nós, a escola e o planeta dos animais úteis e nocivos - IFSP-PRC

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Ciência & Ensino, vol. 2, n. 1, dezembro de 2007
NÓS, A ESCOLA E O PLANETA DOS ANIMAIS
ÚTEIS E NOCIVOS
Júlio César Castilho Razera
Lílian Boccardo
Priscila Santos Silva
Lesma? Pegajosa, nojenta. Leão?
Assassino frio e sem coração. Aranha?
Assassina assustadora, um monstro de
oito pernas. Águas-vivas? Pequenas e
malvadas. Lobos? Vilões. Panda? Animal
bonitinho e simpático.
Os exemplos anteriores foram
extraídos de programas televisivos de
repercussão, de uma emissora tradicional
em programação sobre temáticas da
natureza. Essa produção em massa de
percepções antropomórficas - adotadas
por produtores e apresentadores de
documentários que emprestam aos
animais atitudes, raciocínios, atributos,
angústias e preocupações tipicamente
humanos - é contributo para confundir
ainda mais as nossas idéias sobre os
animais (COSTA NETO, 1988).
Rotular animais com atributos
humanos é o mesmo que dizer que suas
funções no ambiente estão única e
exclusivamente relacionadas a nós. Nesse
caso, questões relevantes são deixadas de
lado, como adaptação, evolução, modo de
vida, habitat. Diriam alguns que os
objetivos da televisão é entreter e não
ensinar, ou que as próprias ciências que
investigam os seres vivos são produções
humanas e também apresentam esse viés.
Sim, as abordagens antropocêntricas e
utilitaristas
estão
implícitas
nos
conteúdos de Zoologia - seja na ciência,
na escola ou na televisão - e abandoná-las
não é tarefa fácil. No entanto, mais difícil
será se a escola, que tem objetivos
explícitos de ensino formal, não se
posicionar em prol de romper o ciclo.
Desculpem-nos os leitores pela
pouca originalidade do tema, mas, como
somos professores da área, a relevância
ainda é grande, porque persiste a nossa
inquietação,
a
qual
objetivamos
compartilhar no artigo. Nesse intuito, de
forma abreviada e pinçada do percurso
histórico,
apresentamos
algumas
passagens que explicam em parte essas
idéias
remanescentes
sobre
o
antropocentrismo e o utilitarismo. Ao
final, inserimos o papel do ensino de
Ciências na discussão.
O antropocentrismo
Esse termo descreve atitudes,
valores ou práticas em favor de interesses
humanos e em detrimento de interesses
ou bem-estar das outras espécies ou do
ambiente (HAYWARD, 1998).
A diferenciação hierarquizada entre
humanos e animais pode ter iniciado na
Grécia Antiga. Pitágoras, no século VI
Ciência & Ensino, vol. 2, n. 1, dezembro de 2007
a.C., acreditava que pessoas e animais
possuíam almas de um mesmo tipo.
Alcméon de Cróton (560 - 500 a.C.), no
entanto, dizia que o ser humano diferia
dos outros animais porque só ele tinha o
"entendimento", enquanto os outros
animais somente "percebiam" as coisas
(Sorabji, 1995). Contudo, a efetiva
ruptura teve início quando Aristóteles
negou a razão aos animais.
De acordo com Aristóteles (384 322 a.C.), havia em toda a natureza uma
finalidade, isto é, uma causa final que
explicava e ordenava os acontecimentos
naturais. Esse pensamento, juntamente
com a visão hierárquica da escala da
natureza, na qual cada criatura deveria
servir-se ao superior, levou à inferência
de que plantas e animais serviriam aos
seres humanos. Assim, nós teríamos o
direito de usá-los para total satisfação de
nossos propósitos (PAIXÃO, 2001).
A visão aristotélica que deslocou o
homem para o centro do mundo
influenciou o mundo ocidental desde
então. Para São Tomás de Aquino
(1225-1274),
embasando-se
em
Aristóteles, o homem está no vértice de
uma pirâmide natural. Os minerais, na
base, servem aos vegetais; os vegetais,
acima, servem aos animais que, mais
acima e juntamente com todos os demais,
servem ao
homem
(MILARÉ E
COIMBRA, 2004).
Calvino (1509 - 1564) também
defendeu
idéias
fortemente
antropocêntricas: “Deus nos concedeu os
pássaros como alimento, assim como
sabemos que fez o mundo todo para nós”.
