Filosofia Clínica, Aconselhamento Filosófico, Saúde e Educação

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Filosofia Clínica, Aconselhamento Filosófico,
Saúde e Educação
Leonardo RICCO MEDEIROS1
Resumo: A definição de Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) encontra-se ultrapassada e insuficiente. Neste ensaio, propomos que a Filosofia Clínica
participa da composição de outras definições possíveis. Colocando-a em contato
com as superfícies do movimento da Promoção à Saúde e relacionando-a com o
Aconselhamento Filosófico, investigaremos a definição de Saúde enquanto um
estado de razoável harmonia entre a pessoa e sua realidade singular. A ideia de
Educação – traduzida como um refinamento da consciência para a descoberta de
sentidos existencialmente singulares – será baseada em um processo radicado no
indivíduo. Sendo assim, educar aproxima-se da promoção do “exercício existencial”, talvez o principal objetivo da Filosofia Clínica. Além disso, considera-se
a pessoa (auto)educada, fundamentalmente, uma pessoa saudável. Dividido em
seis partes, o texto se faz à luz dos pensamentos de Huberto Rohden e da Logoterapia, apontando uma objetividade filosófica de verdade universal que pode
servir ao filósofo clínico.
Palavras-chave: Filosofia Clínica. Aconselhamento Filosófico. Saúde. Educação. Logoterapia.
Leonardo Ricco Medeiros. Mestrando em Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo
(USP). Especialista em Filosofia Clínica (Instituto Packter). Conselheiro filosófico nível II (Gabinete
Project@ – Portugal). Colaborador do Instituto Mineiro de Filosofia Clínica (IMFIC). Licenciado em
Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.
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Clinical Philosophy, Philosophical Counseling,
Health and Education
Leonardo RICCO MEDEIROS
Abstract: World Health Organization (WHO) definition of Health is outdated
and inadequate. In this essay, we propose that Clinical Philosophy is involved on
the composition of other definitions. We will put it in contact with the surfaces of
Health Promotion movement and talk it with Philosophical Counseling. We will
investigate Health as a state of reasonable harmony between a person and his or
her reality. The idea of Education – translated as a refinement of consciousness
in the search of existentially singular meanings – will be based on a process
rooted in the individual. In this sense, it is close to the “existential exercise”,
maybe the main goal of Clinical Philosophy. In addition, it will be considered
that an (auto) educated person is, fundamentally, a healthy person. Divided into
six parts, the text is written in the light of Logotherapy and Huberto Rohden’s
thoughts, indicating a philosophical objectivity of universal truth that can be
used by clinical philosophers.
Keywords: Clinical Philosophy. Philosophical Counseling. Health. Education.
Logotherapy.
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1.  CONSIDERAÇÕES INICIAIS
“Não há um único ser humano que possa dizer que jamais
sofreu, que jamais falhou e que não morrerá” (Viktor
Frankl).
Há quase vinte anos, Segre e Ferraz (1997), profissionais
inseridos no universo da saúde pública, publicavam um ponto de
vista sobre a definição de saúde presente na Constituição de 1946
da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mesmo reconhecendo seus méritos históricos, identificaram a possibilidade crítica
de compreender a definição como irreal, ultrapassada e unilateral.
Sem descartar a importância da observação, descrição, avaliação e
gestão de indicadores objetivos para as políticas de saúde pública,
os autores propunham que muito da ineficiência destas poderia ser
bem compreendido com a adoção de uma visão “antipositivista”,
cuja abordagem pudesse caminhar “de dentro para fora do ser humano”. Com essa visão, a eficiência seria reparada em contatos
mais empáticos, sintonizados e éticos entre profissionais e população assistida (SEGRE; FERRAZ, 1997).
Tanto a divisão entre mental, social e somático na consideração do ser humano, como a perspectiva estatística própria do profissional higienista, vão sendo, circunstancialmente, ultrapassadas.
Propomos que a Filosofia Clínica – escola filosófica brasileira com
raízes na Medicina – possui especial originalidade para participar
da composição de práticas e fundamentações metodológicas permeadas por um sentido que atribui integralidade à pessoa e aos fenômenos humanos.
O presente texto está organizado em seis partes, todas acompanhadas de epígrafes que lhe intensificam o sentido verdadeiro.
Sendo esta a primeira parte, na segunda proponho algumas reflexões sobre a definição de saúde da OMS, procurando identificar
onde poderiam ser justificadas as acusações de irrealidade, unilateralidade e de condição ultrapassada. Avançando na dimensão
política da Saúde, passamos pela ideia de “empoderamento do paciente”, considerando-a através das perspectivas histórico-crítica e
pós-estruturalista. Na terceira parte, apresentaremos traços, termos
e procedimentos instrumentais originais que singularizam método
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e objetivo principal próprios da Filosofia Clínica. Também serão
levantados indicativos para a pesquisa de suas fundamentações e
a perspectiva de considerá-la não apenas um método instrumental,
mas uma escola e uma filosofia com caminhadas metodológicas
próprias. Na quarta parte, considerando-se a natureza do dossiê
em que se inscreve o artigo, faremos um esboço do que se pode
convencionar como Aconselhamento Filosófico e algumas de suas
diferenças e semelhanças instrumentais com a Filosofia Clínica.
Na quinta parte, pensaremos a possibilidade de uma compreensão de verdade objetiva na Filosofia Clínica, propondo um passeio
com os conceitos de Saúde e Educação, inter-relacionando-os às
ideias de Huberto Rohden e da Logoterapia. Na última parte, não
concluiremos, em vez disso, suspenderemos o pensamento com algumas definições de Saúde conforme a Cosmoterapia proposta por
Rohden e a noção de Filosofia Clínica enquanto uma práxis ética
do cuidado singular à qual cabe sustentar alguma objetividade filosófica de verdade universal.
Deve-se alertar que este artigo não se propõe a apresentar
aprofundamentos científicos, embora possa incentivar tais movimentos. A forma condutora aproxima-se do ensaio, que “[...] diz o
que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim”
(ADORNO, 2003, p. 17), unificando “[...] livremente pelo pensamento o que se encontra unido nos objetos de sua livre escolha”
(ADORNO, 2003, p. 27) e obrigando “[...] a pensar a coisa, desde
o primeiro passo, com a complexidade que lhe é própria” (ADORNO, 2003, p. 33). Por sua natureza de pensar em fragmentos, “[...]
encontra sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas, e não ao
aplainar a realidade fraturada” (ADORNO, 2003, p. 35). Consciente de sua descontinuidade e incompletude, os assuntos adquirirão
o caráter de “um conflito em suspenso” (ADORNO, 2003, p. 35),
procurando permitir “[...] que a totalidade resplandeça em um traço
parcial, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada” (ADORNO, 2003, p. 35).
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2.  A DEFINIÇÃO DE SAÚDE E O EMPODERAMENTO
DO PACIENTE
“Quando eu uso uma palavra” – disse Humpty Dumpty
numa voz um tanto zombeteira, “ela significa exatamente
aquilo que eu quero que signifique – nem mais nem
menos”.
“O problema é saber se você pode fazer com que as
palavras signifiquem tantas coisas diferentes”, disse Alice.
“O problema, apenas, é saber quem manda, respondeu
Humpty Dumpty” (Lewis Carroll).
A OMS, nos termos do Artigo 57 da Carta Geral das Nações
Unidas (ONU, 1945, [n.p.]), é um organismo ou entidade especializada com ampla responsabilidade internacional, criada por acordo intergovernamental. Consta ser seu objetivo, no primeiro artigo
de sua Constituição de 1946 (OMS, [n.p.]), a aquisição, por todos
os povos, do nível de Saúde mais elevado que for possível”. No
âmbito dos discursos modernos ocupados com a lógica unívoca,
carecemos de uma definição de Saúde, um ponto de partida para a
conversa – como diz a citação atribuída a Voltaire2. Tal definição
vai aparecer no preâmbulo como o primeiro dos princípios basilares para a felicidade, a segurança e as relações harmoniosas entre
os povos do planeta.
