Rita Catania Marrone Universidade de Coimbra Resumo

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Fernando Pessoa, herdeiro do
mundo mágico
As raízes ocultas da poética pessoana
Rita Catania Marrone
Universidade de Coimbra
Resumo
Se é verdade que a Modernidade representa, na opinião de muitos, o
triunfo do progresso cientíico e da razão, é também verdade que nos seus
fundamentos se encontra uma visão mágica e irracional do mundo, de maneira alguma desaparecida da nossa cultura. O presente artigo divide-se em
uma introdução às raízes ocultas da época moderna, nas suas facetas artísticas, ilosóicas e literárias, em seguida focando a atenção na igura de Fernando Pessoa. O poeta português, de facto, é herdeiro direto de uma antiga
Weltanschauung mágica, que passa por Marsílio Ficino e Giordano Bruno, mas
também por Johann Wolfang von Goethe e por Isaac Newton, para chegar
a poetas modernos como William Butler Yeats e Thomas Stearns Elliot, mas
também ao próprio Pessoa. A paixão do poeta pela astrologia, pela ilosoia
hermética e pelo ocultismo não era apenas um passatempo, mas uma verdadeira chave de leitura para compreender o mundo, interpretá-lo e reelaborá-lo
através da criação poética.
Palavras-chave: astrologia; modernidade; mundo mágico; ocultismo;
Fernando Pessoa.
Riassunto
Se è vero che la Modernità rappresenta per molti il trionfo del progresso
scientiico e della ragione, è anche vero che alle sue fondamenta s’incontra una
visione magica e irrazionale del mondo, tutt’altro che scomparsa dalla nostra
cultura. Il presente articolo si divide in un’introduzione alle radici occulte
dell’epoca moderna, nelle sue sfaccettature artistiche, ilosoiche e letterarie,
focalizzando in seguito l’attenzione sulla igura di Fernando Pessoa. Il poeta
portoghese, infatti, è erede diretto di un’antica Weltanschauung magica che passa
da Marsilio Ficino e Giordano Bruno, ma anche da Johann Wolfang Von
Goethe e Isaac Newton, per arrivare a poeti moderni come William Butler
Yeats e Thomas Stearns Elliot, ma anche allo stesso Pessoa. La passione per
l’astrologia, la ilosoia ermetica e l’occultismo non era per il poeta un semplice
svago da tempo libero, ma una vera e propria chiave di lettura per comprendere
il mondo, interpretarlo e rielaborarlo attraverso la creazione poetica.
Parole chiave: astrologia; modernità; mondo magico; occultismo;
Fernando Pessoa.
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Introdução: as raízes ocultas
da Modernidade
Se quisermos encontrar duas iguras emblemáticas da entrada na Modernidade, deveríamos tomar em consideração Isaac
Newton e Johann Wolfgang von Goethe. Embora vivos a uma
distância de cem anos um do outro, uma perspectiva de história
das ideias permite-nos considerar os dois cientistas como duas
personagens paradigmáticas do nascimento da época moderna.
A luta teorética entre Newton e Goethe, que bem se observa
na disputa sobre a teoria das cores, pode revelar os dois pontos
de vista diferentes que se enfrentaram na constituição da ciência como nós a conhecemos hoje. As duas perspectivas, a um
primeiro olhar, parecem inconciliáveis: a vitória de Newton sancionou o triunfo de uma visão do mundo cientíica e analítica;
enquanto a derrota simbólica de Goethe determinou a perda
(pelo menos aparente, como veremos) de uma Weltanschauung
“holística”, não reducionista. Os movimentos cognitivos que
caracterizam os dois métodos são opostos: onde Newton divide
e decompõe o fenómeno para encontrar a sua essência (“análise” signiica etimologicamente “anàlysis”, onde lyo em grego
quer dizer “desatar”), Goethe faz exatamente o contrário, tentando remontar das partes para o todo que estas compõem.
O método de Goethe é evidente no ensaio sobre a metamorfose das plantas, Versuch die Metamorphose der Planzen zu
erklären, de 1790. Na perspectiva goethiana, a natureza é uma
totalidade dinâmica que, embora se renove, conserva a sua unidade originária. Existe um processo criador ininito que pode
ser percebido a partir das suas manifestações especíicas e o
estudo das formas assumidas pela natureza nas suas metamorfoses toma o nome de morfologia. O papel da investigação morfológica é colher o eterno no devir, a unidade presente em todos
os seus segmentos.
