu entre tantos outros temas estudos sobre a ação indígenista. Nas últimas três décadas diversos antropólogos nacionais tomaram como fundamento de suas análises a idéia de que o contato entre etnias constitui um fato histórico, contraditório e dinâmico. Na área da antropologia indígena brasileira podem ser citados, entre os antropólogos que mais se destacaram no desenvolvimento desta linha de pesquisa, Carmen Junqueira21, Carlos de 21 Ibid., p. 14-15; 432-434. 21 Araújo Moreira Neto22, Edgard de Assis Carvalho23, Cecilia Helm24, Mércio Pereira Gomes25, Roberto Cardoso de Oliveira26, Silvio Coelho dos Santos27, José Mauro 22 Carmem Junqueira desenvolveu amplo trabalho de campo entre os índios do Parque Nacional do Xingu e grupos tribais de Rondônia, além de trabalhos teóricos sobre política indigenista. A questão do conflito interétnico e a contradição presente às relações entre índios, o Estado e a sociedade nacional são alguns temas constantemente tratados em seus estudos. Constatou a sua ocorrência cujo contato com os diversos agentes da sociedade nacional não é tão intenso. São exemplos disso os Kamaiurá e os Cinta-Larga. Veja-se dessa autora: JUNQUEIRA, Carmen. Os índios de Ipavu. São Paulo, Atica, 1979, 3ª edição. 23 Entre os antropolólogos brasileiros cujas obras mais refletem a situação de conflito e antagonismo entre as etnias tribais e a sociedade nacional destaca-se Carlos de Araújo Moreira Neto. Esse autor é responsável por pesquisas de etno-história e política indigenista. Nesse sentido, ver MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Política indigenista brasileira durante o século XIX. Rio Claro, 2 v. (Tese de doutorado), mimeo, 1971. e MOREIRA NETO, C. A. Ìndios da Amazônia: de maioria a minoria. Petrópolis, Vozes, 1988. Esta última foi de grande valia à elaboração deste trabalho. 24 As contribuições de Edgard de Assis Carvalho à antropologia brasileira têm como fulcro as relações antagônicas e assimétricas entre índios e nacionais reveladas a partir de estudos de natureza econômica. Também realizou ensaios e avaliações críticas sobre as diferentes contribuições teóricas mais recentes no campo da antropologia indígena. Conferir CARVALHO, Edgard de Assis. Terena: as alternativas dos vencidos. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1979. CARVALHO, E. A. Notas para a construção de uma nova antropologia das etnias indígenas. São Paulo, 1990, (Mimeo). 25 As pesquisas de Cecilha Helm entre os Kaingang do Paraná constituem valiosos exemplos de investigação das relações interétnicas e integração do índio na estrutura agrária do país. Veja-se HELM, Cecilha Maria Vieira. A integração do índio na estrutura agrária do Paraná: o caso Kaingang. Curitiba, Tese de Livre-docência apresentada à UFPr., 1974, (Mimeo). 26 Mercio Pereira Gomes em obra recente procura enfocar através de uma perspectiva etnohistórica as diversas situações de conflito entre índios e a sociedade nacional ao longo dos períodos colonial, imperial e republicano. GOMES, Mercio Pereira. Os índios e o Brasil. Petrópolis, Vozes, 1988. 27 Roberto Cardoso de Oliveira é autor da teoria da fricção interétnica que, embora não constitua referência teórica para os objetivos deste trabalho, merece registro. A partir dos anos 60 esta teoria esteve muito em voga no Brasil. Por mais de duas décadas inúmeros antropólogos adotaram o esquema metodológico elaborado por Roberto Cardoso de Oliveira para analisar as relações interétnicas entre índios e brancos. Esta teoria, entretanto, constitui resultado, talvez ainda inacabado, de definições, redefinições, complementações e supressões sobre a questão do contato interétnico. Ver OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Estudo de áreas de fricção interétnica no Brasil. In: América Latina, Ano V, nº 3, julho setembro, 1962. Conferir também OLIVEIRA. Problemas e Hipóteses relativos à fricção interétnica. In: Revista do Instituto de Ciências Sociais. Vol. IV, nº 1. Rio de Janeiro. p. 87. 