Podem render reflexões visualizar os outros princípios envolvidos: gozar da melhor saúde possível é um direito de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, credo político, condição econômica ou social; a saúde de todos os povos depende da cooperação
entre indivíduos e Estados; os resultados na promoção e proteção
da saúde de um Estado têm valor para todos; a desigualdade entre
os países na promoção de saúde e combate às doenças é um perigo
comum; é essencial que a criança esteja apta a viver harmoniosamente num meio variável para que se desenvolva saudavelmente;
os povos devem receber os benefícios dos conhecimentos médicos,
psicológicos e afins; uma opinião pública esclarecida e coopera“Se queres conversar comigo, define primeiro os termos que usas”. Disponível em: <http://pensador.
uol.com.br/frase/NTY5Nw/>. Acesso em: 31 maio 2016.
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tivamente ativa participa da melhora da saúde dos povos; os governos devem assumir medidas sanitárias e sociais adequadas pela
saúde dos seus povos. Desse contexto relacional é que participa a
definição de saúde: “um estado de completo [ou perfeito] bem-estar
físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença
ou de enfermidade” (OMS).
Etimologicamente, saúde remete ao termo latino salus, documentado no século XIII com o sentido de “salvação” ou “estado
de são” (CUNHA, 2010, p. 584). Tais informações iluminam a percepção antiga de que saudável era aquele que, simplesmente, havia
sido “salvo” de uma determinada enfermidade anátomo-funcional.
A não existência ou a eliminação de uma patologia era, por si só,
identificada como a saúde. A definição de 1946 amplia o horizonte
dessa tradição, sendo reconhecido que superou, em sua época, as
dificuldades de uma definição negativa, ampliando o leque para
a emergência de políticas sanitárias mais úteis e eficazes (SÁ JUNIOR, 2004). Três pontos importantes são acrescentados com a
nova definição: i) as noções de completude ou perfeição; ii) a ideia
de bem-estar; e iii) o destaque para uma tripartição da existência
humana. Averiguemos o que passa a ser motivo de questionamento
em cada um desses itens.
As noções de completude ou perfeição – termos que aparecem conforme diferentes traduções – remetem diretamente ao que
Segre e Ferraz (1997) chamavam “irrealidade”. Temos reconhecido, por urbanidade ou eticidade de nossa época, que tais qualificações não pertencem ao mundo da existência humana, por natureza
imperfeito e polarizado no devir circunstancial e temporal.
A oração aditiva da definição “e não consiste apenas na ausência” recupera relações entre o estado de perfeito bem-estar e
a doença. Dialeticamente, podemos pensar no estado de completa
ausência de doença ao lado do completo estado de saúde. Noções
de doença, doente, sofrimento e tratamento são levantadas. A patologia – como veremos mais adiante, um conceito inexistente na
Filosofia Clínica – pode aparecer como “um conceito estatístico
imprescindível para elaboração de políticas da Saúde pública”. O
doente, “um ser humano diferente, que talvez tenha sua vida enEducação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 77-108, jan./jun. 2017
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curtada”. O sofrimento, uma “dor, inteiramente subjetiva, qualquer
que seja a sua origem”. O tratamento, uma espécie de “defesa social” ou “juízo de valor que serve ao controle e normatização sociais”. Ultrapassando todas essas definições, é possível identificar
a saúde mesmo nas situações onde caibam os rótulos da doença, do
doente, do sofrimento e do tratamento (SEGRE; FERRAZ, 1997, p.
541). “Em uma perspectiva rigorosamente clínica [...] a saúde não
é o oposto lógico da doença e, por isso, não poderá de modo algum
ser definida como ‘ausência de doença” (ALMEIDA FILHO; ANDRADE, 2003, p. 101 apud BATISTELLA, 2007, p. 55, grifo do
autor). “Indivíduos considerados doentes sob o ponto de vista clínico e laboratorial, que resistem e afirmam estarem bem, são considerados saudáveis em seu meio” (ALMEIDA FILHO; JUCÁ, 2002
apud BATISTELLA, 2007, p. 56).
Seguindo com os itens acrescentados pela definição de saúde de 1946, quanto à ideia de bem-estar, uma primeira observação refere-se ao papel muitas vezes necessário de seu contrário.
Do ponto de vista daquilo que se passa na vida da pessoa, daquilo que não assume caráter meramente periférico no processo de
sua trajetória existencial, o mal-estar pode cumprir papéis verdadeira e naturalmente imprescindíveis. Os estados de insatisfação
e angústia (inclusive com repercussões somáticas, como gastrite
ou cólon irritativo) são inerentes à condição humana e podem funcionar como condicionantes da conduta de indivíduos e coletividades, permitindo-lhes tecer a existência com a criação de outras
perspectivas e necessidades. Outra observação trata da dificuldade
ou mesmo impossibilidade de se universalizar, existencialmente,
o bem-estar. A percepção e qualificação do estado pessoal estarão
sempre sujeitas a descrições contextualizadas, a partir de jogos de
linguagem e experiências próprias. O uso semântico do termo – e
aqui já nos utilizamos do método da Filosofia Clínica – só poderá
ser legitimado na localização existencial da pessoa, em acordo ao
funcionamento de sua estrutura de pensamento.
Sobre a tripartição da condição humana, representantes da
abordagem psicossomática apresentam clara distinção. A parte
biológica (ou física) faz referência às características herdadas ou
adquiridas, incluindo órgãos e sistemas (glandular, cardiovascular,
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gastrointestinal etc.) e o metabolismo atuante nos processos de resistência e vulnerabilidade. A psicológica (ou mental) corresponderia aos processos emocionais e intelectuais, conscientes ou não,
caracterizadores da personalidade, dos afetos e dos modos comportamentais de relacionamento com as pessoas e com o mundo.
A social associa-se à incorporação e influência de valores, crenças
e expectativas originadas nos grupos, pessoas e comunidades com
os quais entramos em contato desde o nascimento, incluindo o ambiente físico e as características e funcionalidades dos objetos com
que nos relacionamos (FRANÇA; RODRIGUES, 2013, p. 22-23).
Ainda que seja explicitado que tal divisão3 é “apenas didática” e que “o ser humano reage sempre como um todo complexo, interligado em profundas e complexas relações” FRANÇA; RODRIGUES, 2013, p. 21), há críticas quanto à compreensão separatista
dos termos. Para Segre e Ferraz (1997, p. 540, grifo dos autores),
por exemplo, “a expressão ‘medicina psicossomática’, encontra-se
superada”, pois já se percebe “a inexistência de uma clivagem entre
mente e soma, sendo o social também inter-agente, de forma nem
sempre muito clara, com os dois aspectos mencionados” (SEGRE;
FERRAZ, 1997, p. 540).
Já na década de 1930, no texto O mal-estar na civilização,
de Freud, a tradição psicanalítica em formação supunha como possibilidade de defesa social a fuga para manifestações somáticas e
psicológicas (variados comportamentos, incluindo neuroses e psicoses). Atualmente, na etiologia de uma série de “doenças somáticas”, aparece como causa a problemática afetiva que, por algum
arranjo, não foi possível “ser vivenciada no plano propriamente psíquico”. Pergunta-se: o quão já suficientemente “descrito” e
“sentido” já não estariam os vínculos entre os estados afetivos e “o
infarto, a úlcera péptica, a colite irritativa, a asma brônquica, e até
mesmo o câncer” (SEGRE; FERRAZ, 1997, p. 540)?
A ideia de integralidade ou inteireza do ser humano está clara
na ontologia e antropologia dimensionais, discursos fundamentais
da Logoterapia. Ali a unidade singular do ser humano – “[...] uniDivisões e classificações podem ser entendidas – como lembra Rodis-Lewis (1970 apud 2002,
SANTOS, p. 90) em sua reflexão sobre as múltiplas virtudes nos estoicos – como a troca de abstrações
vagas por uma inesgotável riqueza de situações concretas ofertadas à vontade racional.
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dade apesar da multiplicidade” (FRANKL, 2011, p. 33) – é descoberta na “[...] dimensão dos fenômenos noéticos, ou dimensão
noológica”, onde “[...] os eventos tipicamente humanos devem ser
localizados” (FRANKL, 2011, p. 27-28). Assim como um cone (figura em três dimensões) é a junção de um círculo e um triângulo
(cada qual em um plano de duas dimensões), a figura inteira do ser
humano é a projeção de figuras somáticas, psicológicas e sociais4.
O noético é a dimensão mais inclusiva, abrangente e qualitativamente mais complexa, onde a existência humana acontece e deve
ser localizada.