O olhar de Goethe, portanto, vê as partes dinâmicas como
pertencentes a um Todo eterno, como em um mosaico em que
cada fragmento contribui para a formação de uma imagem única e harmônica. Todavia, a sua pesquisa não é exclusivamente
naturalística. O método morfológico compreende toda a constelação humana: os estudos cientíicos não devem ser separados dos estéticos e ilosóicos. O pensador alemão propõe-se a
desvelar a relação entre mundo da arte, da ciência e a dimensão
existencial do Homem, pois uma ilosoia que se quisesse dizer
completa não poderia excluir nenhum campo da sabedoria.
Tal pensamento deriva da ilosoia de matriz renascentista
que não separa o Homem da natureza, pondo-o em uma posição privilegiada, mas considerando-o como parte integrante
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de um Todo em que se insere harmonicamente. Existe entre
os entes uma harmonia cósmica, uma “signiicatividade universal”1, ou seja, o universo é constituído por uma rede de forças
que ligam todos os pontos entre si, doando-lhes sentido. Dessa
forma, tudo adquire um valor enquanto participa do resto da
criação. Portanto, também a nossa alma possui uma continuidade com o espírito do cosmos (como airma, por exemplo, Giordano Bruno na obra De magia2) e, assim como a natureza e as
esferas superiores seguem o curso das estacões, o nascer e o pôr
do sol, as fases da lua, etc., nós também estamos submetidos
às mesmas regras que determinam o movimento de cada coisa.
É através do conhecimento dos vínculos que unem todos
os entes que o Ser humano pode operar de forma mágica, chegando a dominar a natureza (ainda Giordano Bruno, De vinculis
in genere3) e, pelo mesmo motivo, é possível a prática da astrologia, que lê nos astros o futuro do indivíduo. Como ensina uma
máxima hermética, “o que está em baixo é como o que está em
cima e o que está em cima é como o que está em baixo”: existindo uma correspondência entre microcosmo e macrocosmo
– isto é, o Homem e as esferas superiores do céu – é possível
deinir as inluências astrais que determinam o decurso da vida
de um indivíduo. Assim, o Homem pode espelhar-se nas estrelas, como as estrelas também se espelham no Homem.
1. “Hegel aveva colto, con
straordinaria precisione, questa
centralità nel mondo magico,
del tema della signiicatività
universale: ogni particolarità
diventa signiicativa. Ci
sono solo signiicati. Ogni
connessione è possibile, e il
mondo è assolutamente pieno
di connessioni. Tutto è possibile.
Dietro a ogni oggetto o parola
o gesto si nasconde un segreto.”
ROSSI, Paolo. Il tempo dei maghi.
Rinascimento e modernità, 2006, p. 38.
2. BRUNO, Giordano, Opere
magiche, 2000.
3. Idem. “De vinculis in genere”,
2000.
4. ROSSI, Paolo. Il tempo dei
maghi. Rinascimento e modernità,
2006.
Como airma o ilósofo italiano Paolo Rossi4, é recorrente
o erro de julgar primitivas e supersticiosas as crenças do chamado mundo mágico, em vez de perceber que se trata apenas
de uma Weltanschauung diferente, que não é superior ou inferior
à cientíica, mas representa sim uma alternativa. Quando a ilosoia da história de cunho iluminista estabeleceu que a marca
distintiva da Humanidade é o progresso, esqueceu-se que cada
mudança na história do pensamento implica uma perda. Ganhando Newton a luta contra Goethe – que neste ensaio tomamos como um dos últimos exponentes e herdeiros do mundo
renascentista –, o Homem perdeu o seu lugar harmônico dentro
da natureza, de que já não é ilho mas sim dono presunçoso, e
deixou de olhar para o universo e reconhecer-se nas estrelas.