O conde de Buffon (1707 - 1788),
naturalista francês, classificava os
animais notadamente em três categorias
convergentes ao ser humano: i)
comestíveis e não comestíveis; ii) ferozes
e mansos; iii) úteis e inúteis.
A
destruição
da
visão
antropocêntrica teve início no século XIX
pelos astrônomos, botânicos, zoólogos e
geólogos, quando novas e importantes
descobertas foram realizadas sobre o
mundo natural. Todavia, essa visão não
desapareceu por completo entre nós.
Mesmo com os avanços das Ciências da
Terra, da Zoologia, da Botânica e, ainda,
com a teoria da evolução de Darwin, a
idéia de nossa superioridade sobre os
animais e plantas manteve-se (SILVA E
BELLINI, 2000).
Na prática, até hoje, segundo
Descola (1998), as manifestações de
simpatia pelos animais são ordenadas
numa escala de valor,
cujo ápice é ocupado pelas espécies
percebidas como as mais próximas do
homem
em
função
de
seu
comportamento, fisiologia, faculdades
cognitivas ou da capacidade que lhes é
atribuída
de
sentir
emoções.
Naturalmente, os mamíferos são os
mais bem colocados nessa hierarquia
do interesse, e isso independentemente
do meio onde vivem. Ninguém, assim,
parece se preocupar com a sorte dos
harenques ou dos bacalhaus, mas os
golfinhos, que com eles são por vezes
arrastados pelas redes de pesca, são
estritamente
protegidos
pelas
convenções internacionais. Quanto às
medusas ou às tênias, nem mesmo os
membros
mais
militantes
dos
movimentos de liberação animal
parecem conceder-lhes uma dignidade
tão conseqüente quanto à outorgada
aos mamíferos e aos pássaros (p.
23-24).
O Utilitarismo
Ciência & Ensino, vol. 2, n. 1, dezembro de 2007
Jeremy Bentham (1748 - 1832),
filósofo e jurista inglês, foi o primeiro a
expor a teoria do utilitarismo, um tipo de
ética normativa segundo a qual uma ação
é moralmente correta se tende a
promover a felicidade, e condenável se
tende a produzir a infelicidade (Paixão,
2001).
A rejeição dos animais do universo
moral, para além de qualquer abordagem
que existia na Grécia Antiga, ocorreu com
René Descartes (1596 - 1650). Ele
divulgou a idéia de que os animais são
verdadeiras máquinas, negando-se a eles
a racionalidade e a existência de emoções.
Atribuiu também aos animais o conceito
de autômatos, ou seja, seus corpos
obedeciam às leis da mecânica. Descreveu
o organismo animal como os relógios,
capazes de comportamento complexo,
mas incapazes de falar, raciocinar e até
mesmo ter sensações. A doutrina
cartesiana interpretava a ausência de dor
dos animais. Assim, aqueles que os
manipulavam
não
precisavam
se
importar com o sofrimento, pois eles não
sentiam dor. Também não deviam se
preocupar com a retirada das suas vidas,
já que eles não tinham interesses que
pudessem ser prejudicados. Contudo, no
século XVIII importantes argumentos
vieram em favor dos animais. Kant
(1724-1804), embora tenha mantido o
pensamento dos antigos filósofos de que
os animais eram seres irracionais e,
portanto, inferiores aos seres humanos,
introduziu um argumento até hoje
utilizado: os atos cometidos contra os
animais nos levaria a maltratar os seres
humanos, pois os exemplos começariam
com a conduta em relação aos animais
(PAIXÃO, 2001).
Em 1872 Charles Darwin provoca
uma ruptura nas idéias dominantes ao
afirmar que os animais possuem e
expressam emoções1. Ainda assim, a
trajetória histórica apresenta uma
marcante prevalência de pensamentos
consolidados no poder do ser humano
sobre os outros animais, porque pode ler,
escrever, construir cidades, códigos de
ética etc. Estariam, dessa forma,
justificadas as práticas aplicadas aos
animais em favor do homem (Weil, 1991).
O ensino escolar de Zoologia
Vimos nos recortes pinçados acima
uma complexidade de idéias construídas
ao
longo
do
tempo
sobre
antropocentrismo
e
utilitarismo,
explicando-se,
em
parte,
as
reminiscências que fazem perdurar em
nossa época e chegam ao âmbito do
ensino
escolar.
