Da utilidade da filosofia para a vida. Antonio Edmilson Paschoal Os gregos também filosofaram como homens da cultura e com os fins da cultura e, por isso, não tiveram de se dar ao trabalho de voltar a inventar os elementos da filosofia e da ciência, por causa de qualquer arrogância autóctone; antes, pelo contrário, começaram logo a completar, a aumentar, a elevar e a purificar esses elementos transmitidos, de tal maneira que, só a partir de então, tornaram-se inventores, num sentido mais elevado e numa esfera mais pura. Friedrich Nietzsche Introdução Algumas questões não podem deixar de ser consideradas quando se coloca em discussão o ensino da filosofia, entre elas a da suposta oposição entre ensinar filosofia e ensinar a filosofar, que pode ser entendida também como uma dissociação entre o exercício da filosofia e o recurso à tradição expressa na história da filosofia. Esta questão, embora já tenha recebido as mais diferentes proposições de solução, continua “dando o que pensar”,1 como se pode notar pela sua presença nos debates surgidos em função das reflexões promovidas pela Diretoria de Ensino Médio do MEC nos anos de 2004 e 2005, em torno dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de filosofia no ensino médio (PCNEM),2 na elaboração das Orientações Curriculares do Ensino Médio (OCEM),3 e em uma série de eventos que surgem em função do retorno da filosofia como disciplina obrigatória no ensino médio, promulgado pelo Conselho Nacional de Educação em junho de 2006. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. Assim como ocorre com outras questões como, por exemplo, “o que é filosofia?” o fato de essa já ter sido amplamente discutida não elimina o seu vigor. Da mesma forma, o fato de a caracterizarmos como uma “suposta” oposição, não a desqualifica enquanto um tema a ser considerado quando se tem em vista o ensino da filosofia. 2 Refiro-me aos seminários regionais e nacionais, ocorridos entre 2004 e 2005. 3 MEC. Orientações curriculares do ensino médio; volume 3; Ciências Humanas e suas tecnologias; Filosofia. Brasília, MEC, 2006, p. 13-40. Doravante citadas apenas pela sigla OCEM e o número da página. 1 No contexto daquelas reflexões, tal questão apareceu pela primeira vez nos Subsídios4 produzidos com o intuito de apoiar os debates sobre a disciplina de filosofia nos seminários, e ganhou uma versão mais acabada na análise crítica dos PCNEM denominada Orientações Curriculares do Ensino Médio, nas quais, o posicionamento assumido pode ser sintetizado nos seguintes termos: é uma falsa aporia aquela que opõe ensinar filosofia por um lado e ensinar a filosofar por outro, contrapondo uma suposta prática do filosofar à tradição filosófica. Nas Orientações encontra-se claramente a idéia de que “uma certa dicotomia muito citada entre aprender filosofia e aprender a filosofar pode ter um papel enganador”, (OCEM, p. 32) no sentido de que dificilmente se produz filosofia desconsiderando-se a sua história, uma vez que “é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que se apresenta na forma amplamente conhecida como História da Filosofia, que a Filosofia pode propor-se ao diálogo com outras áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na formação do educando”. (OCEM, p. 27) A procura por uma caracterização da filosofia ou filosofias e também por uma forma de filosofar, ou formas, independentemente do conteúdo em questão, assim como a busca pelas peculiaridades da filosofia, no intuito de permitir seu diálogo com outras áreas do conhecimento ou de promover a formação do educando, têm seu ponto de chegada na tradição filosófica que se apresenta, via de regra, com uma história da filosofia. Nela o pesquisador encontrará uma tal variedade e riqueza de respostas, que dificilmente não considerará o suporte que tal legado pode significar para a produção de um pensamento independente e inovador. Desta forma, ressalta-se a interligação entre ensinar a história da filosofia e ensinar a filosofar, pois o cultivo da filosofia, naquilo que é sua especificidade, se faz por meio de um enraizamento em seu solo, no seu legado próprio, que não é tomado apenas como um celeiro de idéias, um conjunto de exemplos do modus operandis do filosofar, ou ainda como uma fonte inspiradora para se pensar questões próprias à atualidade, mas como um palco de debates sobre temas essenciais ao homem de todos