Tem sido identificada a “dificuldade de aceitação, por muitos profissionais de Saúde, do fato de fincar-se o êxito terapêutico
no relacionamento afetivo”. Nesse cenário é explicado o sucesso,
“muitas vezes maior do que o da medicina”, das “formas não tradicionais de medicina” e suas técnicas, por focarem mais a pessoa,
seus afetos e sua integralidade “do que a mera expressão somática
de sua turbulência emocional”. Atenta-se, porém, que condições
materiais, econômicas e políticas dificultam a “criação e preservação dessa ligação afetiva entre o profissional de Saúde e o cliente”,
sendo muitas vezes “tão irreal quanto a expectativa de ‘perfeito’
bem-estar da OMS” (SEGRE; FERRAZ, 1997, p. 540).
É justamente no domínio político da Saúde que parece surgir
o conceito de empoderamento (empowerment). Sua aplicação está
atrelada a um dos principais modelos teóricos que subsidiam as políticas de Saúde, ou da Promoção à Saúde. Aplicado desde a década
de setenta em países como Canadá, Inglaterra, Estados Unidos,
Austrália e Nova Zelândia, tal modelo chega ao Brasil em meados da década de 1990. Seus princípios e estratégias passam pela
importância da participação social e da atuação nos determinantes e causas da Saúde (políticas públicas, ambientes sustentáveis e
reorientação dos serviços) e pela Educação (desenvolvimento das
capacidades individuais e fortalecimento de ações comunitárias)
(CARVALHO; GASTALDO, 2008).
Frankl (2014), ao ilustrar com figuras bidimensionais, fala das dimensões biológica e psicológica.
A omissão da dimensão social talvez possa ser explicada pela simples impossibilidade didática de se
demonstrar visualmente uma projeção em quatro dimensões.
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São identificadas duas perspectivas complementares para se
trabalhar o empoderamento. Uma delas é a “crítico-social ou socioambiental”. A outra, menos trabalhada, a “pós-moderna ou pós-estruturalista”. A primeira se sustenta na ideia de que os fatos do
cotidiano e as formas de pensar e fazer são permeadas por relações
de poder e inevitáveis inscrições ideológicas, produtos “de relações
sociais e históricas que tendem a naturalizar e reproduzir desigualdade”. Há a noção de que uma estrutura básica pode explicar os
elementos: o valor da parte é sempre relativo à posição que ocupa
na estrutura (CARVALHO; GASTALDO, 2008, p. 2030).
O filósofo e educador Paulo Freire aparece como um dos nomes que alicerçam a visão crítico-social, tanto no empoderamento
político-social, como no empoderamento do educando em relação
ao educador. Na área da Saúde, essas faces são preservadas, porém,
fala-se do empoderamento do paciente. De um lado, são requeridas
condições para uma participação ativa dos usuários dos sistemas
de Saúde no controle e compartilhamento de responsabilidades
transformadoras dos múltiplos determinantes do processo saúde-doença: a dignidade de salário, instrução, paz, moradia, alimentação, cultura e saneamento. De outro lado, fala-se de empoderamento na composição de novas relações entre paciente e profissionais,
instituições e políticas de Saúde. Nesse último aspecto, situa-se a
problemática das estratégias de Educação (dos profissionais e dos
usuários dos serviços de Saúde).
A Educação em Saúde e para a Saúde passa pelo enfrentamento dos diferenciais de poder na relação “especialistas e não-especialistas”. A Educação empoderadora atuaria na “superação de
métodos que reforçam o exercício do poder-sobre-o-outro (power-over)”, via “criação de espaços dialógicos e de co-gestão”, onde
se privilegia “o exercício do poder-com-o-outro (power-with)”.
Busca-se uma alternativa à concepção hegemônica do profissional
de Saúde como repassador de conhecimentos e de experiência e o
usuário dos serviços como receptor passivo do que é transmitido.
Aos indivíduos, indica-se a possibilidade de aprendizados que possam capacitá-los a “viver a vida em suas distintas etapas” e “lidar
com as limitações impostas” (CARVALHO; GASTALDO, 2007, p.
2030-2031).
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De acordo com as reflexões da primeira European Conference on Patient Empowerment, realizada em 2012, na Dinamarca, os
pacientes empoderados são aqueles que ganham confiança e são
educados em competências “para reconhecer sintomas de alerta,
tomar medicamentos e decidir sobre o tratamento mais adequado
para si mesmos”; pessoas que assumem certa compreensão na gestão de sua condição, sabendo negociar com diferentes profissionais
e “encontrar seu caminho na complexidade dos sistemas de Saúde”
(THE LANCET, 2012, [n.p.]).
Voltemo-nos, agora, à perspectiva pós-estruturalista. Ela
identifica que o apego a uma estrutura única – como o Estado, uma
classe social dominante ou uma essência econômica – impede compreensões mais aprofundadas da multiplicidade presente nos fenômenos da opressão, da dominação e da produção da subjetividade.
Sob essa visão, o poder no “empoderamento” aparece de forma diferente. Não é uma coisa, um “objeto natural que alguns possuem”
e que outros devem possuir para atingir certo estado idealmente
benfazejo (CARVALHO; GASTALDO, 2008, p. 2034).
Michel Foucault (2004), um dos principais autores que sustentam essa perspectiva, ensinava da desconfiança em relação ao
tema da liberação. Sem as devidas precauções, podemos ceder à
ideia de “[...] uma natureza ou uma essência humana que, após um
certo número de processos históricos, econômicos e sociais” teria
sido “[...] mascarada, alienada ou aprisionada em mecanismos [...]
de repressão” (FOUCAULT, 2004, p. 265). O problema nessa compreensão está no fato de que bastaria ao ser humano romper essas
correntes repressivas para reencontrar-se consigo mesmo, com sua
natureza e origem, restaurando uma relação positiva de plenitude. A
noção de liberação, em uma via ética, estaria em segundo plano em
relação ao que Foucault entende por práticas de liberdade.
O que comumente se entende por “poder” é, na perspectiva
foucaultiana, um estado ou uma relação de dominação. Trata-se de
um bloqueio cristalizado, um exercício ilimitado de violência ou
um estado de completo impedimento de reversibilidade de movimentos. No entanto, o poder propriamente dito – que constituiria
um novo sentido possível para o empoderamento – está no plural
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das “relações de poder” naturais, inevitáveis e livres. Sob essa visão, estamos todos inseridos em redes de prática de poder e coerção
institucionais, participando de variados “jogos de verdade” definidos, por exemplo, por um modelo médico.
As relações de poder só são possíveis quando há sujeitos livres envolvidos. É esse estado que permite organizar consensos e
também resistências em torno das verdades de saber institucionais
(discursos dominantes e discursos emergentes). Conforme Foucault (2004, p. 276-277), “nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência” e “se há relações de poder em
todo o campo social, é porque há liberdade por todo lado”. Tais
relações ocorrem em diferentes níveis: amorosos, institucionais, sexuais, econômicos, geracionais, familiares, pedagógicos, políticos
etc. São elas todas (se são de poder e não de dominação) instáveis,
reversíveis e móveis, onde uns tentam, naturalmente, dirigir ou determinar a conduta dos outros: “uma espécie de jogo estratégico
aberto”.
Com o pós-estruturalismo, empoderar-se – uma vez que não
inviabilizemos o conceito – é mais do que liberar-se. Mesmo reconhecendo que a liberação seja uma condição necessária (“política ou histórica para uma prática de liberdade”), o empoderamento
passa a ser, sobretudo, a experiência de certo controle nas relações
de poder vivenciadas como práticas de liberdade. Trata-se da constituição, organização e instrumentalização de estratégias que, segundo Foucault, ética e ontologicamente passam pelo cuidado de
si, “uma prática de si” ou “um exercício de si sobre si mesmo através do qual se procura se elaborar, se transformar e atingir um certo
modo de ser” (FOUCAULT, 2004, p. 265-267).
Nota-se que, diante dessas reflexões, não há um mal sem circunstâncias no poder (como disse Sartre5). Nem em “um dado jogo
de verdade”, onde alguém “sabendo mais do que um outro, lhe diz
o que é preciso fazer, ensina-lhe, transmite-lhe um saber, comunica-lhe técnicas”, nem em políticas de intervenção que, assumindo-se como práticas de controle, contribuem para a saúde das pessoas envolvidas (FOUCAULT, 2004, p. 284). O pensamento crítico
pode se voltar mais detidamente à dominação, que é, por definição,
5
“O poder é o mal” (cf. FOUCAULT, 2004).