Existiu (e ainda existe) uma maneira alternativa de perceber
a história, que não é a religião do progresso a qualquer preço,
mas sim a procura de uma sabedoria originária e ancestral que
icou perdida no decurso dos tempos e que é preciso renovar
e redescobrir. Um movimento, portanto, que não olha para a
frente tendo em vista um melhoramento, mas que volta para
trás, à procura de algo de que se esqueceu. Alguns leitores icarão surpreendidos por saber que representantes desta perspetiva eram também cientistas considerados “modernos”, como
Kepler e Copérnico. Para além do próprio Newton, aliás.
De facto, se é verdade que Newton triunfou sim, simbolicamente, sobre Goethe, é também verdade que os alferes do
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5. Ibidem, p. 20-21.
6. Cf. WHITE, Michael. Isaac
Newton: The Last Sorcerer, 1999.
7. ELIADE, Mircea.
Fragmentarium, 2008, p. 43.
progresso esquecem (ou ingem esquecer) que o cientista inglês
não era apenas um “cientista” como nós o entendemos hoje.
Assim como Kepler se insere em um contexto de ilosoia hermética que inluencia fortemente as suas teorias, não obstante
isso não se encontre nos livros de ilosoia e de história (como
evidencia o já citado Paolo Rossi5), Newton conhecia e praticava a alquimia, tão seriamente quanto a ciência6. Assim, os dois
intelectuais, divididos no campo da Modernidade, encontram-se
no terreno do dito esoterismo: ambos os estudiosos conheciam
e baseavam as próprias teorias em uma visão do mundo mágica,
não obstante terem posteriormente tomado diferentes caminhos.
Desta maneira, julgamos que existe outra forma de entrar
na época moderna, seguindo o invisível il rouge da magia, em
vez do da ciência.
Escrevia Nietzsche que as praças de Europa estão cheias
de estátuas de Goethe, mas que na cultura ocidental já não se
encontra nada dele. Porém, a história do pensamento é imprevisível e as ideais exiladas sempre encontram maneira de voltar,
a maioria das vezes nos lugares e nos tempos mais inesperados.
Os últimos anos do século xix e as primeiras décadas do
século xx conhecem um revivalismo das ciências ocultas sem
precedentes, em que a visão mágica do mundo regressa com
uma força explosiva, como o grande recalcamento da história
do pensamento humano.
É suiciente pensar no número de seitas esotéricas que se
formaram no inal do século XIX para ter uma ideia da importância que teve o esoterismo naquela época. Em 1866 houve a
fundação da Societas Rosicruciana in Anglia por Robert Wentworth
Little, da qual faziam parte também William Wynn Westcott e
William Robert Woodman. Os últimos dois, Westcott e Woodman, foram dois dos três fundadores em 1888 da Golden Dawn
(Ordem Hermética da Aurora Dourada). Em 1875 morre o mágico Eliphas Lévi, um dos principais ocultistas do século XIX,
nasce o controverso feiticeiro Aleister Crowley (que fará parte
também da Golden Dawn) e a Sociedade Teosóica começa a sua
aventura, graças a madame Blavatsky.
Mircea Eliade, o historiador das religiões romeno, airma
que, nas épocas em que a mística e a metafísica são esquecidas e combatidas, triunfam a mistagogia e o pseudo-ocultismo
e quem já não acredita mais no Mistério, crê no mesmerismo,
na maçonaria e no espiritismo7. O Iluminismo, elegendo a razão como novo e único deus da Humanidade, tinha banido o
mistério da vida, deixando assim um vazio signiicativo na alma
humana. Foi o irracionalismo a ocupar o lugar que a racionalidade, sozinha, já não podia preencher.
Assim, nos “salões bons” da burguesia inglesa, começam
a registar-se presenças estranhas, espíritos vindos do além que
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agitam mesas e enviam mensagens misteriosas para serem interpretadas, e intelectuais, professores e bons burgueses relacionam-se em fraternidades esotéricas, praticando ritos ocultos no
segredo de templos antigos.
As ideias esquecidas estavam a seguir o seu próprio curso,
mexendo outra vez os peões da história.
