Da utilidade da filosofia para a vida Texto Edmilson

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Da utilidade da filosofia para a vida.
Antonio Edmilson Paschoal
Os gregos também filosofaram como homens da cultura e
com os fins da cultura e, por isso, não tiveram de se dar ao
trabalho de voltar a inventar os elementos da filosofia e da
ciência, por causa de qualquer arrogância autóctone;
antes, pelo contrário, começaram logo a completar, a
aumentar, a elevar e a purificar esses elementos
transmitidos, de tal maneira que, só a partir de então,
tornaram-se inventores, num sentido mais elevado e numa
esfera mais pura.
Friedrich Nietzsche
Introdução
Algumas questões não podem deixar de ser consideradas quando se
coloca em discussão o ensino da filosofia, entre elas a da suposta oposição entre
ensinar filosofia e ensinar a filosofar, que pode ser entendida também como uma
dissociação entre o exercício da filosofia e o recurso à tradição expressa na
história da filosofia. Esta questão, embora já tenha recebido as mais diferentes
proposições de solução, continua “dando o que pensar”,1 como se pode notar
pela sua presença nos debates surgidos em função das reflexões promovidas
pela Diretoria de Ensino Médio do MEC nos anos de 2004 e 2005, em torno dos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de filosofia no ensino médio
(PCNEM),2 na elaboração das Orientações Curriculares do Ensino Médio
(OCEM),3 e em uma série de eventos que surgem em função do retorno da
filosofia como disciplina obrigatória no ensino médio, promulgado pelo Conselho
Nacional de Educação em junho de 2006.

Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR.
Assim como ocorre com outras questões como, por exemplo, “o que é filosofia?” o fato de
essa já ter sido amplamente discutida não elimina o seu vigor. Da mesma forma, o fato de a
caracterizarmos como uma “suposta” oposição, não a desqualifica enquanto um tema a ser
considerado quando se tem em vista o ensino da filosofia.
2
Refiro-me aos seminários regionais e nacionais, ocorridos entre 2004 e 2005.
3
MEC. Orientações curriculares do ensino médio; volume 3; Ciências Humanas e suas
tecnologias; Filosofia. Brasília, MEC, 2006, p. 13-40. Doravante citadas apenas pela sigla OCEM e
o número da página.
1
No contexto daquelas reflexões, tal questão apareceu pela primeira vez
nos Subsídios4 produzidos com o intuito de apoiar os debates sobre a disciplina
de filosofia nos seminários, e ganhou uma versão mais acabada na análise crítica
dos PCNEM denominada Orientações Curriculares do Ensino Médio, nas quais, o
posicionamento assumido pode ser sintetizado nos seguintes termos: é uma falsa
aporia aquela que opõe ensinar filosofia por um lado e ensinar a filosofar por
outro, contrapondo uma suposta prática do filosofar à tradição filosófica.
Nas Orientações encontra-se claramente a idéia de que “uma certa
dicotomia muito citada entre aprender filosofia e aprender a filosofar pode ter um
papel enganador”, (OCEM, p. 32) no sentido de que dificilmente se produz
filosofia desconsiderando-se a sua história, uma vez que “é a partir de seu legado
próprio, com uma tradição que se apresenta na forma amplamente conhecida
como História da Filosofia, que a Filosofia pode propor-se ao diálogo com outras
áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na formação do
educando”. (OCEM, p. 27)
A procura por uma caracterização da filosofia ou filosofias e também por
uma forma de filosofar, ou formas, independentemente do conteúdo em questão,
assim como a busca pelas peculiaridades da filosofia, no intuito de permitir seu
diálogo com outras áreas do conhecimento ou de promover a formação do
educando, têm seu ponto de chegada na tradição filosófica que se apresenta, via
de regra, com uma história da filosofia. Nela o pesquisador encontrará uma tal
variedade e riqueza de respostas, que dificilmente não considerará o suporte que
tal legado pode significar para a produção de um pensamento independente e
inovador.