os tempos e especialmente de hoje, quando é 4 MEC. Secretaria de Educação Básica. Departamento de Políticas Públicas de Ensino Médio. Orientações curriculares do Ensino Médio. Subsídios para uma reflexão sobre o Ensino Médio: Filosofia. Brasília, MEC, 2004, p. 373-400. possível acessar toda aquela riqueza e todo o alcance ao qual tais questões já foram elevadas. Um palco no qual se apresenta, nas formas mais variadas, o desejo tirânico de domínio de cada filosofia em particular, a vontade que cada uma possui de fazer valer a sua perspectiva e, a despeito das demais, apresentar uma interpretação própria e abrangente do todo. Neste palco, o estudante não apenas busca alguma informação, mas toma parte em debates abertos e sempre inacabados, o que, não se pode negar, já é uma forma privilegiada de ensinar a filosofar. Assim, acompanhando o espírito das Orientações Curriculares, pretendemos chamar a atenção para o fato de que a filosofia não constitui um conhecimento autóctone, mas um cuja elaboração ocorre, preferencialmente, por meio de uma retomada de questões já elencadas na tradição filosófica, às quais se pode complementar, ampliar ou mudar, conferindo a elas uma utilidade para a vida que as distancia de “um pequeno luxo, um saber supérfluo que venha a acrescentar noções aparentemente requintadas a saberes outros, os verdadeiramente úteis”. (OCEM, p. 17) Para esta abordagem, tomaremos como referência alguns escritos de Friedrich Nietzsche, nos quais se encontra uma interessante contribuição para a forma como aquele debate aparece no documento das Orientações Curriculares, proposto pelo MEC para o ensino médio. Deste modo pretendemos expor uma hipótese de trabalho: ensina-se a filosofar, ensinando-se a filosofia. Ao mesmo tempo em que pretendemos experimentá-la, pois retomaremos textos de um filósofo do século XIX, conquanto, a história da filosofia, para abordarmos uma questão que já foi tomada em diferentes momentos, a partir de diferentes perspectivas e que continua suscitando debates ainda hoje. Se este não é o único método disponível para tal ensino, pode-se afirmar que ele é o melhor. Ao menos se for considerada, por exemplo, a experiência dos gregos que, longe de qualquer arrogância autóctone, souberam constituir o seu espírito filosófico a partir da contribuição recebida das grandes culturas que os antecederam. Filisteus da cultura No ano de 1873 Nietzsche trabalha em dois textos que, tomados conjuntamente, oferecem um bom exemplo de uma crítica à cultura de seu tempo como exercício filosófico apoiado em um consistente olhar para o passado. O primeiro deles é A filosofia na época trágica dos gregos, cujas anotações têm início um ano antes e que não é levado a público pelo autor, e o segundo é David Strauss, o confessor e o escritor, elaborado e levado a público no ano de 1873, abrindo a coletânea intitulada Considerações extemporâneas. No primeiro, Nietzsche apresenta um estudo sobre a filosofia pré-socrática, contrapondo a forma como os gregos se relacionam com os saberes apropriados por eles ao modo como os homens letrados de sua época, século XIX, apoderam-se da cultura em geral e da filosofia em particular. No segundo livro, tomando a figura de David Strauss como uma “lente de aumento” para “tornar visível um estado de miséria geral, porém dissimulado”,5 (EH, Por que sou tão Sábio, 8) Nietzsche desdobra aquela sua crítica à cultura, especialmente por meio de duas fórmulas extremamente provocadoras, a saber, “cultura de jornaleiros” e “filisteus da cultura”. A primeira, utilizada para designar a banalização à qual estava submetida a cultura em seu tempo, vítima da superficialidade e do embotamento típico de um período em que, segundo ele, não se tinha a preocupação com “espírito alemão”, mas com o império alemão. E a segunda para referir-se os intelectuais, aos homens letrados de então que produziam tal cultura e se identificavam com ela. Tal crítica, tendo como contraponto o modo como os gregos se relacionam com os conhecimentos colocados à sua disposição para produzirem o seu espírito filosófico, oferece um interessante parâmetro para analisar a os limites impostos ao pensar filosófico, tanto pela erudição vazia quanto pela banalização da cultura. O que constitui, conforme veremos, duas faces de um mesmo problema. Ao referir-se à sua época, Nietzsche afirma que nela “todo filosofar é