- Sociedade Brasileira de Sociologia

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SBS - XII Congresso Brasileiro de Sociologia
GT23 - Teoria Sociológica
A SOCIOLOGIA DE DURKHEIM
Lindijane de Souza Bento Almeida – UFRN
Ivaneide Oliveira da Silva - UFRN
I - INTRODUÇÃO
Por se tratar de um autor clássico do pensamento sociológico, a leitura da obra de
Émile Durkheim é uma obrigação para todos aqueles que se interessam pelas Ciências
Sociais. O presente estudo tem por objetivo analisar alguns aspectos da obra de Durkheim,
levando em conta a sua percepção acerca da teoria sociológica, da teoria do conhecimento e
do proceder metodológico. Trata-se, portanto, de uma investigação que se propõe a discutir
de maneira geral algumas das questões centrais de um dos principais clássicos das Ciências
Sociais.
Este estudo focalizará as obras principais do pensamento de Durkheim: De la
division du travail social, Les règles de la méthode sociologique e Les formes élémentaires de
la vie religieuse. A partir destas obras pretende-se demonstrar os conceitos fundamentais
trabalhados pelo autor, bem como reconstituir a evolução do seu pensamento, dando ênfase a
sua posição metodológica.
Na concepção de Boudon, Durkheim é sem dúvida, de todos os sociólogos
clássicos, aquele que ficou mais presente na sociedade contemporânea, e o rosto que ele dá à
Sociologia, a metodologia que ele elabora são sempre reivindicados pela comunidade
científica de sociólogos como um bem comum. (Boudon, 1999: p.469) Isto significa dizer que
os sociólogos têm por obrigação possuir o conhecimento das contribuições de Durkheim, ou
seja, da concepção durkheimiana de sociologia.
Émile Durkheim viveu o final do século XIX e começo do século XX. Nasceu, a
15 de abril de 1858, em Épinal, Departamento de Vosges, que fica exatamente entre a Alsácia
e a Lorena. Durkheim morreu em 5 de novembro de 1917. Pertencia a uma família judia, seu
pai era rabino e ele próprio teve seu período de misticismo, tornando-se porém agnóstico após
2
a ida para Paris. Durkheim presenciou uma série de acontecimentos marcantes, que se
refletem diretamente nas suas obras, questões políticas, sociais e econômicas que se
apresentavam no seu tempo. Um período marcado pela consolidação da oposição entre o
capital e o trabalho, o que gerava uma série de conflitos denominados "as questões sociais".
Portanto, ele foi um homem que assistiu ao advento e à expansão do capitalismo monopolista
e aos novos e marcantes acontecimentos políticos representados pela Primeira Guerra
Mundial.
Na École Normale Supérieure, Durkheim teve a oportunidade de conhecer alguns
homens que marcaram sua época. Como Jaurès, Bergson e dois de seus professores, Fustel de
Coulanges e Émile Boutroux, os quais ele tinha uma profunda admiração, pois exerceram
influência no afeiçoamento dos seus interesses.
Quatro pensadores cujas obras impressionaram Durkheim nesse tempo foram
Spencer, Renouvier, Kant e Auguste Comte. Durkheim é, por formação, um filósofo de
universidade francesa, e coloca no centro da sua reflexão a necessidade do consenso social.
Durante o período em que ensinou Filosofia em vários liceus, na França, voltou seu interesse
para a Sociologia.
Por motivo de oferta de ensino regular dessa disciplina foi para a
Alemanha onde teve conhecimento da obra de Simmel, Dilthey e Tönnies. Em 1887 a 1902,
ele ministrou as aulas de Pedagogia e Ciência Social na Faculté de Lettres de Bordeaux.