22 Gagliardi28, Betty Mindlin Lafer29, etc. Sem dúvida, esses autores mereceriam uma análise mais acurada dos seus trabalhos, não apenas essa simples menção. Após esta breve avaliação das principais formulações teóricas sobre o contato interétnico aqui retidas e julgadas relevantes e necessárias à elaboração deste trabalho verificou-se, ainda, que há possibilidades de incorporação da idéia de resistência a teoria das relações interétnicas. Assim, salvaguardas as possíveis limitações, esta revisão das contribuições teóricas pretende discutir a questão como necessária ao estudo das relações interétnicas. A idéia de resistência Esta tentativa de introduzir a idéia de resistência à análise das relações de contato não é nova. A corrente culturalista já se preocupava com o problema; mas, não o equacionou, porque ela o subordinou e o enquadrou apenas como um mero obstáculo ao processo aculturativo. 28 Silvio Coelho dos Santos desenvolveu uma série de estudos sobre o contato interétnico envolvendo índios e brancos no Sul do Brasil. Suas pesquisas sobre a integração dos Xockleng e Kaingang na sociedade regional constituem referências necessárias à prática da antropologia indígena. Ver SANTOS, Silvio Coelho. A integração do índio na sociedade regional ( O papel dos Postos Indígenas em Santa Catarina). Florianópolis, UFSC., 1970. 29 No campo da história da política indigenista brasileira destaca-se o trabalho recente de José Mauro Gagliardi. Conferir GAGLIARD, José Mauro. O Indígena e a República. São Paulo, HUCITEC-SEC-EDUSP, 1989. 23 ... uma oposição consciente e sistemática à introdução de uma ou de inúmeras inovações. Esta resistência pode ser ativa ou passiva, mas ela se caracteriza por uma vontade coletiva que pode ser da sociedade como um todo ou de um grupo mais restrito30. Os culturalistas debitam ao conservantismo das sociedades tradicionais as reações contra os processos de desenvolvimento econômico e social engendrados pelas sociedades mais desenvolvidas. Negam, com isso, o conflito de interesses, as desigualdades e as assimetrias que acompanham as relações entre sociedades em contato. Subordinam a oposição e reação oferecida pelas sociedades indígenas como simples obstáculo à marcha irreversível do progresso. Sem dúvida, referem-se a uma idéia de progresso agenciado pelos países e nações que, em última análise, constitui-se em sujeitos e objetos dos processos de desenvolvimento, como, também, os beneficiários dos programas de aculturação. As resistências, entretanto, não se esgotam num simples conceito de rejeição aos avanços técnicos. Aliás, elas até os incorporam. A resistência diz respeito a um nível do contato onde as relações sociais se constituem e se definem. Refere-se à natureza contraditória e antagônica das relações sociais. 30 As contribuições de Betty Mindlin Lafer à antropologia indígena foram desenvolvidas junto aos índios de Rondônia, principalmente entre os Suruí. 24 As reflexões e discussões aqui produzidas tem por base aprofundar os aspectos já verificados anteriormente pela teoria da transfiguração étnica e, sobretudo, pela teoria da situação colonial. Uma vez situados no campo teórico das relações intersociais e, por extensão, às situações de contato social e interétnico, fez-se necessária uma explicação que conduza a uma nova abordagem conceitual da idéia de resistência sociocultural. Inicialmente, convém discutir a origem e constituição da resistência social. Tem origem nas relações sociais de produção que integram a estrutura econômica de uma sociedade, que determinam e condicionam todos os demais níveis da estrutura social: o nível político, o nível ideológico e a própria organização social. Todo e qualquer tipo de relação social é determinado, em última análise, por relações ontologicamente contraditórias, que em sua constituição em assimetrias de natureza econômica. O conflito, o confronto e a contradição que estão presentes, em maior ou menor intensidade, em toda formação social, são determinados por contradições de ordem econômica que também são responsáveis pela sua transformação e reestruturação. Nesse sentido é oportuno lembrar as reflexões elaborada por Marx na “Contribuição à Crítica da Economia Política”: Na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de 25 consciência social. O modo de produção da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De forma de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social 31. Tendo por base as considerações de Karl Marx sobre a estrutura econômica da sociedade, sua constituição, sua determinação e suas implicações bem como sobre o caráter contraditório que lhe é imanente, é possível