Abertura Boas Vindas Tema do Congresso Comissões Sessões Programação Áreas Títulos II Congresso Nacional de Formação de Professores XII Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores Trabalho Completo “ÉTICA E CIDADANIA” - (DES)CAMINHOS PARA O ENSINO DE FILOSOFIA: APONTAMENTOS ACERCA DE UMA FORMAÇÃO CAMBIANTE. Renato Bellotti Senicato Eixo 7 - Propostas curriculares e materiais pedagógicos no ensino e na formação de professores - Relato de Pesquisa - Apresentação Oral A lei 11.684 de 02 de Junho de 2008, torna obrigatório o ensino de Filosofia para alunos das séries do Ensino Médio. Com a lei, o Estado reconhece a importância da Filosofia determinando seu ensino nas escolas públicas brasileiras. Se, antes, os esforços concentravam-se em defender a validade do ensino de Filosofia e, lutar por sua inclusão no currículo do Ensino Médio, as novas determinações trazem a possibilidade de novas discussões acerca da Filosofia, especialmente de seu ensino. O novo desafio é, portanto, o de tornar efetivo o ensino de Filosofia. Novos elementos que possibilitam-nos problematizar o campo da formação de professores através do uso de materiais didáticos específicos. Nessa caso, nossa escolha se faz pelo livro Ética de Cidadania: caminhos da filosofia, publicado pela Editora Papirus. Com uma metodologia de ensino que privilegia a criação, o livro pretende-se didático, propondo o que denominamos de (des)caminhos para se problematizar a realidade, uma prática do “cuidado de si”, à qual os alunos são chamados a gerar problematizações pela pertinência das temáticas da obra. As proposições em torno de uma possível revolução no campo da formação dão-se, justamente pelo posicionamento que a obra convida o professor a encarar. Uma realidade mutável, cambiante, como a de um guia de viagem que a cada nova incursão encontra-se com algo novo, resignificando suas experiências. Posicionamento que, para além dele, resvala sobre os alunos possibilitando problematizações livres em torno da própria condição em que se encontram, para uma reflexão acerca da vida, do cotidiano e, abrindo a possibilidade de intervenção no mundo, ou seja, o trabalho possibilita a experiência filosófica. Palavras-chave: Ensino de Filosofia; Formação; Filosofia da Educação 10794 Ficha Catalográfica “ÉTICA E CIDADANIA” - (DES)CAMINHOS PARA O ENSINO DE FILOSOFIA: APONTAMENTOS ACERCA DE UMA FORMAÇÃO CAMBIANTE. Renato Bellotti Senicato. Faculdade de Ciências Humanas, UNIMEP. Introdução O ano de 2008 é um marco para a história da educação no Brasil. No dia 02 de Junho do referido ano, o então presidente em exercício, José Alencar, sancionou a lei que torna obrigatório o ensino de Filosofia e Sociologia para as séries do Ensino Médio. O diálogo que estava estabelecido, e a luta de alguns grupos que reivindicavam tal reconhecimento, tomam forma delimitada em todo o estado brasileiro. Portanto, a lei 11.684, a partir dessa data, reconhece a importância da Filosofia através de seu ensino nas escolas públicas brasileiras. Após a aprovação da lei que torna obrigatório o ensino de Filosofia, irrompem na realidade novas cores, novos tons para a discussão sobre a Filosofia e seu ensino. Se antes era demasiada a necessidade de continua defesa sobre a importância e a validade dos conhecimentos, saberes e potencialidades da Filosofia enquanto campo do conhecimento, agora, com o reconhecimento legal de sua importância, a problemática é efetivála, ou seja, fazer com que o ensino da Filosofia tome corpo, forma, se expresse como acontecimento na vida dos estudantes do Ensino Médio. Na obra Ensino de Filosofia e Currículo, Rocha (2008), ao propor questões sobre os conhecimentos escolares, refere-se à lei com relação ao que ela especifica sobre a Filosofia e sobre o que de seu ensino espera-se: “A Filosofia, diz a lei brasileira, é um tipo de conhecimento e seu ensino é vinculado à formação para a cidadania”. (p.28). Se, outrora, o diálogo sobre a importância da Filosofia enquanto campo de saber era emergencial, com o certo reconhecimento que a lei lhe confere, estamos diante da emergência de um novo diálogo: Ensinar Filosofia, o quê e como? Eis, portanto, novas problemáticas, pois todo problema de ensino é 1 10795 também problema de formação, especialmente formação daqueles que ensinam, ou seja, problemas da formação de professores. Deparamo-nos com uma situação problemática, pois parece-nos que é atribuída a educação a função de responder por todas as problemáticas geradas em todos os espaços da vida. Não que