A dignidade e a valorizao da mulher

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A dignidade e a valorização da mulher
Maria da Ascenção Ferreira Apolônia *
A estabilidade no casamento, conquista que remonta às idéias cristãs da Idade Média,
permitiu que pela primeira vez na história a mulher fosse vista legalmente não mais como
inferior ao marido, mas como um membro essencial para a família. A instauração do
casamento monogâmico trouxe benefício não só para a mulher, mas para os filhos que
ganharam a proteção de um lar estável.
Em janeiro entrou em vigor no Brasil o novo código de Direito Civil, que busca fortalecer a
participação da família: pai e mãe na responsabilidade conjunta de educar os filhos, quando
a unidade garantida pelo casamento se desfez. Neste momento, em que a sociedade
brasileira é convidada a refletir sobre os avanços ou retrocessos do novo código, é
conveniente conhecer o longo percurso histórico trilhado por sucessivas gerações no
contínuo esforço por garantir à família a estabilidade inerente à união monogâmica. Esse
cume de justiça - em que mulher e filhos são considerados pessoas e, portanto, merecedores
de condições que lhes assegurem as várias faces do desenvolvimento humano - foi
arduamente conquistado, ao longo dos séculos, graças à progressiva implantação do
casamento monogâmico, que teve ainda o mérito de instaurar a efetiva e crescente
dignificação da mulher, introduzida na Idade Média.
Mais do que nunca é oportuno lembrar à sociedade brasileira que esse legado em favor dos
mais frágeis: a mulher e os filhos, teve como preço o sangue e as lágrimas das gerações que
nos precederam. As conquistas do presente só podem ser avaliadas como vitórias, se não
dispensarmos o discernimento que a dimensão histórica é capaz de nos oferecer. Só então
estaremos aptos a identificar o que é avanço ou retrocesso, podendo, de peito aberto,
festejar e saborear como vitória o que representou um autêntico benefício à sociedade. Do
contrário, corremos o risco de levar gato por lebre, e comemorar ingenuamente, como
êxito, a nossa própria derrota. Para alcançarmos esse sentido de justiça, é necessário
surpreender, com o próprio olhar, a lenta gestação da dignidade da mulher e da família no
decurso do processo histórico.
Os primeiros passos da humanidade rumo a dignificação da mulher foram registrados, com
maior nitidez, a partir do século IX, em grande parte, à medida que a sociedade medieval
adotava a prática do casamento monogâmico, que conferiu à mulher um novo estatuto no
plano das relações sociais: ela passou a ser o módulo essencial para a constituição da
família (1), garantindo-lhe unidade e solidez. Jorge Borges Macedo, em artigo publicado
pela revista Oceanos, estuda as causas da participação política e do crescente prestígio
social que a mulher conquistou no decorrer da Idade Média. Ele aponta o casamento
monogâmico como um dos fatores decisivos para a progressiva intervenção feminina na
Corte e nos domínios senhoriais, a partir do século XII, em Portugal. Nas palavras do autor:
"Para o mundo medieval os casamentos reais e senhoriais são atos políticos providos de
eficácia pública. Nesse aspecto, a mulher tornou-se, assim, a garantia de funcionamento dos
sistema político ou social, assim como a condição básica da sua estabilidade." (2)
Para melhor avaliarmos o salto de qualidade que representou a participação feminina no
campo político, diligentemente preservado como o espaço por excelência do homem, basta
ter em conta a condição da mulher nos séculos em que vigorou o Império Romano.
Mediante o "patris potestas", cabia ao pai decidir sobre a vida dos filhos que gostaria de
alimentar. Tal como ocorre atualmente na China, os meninos eram preferidos em
detrimento das meninas, que só gozavam de maior apreço na condição de primeira filha.
De acordo com Régine Pernoud, entre os celtas, germânicos e nórdicos vigorava uma maior
igualdade entre homem e mulher no interior da família: "O regime familiar inclinava [os
cônjuges] a reconhecer o caráter indissolúvel da união entre o homem e a mulher, e, no
caso dos francos, por exemplo, constata-se que o 'wehrgeld', o preço do sangue, é o mesmo
para a mulher e para o homem, o que implica um certo sentido de igualdade" (3).
Acrescenta que a concepção cristã do casamento, implantada ao longo da Idade Média, em
virtude da conversão das tribos bárbaras, propiciou e fortaleceu a igualdade e a
reciprocidade entre os esposos. Instaurava-se, por assim dizer, uma simetria no
relacionamento entre homem e mulher: "A mulher não pode dispor de seu corpo: ele
pertence ao seu marido. E da mesma forma, o marido não pode dispor de seu corpo: ele
pertence à sua esposa. (I Cor. VII, 4)" (4). Esta concepção radical e renovadora da relação:
homem mulher, em confronto com a cultura antiga e pagã de cunho machista, implicou a
introdução de uma nova mentalidade e de um novo olhar relativamente à imagem e
identidade femininas. E ela só se instaurou pouco a pouco, com forte e inevitável
dificuldade, nas regiões que sofreram o domínio romano. Nas palavras do jurista Robert
Villers: "Em Roma, a mulher, sem exagero ou paradoxo, não era sujeito de direito... Sua
condição pessoal, as relações da mulher com seus pais ou com seu marido são da
competência da domus da qual o pai, o sogro ou o marido são os chefes todo-poderosos... A
mulher é unicamente um objeto" (5). Para o Direito Romano, a mulher era uma perpétua
menor, que passava da tutela do pai à do marido. Régine Pernoud atribui ainda à
reimplantação do Direito Romano, em vários países da Europa, no século XVI, a
responsabilidade pelo retrocesso da atuação feminina no âmbito familiar, social e político.