restringido a uma aparência de erudição”. (FTG, 2) Para o filósofo, tal modo de se relacionar com a filosofia acaba por suscitar questionamentos acerca da própria razão de ser da filosofia: sem um motivo para continuar existindo, ela seria simplesmente rejeitada, ou, no mínimo, tomada como um adorno, um adereço, algo supérfluo para ser desfrutada por aqueles que nada mais teriam a fazer do que “filosofar”. No entanto, se isto ocorre é porque, segundo Nietzsche, não se 5 Faremos as citações das obras de Nietzsche seguindo um padrão estabelecido de siglas, com a indicação da parte, quando for o caso, e da seção. As obras citadas são: A filosofia na época trágica dos gregos (FTG); David Strauss, o confessor e o escritor – Consideração Extemporânea I (CE I); Ecce Homo (EH); Além de Bem e Mal (ABM); Para a genealogia da moral (GM). cumpre a “lei da filosofia em si”, que é “viver filosoficamente”, (FTG, 2) motivo pelo qual, em tal contexto, ela vagueia por um solo estranho, precisando esconder-se como uma pecadora ou uma profetiza. Segundo Nietzsche, conferir à filosofia o status de excentricidade é próprio de uma época que pretende apresentar traços de uma “cultura geral”, quando na verdade não possui “cultura nenhuma”, (FTG, 2) ou, em outros termos, possui uma “cultura de jornaleiros”. O termo “cultura de jornaleiros” é utilizado pelo filósofo para exprimir a vulgaridade que tomava conta dos meios acadêmicos na Alemanha daquele período. O lixo cultural, caracterizado pela falta de unidade de estilo e de um caráter próprio da cultua alemã de então, se faz representar, segundo Nietzsche, pelo livro de Strauss intitulado A velha e a nova fé, no qual a coesão lógica cede lugar às palavras de efeito e o cuidado coma língua cede terreno para os neologismos de mau gosto. Contudo, a despeito de sua fragilidade em termos de argumentação e de escrita, esse livro tem plena aceitação na Alemanha, com seis edições em pouco mais de um ano após seu lançamento. Um fenômeno que se explica, segundo Nietzsche, pelo fato de tal escritor encontrar muitos aparentados entre os homens de cultura daquela época, os quais compartilhavam com Strauss tanto o ufanismo pela vitória na guerra francoprussiana de 1870, seguida pela instalação do Império Alemão por Bismarck em 1871, quanto a sua percepção otimista do mundo, advinda dos progressos da ciência e de uma concepção mecanicista de mundo que não deixava lugar para grandes questionamentos acerca de quem é o homem ou qual seria o seu destino, uma vez que tal destino, passivo de ser apreendido pela razão, já estaria traçado, deixando antever um futuro feliz para o homem. O que significa, em termos filosóficos, a banalização do problema do homem. Neste ambiente não é de se estranhar que os homens se apropriem também da filosofia como um adorno, um luxo para poucos que podem pagar por ela, assim como podem pagar pela arte e também por outros elementos da cultura, que são tomados por eles para seu usufruto e passatempo, como se toda aquela tradição e cultura tivessem sido feitas para seu deleite. Tais homens são designados por Nietzsche por meio da expressão “filisteus da cultura” (Bildungsphilister). O termo filisteu, utilizado aqui, no entanto, não remete ao povo indoeuropeu que na época de Ramsés III (1194-1163) se fixou na região da palestina e fundou várias cidades (a cidade de Gaza é conhecida ainda hoje) e que rivalizou com os antigos hebreus pelo domínio na região. Trata-se, antes, de uma utilização pejorativa do termo, cunhada por seus antigos inimigos, os judeus, e usual no século XIX. A palavra filisteu traduz, em tal contexto, a caricatura daquele homem de pouca cultura, especialmente sem capacidade para apreciar as artes e que apresenta um código moral restritivo. Ela designa, ademais, uma pessoa sem qualquer propósito mais elevado para a existência e que estabelece como finalidade última para si um estilo de vida burguesa, na qual predomine o conforto e os prazeres moderados e da qual se possa eliminar o sofrimento, evitando-se para isto, como uma primeira medida, o reconhecimento do caráter trágico e contraditório da vida. Por fim, um modo de existir que não coloca em questão a própria vida. Segundo Nietzsche, o termo “filisteus da cultura” é “tomado da vida estudantil e utilizado em seu sentido mais amplo, isto é mais popular, em contraposição aos filhos das musas, aos artistas, aos