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arbitrária e sem possibilidade de livre resistência (CARVALHO;
GASTALDO, 2007, p. 2034).
3.  FILOSOFIA CLÍNICA
“Aquilo que se considera violação de um direito numa
sociedade, pode ser preceito óbvio e intocável noutra;
aquilo que para alguns é liberdade de consciência, para
outros pode ser só confusão. Na realidade, as culturas são
muito diferentes entre si e cada princípio geral, se quiser
ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado”
(Papa Francisco).
“Essa capacidade humana de encontrar o sentido
escondido por trás de cada situação singular é o que
chamamos de consciência” (Viktor Frankl).
Neste ensaio propomos a Filosofia Clínica – daqui em diante,
FC – como um elemento ativo na composição de sentidos para a
Saúde no século XXI. Igualmente, defendemos sua real condição
de participar da fundamentação – via práticas, método e metodologia – de uma visão integral do ser humano (que ultrapassa as
simplificações derivadas dos particionamentos social, somático e
psicológico), refletindo-se em contatos mais empáticos e éticos entre profissionais da Saúde e população assistida.
A FC – tal qual a trabalhamos – origina-se da sistematização
e técnica de intervenção filosófica elaborada pelo graduado em medicina e filósofo brasileiro Lúcio Packter. Nasce atrelada à área da
Saúde, objetivando o enfrentamento, o cuidado, o abrandamento e
o acolhimento ético das dores existenciais (tanto no campo físico
quanto no psíquico). Após um período de maturação, estudos, experiências de aplicação e constantes readequações próprias de um
trabalho individual de práxis filosófica, em 1989, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, inicia-se sua difusão instrucional e os
primeiros movimentos de pesquisa e investigação intersubjetivas.
Um marco inicial foi a formação de duas turmas de estudantes,
compostas em sua maioria por professores e recém-graduados
(como era a condição do filósofo sistematizador) do curso de FiloEducação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 77-108, jan./jun. 2017
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sofia da PUC-FAFIMC – Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da
Imaculada Conceição da Pontifícia Universidade Católica. Os trabalhos organizaram-se em um instituto educativo fundado pelo próprio filósofo. Atualmente, cerca de meia centena de livros, revistas
científicas, produções acadêmicas e não acadêmicas, programas de
rádio, centenas de colóquios, encontros, cursos e seminários nacionais, regionais e internacionais vinculam-se a associações, institutos regionais e centros de formação espalhados em quase vinte
estados do país (informação verbal)6.
O filósofo clínico forma-se para atuar com um instrumental
definido. Em seus jogos de linguagem são centrais alguns conceitos
para gerir a relação com as pessoas que recebem seus cuidados. Por
exemplo, essas são chamadas “partilhantes”, consideradas sujeitos
de partilha de trajetórias existenciais (diferente do termo “pacientes”, que pode gerar a ideia de exclusiva aceitação com relação ao
profissional de Saúde). A relação de partilha é verificada e classificada via ideia de interseção, inspirada na teoria dos conjuntos da
filosofia matemática. Os tipos de interseção são classificados em
positivos, negativos, indeterminados, confusos ou em transição.
Nessa relação, e sobretudo nela, o filósofo clínico considera a
existência de duas verdades: uma subjetiva (referente ao que conta,
literalmente, o discurso do partilhante) e outra objetiva (ou intersubjetiva, associada às convenções sociais). Aqui são pressupostos
dois nomes da tradição filosófica: Protágoras, com a proposição
“[...] o ser humano é a medida de todas as coisas, da existência das
coisas que são e da não existência das coisas que não são” (PLATÃO, 2007, p. 57) e Schopenhauer (2001, p. 9), com a noção de
mundo como representação pessoal: “[...] o universo inteiro apenas
é objeto em relação a um sujeito, percepção apenas, em relação a
um espírito que percebe”.
A pessoa, diz-se na FC, é “uma criatura plástica cuja identidade
se molda conforme sua Estrutura de Pensamento se forma e evolui”
(PACKTER, 1998, p. 9). Estrutura de Pensamento, ou EP, pode ser
entendida como um conceito equivalente ao que algumas tradições
chamam de alma ou psykhé. Também os termos “malha intelectiva”
Palestra “O que é filosofia clínica”, ministrada por L. Packter na Conferência de abertura do XVI
Encontro Nacional de Filosofia Clínica, em Forquilhinha, em setembro de 2014.
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e “engenharia intelectiva” são usados para expressar sua natureza
funcional e energética, permitindo aproximações da FC com uma
espécie de engenharia mental7. Conforme apontamentos de Carvalho (2013, p. 22), a noção de “estrutura” em FC é diferente daquela
do estruturalismo de Levy Strauss, que não consideraria o devir e
a historicidade. Ela possui base fenomenológica, implicando abertura e possibilidade de interação entre os “campos de consciência”.
A pesquisa da EP do partilhante ocorre na observação de
trinta tópicos estruturais: T1. Como o mundo parece; T2. O que
acha de si mesmo; T3. Sensorial e abstrato; T4. Emoções; T5. Pré-juízos; T6. Termos agendados no intelecto; T7. Termos: universal,
particular e singular; T8. Termos: unívoco e equívoco; T9. Discurso: completo e incompleto; T10. Estruturação de raciocínio; T11.
Busca; T12. Paixões dominantes; T13. Comportamento e função;
T14. Espacialidade: inversão, recíproca de inversão, deslocamento
curto e deslocamento longo; T15. Semiose; T16. Significado; T17.
Padrão (armadilha conceitual); T18. Axiologia; T19. Singularidade
existencial; T20. Epistemologia; T21. Expressividade; T22. Papel
existencial; T23. Ação; T24. Hipótese; T25. Experimentação; T26.
Princípios de verdade; T27. Análise da estrutura; T28. Interseções
de EP; T29. Dados da matemática simbólica; T30. Autogenia.
Cada tópico possui uma definição específica e seus
aprofundamentos ocorrem conforme os desenvolvimentos da metodologia da FC, amparados no pensamento filosófico-acadêmico.
Os tópicos são considerados abertos ao infinito e inter/intra/infra
relacionados. A partir do T23, compreende-se o que se denomina
Matemática Simbólica, ensinamentos avançados da FC, cujos conteúdos têm sido gradualmente pesquisados e trabalhados.
As observações dos tópicos e das forças com que se manifestam na EP do partilhante – de determinantes a nulas – ocorrem
atreladas à pesquisa da historicidade. Só há clínica filosófica (na
FC) e observação tópica do funcionamento da EP, a partir da coTemos trabalhado tal suposição em recentes produções, onde a Filosofia Clínica poderia ser
metaforicamente associada à: i) uma engenharia mental; ii) uma escritura de ensaios filosóficos
existenciais; e iii) uma escritura de narrativas existenciais. No que tange ao primeiro item, baseandonos em definições de engenharia, olhamos para ela como “prática, ciência ou arte” do pensamento
adequado em “organização, design e construção” singulares, resultando em combinações mais
vantajosas e eficientes em relevância, segurança, economia, durabilidade, velocidade e simplicidade.
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lheita e composição de uma narrativa histórica do partilhante. A
historicidade adquire consistência, ampliação e profundidade com
remissões explanatórias propostas pelo filósofo, preenchendo-a
com dados divisórios e enraizamentos (ou aprofundamentos epistemológicos). É a partir dela que se torna possível visualizar, por
exemplo, quando determinados funcionamentos escrevem, existencialmente, muito pouco ou de maneira superficial por tópicos
como o T18. Axiologia, mas são profundos em tópicos como o T3.
Sensorial e abstrato.
A historicidade e a EP precisam ser localizadas existencialmente. Para tal, a FC dispõe dos Exames Categoriais. Todo e qualquer movimento clínico exige do filósofo atenção às cinco categorias: lugar (como são as disposições internas conforme o espaço),
tempo (objetivo e subjetivo), relações (com pessoas, coisas, situações etc.), circunstâncias (época, cultura, disposições etc.) e assuntos (último e imediato). No que se refere a essa última categoria,
seu exame será determinante para o encaminhamento dos termos e
fatos que se mostraram pertinentes e, também, para a escolha dos
procedimentos clínicos adequados.
