O ROMANTISMO EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS, MÃOS DADAS E SATÉLITE: UMA BREVE LEITURA SANTOS, Edilson dos. 1 RESUMO: Na obra de Machado de Assis, são abundantes as referências ao Romantismo, ora marcadas pela seriedade, ora pela ironia. Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, poetas que se situam no Modernismo, também se aproveitam do romantismo para criar uma nova poética. Neste estudo, fazemos uma breve leitura do Machado de Assis crítico de poeta baseado no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. O que norteia as críticas de Machado ao Romantismo? Através de fragmentos dos poemas “Mãos dadas”, de Drummond, e “Satélite”, de Bandeira, mostramos as estratégias desses poetas no aproveitamento do lirismo romântico. Refletir sobre os limites da ruptura defendida pelos românticos e realistas naturalistas e pelos modernistas – no que se refere à criação de uma identidade brasileira na literatura – e também um objetivo deste estudo. Palavras-chave: Modernismo, romantismo, poesia, critica. Introdução No livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, Machado de Assis ironicamente se refere ao poeta romântico e ao romantismo, colocando em xeque o sentimentalismo postiço que dominava na sociedade. Nesse livro, são freqüentes as referências aos poetas e à poesia. Essa postura anti-romântica, no entanto, já vinha sendo explorada na crítica literária, como podemos ver nos estudos que Machado faz da poesia de Fagundes Varela, Álvares de Azevedo e Castro Alves, nos poemas de sua autoria como “Pálida Elvira” e “Arlequinal” e em contos como “O erradio” e “A mulher pálida”, só para ficarmos em alguns exemplos. Carlos Drummond de Andrade, no poema “Mãos dadas”, e Manuel Bandeira, no poema “Satélite”, poetas modernistas, se valem do mesmo recurso, a ironia, para pôr em xeque a figura do poeta romântico, o que nos permite afirmar que a escrita desses escritores se aproximam no que se refere à negação do Romantismo. Além disso, essas críticas às posturas românticas mostram que a “musa romântica” ainda tinha uma presença destacada dentro do Modernismo. Neste estudo pretendemos mostrar o Machado de Assis crítico de poeta romântico presente no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas e como essa postura antecipa a de Carlos Drummond de Andrade e a de Manuel Bandeira, também contrários às atitudes românticas. O que justificaria, por parte de Bandeira e de Drummond, a referência, ainda, aos poetas românticos? A euforia modernista, encetada pela Semana de Arte Moderna, já traria em si alguns paradoxos, já pressentidos por Machado de Assis? Que contexto orienta as críticas de Machado ao Romantismo? Que limites se impõem à ruptura pregada na segunda metade do século XIX e início do XX? Essas são as orientações deste estudo. 1. Machado de Assis e o Romantismo Apesar de viver num tempo em que a euforia romântica embalava a sociedade, Machado de Assis soube cultivar uma obra que, mesmo inicialmente influenciada pelo “leite romântico”, para usar uma expressão do próprio Machado, passou ao largo de modismos de escola para ser hoje, ainda, um desafio para os estudiosos. Homem de um tempo em que a formação de uma identidade nacional estava em voga, soube manter-se fiel a um projeto que atacava o centro de um obstáculo que viria depois a ser revisitado pelos modernistas: o aproveitamento criativo das influências na construção da identidade literária, conforme assinala no artigo “Instinto de nacionalidade”: Há também uma parte da poesia que, justamente preocupada com a cor local, cai muitas vezes numa funesta ilusão. Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê os seus toques, e que esses sejam naturais, não de acarreto. (ASSIS, 1962, p. 807). 