inferir a origem e a configuração da idéia de resistência. A resistência seria resultante da tensão existente entre duas ou mais formações sociais, oriunda da contradição entre as forças produtivas e as relações sociais de produção que integram o conjunto da estrutura econômica sobre a qual as próprias relações sociais se constroem e se desenvolvem. Da contradição que existe em toda a estrutura econômica e social, é que emana todo organismo e todo dinamismo social. Nesse sentido, todo ser social, desde o mais simples ao mais complexo, é constituído de uma realidade de dupla faces: de afirmação e negação, de dominação e resistência contraditoriamente unidas e vinculadas. Tanto a resistência quanto a dominação são elementos integrantes e necessários da realidade social. Não pode existir um sem o outro e vice-versa. Sem a resistência, ou a negação da dominação não se realiza a dialética do conflito. As sociedades dela dependem para sua evolução e transformação. 31 METRAUX, Alfred. Resistances au Changement. In: Resistências à Mudança - Fatores que impedem ou dificultam o Desenvolvimento. Rio de Janeiro, Centro Latino Americano de Pesquisa em Ciências Sociais, 1960, p. 71. 26 Para melhor compreender a contradição que é inerente a toda a realidade social e que se revela, de um lado, como uma face de dominação ou afirmação e, de outro, em contraposição, como uma face de resistência ou negação, é necessário recorrer ainda uma vez mais às contribuições do marxismo. Em sentido lato é possível situar a questão da resistência social no âmbito da teoria marxista da luta de classes. No “Manifesto Comunista”, Marx e Engels já afirmavam que A história de toda sociedade até hoje é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burguês da corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante antagonismo entre si, travaram uma luta ininterrupta, umas vezes oculta, aberta outras, uma luta que acabou sempre com uma transformação revolucionária de toda sociedade ou com o declínio em comum das classes em luta32. De acordo com esses postulados, pode-se dizer que toda a história social, todas as relações entre formações sociais distintas, entre classes sociais, entre etnias e entre nações, têm na contradição e no conflito sua constituição e explicação. O caráter contraditório que preside as relações sociais nada mais é que o resultado da tensão constante e renovada entre sociedades, classes ou grupos que se opõem entre si na forma de pólos de dominação e resistência. Nessa perspectiva de análise e dentro de uma conotação ampla, o conceito de luta de classe envolve 32 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo, livraria Martins Fontes Editora, 1983, p. 24. 27 todas as relações de conflito que vão desde os conflitos entre sociedades pré-capitalistas, ou sociedades tribais, aos conflitos entre sociedades de classes, marcadamente capitalista. E, porém, no conjunto das sociedades de classe que o conceito de luta de classes se evidencia com maior vigor, em virtude do desenvolvimento da consciência de classe, da grande diferenciação e discriminação dos segmentos sociais e do caráter espoliativo que acompanha as relações sociais de produção próprias das formações sociais que formam esse sistema. Ampliando sua abrangência para os fins deste trabalho - estudo da idéia resistência social entende-se por luta de classes não apenas um confronto limitado pelas relações burguesiaproletariado, mas também a oposição permanente e reiterada entre sociedades ou grupos sociais que, numa perspectiva ampla, coloca, de um lado, sociedades, classes ou grupos sociais que dominam e impõem determinada ordem econômica, e social e cultural e, de outro lado, formações sociais que se opõem e resistem à dominação e à subordinação33. A partir destas considerações sobre a teoria marxista de luta de classes, é possível situar o problema da resistência social, e também estabelecer sua origem e determinar sua constituição. Para uma melhor compreensão do problema da resistência, faz-se necessário discutir os caracteres que a integram. Nesse sentido, cabe aqui algumas considerações: 33 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich.Manifesto do Partido Comunista. São Paulo. Edições Novos Rumos, 1986, p. 81-82. 