De
acordo
com
Schwertner (2000), as abordagens
antropocêntricas e utilitaristas estão
consolidadas nos conteúdos de Zoologia,
e abandoná-las é uma tarefa não muito
fácil.
As ciências que investigam os seres
vivos são produções humanas e, portanto,
não há como escapar dessa armadilha. A
própria ciência produz os significados, os
nomes, as classificações, as teorias. E,
sendo a ciência uma criação do humano
para
o
humano,
tende
ao
antropocentrismo. Uma conseqüência
desse aspecto pode ser encontrada no
modo como os animais têm sido tratados
no currículo escolar, ou seja, de acordo
com os interesses humanos como seus
1
No livro “A expressão das emoções no homem e nos
animais”, editado no Brasil pela Companhia das Letras.
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paladares, medos, crenças, necessidades
etc. Animais como aranhas, escorpiões,
baratas, vermes, sapos, cobras, tubarões,
são
considerados
nojentos,
sujos,
perigosos e transmissores de doenças.
Por esse motivo, “a sobrevivência dos
mais adaptados está dando lugar a uma
nova lei: a dos mais bonitos / atrativos”
(SANTOS, 2000). Em outras palavras, a
seleção natural promove a diversidade da
vida, mas a nossa ignorância, o nosso
preconceito, os nossos valores e gostos
preferenciais inserem um novo e
poderoso tipo de seleção – a artificial. E
pior, com anuência do ensino escolar.
A óptica antropocêntrica com que os
animais têm sido vistos ultimamente nas aulas de Ciências ou na mídia - tem
heranças bem marcadas numa tradição
de ciência que estabeleceu suas raízes nos
últimos séculos (Schwertner, 2000).
Como a ênfase dada em sala de aula aos
animais nocivos costuma ser exagerada e
distorcida, os alunos tendem a concluir
que a natureza é um lugar extremamente
hostil,
habitado
por
criaturas
horripilantes e perigosas. Ressalta-se que
essas atribuições a respeito dos animais,
além de reforçar a idéia antropocêntrica
da natureza, reforça uma outra questão
que pode ser identificada na forma de
abordagem dos animais na escola: a visão
utilitarista. De acordo com Schwertner
(2000), o currículo escolar tem
demonstrado
visões
bastante
antropocêntricas e utilitaristas a respeito
da natureza – uma tendência que tem
permanecido implícita na ciência de um
modo geral.
Do exposto, pode-se depreender que
se for solicitado a um estudante descrever
as características de um inseto, por
exemplo, ele incluirá atributos de
incômodos ou úteis a nós, nojentos, feios
ou bonitos, venenosos etc. De acordo com
Costa Neto (2003, p. 136), por razões
estéticas e psicológicas muitos insetos são
considerados animais nocivos, sujos,
transmissores de doenças e vistos como
pragas (a abelha melífera, Apis mellifera,
seria uma exceção). Como trabalhar esses
aspectos no ensino? Como sanar os
desvios que aparecem em livros didáticos,
documentários e filmes de cultura
popular
(Tubarão,
Anaconda,
Aracnofobia)? Nós, professores, estamos
teoricamente preparados para falar dos
animais e de sua importância ecológica
sem exaltar a importância para os seres
humanos? Afinal, conseguiremos algum
dia ouvir explicações dos alunos sobre o
mundo
vivo
sem
que
atribuam
sentimentos humanos de nocividade ou
utilidade, beleza ou feiúra? Pelo menos
por
enquanto
não
vislumbramos
respostas muito otimistas.
Porco? Ele nos dá lingüiça,
mortadela (AR, 12 anos). O couro
também serve (FA, 13 anos). É um pouco
nojento (TS, 12 anos). Mosquito?
Perturba, transmite doença (FA, 13
anos). Eu tenho um pouco de nojo dele
(CF, 12 anos). Ele é chato demais,
incomoda muito (TS, 12 anos). Tubarão?
Ele morde (JK, 12 anos). É um bicho sem
valor (FA, 13 anos). Tartaruga? Um bicho
muito quieto, lerdo (JK, 12 anos). Cavalo?
A gente monta nele, se diverte (JK, 12
anos). É bonito (JS, 12 anos). Esponja? É
esponja de pia? Ah! Esponja do mar.
Lembrei. É uma coisinha fofinha, cheia
de furinhos (ME, 12 anos). Gongo? É um
animal medroso, porque se a gente
chega perto dele, ele se enrola (AR, 12
Ciência & Ensino, vol. 2, n. 1, dezembro de 2007
anos). Baleia? É muito bonita e grande
(AC, 12 anos). Urubu? É um bicho porco
(ME, 12 anos). Acho ele feio (TS, 12 anos).