1 Professor e Mestre em Estudos Literários. A necessidade de construir uma identidade literária no Brasil levou Machado, inicialmente, a posicionar-se como crítico literário. Em trabalhos como “O ideal do crítico”, “A nova geração”, e o já citado “Instinto de nacionalidade”, ele procura corrigir aqueles defeitos provenientes do Romantismo: valorização excessiva da inspiração, descuido com a forma, mau uso da língua portuguesa e cópia dos modelos franceses. No entanto, tendo em vista a polêmica que ele sustentou com Sílvio Romero e com Eça de Queiroz, é provável que segmentos influentes da crítica literária não recebessem bem as críticas por ele batizadas de “sérias”. Em carta a José de Alencar, em 1969, notamos os reflexos dessas críticas e o objetivo de Machado ao encetá-las: Confesso francamente, que, encetando os meus ensaios de crítica, fui movido pela idéia de contribuir com alguma coisa para a reforma do gosto que ia se perdendo, e agora definitivamente se perde. Meus limitadíssimos esforços não podiam impedir o tremendo desastre. Como impedi-lo, se, por influência irresistível, o mal vinha de fora, e se impunha no espírito literário do país, ainda mal formado e quase sem consciência de si? Era difícil plantar as leis do gosto, onde se havia estabelecido uma sombra de literatura, sem alento nem ideal, falseada e frívola, mal imitada e mal copiada. (ASSIS, 1962, p. 895). Em busca do elogio fácil, críticos e literatos que viviam de aparências, não compreendiam a necessidade de fazer um trabalho consciente, que tomasse a obra literária e a crítica com seriedade, assim como já como se processava na Europa. Criticando a superficialidade da crítica no Brasil, Machado, em “O ideal do crítico”, já assinalava: “Exercer a crítica, afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa mais que um simples desejo de falar à multidão.Infelizmente, é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes.” (ASSIS, 1962, p. 798) A força que vem de fora, a influência francesa e os críticos e literatos confiáveis representam sérios obstáculos. Mas tudo isso se agrava quando se considera que ainda temos nesse tempo uma indústria de leitores frívolos, norteados por leituras melosas, conforme assinala Luiza Lobo (1987, p. 16). Esse problema, segundo a autora, ainda ecoa na atualidade quando se verifica que o “o intelectual aqui, especialmente nas universidades, viva mais de citações que de leituras” (LOBO, 1987, p. 17). Além disso, o fardo de um ensino de corte clássico pesará mesmo sobre a produção dos considerados mais antenados com a ruptura, conforme salienta Antonio Candido: A resistência do ensino oficial à literatura viva foi um dos responsáveis pelo divórcio entre a literatura e os leitores, tão acentuado no Brasil [...]. E produziu uma consciência dilacerada, que reconhece e ao mesmo tempo rejeita as normas que escravizam a palavra, fazendo de nossos românticos um misto, não raro desagradável, de românticos e clássicos, homens de imaginação livre e forma escrava [...] (Candido, 1964, p. 340). Apesar das críticas desfavoráveis, Machado de Assis não abandona o ofício de crítico; estrategicamente, desloca-o para o plano sobretudo dos contos e dos romances, espaços em que buscará valorizar também o leitor. No entanto, há um deslocamento também que se dá do crítico sério para o crítico irônico, do crítico que faz uma “crítica individualizada” do poeta romântico para o crítico que transforma o poeta romântico em herói problemático, ora se esforçando para se dar uns ares de poeta, ora na luta para escrever sua obra. Adotando o riso, terá percebido que através dele, como afirma Bakhtin (1997, p.127), é possível corrigir muitas coisas que não eram possíveis através da seriedade? É possível afirmar que sim, do mesmo modo que se pode afirmar que a ironia romântica, através da qual punha em xeque a criação romântica, revelando-se como “[...] uma arte que não se satisfaz com o sério absoluto, pois não quer ser igual à realidade, por isso toma o dito e o decompõe, fragmenta, desestrutura, discute, consciente da necessidade de distanciamento do real” (DUARTE, 2006, p. 44). Por outro lado, questionando o modelo romântico, Machado de Assis não cai na euforia realista/naturalista. Soube passar ao largo dos modismos defendidos pela escola de Recife, à frente da qual estava Sílvio Romero. Tinha consciência de que se o chapéu romântico não ia bem, o do realismo naturalismo também não. Soube equilibra-se no fio da navalha: se no começo mostrou-se favorável à poesia parnasiana, conforme podemos ver no seu artigo “A nova geração”, afirmando que A poesia não é, não pode ser eterna repetição; está dito e redito que o período espontâneo e original sucede a fase da convenção e do processo técnico, e é então que a poesia, necessidade virtual do homem, forceja por quebrar o molde e substituí-lo. Tal é o destino da musa