28 1º. A resistência social consiste num ente de relação social. Não constitui uma substância em si. A resistência só existe em contraposição e em oposição a algo, isto é, em relação. Nesse sentido vale citar a seguinte reflexão de Michael Foucault: ... não coloco uma substância de resistência face a uma substância do poder. Digo simplesmente: a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência34. Resistência é sinal da existência de poder e dominação. Não há uma sem a outra e viceversa. A relação de resistência revela-se na ação ou ato de resistir. Conduz à comprovação direta da existência de quem resiste. Aquele que resiste está fora: é o outro, aquele que choca e detém . Assim, pode-se dizer que a resistência só existe enquanto posição e postura relacional, atuada por conjuntos, grupos ou classes sociais, em oposição e negação a outros similares que exercem posição de poder e dominação. Nesse sentido, estudar a questão da resistência sem remissão aos sujeitos e situações concretas em que ela conduz, significa conhecimentos inócuo. 2º. A resistência é uma relação de contradição ou contraposição. A resistência se descobre, se desvela e se constitui no embate, na luta, no enfrentamento, na contestação. Toda relação de resistência é uma relação de confronto, uma relação de oposição. O conflito, o confronto e a contradição, em maior ou menor grau de intensidade, estão presentes em toda 34 Nicos Poulantzas constitui um dos teóricos marxista que ampliou a compreensão do conceito de luta de classes. É possível inferir com base nas suas postulações e outras de tradição marxiana que a luta de classes não se define apenas pela dominação e subordinação de grupos ou classes sociais, mas também pela postura ou posição de dominação de uma determinada classe que suscita oposição e reação de outra. Sobre esta questão, ver POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo hoje. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. 29 realidade social, como condição básica da sua existência. Nesse sentido, pode-se dizer que as relações de resistência são lógica e ontologicamente contraditórias. 3º. A resistência social resulta de uma relação de contradição de natureza econômica e política. Toda resistência social constitui numa relação determinada e vinculada a estruturas econômicas e às relações sociais de produção, já que as contradições existentes no campo social são, em última análise, decorrência dos antagonismos de ordem econômica. Esses regem as relações entre os homens e entre os povos e dão consistência e origem à luta de classes, bem como explicam os conflitos ao nível do social, do cultural e do ideológico. E, como é praticamente impossível dissociar as relações de infra-estruturas das relações de superestrutura, as relações sociais também podem ser consideradas relações políticas. Assim, como as relações de poder e dominação são relações eminentemente políticas, as relações de oposição, contestação e negação da ordem dominante também são da mesma natureza. 4º. A resistência social é co-responsável pela dinâmica social. Se através da contraposição ou da negação de um dos pólos que as integram, as relações sociais assumem novas formas, pode-se considerar que a resistência enquanto negação desencadeia a transformação social. Constitui uma posição necessária à dialética do ser social, sem a qual não há devir e transformação. Em toda relação intersociedades há confronto e enfrentamento entre formações que se colocam como dominantes e outras que resistem, deflagrando-se, assim, um movimento de superações e renovações sucessivas tanto dos integrantes como das próprias situações de 30 antagonismo social. Ao se renovarem as condições de enfrentamento, os protagonistas também se renovam, conduzindo à exacerbação ou a depuração das relações. A contradição é intrínseca ao ser social e responsável pela sua dinâmica e transformação. 