Os procedimentos clínicos são chamados de submodos, pois
devem ser submetidos aos exames categoriais, coleta e composição
da historicidade e análise tópica da EP. São trinta e dois tipos que,
também como os tópicos, abrem-se ao infinito e são passíveis de
fusão relacional. A escolha de qual usar estará ligada à presença
habitual ou positiva desses procedimentos na vida do partilhante (quando, então, são denominados pela FC de “procedimentos
informais”). São eles: S1. Em direção ao termo singular; S2. Em
direção ao termo universal; S3. Em direção às sensações; S4. Em
direção às ideias complexas; S5. Esquema resolutivo; S6. Em direção ao desfecho; S7. Inversão; S8. Recíproca de inversão; S9. Divisão; S10. Argumentação derivada; S11. Atalho; S12. Busca; S13.
Deslocamento curto; S14. Deslocamento longo; S15. Adição; S16.
Roteirizar; S17. Percepcionar; S18. Esteticidade (bruta); S19. Esteticidade seletiva; S20. Tradução; S21. Informação dirigida; S22.
Vice-conceito; S23. Intuição; S24. Retroação; S25. Intencionalidade dirigida; S26. Axiologia; S27. Autogenia; S28. Epistemologia;
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S29. Reconstrução; S30. Análise indireta: Ação, hipótese e experimentação; S31. Expressividade; S32. Princípios de verdade.
Aprende o filósofo clínico que, antes da opção pelos procedimentos clínicos, deve operar “agendamentos mínimos”. Perguntas
e afirmações do tipo “o que te entristece”, “por que acha isso”,
“como era sua relação com seus pais”, entre outras, direcionam ou
“agendam” a EP para determinados tópicos que podem ter muito
pouco a ver com ela ou com o assunto último. Nos exemplos, respectivamente, temos ênfase direta em: T4. Emoções, T10. Estruturação de raciocínio, T1. Como o mundo parece, e outros. Aqui
incide também o cuidado com clichês e a priori terapêuticos. Buscar ajustes com determinadas conclusões de teorias científicas ou
atribuir centralidade ao amor, destacar a importância do equilíbrio,
da harmonia, da felicidade e do autoconhecimento são movimentos
que exigem atenção do filósofo clínico. As crenças do filósofo devem ser reconsideradas na interseção com o partilhante e no amparo
analítico-aproximativo das ferramentas metodológicas utilizadas.
Movimentar elementos segundo universalismos pode – conforme
entende a FC – gerar encobrimentos de questões importantes, erros
éticos e graves sequelas ou consequências existenciais.
Há um respeito evidente pela singularidade da pessoa humana. Conhecimentos particulares e universais doutrinários cedem
espaço à prática do ouvir, do acompanhamento, do discernimento,
da aproximação e da integração. Enquanto conduta, a FC pode ser
rotulada de relativista, porém, como esclareceu Lúcio Packter, ela
é assim apenas em partes. Para outra de suas partes cabe o rótulo
de subjetivista e, na maioria, objetivista. Tais afirmações nos fazem
reconhecer certa semelhança com a ideia de unicidade do sentido e
da essência de cada singularidade, conforme escrevia Viktor Frankl
sobre as bases de outra técnica e sistema, a Logoterapia. Eis uma
passagem que bem ilustra essa observação:
Mas sentidos e valores são, realmente, tão relativos e subjetivos quanto se faz crer? Em certo sentido, sim, mas de
um modo diferente dos concebidos pelo relativismo e pelo
subjetivismo. O sentido é relativo na medida em que se relaciona a uma pessoa específica, que está enredada numa
situação específica. Pode-se dizer que o sentido difere, de
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homem para homem e, depois, de dia para dia e, de fato,
até de hora para hora.
[...] eu prefiro falar da unicidade – mais do que da relatividade – do sentido. Esse caráter de algo único é uma característica não só de uma situação, mas da própria vida como
um todo, já que esta se apresenta como uma sequência de
situações únicas. Desse modo, o homem é único tanto em
termos de essência como de existência.
Em última análise, ninguém pode ser substituído, exatamente, em virtude desse caráter de unicidade da essência
de cada homem. A vida de cada ser humano é absolutamente singular: ninguém pode repeti-la (FRANKL, 2011,
p. 72).
Na FC não há o conceito de doença ou patologia. Tal opção
foi, nos primórdios da área, justificada com base nas obras Elogio
da loucura, de Erasmo, e História da loucura, de Foucault. Não
havendo doença, não há cura. Nesse sentido, a associação da área
com a terapêutica envolve extensões de sentido do termo grego therapeía (θεραπεíα), como cuidado, respeito pelo paciente, solicitude
e tratamento. A dimensão de consciência da alteridade da FC não
a relaciona com a promoção do bem-estar, felicidade ou estados
análogos, mas à busca de “[...] melhores acomodações existenciais
subjetivas à pessoa” (PACKTER, [s.d.], p. 21), ao aprimoramento
da composição narrativa existencial da alteridade ética e ao chamado exercício existencial. Aqui reside o objetivo declarado da FC.
Bertoche (informação verbal)8 explora o viés do exercício
existencial para identificar o lugar da FC na tradição filosófica.
Apoiando-se na obra do filósofo francês Pierre Hadot, ele a coloca na “retomada do pensamento filosófico helênico”. Estaria a FC,
fundamentalmente, na recuperação de uma concepção da Filosofia
diferente de um “conjunto de conhecimentos teóricos” (“como ela
foi vista desde o século VI até o século XX”) e semelhante à “elaboração teórica que visa a proporcionar uma vida melhor a quem a
ela se dedica ou dela compartilha”. Tais dedicação e partilha envolveriam práticas helênicas que Hadot descobre sob o nome de “exercícios espirituais”. Exercícios que, “por meio do direcionamento do
Palestra “Ser terapeuta e ser singular”, ministrada por G. Bertoche no IV Colóquio Nacional da
Filosofia Clínica, em Porto Alegre, em maio de 2015.
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discurso, visavam a mudar todo o ser da pessoa: intelectualmente,
emocionalmente, no nível das representações”.
Diante de questionamentos sobre a falta de fundamentação
teórica e um método filosófico específico da FC, Packter (1998)
responde que os métodos são o historicista, o fenomenológico
e o epistemológico. Quanto às fundamentações, estariam no
historicismo, logicismo formal, empirismo inglês, analítica da
linguagem, epistemologia e na matemática simbólica. Sobre indagações acerca dos principais autores da tradição trabalhados com
a FC, recentes cursos conduzidos pelo filósofo9 (“Filósofos e Filosofia Clínica: partes I, II e III” e “Os grandes terapeutas e a Filosofia Clínica”) apontam para os seguintes nomes: Sócrates (a Ética
e o Saber); Platão (teoria das ideias e realidade: o Ser, o Bem);
Aristóteles (Metafísica, Lógica, Física, Estética, Ética e Política);
filósofos estoicos e epicuristas; Agostinho (Deus, alma, homem);
Galileu Galilei e Isaac Newton (ciência como saber apriorístico);
Descartes (a razão e o ser); Spinoza (metafísica e Ética); Leibniz
(percepção e apercepção em conhecimento); Hume (sensualismo e
o ceticismo); Kant (crítica, razão e conhecimento); Hegel (dialética, lógica e espírito); Schopenhauer (mundo como vontade e representação); Comte (história, ciência, filosofia); Nietzsche (moral);
Brentano (psicologia e Ética); Dilthey (filosofia e vida); Bergson
(espaço, tempo, intuição); William James (pragmatismo); Bertrand
Russell (pontes entre linguística e matemática; os novos tempos);
Husserl (fenomenologia); Heidegger (ontologia), Levinas (alteridade), Simon Blackburn (estudos em quase-realismo); Rudolf Carnap
(empirismo básico e os instrumentos lógicos a partir de Frege e
Russell); Noam Chomsky (gramática filosófica); Donald Davidson
(monismo anômalo); Daniel Dennett (postura intencional); Jacques
Derrida (desconstrução); Lévi-Strauss (relações); Saussure (valor e
linguística); Foucault (dimensão histórica das categorias sociais);
Gadamer (teoria da interpretação); Habermas (natureza da comunicação, da autoconsciência, o papel causal na ação social); Jaegwon
Kim (elementos psicofísicos e propriedades das relações); Thomas Kuhn (revoluções científicas); Merleau-Ponty (corporeidade
e fenomenologia); Karl Popper (a experiência e o cientificismo em
9
Disponível em: <http://www.institutopackter.com.br>. Acesso em: 25 maio 2016.