romântica. (ASSIS, 1962. p. 810). Ressalta, no mesmo artigo, que uma ruptura radical, como pregavam os novos poetas era ingrata, porque não considerava que bons exemplos podem ser encontrados em qualquer escola literária e, colocando-se contrário euforia da ruptura presente no fim do século XIX, ditada pelas correntes cientificistas da Europa, alegando que na poesia que se afirmava como nova ainda havia muito sinal do “leite romântico”. O perigo de uma ruptura poderia levar a nascente literária a uma ilusão de renovação: era esse também um passo arriscado num país ainda preso a uma tradição de mais de três décadas de importações de modelos europeus. Mário da Silva Brito (1974, p. 32), faz uma afirmação esclarecedora sobre um dos impasses vividos pelo Modernismo: O Brasil avançava materialmente, aproveitava-se dos benefícios da civilização, mas, no plano da cultura, não renunciava ao passado. Estava preso ao mito do bem dizer, do arduamente composto, das dificuldades formais” (BRITO, 1974, p. 32). Mas nela está presente um outro problema, que diz respeito ao “aproveitamento dos benefícios”. Quem desfruta dos bens da modernidade é um grupo restrito. O própria urbanização do Rio, a cargo de Pereira Passos, foi empreendida em nome de um progresso que mais aumentava o abismo entre um segmento social, com os olhos voltados para a França, e um outro, que engrossado por negros, imigrantes falidos, capoeiras, pintores ambulantes e outros tipos, revelavam bem a carnavalização do cenário brasileiro. Machado, aconselhando a atenção ao tempo, a análise, se antecipa aos problemas que seriam vivenciados pelo Modernismo, orientados por um discurso de ruptura, que não levava em consideração o país ainda preso a modelos clássicos, românticos, parnasianos, realistas e naturalistas, ainda em voga. Na ânsia de fundar uma ruptura, o Modernismo, sem notar, abarcou muito do passadismo. É o que assinala Lúcia Parente Cunha: A ênfase na ruptura teria também colaborado para que se passasse por alto sobre alguns dos aspectos contraditórios da própria arregimentação vanguardista da arte brasileira, tarefa a que não se furtou, por exemplo, Mário de Andrade, já em 1942, quando pontua o muito de tradição existente em plena voragem do Modernismo. (CUNHA, 1994, p. 105). Mário da Silva Brito escreve, fechando o foco no parnasianismo, que os brasileiros eram “parnasianos na prosa e no verso. Criaturas helênicas, de monóculo e fraque, bebendo choque e cachaça na parisiense Rua do Ouvidor e declamando Leconte de Lisle”. (BRITO, 1974, p. 32-33), mas, relativizando a euforia de Brito, deve-se lembrar que os brasileiros eram também os poetas e poetastros, os pintores falidos, os jecas, os cortiços, um complexo de margens pouco vislumbradas. 2. Memórias Póstumas de Brás Cubas e o Romantismo Memórias Póstumas de Brás Cubas mostra um refinamento do olhar do crítico e do romancista. Nessa obra podemos dizer que desembocam, amadurecidas, muitas das experiências de Machado de Assis. Aí estão, por exemplo, o crítico, o poeta, o poetastro, a prática da revisão do texto, como um caminho para a qualidade, formando um grande quadro, carnavalizado, em que o literato é apenas uma dos fios do tecido. Podem-se ver aqui muitos dos problemas que Machado apontava nas obras dos românticos, quando de sua crítica individualizada. A poesia e o poeta românticos estão presentes em vários momentos de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Esse anti-romantismo, no entanto, não pode ser visto como uma defesa dos ideais realistas e naturalistas. Nesse livro, todas as atitudes dos poetas apontam para crises que caminharão para o Modernismo. A experiência romântica não trouxe para o para as letras a identidade literária sonhada. A adoção do modelo naturalista provocava nova euforia, mas estava longe de criar a identidade brasileira. Reverberações de uma crise futura em que a tradição e a ruptura continuarão em xeque? A postura de um Machado de Assis, que passa ao largo da euforia romântica e realista é flagrante na seguinte passagem: Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e verme e, por compaixão, o transportou para seus livros”. (ASSIS, 1997, p. 47). O “lindo garção” no trecho é o personagem Brás Cubas, que aí se passa como o cavalheiro medieval. Já é sabido que o Brasil, na construção da