Nesse período, Durkheim produziu as suas teses de doutoramento: De la division du travail
social e Montesquieu et Rousseau, précurseurs de la Sociologie. Em 1896, fundou uma
grande revista a L'Année Sociologique, a qual demonstra sua intensa atividade intelectual. A
chamada Escola Sociológica Francesa foi fundada por Durkheim, no final do século XIX na
França. Em Paris, foi nomeado assistente de Buisson na cadeira de Ciência da Educação na
Sorbonne, em 1902. E, em 1910, conseguiu transformá-la em cátedra de Sociologia.1 Enfim,
Durkheim foi o mais notável sociólogo francês de seu tempo e seu trabalho intelectual, seu
projeto sociológico, o demonstra.
1
Dados retirados do livro "Durkheim: Sociologia", organizado pelo professor José Albertino Rodrigues e
coordenado pelo sociólogo Florestan Fernandes; e do livro de Raymond Aron "As etapas do pensamento
sociológico."
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II - CONCEPÇÃO SOCIOLÓGICA
A preocupação central de Émile Durkheim era demonstrar que existe uma
especificidade do social, e que era necessário emancipar a Sociologia (a qual se caracteriza
como a ciência dos fenômenos sociais) das outras ciências do homem e, em especial, da
Psicologia. Para Durkheim, a Sociologia se apresenta como uma ciência independente das
outras ciências, à medida que possui seu próprio objeto e método. Como dentro da tradição
positivista de delimitar claramente os objetos das ciências para melhor situá-las no campo do
conhecimento, Durkheim aponta um reino social, com individualidade distinta dos reinos
animal e mineral. Trata-se de um campo com caracteres próprios e que deve por isso ser
explorado através de métodos apropriados. (Rodrigues, 1998: p.18) Isto significa dizer que a
Sociologia constitui uma ciência entre as outras ciências do homem, e que tem um objeto
claramente definido e um método para estudá-la. O objeto são os fatos sociais; o método é a
observação e a experimentação indireta, em outros termos, o método comparativo. (id., ibid.,
p.19) Portanto, para Durkheim, a sociedade por constituir uma realidade sui generis, deveria
ser estudada, descrita e explicada como um domínio separado.
De um modo geral, na concepção de ciência de Durkheim, a primeira iniciativa
para a constituição de uma sociologia científica era determinar seu objeto (Fato Social) e seu
método (método comparativo).
Pode-se dizer que Durkheim apresenta uma posição
metodológica estritamente sociológica, no sentido de que sua teoria se caracteriza como um
esforço voltado para a busca de regularidades que são próprias do "reino social" e que
permitem explicar os fenômenos que ocorrem nesse meio sem precisar tomar explicações
emprestadas de outros reinos. (id., ibid., p.26)
Durkheim escreveu quatro obras de significativa importância para as Ciências
Sociais, à medida que servem hoje de ponto de partida para todos aqueles que se interessam
pelo estudo das Ciências Humanas, em especial, pela Sociologia. No seu primeiro livro, Da
divisão do trabalho social (1893), Durkheim procurou desenvolver uma análise demonstrando
suas concepções básicas e sua preocupação dominante de apresentar um trabalho sociológico
científico, na medida em que possuía o mesmo padrão de observação e explicação vigente nas
ciências naturais. No seu segundo livro, As regras do método sociológico (1895), Durkheim
pretendeu demonstrar que a Sociologia é uma ciência autônoma e distinta, que tem um objeto
definido e um método para estudá-la. Tratou-se, portanto, de um esforço sistemático com
vistas à elaboração de uma "teoria da investigação sociológica". Já o terceiro, O Suicídio
(1897), se caracteriza como uma análise de um fenômeno considerado patológico, com a
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preocupação de demonstrar a influência das desordens sociais sobre o indivíduo. Em seu
quarto livro, As formas elementares da vida religiosa (1912), ele procurou desenvolver uma
investigação das características essenciais da ordem religiosa, buscando encontrar nas
sociedades mais simples o segredo essencial das sociedades humanas. A última fase teóricometodológica de Durkheim, culminou com a publicação desta obra, de significativa
importância por apresentar os primeiros delineamentos da sociologia do conhecimento, a qual
através do estudo das religiões primitivas (o totemismo) pode-se verificar como os homens
encaram a realidade e constituem uma certa concepção do mundo, que tem como resultado o
consenso social.