todas as problemáticas, sobretudo de cunho social, não sejam problemáticas educativas. Sim, elas são. A pontual problemática da educação é a de restringir sobre a função do ensino escolar a resolução de todos os problemas gerados em todos os ambientes da vida, mesmo que as condições para o trabalho não sejam adequadas. Essa é a questão: a vida altera-se, os elementos que a constituem não possuem sempre as mesmas formas, como, por exemplo, as que a escola reproduz. Nesse sentido, a Filosofia cumpre importante papel, sendo seu ensino de fundamental importância para que ela se efetive enquanto prática para a vida, possibilitando, através de seu ensino, diminuir prejuízos sociais, possibilitando o esclarecimento através da construção da consciência, a atitude crítica, visando processos de liberdade. Esse movimento, um deslocamento pelo saber e pelo conhecimento filosófico, corresponde a uma problemática filosófica: o constituir-se cidadão pelo exercício ético. Portanto, assim justificamos a escolha do livro Ética e Cidadania: caminhos da Filosofia enquanto suporte didático/metodológico para a efetividade da formação de professores e do ensino da Filosofia com ênfase no compromisso ético e cidadão. “Ética e Cidadania: caminhos da Filosofia”: o livro A obra Ética e cidadania: caminhos da filosofia nasce com uma vocação, a qual está explicitada na apresentação aos professores de Filosofia, o livro consiste em ser didático. A trajetória do livro, que foi premiado com o Jabuti em 1998, aconteceu no ambiente da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP, que por alguns anos foi o palco de profundas reflexões sobre a Filosofia e seu ensino. Em 1995 nasce o livro. Tendo sua gestação ocorrida nos encontros dos professores da área, a trajetória dialógica sobre o ensino de Filosofia tem seu ponto central o GESEF, Grupo de Estudos sobre Ensino de Filosofia, sediado na UNIMEP. 2 10796 Na apresentação da 20ª edição da obra, que é direcionada “para quem ensina filosofia”, os autores explicitam quais eram os propósitos do grupo que profundamente dialogou as propostas sobre o ensino de Filosofia no Brasil. Enquanto legado das discussões do grupo, a quem com segurança deve-se a consideração pelo árduo trabalho no que consiste o reconhecimento da Filosofia que culminou na obrigatoriedade de seu ensino nas escolas públicas brasileiras, fica explicito um histórico e a proposta do material. Os autores pontuam que A fim de pensar a situação do ensino de filosofia nas escolas públicas e privadas, o Gesef foi um lugar de cultivo de estratégias para uma ação efetiva entre ensino, pesquisa e extensão, com o objetivo de criar um instrumento inicial para transmitir a filosofia por meio de recursos datados. Cabe ao professor e a seus alunos atualizarem os recursos e levarem adiante a paixão pela filosofia. Reinventando o livro com os temas propostos, novos caminhos são possíveis para articular a reflexão ética no exercício da cidadania. (GALLO et al, 2012, p.7). Portanto, a escolha da referida obra como adequada para o trato com os alunos do Ensino Médio deve-se, primeiro, ao fato de articular propostas filosóficas numa corrente de proporcionar a formação ética e cidadã, atividade para a qual a Filosofia faz-se necessária, pois proporciona o diálogo múltiplo, em segundo lugar, por proporcionar ao professor trabalhar com o aluno de forma que ele próprio construa seu deslocamento pelos saberes e, a partir do amadurecimento aprofundado nas temáticas propostas, construam suas próprias reflexões e posicionamentos. O posicionamento dos autores em assumir a “proposta de pensar a Filosofia como a arte do cuidado de si”, ou seja, “uma ética fundada na estética e na política” (GALLO, et al, 2012, p.7), abordando as temáticas pertinentes a condição da vida humana, possibilita aos leitores o deslocamento pelo conteúdo dos temas, formulando, finalmente ideias, conceitos. Nesse sentido, é evocado sobre aquele que se debruça à Filosofia, o papel de intervenção, de atitude filosófica, possibilitando não apenas o diálogo da experiência com a Filosofia, mas uma experiência filosófica propriamente dita. 3 10797 Criação e temáticas: (des)caminhos para a experiência filosófica A obra escolhida para a construção dessa análise propõe temáticas como introdução no deslocamento pela filosofia. A proposta não é o esgotamento da abordagem temática, mas um primeiro passo, um (des)caminho que vai se construindo introdutoriamente, possibilitando o desvio. Segundo os autores Esta obra não pretende ser