identidade nacional, o índio foi visto como símbolo do país. Esse deveria ser o herói nacional, porque não tivemos Idade Média. No entanto, na passagem acima, Machado de Assis chama a atenção para a força com que a imagem romântica do cavalheiro medieval firmou-se no imaginário brasileiro. Ele a subverte ao extremo quando mostra o choque entre “baladas medievais” e “ruas do nosso século”, o que mostra o parodoxo que aqui produziam os modelos europeus, causando aquele sentimento de “desterrados na própria terra” (HOLANDA, 2005, p. 31). O cavalheiro aí é um arlequim, está mais para um Dom Quixote. O corcel, cavalgado até o extremo de estropiar-se e criar bichos é a uma referência primorosa ao cansaço do modismo romântico, dentro do qual já estavam os vermes que deram origem à literatura realista. A inspiração, o improviso, posturas alimentadas pelo Romantismo, são ironizadas são ironizadas também em Memórias Póstumas de Brás Cubas. No capítulo 12, “Um episódio de 1814”, um poetastro se apresenta para recitar: “Não era um jantar, mas um Teo Deum; foi o que pouco mais ou menos disse um dos letrados presentes, o Doutor Vilaça, glosador insigne, que acrescentou aos pratos da casa o acepipe das noivas. Lembra-me , como se fosse ontem, lembra-me de o ver erguer-se, com sua longa cabeleira de rabicho, casaco de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio que lhe desse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim, posto e composto, devolver o mote glosado.”(ASSIS, p. 1997, p. 41). O poeta em questão era, no fim, apenas um glosador de motes. O acento da inspiração, o improviso, cultivado por muitos poetas, tornava-se uma tábua de salvação para meros exercícios literários. A poesia era vista, por alguns, como trabalho momentâneo. Em um de seus estudos críticos, Machado já havia chamado a atenção para o mal da poesia a que se entregaram, sem reflexão, os poetas brasileiros. Obviamente, não criticava os bons: “A temperatura literária está abaixo de zero. Este clima tropical, que tanto aquece as imaginações, e faz brotar poetas, quase como faz brotar flores, por um fenômeno, aliás explicável, torna preguiçosos os espíritos, e nulo o movimento intelectual.” (ASSIS, 1962, p. 841) Em busca do elogio fácil, críticos e literatos que viviam de aparências, não compreendiam a necessidade de fazer um trabalho consciente, que tomasse a obra literária e a crítica com seriedade, assim como já como se processava na Europa. Criticando a superficialidade da crítica no Brasil, Machado desabafa: “Exercer a crítica, afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa mais que um simples desejo de falar à multidão.Infelizmente, é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes.” (ASSIS, 1962, p. 798) No capítulo “A bordo”, dois poetas também se encontram. Um, o Cubas, não se apresenta como poeta, o outro, um capitão. “[...] No fim de alguns segundos, pegou-me nas mãos e apontou para a lua, perguntando-me por que não fazia uma ode à lua; respondi-lhe que não era poeta. O capitão rosnou alguma coisa, deu dois passos, meteu a mão no bolso, sacou um pedaço de papel muito amarrotado; depois, à luz de uma lanterna, leu uma ode oraciana sobre a liberdade da vida marítima. Eram versos dele.” (ASSIS, 1997, p. 58). Se a crítica era exercida por incompetentes, como diz Machado de Assis, na poesia o mesmo problema se verifica, como nota o próprio Machado ao afirmar que o trabalho da crítica literária “seria sobretudo eficaz em relação à poesia” (ASSIS, 1962, p. 806). Os clichês românticos eram recorrentes, a falta de criatividade levava a uma produção literária, ou baseada em imitação dos modelos franceses, ou na imitação que se processava entre os próprios poetas românticos, dando aquela “impressão do já lido”, como nota José Veríssimo (1998, p. 331) na leitura que faz de uns poemas de Fagundes Varela. 