Fernando Pessoa, um
astrólogo em Lisboa
Leon Surette, professor na Western University of Canada,
estudou a relação entre alguns intelectuais contemporâneos e
a cultura oculta. No livro The birth of the Modernism8, pôs em
destaque as raízes esotéricas das obras de Ezra Pound, Thomas
Stearns Eliot e William Butler Yeats. Contudo, não é difícil individuar em outros escritores modernistas muito célebres traços
de esoterismo: um dos membros mais famosos da Societas Rosicruciana in Anglia, por exemplo, foi o escritor austríaco Gustav
Meyrink, antes de se converter ao Budismo, enquanto pertenciam à Golden Dawn, para além do já citado William Butler Yeats,
os escritores Arthur Machen e Bram Stocker.
8. SURETTE, Leon. The birth of
the Modernism. Ezra Pound, T.S.
Eliot, W.B. Yeats, and the Occult,
1993.
9. Yvette Centeno supôs que o
primeiro interesse de Fernando
Pessoa por temáticas ocultistas
remontaria ao ano 1906
(Cf. PESSOA, Fernando.
Fernando Pessoa e a Filosoia
Hermética - Fragmentos do espólio,
1985, p. 9) e, recentemente,
também Manuel Gandra
(PESSOA, Fernando. Hermetismo
e iniciação, 2015, p. 13) conirmou
a hipótese de uma paixão muito
precoce do poeta, chegando a
individuar em 1904 a origem das
primeiras leituras de esoterismo.
10. A digitalização completa dos
livros que atualmente compõem
a biblioteca pessoal do poeta
está disponível online: http://
casafernandopessoa.cm-lisboa.
pt/bdigital/index/index.htm
Em Portugal, o primeiro tradutor das obras teosóicas – que
inluenciarão de maneira determinante a sua produção – foi Fernando Pessoa. Podemos considerar o poeta português, de facto,
como parte daquele il rouge que liga a Weltanschauung renascentista
ao pensamento moderno, como tentaremos demonstrar.
Não obstante muitas tentativas terem sido feitas para “liquidar” a produção esotérica de Pessoa como uma das blagues
típicas do decifradores de charadas – como ele próprio se deiniu – julgamos que para perceber melhor alguns dos aspectos
da sua poética é necessário não esquecer que Fernando Pessoa
estava interessado, desde uma idade muito precoce9, em assuntos esotéricos e que muitos dos fragmentos que nos deixou na
arca tratam este tema. Geralmente, quando se fala de Fernando
Pessoa como mágico, astrólogo e estudioso de ciência hermética é preciso lutar contra um certo ceticismo e uma velada ironia,
se bem que já muitos e valentes investigadores – como António
Quadros, Dalila Pereira da Costa, Yvette Centeno, Paulo Cardoso, José Augusto Seabra – tenham provado a importância
fundamental que este assunto possui na produção pessoana. É
também signiicativo o número elevado de livros relacionados
com temáticas esotéricas que se encontram na sua biblioteca
pessoal10 e que demonstram quanto era genuíno o entusiasmo que o escritor sentia por estas temáticas. Para além disso,
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11. PESSOA, Fernando.
“Primeiro Fausto”. Poemas
Dramáticos, 1952, p. 76.
a visão do mundo que está por detrás da produção poética de
Fernando Pessoa mostra com clareza a forte inluência de uma
Weltanschauung mágica, de que temos falado até agora.
12. BAUDELAIRE, Charles. I
Fiori del Male, 2004, p. 66.
Caso a ciência esqueça o lado mágico e misterioso do mundo,
são os poetas que devem desvelar a essência secreta da natureza.
No Fausto pessoano, que foi como para o Fausto goethiano uma das
obras em que o poeta trabalhou durante toda a vida, manifesta-se
o pensamento simbólico que permeia a sua poética: “Ah, tudo é
símbolo e analogia!”11 exclama a voz sem rosto do poema, tentando
detectar o mistério do universo. O mundo é uma loresta de símbolos, como ensinava Baudelaire no célebre poema “Correspondance”, em que se podem intuir ininitas ligações.
13. PESSOA, Fernando. Fernando
Pessoa e a Filosoia Hermética –
Fragmentos do espólio, 1995,
p. 37-38.
La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L’homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l’observent avec des regards familiers.