5º. A resistência constitui uma relação heterogênea e complexa. As relações de resistência social não se apresentam da mesma forma e com os mesmos componentes em todos os contextos. De acordo com os sujeitos, situações e processos d atuação, a resistência assume formas e estratégias, diversas, adequadas e suficientes ao seu objeto de oposição. Na prática, as relações de resistência modificam-se, reestruturam-se e transformam-se de acordo com as condições e natureza do enfrentamento entre sociedades, classes ou etnias em relação. Embora a resistência apresente sob a forma de um processo geral que penetra e acompanha a totalidade dos movimentos do ser social, concretamente, ela assume múltiplas configurações, tipos e etapas, de acordo com as situações e agentes que a atuam. A distinção que segue é acadêmica e atende a objetivos de conhecimentos pois, na realidade, a resistência forma um todo complexo e embricado, onde se torna difícil distinguir o término de uma e o início de outra. A) Resistência aguerrida - Constitui na capacidade de resistir por meios bélicos. Trata-se da rejeição imediata oferecida por uma determinada formação social “SR” (Sociedade em resistência), ante a percepção dos interesses e projetos de conquista, colonização e espoliação de 31 uma sociedade em expansão “SD” (Sociedade Dominante”. Manifesta-se, geralmente por relações belicosas, aguerridas , violentas, por parte da sociedade “SR” no sentido de repelir e rechaçar a sociedade “SD”, que tem por objetivos a invasão e usurpação dos territórios de “SR”. Portanto, uma motivação de base econômica. Uma concepção e caracterização desse tipo de resistência podem ser deduzidas da atitude aguerrida descrita por Darcy Ribeiro, ao analisar as prováveis reações das populações indígenas para com os agentes da sociedade nacional: ... uma atitude de defesa enérgica contra a invasão de seus territórios e de agressividade contra as frentes pioneiras, explica a preservação de alguns grupos indígenas que, assim, puderam manter sua autonomia, embora sofrendo pesadas perdas e profundas transformações em seus modos de vida. Em virtude da disparidade das massas em confronto, os índios só podem deter as frentes pioneiras por algum tempo, à custa de um tremendo desgaste da própria população e até que provoquem , com sua resistência, uma concentração dessas frentes que as torne capazes de avançar sobre eles como uma avalanche irresistível 35. A eficácia da resistência aguerrida dependerá de uma série de condições: correlação geral das forças e massas em conflito; superioridade ou inferioridade demográfica; conhecimento ou desconhecimento de táticas e estratégias bélicas que possibilitem superar o poderio tecnobélico da sociedade invasora; capacidade de manipulação da ideologia e da tecnologia do adversário e, sobretudo, recusa intransigente do projeto-colonizador36.Esse tipo de resistência pode levar à 35 36 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo, Graal, 1989, p. 241. RIBEIRO,op. cit, p. 438. 32 manutenção de certa autonomia econômica social e política da sociedade “SR”, através da expulsão de “SD” e reconquista de seus territórios. Pode também representar o extermínio de “SR” provocado por “SD” ou, ainda, “SR” pode ser vencido por “SD”, perdendo seus territórios e subordinando-se econômica e socialmente e, findando, por diluir-se na miscigenação interétnica. Esta opção, entretanto, não é coletiva, mas individual. Exemplo dessa forma de reação é a dos Mura do século XVIII que foram responsáveis por intensa reação contra os colonizadores portugueses no médio Amazonas e no baixo Purus. Entre as causas prováveis desse tipo de resistência está a recusa drástica e violenta da sociedade “SR” em participar das relações desiguais e assimétricas estabelecidas pela sociedade “SD” e de suas formas de dominação. A desigualdade de relações pode ser constatada através das condutas de “SD”: invasão, conquista, colonização, exploração, escravização, etc. Tais relações são próprias, mas não exclusivas das sociedades que protagonizam o sistema capitalista de produção. As conseqüências possíveis dessa forma de resistência são: aniquilamento e extinção étnica; destruição física e cultural; subjugação; escravização e perda do espaço territorial, parcial ou totalmente, se a formação social “SD” for vitoriosa; expulsão, reconquista territorial, afirmação da autonomia política e social, se vitoriosa for “SR”. 