A mulher que vinha conquistando espaço, do século X ao XIII, no âmbito familiar, na
sociedade e na arte, sofre um eclipse no período subseqüente, resgatando o prestígio que
conquistara na sociedade medieval somente no século XX .(6)
Os benefícios do casamento monogâmico não se restringiram à possibilidade de o espaço
social e político contar com a intervenção feminina. A mudança mais significativa
relativamente à dignidade da mulher deu-se no plano da relação: feminino masculino. Em
que condições de segurança viviam as mulheres nas tribos bárbaras, ainda não
cristianizadas? Relata Georges Duby que nos primeiros séculos da Idade Média e, em
algumas regiões, mesmo nos séculos XI e XII, as mulheres estavam expostas a contínuos
riscos quanto à integridade física e emocional (7). Tal como retratam alguns filmes atuais:
"Coração Valente" ou "Joana D' Arc", as donzelas eram freqüentemente violentadas. Duby
menciona o fato de que bandos de jovens rebeldes eram estimulados a se "divertir" longe
das fronteiras da região natal. Por isso invadiam condados vizinhos com o intuito de
violentar coletivamente suas mulheres e donzelas. Foram necessários séculos para evoluir
da barbárie à civilização no que concerne à relação entre homem e mulher.
Porém, o avanço representado pela união monogâmica, como lembra o historiador
português Jorge Macedo, atingiria níveis muito mais altos no relacionamento entre homem
e mulher. O casamento no mundo ocidental e cristão pressupunha uma troca de
informações sobre o outro, base da relação de pessoa a pessoa, que se instaurava no âmbito
familiar, à medida que a mulher deixava de ser um mero objeto de fecundação substituível
e descartável, para ser uma presença permanente, capaz de contribuir para a unidade e
humanização da família. E a arte passaria, ao longo da Idade Média, a exercer um papel
social de relevo, ao propiciar o conhecimento da alteridade, na revelação desse mundo
interior do outro, cuja contemplação está, muitas vezes, velada nas relações quotidianas,
mas que a poesia, o romance, a pintura ou a crônica põem diante dos olhos do leitor,
instigando-o a levar em conta as nuanças de sensibilidade, de comportamento ou de valores
inerentes ao outro.
Como conseqüência da relação pessoal, necessária à prática do casamento monogâmico,
fez-se mais claro tanto no quotidiano do ambiente familiar, quanto no universo político e
social, que a relação de pessoa a pessoa não podia ser somente um ato voluntário ou de
razão (8), mas impregnado de afetividade. Ora, as decisões que se enriqueciam com o
ingrediente afetivo, ganhavam em qualidade na constante renovação da responsabilidade
que igualmente implicavam. Afirma Borges que o estudo e a análise das relações de afeto
no casamento monogâmico, tornou-se "( ...) uma característica essencial de todas as
sociedades européias: o universo afetivo de escolha e a consciência íntima que a ela preside
tornaram-se, em pouco tempo, essenciais ao quotidiano, assim como o cerne da focagem
literária e artística do ideal da convivência e um campo necessário de expressão moral e
antropológica." (9)
Em síntese, no casamento monogâmico está pressuposto um conceito muito alto do ser
humano, que não merece menos do que a fidelidade recíproca entre homem e mulher. O
mesmo se dá em relação aos filhos, que não merecem menos do que a presença acolhedora,
afetiva e exigente dos pais, cujos esforços convergem para a humanização da família e, de
modo especial, dos filhos. Nada substitui o cume em humanidade representado pela união
monogâmica, incluído o novo código civil, no esforço por minimizar a perda imposta às
vítimas de um casamento que se desfez ou que não houve. Mas, nesse momento, em pleno
século XXI, impõe-se a pergunta: não seria um retrocesso apontar os benefícios do
casamento monogâmico, quando a mídia e alguns segmentos da sociedade aplaudem o
namoro e o casamento descartáveis? Não. Em hipótese alguma. O casamento ou o namoro à
dinamarquesa, inerentes à barbárie, é que constituem um retrocesso relativamente à união
monogâmica, e só se instauram - tal como assinala o percurso histórico -, mediante o
rebaixamento do cônjuge à condição de ser descartável, diminuído por um amor (seria
amor?) tão desumano quanto a maionese ou a margarina: com prazo de validade vencido.
Em suma, a poligamia, oficiosa ou garantida por lei, reduz homem e mulher à categoria de
ingênua marionete no jogo machista ou feminista do prazer a qualquer preço. E, neste caso,
o preço é alto, muito alto: a angústia de se sentir usado, a dor e o sabor amargos de quem
negou a si mesmo o direito de amar e ser amado como pessoa, e consentiu em desprezar-se,
vivendo dos despojos de sua própria humanidade.
Notas:
1 Cf r. Jorge Borges Macedo: "Mulheres e Política no século XV português". In: Oceanos:
Mulheres no mar salgado, n.21, jan-mar/ 1995, p.19.
2 Loc. cit.
3 La femme au temps des cathédrales. Paris: Ed. Stock,1980, p.172. 4 Apud Régine
Pemoud. Opus cit., p.173-4.
5 Apud Régine Pemoud. Opus cit., p.19-20.
6 A esse respeito, leia-se o prefácio da historiadora francesa que serve de apresentação à
obra acima citada.
7 Sobre esse assunto, consulte-se, do mencionado autor, a obra: Damas do século XII: a
lembrança das ancestrais. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
8 Jorge Borges Macedo, opus cit., p.19.
9 Loc. cit
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