Desta forma, ressalta-se a interligação entre ensinar a história da filosofia e
ensinar a filosofar, pois o cultivo da filosofia, naquilo que é sua especificidade, se
faz por meio de um enraizamento em seu solo, no seu legado próprio, que não é
tomado apenas como um celeiro de idéias, um conjunto de exemplos do modus
operandis do filosofar, ou ainda como uma fonte inspiradora para se pensar
questões próprias à atualidade, mas como um palco de debates sobre temas
essenciais ao homem de todos os tempos e especialmente de hoje, quando é
4
MEC. Secretaria de Educação Básica. Departamento de Políticas Públicas de Ensino
Médio. Orientações curriculares do Ensino Médio. Subsídios para uma reflexão sobre o Ensino
Médio: Filosofia. Brasília, MEC, 2004, p. 373-400.
possível acessar toda aquela riqueza e todo o alcance ao qual tais questões já
foram elevadas. Um palco no qual se apresenta, nas formas mais variadas, o
desejo tirânico de domínio de cada filosofia em particular, a vontade que cada
uma possui de fazer valer a sua perspectiva e, a despeito das demais, apresentar
uma interpretação própria e abrangente do todo. Neste palco, o estudante não
apenas busca alguma informação, mas toma parte em debates abertos e sempre
inacabados, o que, não se pode negar, já é uma forma privilegiada de ensinar a
filosofar.
Assim,
acompanhando
o
espírito
das
Orientações
Curriculares,
pretendemos chamar a atenção para o fato de que a filosofia não constitui um
conhecimento autóctone, mas um cuja elaboração ocorre, preferencialmente, por
meio de uma retomada de questões já elencadas na tradição filosófica, às quais
se pode complementar, ampliar ou mudar, conferindo a elas uma utilidade para a
vida que as distancia de “um pequeno luxo, um saber supérfluo que venha a
acrescentar
noções
aparentemente
requintadas
a
saberes
outros,
os
verdadeiramente úteis”. (OCEM, p. 17)
Para esta abordagem, tomaremos como referência alguns escritos de
Friedrich Nietzsche, nos quais se encontra uma interessante contribuição para a
forma como aquele debate aparece no documento das Orientações Curriculares,
proposto pelo MEC para o ensino médio. Deste modo pretendemos expor uma
hipótese de trabalho: ensina-se a filosofar, ensinando-se a filosofia. Ao mesmo
tempo em que pretendemos experimentá-la, pois retomaremos textos de um
filósofo do século XIX, conquanto, a história da filosofia, para abordarmos uma
questão que já foi tomada em diferentes momentos, a partir de diferentes
perspectivas e que continua suscitando debates ainda hoje. Se este não é o único
método disponível para tal ensino, pode-se afirmar que ele é o melhor. Ao menos
se for considerada, por exemplo, a experiência dos gregos que, longe de qualquer
arrogância autóctone, souberam constituir o seu espírito filosófico a partir da
contribuição recebida das grandes culturas que os antecederam.
Filisteus da cultura
No ano de 1873 Nietzsche trabalha em dois textos que, tomados
conjuntamente, oferecem um bom exemplo de uma crítica à cultura de seu tempo
como exercício filosófico apoiado em um consistente olhar para o passado. O
primeiro deles é A filosofia na época trágica dos gregos, cujas anotações têm
início um ano antes e que não é levado a público pelo autor, e o segundo é David
Strauss, o confessor e o escritor, elaborado e levado a público no ano de 1873,
abrindo a coletânea intitulada Considerações extemporâneas. No primeiro,
Nietzsche apresenta um estudo sobre a filosofia pré-socrática, contrapondo a
forma como os gregos se relacionam com os saberes apropriados por eles ao
modo como os homens letrados de sua época, século XIX, apoderam-se da
cultura em geral e da filosofia em particular. No segundo livro, tomando a figura
de David Strauss como uma “lente de aumento” para “tornar visível um estado de
miséria geral, porém dissimulado”,5 (EH, Por que sou tão Sábio, 8) Nietzsche
desdobra aquela sua crítica à cultura, especialmente por meio de duas fórmulas
extremamente provocadoras, a saber, “cultura de jornaleiros” e “filisteus da
cultura”. A primeira, utilizada para designar a banalização à qual estava
submetida a cultura em seu tempo, vítima da superficialidade e do embotamento
típico de um período em que, segundo ele, não se tinha a preocupação com
“espírito alemão”, mas com o império alemão. E a segunda para referir-se os
intelectuais, aos homens letrados de então que produziam tal cultura e se
identificavam com ela. Tal crítica, tendo como contraponto o modo como os
gregos se relacionam com os conhecimentos colocados à sua disposição para
produzirem o seu espírito filosófico, oferece um interessante parâmetro para
analisar a os limites impostos ao pensar filosófico, tanto pela erudição vazia
quanto pela banalização da cultura. O que constitui, conforme veremos, duas
faces de um mesmo problema.