33 B) Resistência estratégica - Constitui na forma de oposição cujo objetivo implica numa série de condutas estratégicas que visam à manutenção de alguma autonomia e da sobrevivência enquanto sociedade diferenciada. A sociedade “SR”, sociedade em resistência, reconhecendo sua inferioridade bélica e tecnológica, logo aos primeiros embates ou, após longas relações aguerridas, evade-se, refugiando-se em regiões inóspitas, de difícil acesso, longe do alcance imediato das frentes pioneiras. Migra para locais onde é praticamente impossível serem alcançados pelo projeto colonizador da sociedade “SD”, ou sociedade dominante. A formação social “SR” estabelece com a sociedade “SD” uma relação de contatos esporádicos, intermitentes, ou mesmo permanentes; aceita perder parte do território, mas não a autonomia. E, freqüentemente, alvo de investidas escravagistas promovidas pela sociedade “SD”; mas consegue sobreviver a elas através da fuga, do isolamento e de outras práticas defensivas. Absorve alguma tecnologia da sociedade colonizadora, que vem lhe facilitar a reorganização e a produção da subsistência e com as quais compensa a perda de seus territórios tradicionais e dos recursos neles existentes. Procura evitar e manter-se fora das investidas integracionistas e assimilacionistas promovidas por “SD”. Essa forma de resistência possibilitou a sobrevivência física e cultural de diversas sociedades ao longo do processo colonial, apesar da conquista, invasão, ocupação e expropriação de grande parte dos seus territórios tradicionais da sociedade. Os Guarani pós-reduções jesuíticas constituem um dos exemplos mais significativos deste tipo de resistência37.38 37 38 FERNANDES, Florestan. A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis, Vozes, 1975, p. 27-28. Ibid, p. 29-30. 34 A rejeição não violenta, de caráter defensivo, as relações de subordinação impostas pela sociedade colonial constitui ao mesmo tempo a causa e a estratégia que conduz a esse tipo de resistência. As conseqüências decorrentes desse tipo de resistência são: refúgio em regiões inóspitas e inacessíveis; manutenção da autonomia; despopulação parcial; preservação de formas de organização econômica, social e cultural; perda de parte do território; dispersão, etc. C) Resistência integrativa - Esse tipo de reação pode ser descrita da seguinte forma: Após a invasão e a conquista terem sido consolidadas, sobrevêm um período de acomodação, onde a sociedade “SR” passa a exercer efetivamente a dominação. O processo de dominação engendrado pela sociedade colonial ou nacional possui alcance e intensidade diversa cuja variação resulta das sucessivas administrações do Estado e dos movimentos de expansão do grupo ou classe social dominante. A subordinação da sociedade “SR” à sociedade “SD” dá-se, historicamente, de diversas formas: escravização; incorporação por aliança; aliciamento para o trabalho compulsório, etc. Essas relações foram implantadas pelo capitalismo através das fases mercantil e colonial como também pela sua fase mais recente, o capital monopólio. O projeto de dominação não chega a eliminar completamente a sociedade “SR”. Supõe a sua incorporação enquanto sociedade à economia de mercado. Pressupõe também a sua inclusão como grupo marginal no sistema de estratificação social, como classe subalterna e espoliada. A sociedade “SR”, ao integrar-se no sistema estabelecido pela sociedade “SD”, estará sujeita à absorção e 35 assimilação de novas tecnologias; à perda de traços culturais, como a língua, rituais, organização econômica e organização religiosa; ou alguma miscigenação interétnica; enfim, à um crescente ritmo de deculturação. Essas sujeições e perdas podem ser mais ou menos intensas de acordo com os graus de integração pelas quais a sociedade “SR” foi compelida a atravessar. Mesmo assim a sociedade “SR” permanece e persiste, graças às marcas do auto-reconhecimento da sua identidade étnica e social. Além da manutenção da identidade étnica, é possível perceber evidências de resistência através de diversas manifestações sócio-culturais fragmentárias, que se revelam, geralmente, naquelas instâncias que ainda restam da organização sócio-cultural, em que a dominação não se faz tão presente ou que não interessa subordinar. São até toleradas pelo sistema dominante como uma espécie de válvula de escape das tensões a que os indivíduos estão submetidos. Essas resistências manifestam-se através de fragmentos da religiosidade, de excertos aparentemente desconexos de narrativas, das festas e rituais reinterpretados, da manutenção de formas lingüísticas estranhas à estrutura da língua em uso, mas, sobretudo, pelo reconhecimento interno e externo de que formam uma