Comme de long échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.12
A natureza, cheia de mistério, fala um idioma familiar,
mas ao mesmo tempo desconhecido, porque se exprime através de símbolos. A linguagem simbólica, como airma Pessoa,
dirige-se à inteligência analógica e permite entender através
da intuição verdades de ordem superior – ao contrário das
palavras, concebidas para compreender apenas o grau mais supericial da realidade:
Todos os symbolos e ritos dirigem-se, não á intelligencia
discursiva e racional, mas á intelligencia analogica. Porisso não ha absurdo em se dizer que, ainda que se quizesse
revelar claramente o occulto, se não poderia revelar, por
não haver para elle palavras com que se diga. O symbolo
é naturalmente a linguagem das verdades superiores á nossa intelligencia, sendo a palavra naturalmente a linguagem
d’aquellas que a nossa intelligencia abrange, pois existe para
as abranger.13
A poética de Baudelaire, como a de Pessoa, põe em destaque o tema da analogia universal, a profonde unité que liga, em
uma misteriosa rede de relações, todas as coisas, animadas e inanimadas, da natureza. Nesse caso, não é importante saber se
Baudelaire subentende uma relação de tipo vertical e transcendente entre macro e microcosmo, como está subentendida no
pensamento pessoano, ou se a sua rede de correspondências se
desenvolve em um nível exclusivamente horizontal, pondo em
ligação apenas um grau da realidade. É suiciente notar que a
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Natureza, que o poeta escreve com a letra inicial maiúscula, não
está personalizada mas sacralizada: “La Nature est un temple”
em que está sintetizado o cosmos inteiro, entendido como um
ser vivente. O Poeta é o único que possui a capacidade de compreender a linguagem das correspondências universais. O olhar
poético e simbólico contrapõe-se, assim, ao método cientíico
que tudo analisa e divide, sem nunca alcançar a compreensão
verdadeira da essência do fenômeno, que só se pode entender
através de uma atitude capaz de captar a profunda unidade de
todas as coisas. Uma disposição de alma, portanto, que permite
a Pessoa – e ao Poeta em geral –desvelar no imperceptível, nas
coisas mais banais e diárias, the poetic soul of the universe14.
14. Idem. Páginas Íntimas e de
Auto-Interpretação, 1966, p. 13.
15. Idem. Fernando Pessoa e a
Filosoia Hermética - Fragmentos do
espólio, 1995, p. 32.
16. PESSOA, Fernando. Cartas
astrológicas, 2011, p. 10.
Em um dos fragmentos com o nome “The way of the serpent”, Pessoa individua três camadas da realidade, entre as quais
há uma relação de correspondência exata, em que
tudo que se dá numa camada se relecte e igura em outra.
É este o principio fundamental de toda a ciência secreta, e
assim o representou o Hermes Trismegistos na fórmula, o
que está em cima é como o que está em baixo, e o que está em baixo é
como o que está em cima.15
Como já dissemos, a máxima hermética exprime a possibilidade de unir em uma rede de analogias todos os entes do mundo entre si e airma a conexão entre esferas superiores e esferas
inferiores do cosmos. Pessoa prossegue o fragmento airmando
que o princípio fundamental de Hermes Trismegistos explica
por qual motivo a astrologia consegue ler nas estrelas o destino do indivíduo: é justamente porque os aspectos dos planetas
que estão em relação com o momento do nascimento, ou com
outros eventos signiicativos da vida, possuem um signiicado
simbólico também no mundo terreno que se pode reconhecer
no céu aquilo que se encontra na terra.
No espólio pessoano, há traços evidentes de uma atividade
astrológica muito intensa: cerca de 2.000 documentos16 são dedicados à redação de textos astrológicos, horóscopos, cálculos
astrais e assim por adiante, e demonstram um conhecimento
profundo dos princípios da matéria, digno de um especialista.
De fato, entre os livros que compõem a biblioteca de Pessoa há
obras astrológicas fundamentais, como os manuais de Alan Leo,
alguns textos de H. S. Green e de Sepharial; Bailey, Astrology
and birth control; Charles E. O. Carter, Symbolic directions in modern
astrology; Robert Fludd, Traité d’Astrologie générale; George Wilde,
Your destiny and the stars: the inequalities of man’s lot and the only logical
conception of it e muitos outros.