Ao referir-se à sua época, Nietzsche afirma que nela “todo filosofar é
restringido a uma aparência de erudição”. (FTG, 2) Para o filósofo, tal modo de se
relacionar com a filosofia acaba por suscitar questionamentos acerca da própria
razão de ser da filosofia: sem um motivo para continuar existindo, ela seria
simplesmente rejeitada, ou, no mínimo, tomada como um adorno, um adereço,
algo supérfluo para ser desfrutada por aqueles que nada mais teriam a fazer do
que “filosofar”. No entanto, se isto ocorre é porque, segundo Nietzsche, não se
5
Faremos as citações das obras de Nietzsche seguindo um padrão estabelecido de siglas,
com a indicação da parte, quando for o caso, e da seção. As obras citadas são: A filosofia na
época trágica dos gregos (FTG); David Strauss, o confessor e o escritor – Consideração
Extemporânea I (CE I); Ecce Homo (EH); Além de Bem e Mal (ABM); Para a genealogia da moral
(GM).
cumpre a “lei da filosofia em si”, que é “viver filosoficamente”, (FTG, 2) motivo
pelo qual, em tal contexto, ela vagueia por um solo estranho, precisando
esconder-se como uma pecadora ou uma profetiza.
Segundo Nietzsche, conferir à filosofia o status de excentricidade é próprio
de uma época que pretende apresentar traços de uma “cultura geral”, quando na
verdade não possui “cultura nenhuma”, (FTG, 2) ou, em outros termos, possui
uma “cultura de jornaleiros”.
O termo “cultura de jornaleiros” é utilizado pelo filósofo para exprimir a
vulgaridade que tomava conta dos meios acadêmicos na Alemanha daquele
período. O lixo cultural, caracterizado pela falta de unidade de estilo e de um
caráter próprio da cultua alemã de então, se faz representar, segundo Nietzsche,
pelo livro de Strauss intitulado A velha e a nova fé, no qual a coesão lógica cede
lugar às palavras de efeito e o cuidado coma língua cede terreno para os
neologismos de mau gosto. Contudo, a despeito de sua fragilidade em termos de
argumentação e de escrita, esse livro tem plena aceitação na Alemanha, com seis
edições em pouco mais de um ano após seu lançamento.
Um fenômeno que se explica, segundo Nietzsche, pelo fato de tal escritor
encontrar muitos aparentados entre os homens de cultura daquela época, os
quais compartilhavam com Strauss tanto o ufanismo pela vitória na guerra francoprussiana de 1870, seguida pela instalação do Império Alemão por Bismarck em
1871, quanto a sua percepção otimista do mundo, advinda dos progressos da
ciência e de uma concepção mecanicista de mundo que não deixava lugar para
grandes questionamentos acerca de quem é o homem ou qual seria o seu
destino, uma vez que tal destino, passivo de ser apreendido pela razão, já estaria
traçado, deixando antever um futuro feliz para o homem. O que significa, em
termos filosóficos, a banalização do problema do homem.
Neste ambiente não é de se estranhar que os homens se apropriem
também da filosofia como um adorno, um luxo para poucos que podem pagar por
ela, assim como podem pagar pela arte e também por outros elementos da
cultura, que são tomados por eles para seu usufruto e passatempo, como se toda
aquela tradição e cultura tivessem sido feitas para seu deleite. Tais homens são
designados por Nietzsche por meio da expressão “filisteus da cultura”
(Bildungsphilister).
O termo filisteu, utilizado aqui, no entanto, não remete ao povo indoeuropeu que na época de Ramsés III (1194-1163) se fixou na região da palestina
e fundou várias cidades (a cidade de Gaza é conhecida ainda hoje) e que
rivalizou com os antigos hebreus pelo domínio na região. Trata-se, antes, de uma
utilização pejorativa do termo, cunhada por seus antigos inimigos, os judeus, e
usual no século XIX. A palavra filisteu traduz, em tal contexto, a caricatura
daquele homem de pouca cultura, especialmente sem capacidade para apreciar
as artes e que apresenta um código moral restritivo. Ela designa, ademais, uma
pessoa sem qualquer propósito mais elevado para a existência e que estabelece
como finalidade última para si um estilo de vida burguesa, na qual predomine o
conforto e os prazeres moderados e da qual se possa eliminar o sofrimento,
evitando-se para isto, como uma primeira medida, o reconhecimento do caráter
trágico e contraditório da vida. Por fim, um modo de existir que não coloca em
questão a própria vida.