É um animal sujo (AN, 12 anos). É
nojento, sujo (AC, 12 anos). É nojento
(JK, 12 anos). Minhoca? Só é um
pouquinho nojenta, porque é molhada,
gosmenta, mole (JS, 12 anos). Escorpião?
É esquisito, asqueroso (TS, 12 anos).
Lagarto? Ele tem a pele muito feia (JS, 12
anos). Esquisito e muito mais nojento do
que uma cobra (FA, 13 anos).
COSTA NETO, E. M. O homem e os animais.
O Correio da Unesco, ano 16, n. 4, abr. 1988.
Não, leitores. Agora os exemplos são
trechos de conversas entre alunos de 6ª
série, tomados e analisados em pesquisa
recente. Algumas semelhanças com
aqueles do início, dos programas
televisivos?
HAYWARD, T. Anthropocentrism. In:
Encyclopedia of Applied Ethics, v. 1, San
Diego: Academic Press / R. Chadwick. 1998.
p. 173-180.
Antes que a seleção natural das
espécies definitivamente ceda lugar à
seleção artificial, embasada em nossos
preconceitos, sentimentos e valores,
deveríamos refletir mais sobre a espécie
que somos e que queremos ser. Talvez a
versão antiga do filme Planeta dos
Macacos (Planet of the Apes, 1968)2 possa
nos ajudar nessa reflexão. Pelo menos
parece servir melhor aos propósitos
educativos que esses atuais e equivocados
documentários
que
persistem
no
antropocentrismo.
Referências
2
Filme baseado na obra de P. Boulle. Após acidente,
astronauta aterrissa em planeta no qual macacos
falantes escravizam os irracionais seres humanos. Na
fuga da escravidão, ele encontra as ruínas da Estátua da
Liberdade. Descobre, portanto, que está na Terra, num
tempo futuro. É o último representante da antiga
humanidade, que outrora dominou e destruiu o planeta.
A obra deixa mensagens de alerta sobre os interesses
egoístas dos seres humanos.
COSTA NETO, E. M. Insetos como fontes de
alimentos para o homem: valoração de
recursos considerados repugnantes.
Interciência, v. 28, n. 3, p. 136-140, mar
2003.
DESCOLA. P. Estrutura ou sentimento: a
relação com o animal na Amazônia. Mana,
Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 23-45, 1998.
Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2425
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MILARÉ, E.; COIMBRA, J. A. A.
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PAIXÃO, R. L. Experimentação animal:
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Tese (Doutorado) - Fundação Oswaldo Cruz,
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http://portalteses.cict.fiocruz.br/pdf/FIOCR
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jun. 2005.
SANTOS, L. H. S. (Org.). Tem alguma
utilidade estudar a utilidade dos seres vivos?
In: SANTOS, L. H. S. Biologia dentro e fora
da escola: meio ambiente, estudos culturais e
outras questões. Porto Alegre: UFRGS, 2000.
p. 13-24.
SCHWERTNER, C. F. Os bichos na natureza
da sala de aula. In: SANTOS, L. H. S. (Org.).
Biologia dentro e fora da escola: meio
ambiente, estudos culturais e outras
questões. Porto Alegre: UFRGS, 2000. p.
25-40.
SILVA, C. A.; BELLINI, L. M. Descobrindo o
antropocentrismo: a visão de animais em
jovens escolarizados e profissionais na área
biológica. 2000. (texto impresso).
Ciência & Ensino, vol. 2, n. 1, dezembro de 2007
SORABJI, R. Animal minds & human
morals: the origins of the western debate.
New York: Cornell University Press, 1995.
WEIL, Z. 1991. Animals in society: facts and
perspectives on our treatment of animals.
Pennsylvania: Animalearn, 1991.
____________________
Júlio César Castilho Razera é professor do
Departamento de Ciências Biológicas da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
- UESB. Doutorando em Educação para a
Ciência da UNESP.
E-mail: [email protected]
Lílian
Boccardo
é
professora
do
Departamento de Ciências Biológicas da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
- UESB. Doutora em Zoologia pela UNESP.
E-mail: [email protected]
Priscila Santos Silva é bióloga licenciada
pela Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia - UESB.
E-mail: [email protected]
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