identidade social diferenciada. Assim, a resistência atuada pela formação social “SR” reveste-se de um caráter precário e defensivo até encontrar condições que lhe permitam reestruturar-se, como uma nova sociedade, em determinado contexto histórico. Há uma absorção de valores, estilos e técnicas da sociedade nacional, sem haver diluição e perda da identidade étnica. O maior mérito desta forma de resistência é o de evitar a assimilação plena. Ressalvadas as diferenças na forma de reagir ao 36 processo de integração, representam esta forma de resistência os grupos Kaingang, os Pataxó, os Potiguara, etc. As causas dessa resistência continuam sendo a afirmação e manutenção das relações de dominação e subordinação inculcadas pelas sociedades colonizadoras e expansionistas através dos processos historicamente demonstráveis de integração e assimilação. Como resultados previsíveis têm-se: a desestruturação da organização sócio-econômica; a integração de hábitos culturais e do regime de trabalho do colonizador; ocorrência de alguma miscigenação interétnica; deculturação; escravização; extinção parcial provocada pelo contágio epidêmico; e a sobrevivência como um segmento marginal, integrado e subsumido pela economia de mercado e pela estrutura de classes da sociedade envolvente. D) Resistência reorganizativa e revolucionária - Essa forma de oposição evidencia uma alteração na correlação de forças entre a sociedade dominante e a sociedade em resistência. Consiste na introjeção e reintegração de conhecimentos, tecnologias e formas de organização sócio-política reinterpretados e integrados num projeto de libertação sócio- econômica que possibilite à sociedade “SR” a restauração da autonomia em novas condições históricas. São dinamizados e reavivados os velhos padrões culturais face às novas relações. A sociedade “SR” passa a incorporar e manipular a economia da sociedade “SD”, assumindo também aspectos da sua cultura (língua, educação, formas de organização, tecnologias, etc), os quais, conjugados 37 com os valores da tradição sócio-cultural de “SR”, permitem a sua reorganização e constituição em uma nova totalidade. Essa reconstituição é fruto de um intenso exercício de lutas de classes e, por extensão, de lutas étnicas e de lutas políticas de libertação nacional. Após um período de atuação revolucionária, a sociedade em resistência resgata sua autonomia e converte-se em sociedade hegemônica. Trata-se da afirmação de nova identidade, conquistada através de guerras de libertação, revoluções, etc. Mas essa nova identidade não se constituirá ao acaso e automaticamente, ela resulta de um longo processo de resistência oferecido pela sociedade “SR” através das diversas transfigurações incorporadas em decorrência da história do contato. Essa forma de resistência tem como causa o acirramento de conflitos sociais e interétnicos entre a sociedade colonial dominante em resistência e a sociedade em resistência, que resultam da sistemática negação das relações de dominação e subordinação de natureza colonial e imperialista, até encontrar as condições propícias para materializar-se em revolução. O êxito desse tipo de resistência traz a recuperação de antigos territórios, a instauração de uma nova autonomia resultante da transformação do projeto colonial em projeto revolucionário. Segue-se um período em que a nova ordem promove a descolonização através da implantação de um novo sistema de organização das relações intersocietárias. Com o resgate da autonomia a resistência não deixa de existir. Novas e complexas relações são colocadas não apenas a nível interno, como também a nível externo. A resistência se renova e passa a integrar os novos 38 sistemas de relações sociais que, apesar de menos contraditórios, sempre serão contraditórios e exigirão luta para a sua superação. A compreensão da resistência como parte integrante de um sistema de relações sociais assimétricas requer, necessariamente, a sua elaboração em categoria conceitual. Uma tentativa de definição decorre, necessariamente, do exame das situações históricas e concretas que expressam relações de resistência. Na falta de uma avaliação exaustiva das mesmas elaborou-se aqui um conceito provisório que não é senão uma hipótese de trabalho. Assim, a resistência enquanto evento prático e enquanto formulação conceitual