O interesse de Pessoa pela astrologia remontaria a 1915
– ano em que o poeta está também ocupado na tradução das
obras teosóicas, obras que o levarão a uma crise intelectual
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17. Em uma carta a SáCarneiro, de 1915, Pessoa ao
falar da Teosoia escreve: “O
carácter extraordinariamente
vasto desta religião-ilosoia;
a noção de força, de domínio,
de conhecimento superior e
extra-humano que ressumam as
obras teosóicas, perturbaramme muito.” Idem. Escritos Íntimos,
Cartas e Páginas Autobiográicas,
1986, p. 122.
18. A reconstrução da relação
e da correspondência entre
Crowley e Pessoa podem ser
encontrados no livro: PESSOA,
Fernando e CROWLEY,
Aleister. Encontro Magick.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
Para determinar a inluência
de Crowley sobre a produção
pessoana, vejam-se os ensaios de
Marco Pasi, em particular: PASI,
Marco. Aleister Crowley and the
Temptation of Politics, 2014.
19. PESSOA, Fernando. Cartas
astrológicas, 2011, p. 100.
quase sem precedentes17 –, quando aparece pela primeira vez o
nome de Raphael Baldaya, o heterônimo astrólogo e ocultista.
É atribuído a Baldaya um tratado de astrologia, New Theory of
Astrological Periods, e outros textos de caráter esotérico, como o
Tratado da negação e os Princípios de metafísica esotérica – em que se
encontra uma interessante crítica à própria Teosoia – e alguns
fragmentos relacionados com as Trovas do sapateiro e profeta
Bandarra, acerca de uma interpretação esotérica do sebastianismo e do Quinto Império.
O número de mapas astrais que se encontra no espólio é
algo impressionante: tentando descobrir analogias entre personagens, eventos históricos, mas também entre escritores célebres e ele próprio, Pessoa redigiu os horóscopos de Shakespeare, Goethe, Dante Gabriel Rossetti, Hugo, Chopin, Wilde,
Dickens e Byron; de iguras políticas como Napoleão Bonaparte, Vittorio Emanuele III, Benito Mussolini, António de Oliveira Salazar e também D. Sebastião; e, enim, como de cada coisa
que tenha uma data de início se pode calcular o horóscopo, também a revista Orpheu e Portugal possuem um.
Entre os horóscopos redigidos por Pessoa, há também o
de Aleister Crowley, ocultista que, como já recordámos, pertencia à Golden Dawn e que manteve com o poeta português uma
correspondência cerrada, antes do célebre encontro em Lisboa
e do ictício suicídio do mágico em Cascais. Foi mesmo por
Pessoa ter encontrado um erro no mapa astrológico de Crowley, que se encontra na edição do livro The confessions of Aleister
Crowley de 1929 e que ainda está presente na biblioteca do poeta,
que os dois intelectuais se conheceram18.
Contudo, para Pessoa calcular as inluências astrais não era
apenas uma brincadeira ou um passatempo sem ins especíicos.
No caso de Shakespeare, por exemplo, é evidente que o poeta, ao interpretar o seu mapa astrológico, está tentando achar
coincidências entre o colega inglês e ele próprio – como bem
põe em destaque Paulo Cardoso. Haveria, nos dois horóscopos,
fortes analogias, indicando que o supra-Camões seria o descendente direto do grande dramaturgo:
Algumas correntes de astrologia ligadas à reencarnação
sugerem que este tipo de coincidência pode indicar uma
ligação kármica (ou uma sequência de encarnações) entre
personalidades.19
A tentativa de construir – melhor, descobrir – uma descendência kármica entre si e os seus ilustres predecessores continua, estendendo-se até Milton e Baudelaire. O poeta queria
estabelecer, às vezes com sucesso, as conjunções planetárias no
momento do nascimento e da morte destes artistas, encontrando uma linha direta do destino – isto é, as indicações exatas de
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uma reencarnação – que teria passado por William Shakespeare
para chegar até ele. No dramaturgo inglês, Fernando Pessoa via
a personiicação do gênio e do grau mais elevado da faculdade
poética, como indica em um célebre fragmento sobre os quatro
níveis da expressão poética, desde o mais supericial ao mais
elaborado. Se o poeta principiante se limita a escrever as suas
emoções, reelaborando apenas o próprio sentimento individual,
no segundo grau já se encontrará uma abertura a horizontes
temáticos diferentes e começará a usar ativamente a imaginação.