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questão), Hilary Putnam (realismo interno); Quine (lógica matemática); Paul Ricoeur (verdade); Richard Rorty (dialética das conversações); Roger Scruton (arquitetura e estética); John Searle (a
mente intencional); Peter Singer (moral e ética); Alan Turing (matemática e pensamento); Ludwig Wittgenstein (linguagem); Skinner
(condicionamento operante); Freud (psykhe humana); Adler (singularidade e comportamento); Rorschach (elementos introversivos
e extratensivos); Wertheimer, Koffka e Kohler (a Gestalt); Piaget
(estágios de desenvolvimento); Carl Rogers (o conhecimento via
percepção pessoal); Maslow (a hierarquia de necessidades); Kurt
Lewin (a teoria de campo de Einstein na psicologia); Jung (questão
e paradoxos dos arquétipos); Karen Horney (neurose como função
e sintoma); Erich Fromm (fuga da liberdade); e Lev Vygotsky (o fator cultural). Apesar da limitada referência, considera-se essa lista
aberta e interminável.
Alguns acadêmicos, como Carvalho (2013; 2014), autor do
livro Filosofia Clínica: estudos de fundamentação, negam à FC um
papel de Escola Filosófica, de metodologia filosófica e de Filosofia. Definida como “técnica de ajuda pessoal” (CARVALHO, 2013,
p. 19 e p.100), “[...] uma forma de aconselhamento psicológico”
(CARVALHO, 2013, p.19) ou “[...] técnica de ajuda psicológica”
(CARVALHO, 2013, p.100), é reduzida a um elemento do “[...]
pensamento contemporâneo que poderíamos resumir como escola
fenomenológica e existencial” (CARVALHO, 2013, p. 21). A FC,
tendo como fundamento básico a Fenomenologia – método inserido no “[...] movimento amplo de justificação da Psicologia, enquanto ciência nova que nasceu na segunda metade do século XIX”
(CARVALHO, 2014, p. 84) – seria uma participante:
[...] do mesmo movimento que deu origem à Gestalt terapia, ou a psiquiatria existencial conhecida por Daseinanalyse de M. Boss ou L. Binswanger, a logoterapia de
Viktor Frankl, a terapia centrada na pessoa de Carl Rogers
e tantas outras, que se reúnem sob o nome genérico e nem
sempre muito preciso de psicologia existencial (CARVALHO, 2013, p. 21).
Tenho assumido, entretanto, diante de nossa prática de composição da área no Brasil e no Mundo, que é possível considerá-la
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uma Escola (com princípios doutrinais, mestres, ensinamentos e discípulos) e uma Filosofia (processo criador de conceitos) com método e metodologia originais. Por método, entendo a estrada pela qual
transita o intelecto no enfrentamento das factualidades existenciais
em busca da Verdade. São os tipos de pavimentação, as curvas, os
atalhos; a técnica, o instrumento, o conjunto técnico-instrumental
de conceitos principais à disposição do caminhante (historicidade,
categorias, tópicos, partilha, EP, submodos etc.). Por metodologia,
a produção discursiva colaborativa, lógica e clara, nascida do caminhar com um ou mais métodos. É a caminhada propriamente dita,
da qual resultam as produções textuais da ciência acadêmica. A FC
caminha, metodologicamente, ao expressar-se na troca de informações entre filósofos clínicos, partilhantes, praticantes, estudiosos e
pesquisadores. Questões de perspectiva e proposição.
4.  ACONSELHAMENTO FILOSÓFICO E FILOSOFIA
CLÍNICA
“O que importa, realmente, nunca é a técnica por si
mesma, mas o sentido, a intenção que a guia” (Viktor
Frankl).
O alemão Gerd Achenbach é considerado o fundador da Filosofia Aplicada, ou do Philosophical counseling. Em 1981, inicia
suas consultas de Filosofia. Tal afirmação se reveste de polêmica.
Leonard Nelson, estudioso do chamado método socrático, falecido em 1927, poderia aparecer em alguma lista como precursor do
aconselhamento (NELSON, 1929, [n.p.]). Em 1967, John Van Veen
abria na Holanda consultas com incursões claramente filosóficas.
Em 1974, Paul Sharkey trabalhava como orientador filosófico (sob
a categoria de “filósofo residente”) em um hospital na Filadélfia. Na
mesma década, o professor de filosofia Michael Russell abria sessões de consulta filosófica inspirado pela experiência com alunos
que o procuravam para conversar sobre questões pessoais (BARRIENTOS RASTROJO, 2014, p. 15). Seymon Hersh, em 1980, escrevia um primeiro e pequeno artigo sobre o tema na revista americana The Humanist. Em 1994, ocorria o 1º Congresso Internacional
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de Aconselhamento Filosófico coordenado pelos norte-americanos
Ran Lahav e Lou Marinoff (JANA, 2014, p. 11-12).
Essa recente história remete ao movimento que tem sido conhecido como Aconselhamento Filosófico (daqui em diante AF),
vinculado a movimentos mais amplos da Filosofia Prática e Filosofia Aplicada. Filósofos clínicos e pesquisadores da FC têm interagido e conversado com alguns de seus expoentes, pensando formas de uni-las em práticas profissionais, apontando semelhanças e
diferenças. A principal proximidade é, ao meu ver, a pesquisa e a
formação prática do filósofo (clínico ou consultor/conselheiro) no
pensamento filosófico e nas competências filosóficas e de consulta.
Em ambas as áreas é valioso que o profissional desempenhe
um pensamento filosoficamente ativo, que apresente graus satisfatórios de análise conceitual, distinção entre redes conceituais e
sistemas filosóficos, criticidade, exame de pressupostos, dialogicidade, utopia, compreensão fenomenológica, criatividade e problematização. Igualmente, quanto às competências de consulta: saber receber; saber escutar e perguntar quando não entender; saber
atentar-se à formalidade do que diz o consultante, sem considerar
motivos de análise psicológica, juízo moral ou pessoal; saber priorizar o assunto relevante; saber demonstrar compreensão resumida
das palavras do consultante; saber sintetizar as questões essenciais;
saber apoiar o consultante numa exploração de seus problemas; saber quando realizar perguntas abertas e fechadas; saber relacionar
aspectos do discurso do consultante; saber explicitar contradições
quando necessário; saber demonstrar atitude de interesse e receptividade, motivando o consultante; saber demonstrar os objetivos do
trabalho e explicitar os esquemas realizados; saber utilizar-se do
silêncio (DIAS, 2010, p. 259-261).
Depreende-se dos filósofos e conselheiros filosóficos portugueses Jorge Humberto Dias (2010) e Nuno Paulo Tavares (A
CONSULTA FILOSÓFICA, [s.d.]) que o foco de ação do AF é a
“necessidade filosófica”, geradora de problemas que não encontram
respostas ou se deparam com um elevado número de respostas insuficientes e pouco satisfatórias. Exemplos: dilemas éticos (profissionais ou de moralidade privada); dificuldades em relações
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interpessoais (familiares, profissionais, amorosas); dúvidas existenciais; questões sobre o sentido e o valor da vida; paralisia face
à necessidade de decisões; busca de definição ou redefinição de
projeto de vida; adaptação a novas circunstâncias; crenças indeterminadas ou confusas; experiências de perda e de luto; proximidade
com doença ou sofrimento de entes queridos; preocupações inerentes à Educação dos filhos; escolha de percurso pessoal, profissional
ou acadêmico; questões de identidade pessoal; estados de angústia,
tristeza e desmotivação.
O AF também é definido pela via negativa: não é medicina,
psicologia, psicoterapia e nem prática clínica (com sintomas, diagnósticos, tratamentos e cura). Não lhe cabem funções que possam
substituir tratamentos médicos ou psicoterapêuticos, tratar doenças,
perturbações psíquicas ou problemas psicológicos (A CONSULTA
FILOSÓFICA, [s.d.]). Nessa mesma linha, Brénifier (2016, [n.p.])
ressalta em sua prática a “violência do pensamento”, dizendo que,
“ao contrário de uma consulta de psicologia”, o foco é “um trabalho
de razão”. Diz tratar-se do pensamento ao invés da narrativa e do
sentimento.