Segundo Nietzsche, o termo “filisteus da cultura” é “tomado da vida
estudantil e utilizado em seu sentido mais amplo, isto é mais popular, em
contraposição aos filhos das musas, aos artistas, aos autênticos homens da
cultura”. (CE I, 2) Nas palavras de Charles Andler, “nos meios universitários,
depois do século XVIII, denomina-se ‘filisteu’ o burguês submetido às leis,
devotado aos afazeres, e que não consente para si a agradável liberdade de
estudante”.6 O filisteu da cultura, embora acredite ser homem de cultura, ele é,
segundo Nietzsche, o oposto aos “autênticos homens da cultura”. (CE I, 2) Numa
sociedade de filisteus, espera-se dos homens de cultura apenas coisas
superficiais que não venham a alterar a situação de comodidade alcançada pelos
próprios filisteus. Por exemplo, aos artistas são permitidas “apenas duas coisas:
ou a imitação da realidade, levada a cabo em idílios ou suaves sátiras
humorísticas, ou a realização de cópias livres das obras mais reconhecidas e
famosas dos clássicos, mesmo que seja com vergonhosas concessões ao gosto
próprio da época”. (CE I, 2)
Tal forma de se relacionar com a filosofia, com a arte e com a cultura em
geral desconsidera a vida e os paradoxos e contradições que são inerentes a ela.
Deixa de lado, portanto, o que torna o homem um animal interessante, preferindo
6
ANDLER, Nietzsche, sa vie et sa pensée, p. 501.
ocupar-se de afazeres práticos, indispensáveis, ao certo, porém, aos quais não se
pode reduzir o homem.
Aprendendo com os vizinhos
Segundo Nietzsche, também os gregos, como homens do conhecimento,
não tiveram de inventar os elementos básicos da filosofia. Eles se apropriaram de
conhecimentos anteriormente elaborados, conferindo-lhes, no entanto, um tal
significado que se tornaria uma tarefa dispensável ocupar-se deles em algum
momento anterior a essa apropriação, por mais que culturas anteriores tenham
sido seu solo de nascimento e possam reivindicar o caráter de originalidade em
relação a eles.
Em contraposição à forma como os homens cultos de seu tempo se
apropriam dos elementos da cultura, Nietzsche afirma: “os gregos são
admiráveis na arte de aprender dando frutos; e deveríamos, como eles, aprender
com os nossos vizinhos e utilizar os conhecimentos adquiridos como apoio para a
vida e não para o conhecimento erudito, apoio a partir do qual se salta para o alto
e mais alto ainda do que o vizinho”. Segundo Nietzsche, os gregos “aprendiam e
logo queriam viver”. Essa era a medida para o seu insaciável instinto de
conhecimento: a “consideração pela vida” e a “necessidade de vida ideal”. (FTG,
1)
Não se trata apenas de vivenciar um conhecimento numa correlação, por
exemplo, entre uma teoria que se estuda e uma prática realizada no dia-a-dia.
Como se fosse uma técnica que, uma vez aprendida, só teria finalidade quando
aplicada. A compreensão da correlação entre filosofia e vida, bem como a idéia
de se tomar a filosofia na perspectiva da vida, requer um olhar sobre o significado
do termo vida na filosofia de Nietzsche. É de se notar que já nestes primeiros
escritos, tem-se o que se pode chamar de um vitalismo na sua filosofia: uma
afirmação da vida em oposição a tudo aquilo que, na sua perspectiva, a nega,
restringe e deprecia, a tudo aquilo que, em nome da fraqueza e do medo, propõe
uma diminuição do caráter expansivo, conquanto, paradoxal da vida. Para
Nietzsche, uma vida que se afirma – portanto, saudável – caracteriza-se pelo
conflito, como identifica entre os gregos, que teriam na idéia de agon (disputa) o
fermento de sua existência.7 Uma disputa à qual faz referência, por exemplo, em
A filosofia na época trágica dos gregos e também em “A disputa de Homero”.8
A vida é parte integrante de um mundo concebido por Nietzsche não como
uma “realidade” (Realität), mas uma “efetividade” (Wirklichkeit), (FTG, 5) ou, mais
propriamente, um constante efetivar-se e diluir-se: um constante vir-a-ser, no qual
toda estabilidade é momentânea e provisória. Uma idéia terrível da existência em
que as individualidades emergem já condenadas a voltar, a subsumir no
indeterminado.