exaustiva, mas uma singela introdução; se conseguir despertar em nossos alunos uma situação de curiosidade diante de determinados fatos que passam despercebidos em seu cotidiano, terá cumprido sua tarefa. Tampouco pretende ser “a última palavra”: trata-se de um caminho proposto, de um roteiro de viagem. O professor tem a liberdade de alterar a rota e programar a viagem como preferir. De todo modo, o texto foi pensando como um ponto de partida que viabilize um exercício de reflexão com professores e alunos, uma produção coletiva de saber, como é própria da filosofia. (GALLO et al, 2012, p.9-10). Ora, a proposição acima citada, remete-nos a conceder a filosofia sua potencia enquanto produção do conhecimento. Fazendo parte das discussões que giram em torno da problemática do ensino de Filosofia, esse é um importante viés. É importante questionarmos mais uma vez: a filosofia ensinada aos estudantes tem como finalidade a reprodução de conteúdos estabelecidos na História da Filosofia ou mesmo da opinião? A resposta que agora ofereceríamos ao questionamento é negativa. A filosofia não consiste, portanto, em reproduzir os conhecimentos produzidos no decorrer de sua história, tampouco deve estar restrita aos diálogos acerca das opiniões cotidianas. O filósofo alemão Immanuel Kant, em sua obra Sobre el saber filosófico, enfatiza o caráter produtivo que a filosofia possui. Indagandonos, aponta que Como se deveria poder aprender também filosofia? Cada pensador filosófico edifica sua própria obra, por assim dizer, sobre as ruínas de outra; mas nunca se realizou uma obra filosófica que fosse duradoura em todas as suas partes. (KANT apud OBIOLS, 2002, p.74). 4 10798 Dessa forma, devemos compreender a filosofia como um processo, e não como um produto. Isto posto, o que deve ser proposto aos estudantes, é que possam se apropriar das condições mínimas para um deslocamento pelo pensamento, ou seja, proporcionar-lhes pelos conteúdos a serem trabalhados, o distanciamento do que ouvem e leem para que, contextualizando o que é lido e ouvido com os fenômenos de suas realidades cotidianas, possam desenvolver uma atitude filosófica. A atitude filosófica será, portanto, a de problematizarem a realidade de suas vidas, ou seja, proporem questionamentos aos problemas que identificam a fim de alterarem realidades prontas, já dadas. Cabe aos professores de filosofia fornecer as bases para que os alunos possam criar suas vivências, suas experiências filosóficas. Obviamente, numa esfera introdutória, isso não se dá a partir do nada, nesse sentido abordar temáticas clássicas da História da Filosofia, enquanto ponto de partida é uma proposta interessante, mas, é necessário que haja o deslocamento do eterno ruminar histórico para as novas inscrições, a produção de conhecimento, de uma nova história. Falamos, portanto, da proposta feita pelos autores de Ética e cidadania: “a filosofia como arte do cuidado de si”. (2012, p.7). Podemos então questionarmos: se a Filosofia deve proporcionar a experiência filosófica, a construção de conhecimentos próprios para o “cuidado de si” e a alteração da vida, como começar o trabalho? A resposta, acreditamos estar, na utilização de temáticas pertinentes que possam remeter ao cotidiano dos alunos para o deslocamento no pensamento. Nesse sentido, o livro Ética e Cidadania aparece-nos enquanto proposta pertinente. No decorrer de suas cento e doze páginas, são trabalhadas temáticas pontuais relacionadas à condição humana, ou seja, temáticas que transpassam a vida de todos os homens. Divididas em unidades, são as temáticas propostas nos livros: Filosofia e o Conhecimento, Política e Cidadania, Ideologia, Alienação (Des)Humanização do homem no trabalho, Ética e Civilização, O Corpo, Sexualidade: o nome da coisa, A liberdade, Estética: Arte e vida cotidiana, Estética de si, Ética e cidadania na sociedade tecnológica. Acreditamos, portanto, que a abordagem temática assegurada no livro, principalmente pela pontual e refinada escolha dos autores, pode 5 10799 possibilitar não apenas a concretização de um primeiro encontro com a Filosofia, o seu primeiro caminho, mas também, problematizando a liberdade dos percursos com ênfase na criação, proporcionar temas pontuais para os (des)caminhos da filosofia. Os (des)caminhos não estão postos, não devendo, portanto, serem compreendidos como percursos que vão para fora do ambiente de conhecimento da Filosofia, mas sim proporcionar a partir deles a criação de caminhos próprios para cada aluno constituir-se enquanto