O AF aposta na ideia de que sua base é a promoção do pensamento filosófico. Tal pensamento acaba por se identificar com a
busca de satisfação da necessidade filosófica. Essa busca é traduzida por um determinado tipo de prática racional “[...] empenhada
em formas organizadas, sérias, intensas e profundas de reflexão”
(DIAS, 2010, p. 158). Diante do problema que se mostra significativo, são utilizados recursos conceituais e lógico-argumentativos,
tentando promover no consultante a atualidade de “uma aventura conceitual” (DIAS, 2010, p. 160). Esse tipo de consultoria se
presta, portanto, ao que se pode chamar de orientação racional e
organização do pensamento do consultante. Haverá um apoio técnico-racional-conceitual objetivando, inclusive, desvelar erros de
pensamento e más formas de pensar. Há ainda uma noção de que o
sentido dessa busca aponte para a felicidade ou para níveis de verdade cada vez mais profundos (DIAS, 2010).
O trabalho do consultor filosófico também aparece como um
laboratório onde serão testados conceitos, métodos, hipóteses reEducação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 77-108, jan./jun. 2017
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flexivas, crenças e valores. Tais testes são de responsabilidade do
profissional, autorizado por seu cliente a propor questionamentos,
descobertas, aprendizagens e caminhos de conhecimento de si com
o outro. Tal autorização merece justificativa nas competências em
que o consultor se exercita.
Se a base do AF é a promoção do pensar filosófico, não se
pode dizer o mesmo da FC. Para esta, promover o pensamento do
tipo filosófico no partilhante é utilizar submodos específicos como
S4. Em direção às ideias complexas, S10. Argumentação derivada, S21. Informação dirigida etc. Tal opção, ainda, só poderia ser
tomada depois de verificada a predominância de tópicos como T3.
Abstrato, T10. Estruturação de raciocínio, T13. Comportamento e
Função, dentre outros, e uma real demanda de exercício existencial
desse tipo, baseando-se na historicidade, EP, procedimentos informais e exames das categorias. A Filosofia em FC mais diz respeito
ao filósofo cultivar e exercitar do que ao partilhante.
Acreditamos que tanto o AF como a FC possam servir a trabalhos na área da Saúde. No entanto, parece-nos que o escopo de
ação para a promoção de vidas saudáveis na FC é um tanto mais
amplo, uma vez que não depende dos funcionamentos singulares
dos partilhantes serem ou não afeitos ao pensamento próprio da
Filosofia.
5.  SAÚDE E EDUCAÇÃO
“Os verdadeiros defensores da doutrina não são os que
defendem a letra, mas o espírito; não as ideias, mas o
homem; não as fórmulas, mas a gratuidade do amor de
Deus e do seu perdão” (Papa Francisco).
“O homem intelectual (psychikós) não compreende as
coisas que são do espírito (pnêuma, sinônimo de lógos),
que lhe parecem estultície; nem as pode compreender,
porque as coisas do espírito devem ser compreendidas
espiritualmente” (1Cor 2:14).
Iniciamos este ensaio com a apresentação de uma crítica à
definição de Saúde da OMS. As noções levantadas da singularização do bem-estar, da realidade de uma integralidade unitária do
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ser humano e de uma tendência à maior consciência da liberdade
e do controle (empoderamento) dos processos de Saúde pelo paciente lembram os movimentos da FC no sentido da importância
e do respeito às demandas existenciais singulares do partilhante.
Diante desse cenário reflexivo, perguntamos se seria possível uma
definição de Saúde que pudesse estar presente, senão na relatividade e subjetividade próprias de uma interseção única entre filósofo
clínico e partilhante, na objetividade que é dito sustentar a “maior
parte” da Filosofia Clínica. Sendo possível, seria factível pensar
uma Educação ou processo educativo a ela atrelada?
Segre e Ferraz (1997, p. 542) concluem aquele seu trabalho
com uma pergunta sobre a definição de Saúde: poderíamos pensála como “um estado de razoável harmonia entre o sujeito e a sua
própria realidade”? Diante de uma investigação mais detalhada dos
termos, a resposta me parece afirmativa.
Harmonia, em analogias com a música, pode ser traduzida
como uma sucessão ou cadência de elementos da existência da
qual participa a EP do sujeito em obediência a determinadas leis
identificáveis. Seja com dissonâncias “jazzísticas”, padrões “mais
comportados”, tons maiores, menores, mais ou menos tensos, segundo a definição de Saúde, há uma harmonia estabelecida entre
dois elementos. De um lado, o sujeito, a pessoa ou o partilhante.
De outro, sua própria realidade ou o mundo como representação
do partilhante, em múltiplas localizações existenciais. Se há Saúde
quando o partilhante e seu mundo estão em razoável harmonia, o
que é ser razoável? Trata-se de uma harmonia assim identificada
pela Razão. Mas, quais são os critérios que a sustentam? O que
entender por Razão?
O filósofo da religião e expositor de ideias sobre a afinidade
entre matemática, metafísica, mística e medicina, o jesuíta Huberto
Rohden (1976, 2005a, 2005b, 2008a, 2008b, 2009, 2013), chama
atenção para a raridade da devida distinção entre intelecto e razão. Dizia ele que, no uso comum, “as palavras razão e racional
e o termo ‘lógico’ [...] se referem, quase sempre, à atividade do
intelecto”. Um intelectualista analítico ou alguém que pensa logicamente é tido como guiado “[...] pelos ditames da inteligência”.
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102
Para Rohden, razão vincula-se “[...] ao que os gregos chamavam
‘Lógos’ (diferenciando-a do ‘nóos’, ou intelecto) e que os romanos
designavam pelo termo ‘ratio’”, uma “[...] faculdade ultra-intelectiva” da natureza humana (ROHDEN, 2009, p. 31, grifos do autor).
Entendia, ainda, o intelecto como “um prelúdio necessário” para a
razão (ROHDEN, 2009, p. 33).
De fato, não se trata de duas faculdades separadas, como à
primeira vista parece; trata-se duma única faculdade, a qual, quando imperfeitamente realizada, se chama intelecto ou inteligência e,
quando em plena maturação, se chama razão ou logos. Semente e
planta são essencialmente a mesma coisa, embora existencialmente
diferentes (ROHDEN, 2009, p. 33).
Apoiando-se na análise comparada de textos sacros e filosóficos em diversas culturas, Rohden densifica o conceito através de
sua teoria dos três níveis ou planos do universo existencial. Todos os
níveis, também chamados “planos de consciência”, podem ser descritos e observados no “fenômeno ‘homem”. O plano inconsciente
(ou subconsciente) refere-se à natureza infra-hominal (“harmonia
mecânica, automática, infinita”) e se liga aos sentidos (ROHDEN,
2009, p. 55). Trata-se do “homem senso-consciente” (ROHDEN,
2009, p. 80, 81 e 83), “homem pré-histórico senso-consciente”
(ROHDEN, 2009, p. 84), “homem-Maya” (ROHDEN, 2009, p. 81,
p. 82, p. 84 e p. 85), “homem animal” (ROHDEN, 2009, p. 80),
“infra-homem” (ROHDEN, 2009, p. 26 e p.80), “infra-homem neutro do Éden” (ROHDEN, 2009, p. 26). O plano semiconsciente é
tido como “a zona penumbral” (ROHDEN, 2009, p. 56 e p. 57),
cujo predomínio cabe ao intelecto. Fala-se aqui do “homem ego-consciente” (ROHDEN, 2009, p. 26, p. 45, p. 80, p. 81, p. 82, p.
83 e p.125), “homem histórico ego-consciente” (ROHDEN, 2009,
p.84), “homem-Aham” (ROHDEN, 2009, p. 81, p. 82, p. 84 e p.