Os gregos, segundo Nietzsche, concebiam a efetividade como um
constante vir-a-ser, do indeterminado para o determinado, como concebe
Anaximandro, ou apenas como indeterminação, num fluxo e refluxo, no qual nada
é indestrutível, segundo Heráclito. (FTG, 3 e 5) Porém, tal constatação não
empurra os gregos para um pessimismo ou para uma busca por redenção da
realidade numa compensação em outra existência. Ao contrário, eles tomam a
idéia de conflito, de disputa não como um empecilho, mas como a condição para
a vida saudável do indivíduo e também do Estado. Uma força plástica, criadora e
modeladora de mundos, indivíduos e estados. Isto é o que se deduz, conforme
aponta Nietzsche, a partir de um poema de Hesíodo intitulado “Os trabalhos e os
dias”, no qual o autor faz referência às duas deusas Éris: uma que conduz à luta
cruel entre os homens – e que deve ser censurada; e outra que conduz a um tipo
de inveja capaz de estimular os homens para o desenvolvimento de suas
capacidades e para a ação da disputa – e que, portanto, deve ser louvada.
Enquanto a primeira pode ser notada na barbárie, a segunda pode ser verificada
nas relações dos homens entre si, na saudável disputa entre os sofistas,
professores, atletas e artesãos e artistas. E de forma particular na filosofia.
Tal vida saudável não descarta o aspecto terrível da existência, o qual, de
resto, não poderia mesmo ser descartado, mas o toma como parte integrante, um
fermento. A partir dessa concepção de vida, e tomando-se a filosofia como uma
das formas mas refinadas que o homem possui de se colocar em uma disputa,
uma vez que as teorias e sistemas abrangentes dos filósofos não são nada
impessoais, porém, construídos com o intuito de domínio, imposição e de
7
Curt Paul Janz. Friedrich Nietzsche. Erter Band. München: Carl Hanser Verlag, 1993, p.
498.
8
Quinto dos Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Pequeno livro oferecido por
Nietzsche como presente de aniversário a Cosima Wagner em 24 de dezembro de 1872.
negação do que é diferente, tem-se uma interpretação possível do papel da
filosofia – e do espírito filosófico – no sentido de apoio à vida, ao menos na forma
como os gregos o fizeram: ela permite à vida desabrochar naquilo que é peculiar
a ela, a disputa, em graus mais elevados e refinados do que se poderia obter com
qualquer outra modalidade de combate.
A idéia de tomar conhecimentos no sentido de “apoiar a vida”, não remete,
portanto, a qualquer tipo de apoio entendido como um suporte para conservar a
vida, num caso extremo: para tentar manter uma vida que degenera e já se
despede dela. Significa, antes, um modo, um meio para impulsionar a vida naquilo
que é próprio a ela, que “atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo” e
não pode sequer ser concebida sem esse caráter”. (GM II, 11) Trata-se, portanto,
de um apoio para que a vida possa desabrochar em sua máxima exuberância e
contradição.
Tomar um conhecimento sob a ótica da vida significa apreendê-lo e usá-lo
como parte de uma formação que dirija o homem para alvos mais elevados. Não
pode ser simplesmente um meio para assegurar a reprodução de indivíduos úteis
e preferencialmente não perigosos. Como se fosse facultado ao homem optar
apenas por aquilo que, calculadamente, seria “bom” para ele. Isto porque não é
possível retirar da vida o seu aspecto paradoxal, ficando apenas com um pedaço
dela supostamente mais agradável. Tais tentativas de mutilar a vida ou outras que
visam silenciar o seu lado explosivo por meio de algum sedativo que produza uma
espécie de hibernação, revela um propósito daquele que – fraco e debilitado –
pretende renunciar ao caráter expansivo da vida como condição para se continuar
vivendo.
Viver filosoficamente
A partir do que foi exposto pode-se apontar duas formas contrapostas de
se relacionar com o legado oferecido pela filosofia: a dos gregos, que o toma os
conhecimentos
anteriormente
dados
por
sua
utilidade
para
a
vida
e
imediatamente os vivenciam, e a dos filisteus da cultura, que os toma como um
luxo, um objeto de deleite, mantendo a filosofia nos extremos do enciclopedismo e
da banalização.