cidadão ético de seu próprio cuidado. Ainda é polêmico que falemos sobre criação conceitual por parte daqueles que se introduzem no estudo e produção do conhecimento filosófico. Todavia, esses fenômenos não devem ser encarados como uma restrição da filosofia enquanto atividade altamente intelectualizada e restrita às cátedras acadêmicas. Há, portanto a necessidade de quebrar essa resistência em assumir que a Filosofia é uma atividade possível a todos. Ora, se conseguimos encarar a filosofia como um valor capaz de alterar realidades, tal como nos é proposto como atividade do “cuidado de si”, ela não está restrita a um grupo determinado, mas ensinando-a, enquanto processo que é, pode ser apropriada por todos, e reconhecida na atitude política, entendendo esta com foco no principio de relação e reconhecimento entre as pessoas. Retomando um posicionamento do filósofo italiano Antônio Gramsci, pensador empenhado em destruir o preconceito com relação ao conhecimento filosófico, todos podem filosofar. Segundo Gramsci É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais sistemáticos. (2004, p.93). Para o pensador italiano, essa possibilidade de todos poderem filosofar, encontra-se no fato de que os elementos característicos de uma “filosofia espontânea” podem ser encontrados na linguagem, no senso comum e na religião, ou seja, “em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por folclore.” (GRAMSCI, 2004, p.93). 6 10800 Portanto, consideramos pertinente a escolha da obra Ética e cidadania: caminhos para a filosofia, para o trabalho com os estudantes do Ensino Médio. Isso se dá por dois motivos, primeiro pelo fato de que os próprios autores da obra sinalizam a importância de um deslocamento no pensamento, também de uma apropriação conteudística, mas que supõe o exercício filosófico subjetivo, e em segundo lugar porque fornecem esse subsídio de conteúdos ao proporem temáticas pertinentes à condição humana, ou seja, temas sobre os quais, em muitos momentos da vida somos obrigados a pensar e que determinam realmente quem somos. Por isso, a proposta do referido material apresenta-se coerente enquanto um caminho que se constrói pelo alicerce da Filosofia, e um (des)caminho que se abre sob os pés de quem deseja posicionar-se filosoficamente. Filosofar: criar conceitos Tomando como matriz metodológica e conceitual as propostas filosóficas de Deleuze e Guattari, a tarefa sob a qual o sujeito deve se debruçar no exercício filosófico, é a construção de conceitos, sendo o conceito o objeto próprio da Filosofia. Deleuze e Guattari pontuam que o papel da Filosofia, por excelência, consiste na criação, na fabricação de conceitos, tarefa traduzida por eles como arte: “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.” (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p.8). Os filósofos franceses acima citados, ao atribuírem à Filosofia o papel de criadora de conceitos, tecem na trama do saber uma importante inversão. A Filosofia, vista até certo tempo como mero exercício contemplativo de abstração, pode, enfim, tomar formas segundo queira seus próprios criadores (de conceitos), que utilizando-se de sua potencialidade criativa, podem (re)significar o mundo, alterando-o. O sujeito, utilizando-se do saber filosófico, detentor de uma potencia, uma possibilidade criadora e criativa libertas, invoca não mais o detentor do saber, o pensador encastelado, engessado por uma teia discursiva; mas a figura do “amigo da sabedoria”, o qual, através do toque, do exercício dos fenômenos de sua realidade e de seus desejos, inscrevese como “personagem conceitual”, cumprindo seu papel de inventor, criador de conceitos, inventor e criador de possibilidades, caminhos outros para sua realidade. 7 10801 Utilizando as propostas de Deleuze e Guattari, os estudantes das diversas séries do Ensino Médio, podem aproximar-se da filosofia segundo as experiências de seu próprio mundo. De acordo com o que é pontuado por Gramsci, em relação ao que propõem Deleuze e Guattari, os enfrentamentos cotidianos dos adolescentes podem se inscrever filosoficamente pela problematização desses mesmos enfrentamentos, pois tornam-se amigos do conceito enquanto seus criadores. De acordo com Deleuze e Guattari O filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos. [...] É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo como àquele que o tem em potência, ou que tem sua potência e sua competência. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 11). A arte de criar conceitos fica explícita pelo fato de que, em se constituindo como arte criativa, de inventar, de fabricar os conceitos, esses, devem conter a forma como queiram seus próprios criadores. O produto da criação, ou seja, aquilo que se cria, enquanto toma forma, deve conter, de modo exclusivo, os limites que seus criadores lhe atribuírem. Somente o criador pode atribuir limites a sua criação. Esse espaço permite externar-se e acontecer a subjetividade, pois esta também é uma função do conceito que é criado, se inscrever enquanto acontecimento. Portanto, não existem predeterminações sobre o que será criado, o processo criativo deve ser livre, é devir. Deleuze e Guattari pontuam a importância dos processos de criação conceitual serem livres. Segundo eles: “Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que o criam.” (1992, p.11). Os filósofos franceses, ao citarem Nietzsche, discorrem sobre a inversão que ocorre na filosofia quando essa deixa o espaço da espera contemplativa, 8 10802 justificando as propostas contemporâneas de uma filosofia ativa, criativa. Segundo Nietzsche Os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazêlos reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los. Até o presente momento, tudo somado, cada um tinha confiança em seus conceitos, como num dote miraculoso vindo de algum mundo igualmente miraculoso. (NIETZSCHE, apud Deleuze e Guattari, 1992, p.11). No espaço que compreende o ensino de Filosofia nas escolas, a proposta de entender a Filosofia como criação conceitual implica, por parte dos alunos, uma entrada em contato com o ato próprio do filosofar. Dessa forma, é possível sair de um plano repleto de preconceitos. Por exemplo, os preconceitos pontuados por Gramsci, quando ele atenta para o encastelamento da Filosofia, que fica restrita à uma pequena parcela de pessoas que a utilizam no âmbito da razão suprema, como atitude altamente especializada. A criação conceitual, nesse sentido, permite aos adolescentes, entenderem, através da problematização dos acontecimentos cotidianos de sua vida, o funcionamento do ato filosófico ao passo em que ele acontece. O papel do mestre, nesse sentido, não está excluso, mas consiste em fornecer as bases para um percurso que se quer livre. Nesse sentido, o docente também está envolto no processo pelo qual passam os estudantes. Constituindo-se como movimento, o envolvimento permite a constante reformulação e modificação das problematizações e posicionamentos. Segundo Gallo Trata-se, isso sim, de assumir uma outra postura perante o ensino. Uma postura que não implique a transmissão direta de saberes, que seriam assimilados diretamente por aquele que aprende; uma postura que não implique uma submissão daquele que aprende àquele que ensina; enfim, uma postura de abertura ao outro, ao aprendizado como encontro com os signos e como criação. (2012, p.48). 9 10803 Portanto, a proposta da Filosofia enquanto processo criativo tende a aproximar os estudantes de uma experiência filosófica concreta, invertendo, efetivamente a posição que se manteve até hoje, a de um ensino baseado na transmissão de conhecimentos da História da Filosofia através de uma ação meramente reprodutiva. A criação conceitual emerge, nesse sentido, dos fenômenos existenciais da realidade problematizada de cada estudante. Horizontes metodológico/didáticos: deslocamento no pensamento Se compreendemos que a criação conceitual é o exercício próprio da atitude filosófica, neste momento apresentamos as propostas, correspondentes a quatro passos didáticos para o deslocamento no pensamento que pode ser desenvolvido em sala de aula. Para essa apresentação, valemo-nos da proposta metodológica/didática de Silvio Gallo (2012). O autor de Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o ensino médio sustenta a proposição deleuzoguattarirriana da Filosofia como sendo a “a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p.8). Segundo Gallo Que fique claro então que a criação (ou recriação) do conceito não é uma tarefa impossível: não se cria no vazio, com base em nada; são os próprios conceitos da história da filosofia ou seus elementos constitutivos que nos darão a matéria-prima para nossa atividade de criação ou recriação a partir de nosso próprio problema. (GALLO, 2012, p.98). O autor então propõe quatro passos didáticos para possibilitar o deslocamento no pensamento visando a criação conceitual. No primeiro dos passos, a “sensibilização”, os alunos devem se atentar para a temática que será discutida, os estudantes precisam ser