autênticos homens da cultura”. (CE I, 2) Nas palavras de Charles Andler, “nos meios universitários, depois do século XVIII, denomina-se ‘filisteu’ o burguês submetido às leis, devotado aos afazeres, e que não consente para si a agradável liberdade de estudante”.6 O filisteu da cultura, embora acredite ser homem de cultura, ele é, segundo Nietzsche, o oposto aos “autênticos homens da cultura”. (CE I, 2) Numa sociedade de filisteus, espera-se dos homens de cultura apenas coisas superficiais que não venham a alterar a situação de comodidade alcançada pelos próprios filisteus. Por exemplo, aos artistas são permitidas “apenas duas coisas: ou a imitação da realidade, levada a cabo em idílios ou suaves sátiras humorísticas, ou a realização de cópias livres das obras mais reconhecidas e famosas dos clássicos, mesmo que seja com vergonhosas concessões ao gosto próprio da época”. (CE I, 2) Tal forma de se relacionar com a filosofia, com a arte e com a cultura em geral desconsidera a vida e os paradoxos e contradições que são inerentes a ela. Deixa de lado, portanto, o que torna o homem um animal interessante, preferindo 6 ANDLER, Nietzsche, sa vie et sa pensée, p. 501. ocupar-se de afazeres práticos, indispensáveis, ao certo, porém, aos quais não se pode reduzir o homem. Aprendendo com os vizinhos Segundo Nietzsche, também os gregos, como homens do conhecimento, não tiveram de inventar os elementos básicos da filosofia. Eles se apropriaram de conhecimentos anteriormente elaborados, conferindo-lhes, no entanto, um tal significado que se tornaria uma tarefa dispensável ocupar-se deles em algum momento anterior a essa apropriação, por mais que culturas anteriores tenham sido seu solo de nascimento e possam reivindicar o caráter de originalidade em relação a eles. Em contraposição à forma como os homens cultos de seu tempo se apropriam dos elementos da cultura, Nietzsche afirma: “os gregos são admiráveis na arte de aprender dando frutos; e deveríamos, como eles, aprender com os nossos vizinhos e utilizar os conhecimentos adquiridos como apoio para a vida e não para o conhecimento erudito, apoio a partir do qual se salta para o alto e mais alto ainda do que o vizinho”. Segundo Nietzsche, os gregos “aprendiam e logo queriam viver”. Essa era a medida para o seu insaciável instinto de conhecimento: a “consideração pela vida” e a “necessidade de vida ideal”. (FTG, 1) Não se trata apenas de vivenciar um conhecimento numa correlação, por exemplo, entre uma teoria que se estuda e uma prática realizada no dia-a-dia. Como se fosse uma técnica que, uma vez aprendida, só teria finalidade quando aplicada. A compreensão da correlação entre filosofia e vida, bem como a idéia de se tomar a filosofia na perspectiva da vida, requer um olhar sobre o significado do termo vida na filosofia de Nietzsche. É de se notar que já nestes primeiros escritos, tem-se o que se pode chamar de um vitalismo na sua filosofia: uma afirmação da vida em oposição a tudo aquilo que, na sua perspectiva, a nega, restringe e deprecia, a tudo aquilo que, em nome da fraqueza e do medo, propõe uma diminuição do caráter expansivo, conquanto, paradoxal da vida. Para Nietzsche, uma vida que se afirma – portanto, saudável – caracteriza-se pelo conflito, como identifica entre os gregos, que teriam na idéia de agon (disputa) o fermento de sua existência.7 Uma disputa à qual faz referência, por exemplo, em A filosofia na época trágica dos gregos e também em “A disputa de Homero”.8 A vida é parte integrante de um mundo concebido por Nietzsche não como uma “realidade” (Realität), mas uma “efetividade” (Wirklichkeit), (FTG, 5) ou, mais propriamente, um constante efetivar-se e diluir-se: um constante vir-a-ser, no qual toda estabilidade é momentânea e provisória. Uma idéia terrível da existência em que as individualidades emergem já condenadas a voltar, a subsumir no indeterminado. Os gregos, segundo Nietzsche, concebiam a efetividade como um constante vir-a-ser, do indeterminado para o determinado, como concebe Anaximandro, ou apenas como indeterminação, num fluxo e refluxo, no qual nada é indestrutível, segundo Heráclito. (FTG, 3 e 5) Porém, tal constatação não empurra os gregos para um pessimismo ou para uma busca por redenção da realidade numa compensação em outra existência. Ao contrário, eles tomam a idéia de conflito, de disputa não como um empecilho, mas como