3. Marcas românticas em “Mãos dadas” e “Satélite”: breve leitura O sentimentalismo postiço continuou a despertar seguidores no próprio Modernismo. Como já foi dito, a ruptura plena pregada pelos modernistas era impossível de se dar na prática. A realidade ainda era feita de parnasianos tardios, de simbolistas e de românticos. E é possível afirmar que uma produção romântica, assim como uma parnasiana, corria paralela à proposta modernista de ruptura. Manuel Bandeira, em “Satélite”, e Carlos Drummond, em “Mãos dadas”, num processo de metalinguagem, fazem uma revisão da postura romântica, aproximando-se da postura adotada por Machado de Assis, que desconstrói o sentimentalismo romântico para incutir no leitor uma nova visão de arte. Atentemos para os dois poemas. Mãos dadas Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, Não direi os suspiros ao amanhecer, a paisagem vista da janela, Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, Não fugirei para as ilhas, nem serei raptado por serafins. O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, A vida presente. (DRUMMOND, 1973, p. 55) SATÉLITE Fim de tarde. No céu plúmbeo A Lua baça Paira Muito cosmograficamente Satélite. Desmetaforizada, Desmitificada, Despojada do velho segredo de melancolia, Não é agora o golfão de cismas, O astro dos loucos e dos enamorados. Mas tão-somente Satélite. Ah Lua deste fim de tarde, Demissionária de atribuições românticas, Sem show para as disponibilidades sentimentais! Fatigado de mais-valia, Gosto de ti assim: Coisa em si, ─ Satélite. (BANDEIRA, 1963, p. 6). Logo na abertura do poema “Mãos dadas” o poeta chama a atenção para a necessidade de se caminhar de mãos dadas. O contexto em que se insere o poema deve ser considerado. O mundo vinha da experiência amarga de uma primeira guerra e entrava em uma outra que, mais do que a primeira, merecerá o nome de mundial. O fortalecimento de um capitalismo selvagem, que reforça o individualismo, a instabilidade mundial, o medo, a fome e a desconfiança contribuem para o fortalecimento de ações baseadas em posturas sentimentais. “Mãos dadas” é o canto da solidariedade. O poeta, homem do povo, participante, sabe das dores de seus companheiros, mas não aceita a postura romântica baseada na fuga e nos sonhos. A sua poética é a do tempo presente. E, apesar de essa realidade ser adversa, o canto é de resistência às posturas ingênuas e sentimentais. A esperança entra como um dado novo na paisagem de escombros; assim, mesmo de cabeça baixa, os homens “nutrem grandes esperanças”. A realidade é a grande página que se descortina ao poeta. Vivê-la, ainda que seja amarga, é o exemplo que ele oferece aos homens. O poema, todo orientado por uma renúncia a posturas românticas, afirma-se como uma espécie de profissão de fé, que tem como centro o tempo presente. No outro caso, ainda referindo-se ao Romantismo, temos o Satélite, de Manuel Bandeira. A obra integra o livro Estrela da Tarde, de 1963. O poema apresenta o tom sério com que Drummond se refere às posturas românticas. Bandeira constrói um belo poema justamente usando a ironia, com que Machado de Assis procurara também desconstruir o modelo romântico. E “Satélite”, logo no título percebe-se uma referência à lua, astro romântico, motivo para as divagações poéticas. Mas aí já está a primeira reflexão que o poeta faz sobre o astro romântico: ele aparece limpo, científico pode-se dizer, das adjetivações românticas e dos arroubos retóricos. “Coisa em si”, é assim que o poeta quer o astro sob o céu modernista. Esse trabalho de desnudamento do astro é visível já nos três versos iniciais. Aí a lua é vista numa perspectiva romântica, como o revelam o vocabulário. O verso “Ceú plúmbico” e “A lua baça” mostram a adjetivação excessiva, a retórica vazia cultivada pelos sentimentais de outrora. Os dois versos seguintes traz a visão de um eu lírico não romântico: para ele, a lua se apresenta “cosmograficamente satélite”, o que gera uma oposição entre duas poéticas: na primeira, está presente um eu lírico romântico; no segundo, um olhar mais enxuto, vê a lua “coisa em si”. Essa lua, tema para sentimentalidades, na estrofe seguinte perde a força de mito e de metáfora. Maria Luiza Ramos, no estudo que fez do poema, afirma que A metáfora poderia ser criação de um poeta, em qualquer tempo, mas o mito é próprio da coletividade, de uma época determinada. Daí a força com que torna esse passado – passado de tantos poetas que cantaram, no mesmo tom, irmanados pelos mesmos sentimentos dentro de um contexto social e literário (RAMOS, 1969, p.141). Essa passagem deixa clara a oposição presente no poema, em que uma visão moderna e outra romântica se cruzam no poema. A lua, que foi um motivo romântico, é recuperada e, ironicamente, se transforma num satélite. A