afetados sobre aquilo que se pretende criar. Já no segundo passo temos a problematização, nesse momento, o tema abordado, precisa ser transformado em problema, quanto maior a profundidade desse momento de problematização, maior é o horizonte na busca de conceitos para formar o próprio. O terceiro passo didático consiste na “investigação”, ou seja, buscar elementos que possibilitem, no diálogo, a resolução do problema. É no terceiro passo que ocorre a visita à História da Filosofia, 10 10804 ela é o recurso que possibilita o pensamento contextualizado com a atualidade. E o quarto, e o ultimo passo, é a “conceituação”, ou seja, o momento em que podem ser buscados conceitos que possibilitem a equalização do problema, ou mesmo a criação de um conceito que o faça, nesse sentido, a primeira proposição acontece pelo deslocamento, pois não existem conceitos puros, quando revisitados, são alterados, transformando-se em outros. (GALLO, 2012. p.96-97). Considerações finais O livro Ética e cidadania: caminhos da filosofia nos é apresentado como material que possibilita não só o ensino, mas uma revisita à Filosofia, posto que as temáticas por ele abordadas estão em constante alteração, mudança, e essas são características próprias para um posicionamento filosófico, posicionamento ao qual os alunos são convidados e torna-se possível através da metodologia na qual o referido material se baliza. Como é então que o material analisado propõe uma revolução no campo da formação de professores? O professor é ilustrado em nossa proposição pela figura do guia, que acompanha a viagem, não estando alheio às reverberações que da incursão possam ser geradas durante o percurso, nele envolve-se a cada nova visita que se faz inédita. Dessa forma, há a desterritorialização da figura do professor de Filosofia, que é marcada por preconceitos. A figura do mestre autoritário e detentor supremo dos saberes, a cada nova paisagem que a incursão pelo pensamento filosófico propõe, é desconstruída e constrói-se com nova roupagem, através do diálogo com seus alunos, tomando como produto dessas investigações. Dessa forma, constrói-se um ambiente no qual não é possível apenas o simples contato com o saber filosófico, mas uma intima relação e sua criação. Acreditamos que, com essa proposição, aproximamos o posicionamento do professor de Filosofia ao do filósofo educador, pontuado por Nietzsche, quando nos diz que é necessário que não nos contentemos com os conceitos que nos chegam prontos. A Filosofia demanda um posicionamento móvel, aberto às possibilidades de alteração constante. Nesse sentido, as temáticas que o livro aborda são de fundamental importância e pertinência, pois, de forma que muito bem 11 10805 escolhidas, fazem referência à vida daqueles que, lendo as páginas da obra são chamados ao “cuidado de si”. Assumir um posicionamento cambiante com relação a figura do professor de Filosofia é reconhecer, somente por essa forma a possibilidade de que o ensino dessa disciplina aconteça. É desterritorializando o lugar dos saberes estabelecidos previamente e realocando-os em novos lugares, os locais de desejo de quem passa pela experiência filosófica que o ensino dessa disciplina se justifica como criação de espaços, fôlegos, possibilidades de liberdade. Não assumimos com isso que a formação deve se dar através do livro, ao contrário, reconhecemos que o processo de formação nos cursos que tem por essa sua finalidade, devem aumentar seu rigor, para que práticas de educação efetivas posam acontecer assumindo propostas outras para um mundo outro. Com isso, acreditamos que o livro Ética e cidadania: caminhos da filosofia pode ser utilizado como importante ferramenta para a construção de experiências filosóficas para aqueles que se encontram com essa forma de saber, experiência que só tem sentido quando se reconhece na existência cotidiana e singular de cada estudante. Bibliografia DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. GALLO, Silvio Donizetti de Oliveira. (Coord.) Ética e cidadania: caminhos da filosofia. 20 ed. Campinas, SP: Papirus, 2012. ______. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o ensino médio. Campinas: Papirus, 2012. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. I. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. OBIOLS, Guillermo. Uma introdução ao ensino da filosofia. Trad. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo. Ijuí: Unijuí, 2002. ROCHA, Ronai Pires da. Ensino de Filosofia e Currículo. Petrópolis: Vozes, 2008. 12 10806