a condição para a vida saudável do indivíduo e também do Estado. Uma força plástica, criadora e modeladora de mundos, indivíduos e estados. Isto é o que se deduz, conforme aponta Nietzsche, a partir de um poema de Hesíodo intitulado “Os trabalhos e os dias”, no qual o autor faz referência às duas deusas Éris: uma que conduz à luta cruel entre os homens – e que deve ser censurada; e outra que conduz a um tipo de inveja capaz de estimular os homens para o desenvolvimento de suas capacidades e para a ação da disputa – e que, portanto, deve ser louvada. Enquanto a primeira pode ser notada na barbárie, a segunda pode ser verificada nas relações dos homens entre si, na saudável disputa entre os sofistas, professores, atletas e artesãos e artistas. E de forma particular na filosofia. Tal vida saudável não descarta o aspecto terrível da existência, o qual, de resto, não poderia mesmo ser descartado, mas o toma como parte integrante, um fermento. A partir dessa concepção de vida, e tomando-se a filosofia como uma das formas mas refinadas que o homem possui de se colocar em uma disputa, uma vez que as teorias e sistemas abrangentes dos filósofos não são nada impessoais, porém, construídos com o intuito de domínio, imposição e de 7 Curt Paul Janz. Friedrich Nietzsche. Erter Band. München: Carl Hanser Verlag, 1993, p. 498. 8 Quinto dos Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Pequeno livro oferecido por Nietzsche como presente de aniversário a Cosima Wagner em 24 de dezembro de 1872. negação do que é diferente, tem-se uma interpretação possível do papel da filosofia – e do espírito filosófico – no sentido de apoio à vida, ao menos na forma como os gregos o fizeram: ela permite à vida desabrochar naquilo que é peculiar a ela, a disputa, em graus mais elevados e refinados do que se poderia obter com qualquer outra modalidade de combate. A idéia de tomar conhecimentos no sentido de “apoiar a vida”, não remete, portanto, a qualquer tipo de apoio entendido como um suporte para conservar a vida, num caso extremo: para tentar manter uma vida que degenera e já se despede dela. Significa, antes, um modo, um meio para impulsionar a vida naquilo que é próprio a ela, que “atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo” e não pode sequer ser concebida sem esse caráter”. (GM II, 11) Trata-se, portanto, de um apoio para que a vida possa desabrochar em sua máxima exuberância e contradição. Tomar um conhecimento sob a ótica da vida significa apreendê-lo e usá-lo como parte de uma formação que dirija o homem para alvos mais elevados. Não pode ser simplesmente um meio para assegurar a reprodução de indivíduos úteis e preferencialmente não perigosos. Como se fosse facultado ao homem optar apenas por aquilo que, calculadamente, seria “bom” para ele. Isto porque não é possível retirar da vida o seu aspecto paradoxal, ficando apenas com um pedaço dela supostamente mais agradável. Tais tentativas de mutilar a vida ou outras que visam silenciar o seu lado explosivo por meio de algum sedativo que produza uma espécie de hibernação, revela um propósito daquele que – fraco e debilitado – pretende renunciar ao caráter expansivo da vida como condição para se continuar vivendo. Viver filosoficamente A partir do que foi exposto pode-se apontar duas formas contrapostas de se relacionar com o legado oferecido pela filosofia: a dos gregos, que o toma os conhecimentos anteriormente dados por sua utilidade para a vida e imediatamente os vivenciam, e a dos filisteus da cultura, que os toma como um luxo, um objeto de deleite, mantendo a filosofia nos extremos do enciclopedismo e da banalização. Tendo em vista nossa questão inicial – da suposta contraposição entre a prática filosófica e a história da filosofia – e tomando a forma como os gregos se relacionam com conhecimentos anteriormente dados para a construção de seu espírito filosófico, é possível afirmar que o benefício obtido por eles não é o da apreensão em si, mas a utilidade que conferem ao que tomam de culturas anteriores. São meios para a vida. E o próprio espírito filosófico que constroem também é um meio para uma vida que se afirma na disputa. Desta forma, eles justificam a filosofia e também o filósofo que, “junto deles, não é nenhum cometa”. (FTG, 2) Com os gregos se aprende que não é necessário reinventar os elementos básicos da prática filosófica. Aprende-se também