interage e se explicam mutuamente. Um conceito de resistência não possui validade alguma sem referência à realidade concreta de resistência e, esta por sua vez, não pode ser conhecida em plenitude, sem o seu conceito, sem a sua referência e sem a sua teoria, que possibilitam desvelá-la, defini-la e nominá-la em toda sua complexidade e extensão. A partir das reflexões aqui efetuadas, é possível inferir-se uma concepção, ainda que provisória, da realidade de resistência social. A resistência social define-se como uma relação de oposição, rejeição e negação, de cunho econômico e político, atuada, interna e externamente, através de uma determinada sociedade, classe ou etnia, face a outras formações sociais, classes ou etnias que, no processo das relações inter-sociais decorrentes da situação de contato, promovem a 39 dominação, a exploração e a expansão. Trata-se de uma posição de confronto e de defesa que, no conjunto das relações entre duas sociedades, uma dominante, outra resistente, são co-responsáveis pelo engendramento da contradição, do conflito, da dinâmica e da evolução social. 40 Referências Bibliográficas LINTON, Ralph; REDFIELD, Robert and HERSKOVITS, Melville. A Memorandum for study acculturation. American Anthropologist, 1936, Vol. XXXVIII. SIEGEL, VOGT, WATSON and BROOM. Aculturation: An Exploratory Formulation. American Anthopologist, Vol. 56, nº 6, 1954. Wisconsin. HERSKOVITS, Melville. Man and Hits Works: Antropologia cultural, Tomo II, São Paulo: Mestre Jou, 1973. RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. Petrópolis: Editora Vozes, 1977 GLUCKMAN, Max. Order and rebelion in Tribal Africa. London: Cohen and West, 1963, p. 214-216. BALANDIER, Georges. Sociologie actuelle de L’Afrique Noire. Paris: Presses Universitaires de France, 1963, p. 3. 1ª ed., 1955. OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Estudo de áreas de fricção interétnica no Brasil. In: América Latina, Ano V, nº 3, julho setembro, 1962. METRAUX, Alfred. Resistances au Changement. In: Resistências à Mudança - Fatores que impedem ou dificultam o Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Centro Latino Americano de Pesquisa em Ciências Sociais, 1960. MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1983. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Edições Novos Rumos, 1986, p. 81-82. 41 POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 1989, p. 241. FERNANDES, Florestan. A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 27-28. 42 Questões: 1. A teoria da aculturação, fundada na tradição dos estudos difucionistas e culturalistas, toma a cultura como autônoma, unilateralizando a compreensão do processo interétnico. Explique e critique a proposição aculturativa. 2. A África Colonial foi cenário de processos socioeconômicos desiguais e assimétricos. Comente o situação colonial formulado por Georges Balandier. conceito de 3. A teoria da transfiguração étnica de Darcy Ribeiro possibilitou uma compreensão das relações entre povos indígenas e sociedade nacional. Em que consiste? 4. A resistência social define-se como uma relação de oposição, rejeição e negação, de cunho econômico e político, atuada, interna e externamente, através de uma determinada sociedade, classe ou etnia, face a outras formações sociais, classes ou etnias que, no processo das relações intersociais decorrentes da situação de contato, promovem a dominação, a exploração e a expansão. Trata-se de uma posição de confronto e de defesa que, no conjunto das relações entre duas sociedades, uma dominante, outra resistente, são co-responsáveis pelo engendramento da contradição, do conflito, da dinâmica e da evolução social. Discuta e comente a possibilidade desse conceito. 5. No “Manifesto Comunista”, Marx e Engels já afirmavam que “A história de toda sociedade até hoje é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burguês da corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante antagonismo entre si, travaram uma luta ininterrupta, umas vezes oculta, aberta outras, uma luta que acabou sempre com uma transformação revolucionária de toda sociedade ou com o declínio em comum das classes em luta”. É possível tomar o conceito de luta de classes fora do contexto histórico próprio das relações antagônicas entre proletariado e burguesia ? Explique. 43