No terceiro estádio, haverá um primeiro aceno de despersonalização e de perda de individualidade, tendo em vista uma maior
extensão intelectual:
20. Idem. Páginas de Estética e de
Teoria Literárias, 1966, p. 67.
21. Ibidem, p. 67.
22. LOPES, Teresa Rita. Pessoa
por Conhecer – Textos para um Novo
Mapa, 1990, p. 249.
O terceiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, ainda mais intelectual, começa a despersonalizar-se, a
sentir, não já porque sente, mas porque pensa que sente;
a sentir estados de alma que realmente não tem, simplesmente porque os compreende. Estamos na antecâmara da
poesia dramática, na sua essência íntima. O temperamento do poeta, seja qual for, está dissolvido pela inteligência.
A sua obra será uniicada só pelo estilo, último reduto da
sua unidade espiritual, da sua coexistência consigo mesmo.20
O último nível que o poeta pode alcançar é o da poesia
dramática, em que a despersonalização é total e perfeita:
O quarto grau da poesia lírica é aquele, muito mais raro,
em que o poeta, mais intelectual ainda mas igualmente imaginativo, entra em plena despersonalização. Não só sente,
mas vive, os estados de alma que não tem directamente.
Em grande número de casos, cairá na poesia dramática,
propriamente dita, como fez Shakespeare, poeta substancialmente lírico erguido a dramático pelo espantoso grau
de despersonalização que atingiu.21
Já começamos a perceber qual é a motivação que levava
Fernando Pessoa a procurar uma descendência astral entre si
mesmo e William Shakespeare. Se o grau máximo que um poeta
pode aspirar a alcançar é a despersonalização total da alma individual, então quem mais de Fernando Pessoa conseguiu essa
proeza? Com a criação dos heterônimos, o poeta deu vida a um
“great act of intellectual magic, a magnum opus of the impersonal
creative power”22. Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo
Reis representam as etapas de uma transmutação alquímica da
alma poética, como indica claramente o termo magnum opus utilizado por Pessoa, com a plena consciência de quem estudava as
matérias herméticas.
Naturalmente, também os heterônimos têm mapas astrológicos signiicativos. Como airma Paulo Cardoso – não obstante
ter lutado contra os preconceitos, que já referimos, antes que a
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73
23. PESSOA, Fernando. Cartas
astrológicas, 2001, p. 9.
sua teoria fosse aceita – a pratica astrológica, como a hermética,
tiveram uma forte inluência na deinição da poética pessoana:
24. Ibidem, p. 82.
25. WIRTH, Oswald. O
simbolismo hermético na sua relação
com a Franco-maçonaria, 2004, p. 39.
Ao longo destes 34 anos em que tenho lidado com a prática da astrologia, senti o peso do preconceito e da ignorância. Muitas vezes, quando abordei o tema da astrologia
de Fernando Pessoa, percebi que este assunto era olhado
de soslaio, com uma espécie de aceitação condescendente.
[...] Com o passar dos anos, consegui reunir as provas de
que a astrologia tinha servido de veículo de conhecimento
e de ilosoia orientadora ao homem, ao escritor; e que ela
tinha sido, também, um instrumento útil, estrutural e até
determinante na criação dos heterónimos.23
Ao analisar os horóscopos de Caeiro, Reis e Campos, descobrimos logo que possuem um elemento astral em comum muito
signiicativo, que não é de modo nenhum casual: Pessoa tinha
tentado várias combinações, com datas de nascimento e horários diferentes, antes de encontrar a conjunção planetária certa.
Os três heterônimos “têm Mercúrio (símbolo dos irmãos) exatamente na mesma Casa astrológica, a VIII” – Casa que “remete
para o oculto, para a transcendência, para as iniciações secretas”24.