que a tradição filosófica se apresenta como um palco de debates no qual as diferentes interpretações de mundo são sempre válidas, na medida em que possam ser apropriadas e vivenciadas. Isto porque, diferentemente do que ocorre com a ciência, em que uma verdade adquirida desqualifica a anterior e a substitui,9 em filosofia uma nova verdade – uma nova perspectiva – não exclui as anteriores, mas coloca-se em debate com elas. Por fim, aprende-se que a filosofia é a forma mais refinada e sublime de disputa que o homem pode lançar mão, sendo, assim, útil à vida, idealizada pelos gregos e descrita por Homero na figura da boa Éris. Tomando esta interpretação, pode-se voltar ao texto das OCEM quando este propõe conteúdos como instrumentos e o aluno como aquele que toma posição frente a diferentes perspectivas e, no limite, aprende a disputar: “a educação deve centrar-se mais na idéia de fornecer instrumentos e de apresentar perspectivas, enquanto caberá ao estudante a possibilidade de posicionar-se e de correlacionar o quanto aprende com uma utilidade para sua vida, tendo presente que um conhecimento útil não corresponde a um saber prático e restrito, quem sabe à habilidade para desenvolver certas tarefas”. (OCEM, p. 28) Por sua vez, tendo em vista novamente nossa questão, cabe ressaltar que os extremos em que o filisteu da cultura lança a filosofia – um enciclopedismo por um lado e a banalização por outro – não são, de fato opostos, na medida em que possuem como ponto de intersecção justamente o caráter de inutilidade da filosofia. Mais ainda, é possível afirmar que tal forma de se apropriar da filosofia faz com que ela sirva para a formação daquele tipo de homem – fraco e debilitado 9 A respeito, leia-se: GUÉROULT, Martial. O problema da legitimidade da história da filosofia. In: Revista de História (USP), São Paulo, vol. 37, n. 75, julho-setembro 1968, p. 189 – 211. – cuja vida se limita a uma preservação da vida. A superficialidade aliada à promessa de conforto. A ausência de grandes questionamentos associada à promessa de não se ter grandes transtornos. Enfim, modos de se relacionar com a cultura que não colocam em risco a vida do filisteu da cultura. Em todo caso, características de momentos e culturas em que a filosofia parece ter pouco a dizer para a vida. Tem-se assim, não tanto uma oposição entre a tradição e a prática da filosofia, mas entre os diferentes modos de se estabelecer essa relação. Desta forma, tendo em vista não uma miragem que seria a oposição entre a filosofia e filosofar, mas a oposição entre uma cultura de filisteus, por um lado, e a experiência dos gregos, por outro, resta rejeitar aquele modo de fazer filosofia que se traduz ora como um enciclopedismo, em que o estudo da tradição seria mera repetição, ora como uma banalização, em que a superficialidade leva a declarar tudo – e qualquer coisa – como sendo filosofia, e acolher a experiência que sabe olhar para o passado como fonte para a construção do próprio espírito, com a qual se cumpre a “lei da filosofia em si”, que é “viver filosoficamente”. Referências Brasil. MEC. Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio; PCN do Ensino Médio; PCN+ do Ensino Médio. Disponível em: http://www.ciadaescola.com.br/downloads/procurar.asp?categoria=161 Acessado em 12 de julho de 2007. GUÉROULT, Martial. O problema da legitimidade da história da filosofia. In: Revista de História (USP), São Paulo, vol. 37, n. 75, julho-setembro 1968, p. 189 – 211. JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche Biographie. Bd. 1. 2. Auflage. München: Carl Hanser Verlag, 1993. KANT, Immanuel. “Anúncio do Programa do Semestre de Inverno de 1765-1766”. Fragmento retirado da colectânea de textos Theoretical Philosophy, 1755-1770 (edição de David Walford e Ralf Merbote, Cambridge University Press, 1992), pp. 2:306-7. Disponível em: Acessado em 12/07/2007. http://dikranoi.wordpress.com/tag/10%C2%BA-ano/. NIETZSCHE, Friedrich. Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss der Bekenner und der Schriftsteller. In: Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Bd. 01. Berlin: dtv/de Gruyter, 1988, S. 157-242. NIETZSCHE, Friedrich. Die Philosphie im tragischen Zeitalter der Griechen. In: Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Bd. 01. Berlin: dtv/de Gruyter, 1988, S. 799-872. 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