força mítica da lua, orientou poetas do Brasil e de Portugal, aponta Maria Luíza Ramos. Antecipando-se a Bandeira, Machado de Assis ironicamente desmitifica a lua. Brás Cubas, personagem poeta de Memórias Póstumas de Brás Cubas, trata da fascinação que a lua exerce na alma de um outro personagem poeta, um marinheiro sentimental: “No fim de alguns segundos, pegou-me na mão e apontou para a lua, perguntando-me porque não fazia uma ode à noite; respondi-lhe que não era poeta.” (ASSIS, 19, p. 58). No conto “A mulher pálida”, entre os poemas açucarados do personagem Máximo está o “Suspiros ao luar” (ASSIS, s.d., p. 210), através do qual Machado critica os clichês românticos. Os textos de Drummond, de Bandeira e de Machado de Assis se aproximam no tom com que tratam do romantismo. A ruptura com a escola romântica, presente nesses autores se dá a partir do aproveitamento da poética romântica sobre a qual se ergue uma obra que não é romântica. O que faz com que um texto seja ou não original é o aproveitamento inteligente do tema. A euforia dos modelos romântico, realista/naturalista ou moderno não alcançariam uma ruptura que deveria se dar em um plano em que entrava sobretudo a invenção, para usar um termo machadiano. Drummond e Bandeira, saindo na contramão na euforia da ruptura, não abrem mão do lirismo, mas escreve um poema que, nega o romantismo, mas ergue dele uma poética que vai além das propostas de escola. Em “Satélite”, valendo-se da ironia, Bandeira não entra não abraça a euforia da ruptura. No texto, percebe-se o distanciamento que ele soube manter do movimento modernista: como se sabendo que o passado romântico não era tão distante, soube aproveitar dele e de outros “ismos” o que poderia transforma-se em uma arte nova. E não era esse olhar atento às tradições locais que Machado de Assis recomendava aos novos poetas em seu trabalho de crítica literária, naquele século XIX em que a euforia pregava a criação de uma identidade literária? Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis leva adiante o seu trabalho de construção de uma identidade nacional. No entanto, contrariamente ao que pregava no início de sua crítica literária, agora adota uma posição mais descrente, que sai na contramão do que prega o Romantismo e o Realismo / Naturalismo. Para ele, todos os modismos, que traziam no bojo a crença num progresso, a renovação das artes, já trazem em si a decadência. Assim, fugindo da euforia, que dominava a sociedade da época, passou ao largo do Romantismo, do Naturalismo, do Realismo. E, se em seus primeiros escritos podia-se ver alguma inclinação aos poetas da “nova geração”, leia-se poetas parnasianos, e se nas críticas aos poetas românticos, explorada diretamente ou através da ironia, coloca em xeque o modelo em voga, em 1881, no Memórias Póstumas de Brás Cubas, revelará um novo olhar sobre a realidade literária do país, ao afirmar, que o Romantismo foi buscar nos castelos medievais o corcel romântico que, depois de estropiado, cai morto, sendo logo invadido pelos bichos do Realismo. Que visão é essa senão a de um artista que transita no palco das grandes idéias do século sem entrar na euforia dominante? Ali já apontava Machado para os problemas que a literatura enfrentava e que não se resolveriam através de fórmulas. Ou seja: a simples mudança de modelos não resolveria o problema da criação de uma identidade da literatura; seriam necessários investimentos no leitor; a crítica ferrenha às influencias francesas, por ele encetada muitas vezes, não se resolveriam num trabalho de crítica séria, e sim através do riso. Assim, do crítico que faz crítica individualizada, ao crítico que se vale do capote da ironia, ocorre uma amadurecimento do crítico. Ele parece conduzir para o plano dos contos a sua experiência de crítico. Talvez notando não ser possível uma correção através da crítica na sua modalidade séria, o que despertava rancores, Machado conduz, sobretudo para os contos e os romances, os poetas e poetastros que compunham o carnavalesco cenário literário daquele fim de século XIX e início do XX. Referências bibliográficas ALENCAR, Mário. “Advertência da edição de 1910”. In: ASSIS, Machado de. Crítica Literária. Organizado por Mário de Alencar. Rio de Janeiro: W. Jackson, 1959. 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