Mercúrio, em astrologia, governa a esfera do pensamento e está relacionado com o deus grego Hermes, mensageiro
dos deuses (Platão, no Crátilo, faz derivar o nome Hermes do
termo ἑρμηνεία, que signiica interpretação. A hermenêutica,
isto é, a prática ilosóica da interpretação, teria a sua raiz na
mesma palavra). Uma das características de Hermes é de ser
psicopompo, ou seja, de acompanhar os defuntos no mundo
dos infernos, sendo uma espécie de guia das almas. Na literatura
hermética, Hermes tem um papel de especial relevância:
corresponde ao deus egípcio Thot, escriba dos deuses, divindade
relacionada com a sabedoria e a magia, e que Platão indica como
pai da escrita. Em seguida, Hermes/Thot foi identiicado como
o autor do Corpus Hermeticum, ou seja, Hermes Trismegistos,
cujo epíteto elogiador signiica “três vezes grande”. Em latim,
é chamado Mercurius ter Maximus e é o protetor da astrologia, da
alquimia, das ciências ocultas e da iniciação em geral.
Em alquimia, o mercúrio como elemento químico tem uma
importância fundamental:
O Mercúrio dos Sábios representa, por excelência, o estímulo
de toda vitalidade, o luido universal que penetra todas as
coisas e une a todos os seres com os laços de uma segreda
simpatia. É pelo seu intermédio que se realizam as operações mágicas e mais especiicamente os milagres da medicina oculta.25
Portanto, quando Pessoa tenta fazer coincidir nos horóscopos dos seus heterônimos Mercúrio na Casa VIII (e faz isso
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conscientemente, pois o poeta conhecia muito bem o signiicado deste planeta na ilosoia hermética), é para “criar uma
espécie de fraternidade astral”26 e iniciática entre eles e o seu próprio criador: “Pessoa, ele mesmo, tinha como planeta regente
Mercúrio, sendo pois frater desta congregação”27. Para além de
estabelecer uma natural inclinação para as ciências ocultas, esta
concordância mercurial indica alquimicamente que nos heterônimos se exprime a totalidade das possibilidades latentes da
sua matéria prima, isto é, do poeta Pessoa. Paulo Cardoso pôs
também em evidência que o ascendente de cada heterônimo
pertence a um dos quatros elementos naturais (água, fogo, terra
e ar) e que portanto se pode concluir que
26. PESSOA, Fernando. Cartas
astrológicas, 2001, p. 14
27. Ibidem, p. 82.
28. Ibidem, p. 14.
29. BRUNO, Giordano, Opere
magiche, 2000, p. 231.
a família heteronímica detinha a plenitude dos princípios
fundamentais da ilosoia ancestral; e que constituía, em
suma e simbolicamente, algo de absoluto e indivisível.
Os quatro poetas eram, em si, todo um universo.28
O que importa no presente ensaio não é tanto atestar e
avaliar as capacidades práticas e os conhecimentos de Pessoa
como astrólogo (trabalho que Paulo Cardoso já fez com muita
competência no seu estudo citado várias vezes ao longo destas páginas), mas sim demostrar como ele retoma de maneira
consciente uma sabedoria antiga e utiliza as suas ferramentas
para dar sentido à sua poética. A concepção do mundo pessoana remonta a uma tradição mágica em que todos os entes
estão entrelaçados entre si, formando uma rede de signiicados
que permite, como já dissemos, interpretar o cosmos de maneira simbólica e encontrar a unidade que se esconde por detrás da fragmentação da vida. Nada no universo morre, porque
existem apenas laços que se dissolvem e voltam a aparecer em
outras combinações29 – justiicação pela qual Pessoa pôde calcular, por exemplo, as inluências astrais no mapa astrológico de
Shakespeare, encontrando analogias consigo próprio.
Naturalmente, isto não quer dizer que a chave de leitura
mágico-astrológica seja a única possível para interpretar a obra
pessoana. Pelo contrário, ao descobrirmos também este aspecto, percebemos quantas camadas – além da literária – tem a criação poética do escritor português e quanto é necessário evitar
excluir algumas delas só em função de preconceitos supericiais,
que impedem uma compreensão total e completa do seu pensamento. Evidentemente, seria impossível exaurir o universo esotérico pessoano no espaço de poucas páginas – também não era
esta a nossa intenção. Contudo, queremos airmar que a constelação-Pessoa inclui também o Pessoa-astrólogo, o mágico, o
ocultista e o ilosofo hermético. Uma consideração mais atenta
e cientíica destas temáticas permitiria avançar na interpretação
da obra pessoana, devolvendo inalmente valor a um dos seus
aspectos mais subestimados e menosprezados.
Universidade Federal de Santa Catarina - 2º Semestre de 2015. —
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