Tendo em vista nossa questão inicial – da suposta contraposição entre a
prática filosófica e a história da filosofia – e tomando a forma como os gregos se
relacionam com conhecimentos anteriormente dados para a construção de seu
espírito filosófico, é possível afirmar que o benefício obtido por eles não é o da
apreensão em si, mas a utilidade que conferem ao que tomam de culturas
anteriores. São meios para a vida. E o próprio espírito filosófico que constroem
também é um meio para uma vida que se afirma na disputa. Desta forma, eles
justificam a filosofia e também o filósofo que, “junto deles, não é nenhum cometa”.
(FTG, 2)
Com os gregos se aprende que não é necessário reinventar os elementos
básicos da prática filosófica. Aprende-se também que a tradição filosófica se
apresenta como um palco de debates no qual as diferentes interpretações de
mundo são sempre válidas, na medida em que possam ser apropriadas e
vivenciadas. Isto porque, diferentemente do que ocorre com a ciência, em que
uma verdade adquirida desqualifica a anterior e a substitui,9 em filosofia uma nova
verdade – uma nova perspectiva – não exclui as anteriores, mas coloca-se em
debate com elas. Por fim, aprende-se que a filosofia é a forma mais refinada e
sublime de disputa que o homem pode lançar mão, sendo, assim, útil à vida,
idealizada pelos gregos e descrita por Homero na figura da boa Éris.
Tomando esta interpretação, pode-se voltar ao texto das OCEM quando
este propõe conteúdos como instrumentos e o aluno como aquele que toma
posição frente a diferentes perspectivas e, no limite, aprende a disputar: “a
educação deve centrar-se mais na idéia de fornecer instrumentos e de apresentar
perspectivas, enquanto caberá ao estudante a possibilidade de posicionar-se e de
correlacionar o quanto aprende com uma utilidade para sua vida, tendo presente
que um conhecimento útil não corresponde a um saber prático e restrito, quem
sabe à habilidade para desenvolver certas tarefas”. (OCEM, p. 28)
Por sua vez, tendo em vista novamente nossa questão, cabe ressaltar que
os extremos em que o filisteu da cultura lança a filosofia – um enciclopedismo por
um lado e a banalização por outro – não são, de fato opostos, na medida em que
possuem como ponto de intersecção justamente o caráter de inutilidade da
filosofia. Mais ainda, é possível afirmar que tal forma de se apropriar da filosofia
faz com que ela sirva para a formação daquele tipo de homem – fraco e debilitado
9
A respeito, leia-se: GUÉROULT, Martial. O problema da legitimidade da história da
filosofia. In: Revista de História (USP), São Paulo, vol. 37, n. 75, julho-setembro 1968, p. 189 –
211.
– cuja vida se limita a uma preservação da vida. A superficialidade aliada à
promessa de conforto. A ausência de grandes questionamentos associada à
promessa de não se ter grandes transtornos. Enfim, modos de se relacionar com
a cultura que não colocam em risco a vida do filisteu da cultura. Em todo caso,
características de momentos e culturas em que a filosofia parece ter pouco a dizer
para a vida.
Tem-se assim, não tanto uma oposição entre a tradição e a prática da
filosofia, mas entre os diferentes modos de se estabelecer essa relação. Desta
forma, tendo em vista não uma miragem que seria a oposição entre a filosofia e
filosofar, mas a oposição entre uma cultura de filisteus, por um lado, e a
experiência dos gregos, por outro, resta rejeitar aquele modo de fazer filosofia que
se traduz ora como um enciclopedismo, em que o estudo da tradição seria mera
repetição, ora como uma banalização, em que a superficialidade leva a declarar
tudo – e qualquer coisa – como sendo filosofia, e acolher a experiência que sabe
olhar para o passado como fonte para a construção do próprio espírito, com a
qual se cumpre a “lei da filosofia em si”, que é “viver filosoficamente”.
Referências
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Médio;
PCN+
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Médio.
Disponível
em:
http://www.ciadaescola.com.br/downloads/procurar.asp?categoria=161 Acessado
em 12 de julho de 2007.
GUÉROULT, Martial. O problema da legitimidade da história da filosofia. In:
Revista de História (USP), São Paulo, vol. 37, n. 75, julho-setembro 1968, p. 189
– 211.
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Fragmento retirado da colectânea de textos Theoretical Philosophy, 1755-1770
(edição de David Walford e Ralf Merbote, Cambridge University Press, 1992), pp.
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Acessado em 12/07/2007.
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