85), “homem hominal” (ROHDEN, 2009, p. 80), homem “no plano da Serpente” (ROHDEN, 2009, p. 79). O plano pleniconsciente exige o exercício do logos, da “faculdade intuitiva da Razão”
(ROHDEN, 2008b, p. 32). Trata-se do “homem cosmo-consciente”
(ROHDEN, 2009, p. 45, p. 80, p. 81 e p. 83), “homem-Atman”
(ROHDEN, 2009, p. 81, p. 82, p. 84 e p. 85), “homem divinal”
(ROHDEN, 2009, p. 80), “supra-homem” (ROHDEN, 2009, p. 80),
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habitante do “novo Éden” (ROHDEN, 2009, p. 80), homem “no
plano do Vencedor da Serpente” (ROHDEN, 2009, p. 79).
Se ao intelecto baseado nos sentidos cabe conhecer causas e
efeitos múltiplos, à razão cabe intuir ou perceber a “causa única”
(ROHDEN, 2009, p. 30, p. 31 e p. 55). Para compreender essa unicidade da causa, deve-se remeter à cosmologia proposta por Rohden. Segundo ela, o termo que designa com maior precisão o “caráter” da palavra grega kósmos (beleza) e sua correspondente latina
mundus (pureza) é Universo. Suas letras compõem-se do “uni” ou
do “uno” – que indica a essência única, real e infinita – e do “(di)
verso” – que aponta para a pluralidade da existência de fatos e finitudes (ROHDEN, 2009, p. 35).
Se há identificação racional, há intuição de uma causa única,
do Uno do Universo. Sendo Verso e Uno inseparáveis no Universo,
a noção ou intuição do Uno não é algo transcendente (separado dos
diversos), nem imanente (identificado com a soma dos diversos).
Trata-se de uma relação transcendente com imanência ou imanente
com transcendência, a unidade na diversidade. Uma compreensão
próxima das ideias de Viktor Frankl10 sobre o ser humano enquanto
“unidade, apesar da diversidade” e da consciência do sentido em
cada situação singular.
Na era do vácuo existencial [...] parece que o papel da Educação, mais do que transmitir tradições e conhecimentos,
deveria ser o de refinar a capacidade humana de encontrar
sentidos únicos. [...] deve, sim, encorajar e desenvolver a
capacidade individual da tomada de decisões autênticas
e independentes. Numa era em que os Dez Mandamentos
parecem ter perdido sua validade incondicional, o ser humano tem de aprender, mais do que nunca, a ouvir os dez
mil mandamentos relacionados às dez mil situações singulares nas quais sua vida consiste. Quanto a tais mandamentos, o ser humano deve reportar-se à sua consciência,
confiando a ela seu papel de guia (FRANKL, 2011, p. 84).
É sob esse espectro que propomos um pensamento possível
para a Educação vinculada à ideia de Saúde como harmonia razoável. Bem mais do que um “processo de doutrinação que mescla
Além dos escritos onde apresenta vínculo e conhecimento da Logoterapia de Viktor Frankl,
em entrevista à Xênia Bier, Rohden diz possuir as “obras completas de Frankl sobre Logoterapia”
(ROHDEN, 2009; 1976).
10
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princípios de uma teoria mecanicista do ser humano e uma filosofia de vida relativista”, a Educação para a vida saudável deve,
primordialmente, permitir ao ser humano “meios para encontrar o
sentido”. Acreditamos que estes tenham relação com os exercícios
existenciais de que fala a FC (FRANKL, 2011, p.108).
Rohden (1976, [n.p.]), ao falar sobre o tema da Logoterapia,
dizia sobre um “viver de acordo ao que nós somos”. Em algumas
de suas obras, aparece nítida a relação dessa ideia com Educação11:
uma atividade, segundo ele, “eminentemente individual” ou “radicada no indivíduo”, cujo vínculo social está naquilo que dela se
propaga, por indução, na sociedade. A rigor, para ele, Educação não
é instrução, é autoeducação da consciência, processo conceituado
como autoconhecimento ou autorrealização individual. Instrução –
normalmente confundida com Educação, assim como se misturam
os termos razão e inteligência – é atividade eminentemente social,
atrelada a ministérios e políticas públicas: da alçada da inteligência
e da formação do erudito, que possui domínio de certos conhecimentos técnicos. Já a Educação forma o sábio harmoniosamente
saudável.
6.  LINHAS SUSPENSAS
“Nem paz nem felicidade se recebem dos outros nem aos
outros se dão. [...] exige-se de nós, primacialmente, a
humildade; a gratidão pelo que vem, como a de um ginasta
pelo seu aparelho de exercício; a firmeza e a serenidade
do capitão de navio em sua ponte, sabendo que o ata ao
leme não a vontade de um rei, como nos Descobrimentos,
mas a vontade de um rei de reis, revelada num servidor de
servidores; finalmente, o entregar-se como uma criança
a quem sabe o caminho. De qualquer forma, no fundo de
tudo, o que há é um acto de decisão individual, um acto de
escolha; posso ser, se tal me agradar, infeliz e inquieto”
(Agostinho da Silva).
Rohden possui duas obras de destaque sobre o tema da Educação: “Novos rumos para a Educação”
(ROHDEN, 2005b), originada de uma série de conferências sobre a proposta de uma nova forma de
democracia – a cosmocracia – realizadas em 1958 e 1959 no auditório do Ministério da Educação
no Rio de Janeiro; e “Educação do Homem Integral” (ROHDEN, 2005a), escrita sob a motivação
da promulgação do Decreto-lei no 869, de 1969, que pretendeu estabelecer uma base filosófica para a
Educação.
11
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Ainda não investiguei as relações entre a Saúde conforme vamos conceituando e as possíveis definições que aparecem atreladas
à proposta da chamada Cosmoterapia, de Huberto Rohden. A Saúde
é ali um atributo “da alma do Universo” (ROHDEN, 2009, p. 22, p.
26, p. 38, p. 63, p. 70, p. 83, p. 116 e p.117), do “Uno da Essência
Infinita” (ROHDEN, 2009, p. 24, p. 37 e p. 111), da “Fonte Infinita” (ROHDEN, 2009, p. 25, p. 27, p. 56, p. 84, p. 100 e p. 116);
uma realidade onipresente cuja “presença objetiva [...] é um fato
permanente e universal” (ROHDEN, 2009, p. 40); parte integrante
da natureza “inconscientemente cósmica”, “quer fora quer dentro
do homem” (ROHDEN, 2009, p. 26-27); o “real positivo”, que atua
sobre o “factual negativo da doença” (ROHDEN, 2009, p. 50).
Rohden acreditava que o homem-ego, ou o ser humano, por
viver, predominantemente, no plano semiconsciente do intelecto
analítico, vive uma ilusão central: “eu faço vida, Saúde e felicidade” (ROHDEN, 2009, p. 26). Essa ilusão, fruto das escolhas do
livre arbítrio humano, seria separatista e obstrutora dos canais que
unem ser humano e Universo. A egoidade não é fonte da Saúde.
Se há necessidade de curas, trata-se de nossa condição existencial,
da “zona das existências múltiplas”. Dizia o filósofo que o ser
humano deve aprender a evocar (chamar de dentro para fora e não
de fora para dentro) a Saúde que é presente em todos os corpos
do Universo, sem exceção. Deve experimentar que a realidade
existencial e polarizada do Verso se vincula ao termo latino vértere,
“aquilo que foi ‘vertido’, derramado pelo centro da Essência rumo
às periferias das Existências” (ROHDEN, 2009, p. 36). O ser hominal, no plano do ego, está “livre de alguma coisa, mas sem saber
para quê” (ROHDEN, 2009, p. 38).
A FC não afirma que o autoconhecimento, a prática da liberdade ou mesmo o encontro do sentido sejam um caminho ideal
universal. O singular real estará sempre à frente, provando que,
em alguns casos, o que se chama autoconhecimento, harmonia ou
equilíbrio podem levar a sofrimentos arbitrários dos mais diversos.
Assim também acontece com as propostas de definições para Saúde e Educação, conforme localizações existenciais diversas. Apesar
dessa compreensão, vamos reparando que essa optada relatividade
e subjetividade do discurso – anterior às interseções únicas entre
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filósofos clínicos e partilhantes – não fazem parte da objetividade que cabe ao profissional da FC. A ele, em sua práxis ética de
cuidado singular, cabe sustentar alguma objetividade filosófica de
verdade universal.
Temos certo que estudos, críticas e debates vão seguir às reflexões aqui verbalizadas. Que, sobretudo, adquiram força para iluminar práticas e trabalhos vivos de serviço ao próximo.
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