Pode-se dizer que Durkheim apresenta um estilo de expressão que demonstra
alguns aspectos peculiares, que se faz necessário lembrar. Durkheim é altamente polêmico,
que resulta do seu interesse em demonstrar que a Sociologia é uma ciência com realidade
própria, independente, objetiva e, exclusivamente, sociológica. Por outro lado, apresenta
certos conceitos cruciais à compreensão de seu pensamento: consciência coletiva, embora
empregado com mais ênfase em Da divisão do trabalho; representações coletivas;
solidariedade social, mecânica e orgânica; fato social; coerção; anomia; moral; e consenso.
As suas obras demonstram uma explicação em termos estritamente sociológico,
como se percebe em Da divisão do trabalho social, cuja explicação é sociológica à medida
que a sociedade está acima do indivíduo. Ou seja, o seu objetivo é demonstrar como o
volume e a densidade da população diferenciam o tipo de solidariedade, a qual passa de
solidariedade mecânica à solidariedade orgânica. Segundo Aron, o tema deste primeiro livro
é central no pensamento do autor: as relações entre os indivíduos e a coletividade. Como
pode uma coleção de indivíduos constituir uma sociedade? Como se chega a esta condições
da existência social que é o consenso? A esta pergunta fundamental Durkheim responde
distinguindo duas formas de solidariedade: a solidariedade dita mecânica e a orgânica.
(Aron, 1999: p.287)
Através da função da divisão do trabalho, que se constitui em promover entre duas
ou mais pessoas um sentimento de solidariedade, Durkheim desenvolve sua análise
demonstrando que nas sociedades existem uma solidariedade social que é resultado da divisão
do trabalho. Ele procurou demonstrar que a divisão do trabalho produz a passagem da
solidariedade mecânica à solidariedade orgânica. Isto ocorre pelo fato das sociedades se
desenvolverem ao longo do tempo.
Na concepção de Durkheim, o estudo da solidariedade pertence ao domínio da
Sociologia, por se tratar de um fato social que só pode ser bem conhecido por intermédio de
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seus efeitos sociais. (Durkheim, 1999: p.34) Como a solidariedade social é um fenômeno
totalmente moral, que por si, não se presta à observação exata, é necessário substituir o fato
interno que nos escapa por um fato externo que o simbolize e estudar o primeiro através do
segundo. Esse símbolo visível é o direito. (id., ibid., p.31)
Isto significa dizer que Durkheim a partir do direito demonstra os tipos de
solidariedade que estão presente nas sociedades. Para tanto, ele divide as regras jurídicas em
duas grandes espécies, de acordo com sanções repressivas organizadas ou sanções apenas
restitutivas.
A primeira compreende todo o direito penal; e a segunda, o direito civil,
comercial, processual, administrativo e constitucional.
Em linhas gerais, o que Durkheim pretende demonstrar é que o direito repressivo
revela a consciência coletiva nas sociedades de solidariedade mecânica, à medida que se trata
de punir (com repressão) quem realizar algum crime, ato proibido pela consciência coletiva; e
o direito restitutivo é a forma de direito característica das sociedades de solidariedade
orgânica, no sentido de que procura restabelecer o estado das coisas como deve ser de acordo
com a Justiça.
A solidariedade mecânica é uma solidariedade que deriva das semelhanças,
vinculando o indivíduo à sociedade. Quando esta forma de solidariedade predomina numa
sociedade os indivíduos se assemelham, na medida em que eles têm os mesmos sentimentos,
os mesmos valores, ou seja, a personalidade individual é absorvida na personalidade coletiva.
Isto significa dizer que a consciência coletiva abrange a maior parte das consciências
individuais.
A outra forma de solidariedade, a orgânica, é aquela em que os indivíduos se
diferenciam um dos outros, e são ligados uns aos outros porque exercem funções no interior
da sociedade. É nesta forma de solidariedade que se apresenta a divisão do trabalho.
Para Durkheim, as sociedades primitivas ou arcaicas se caracterizam pela
prevalência da solidariedade mecânica, porque cada indivíduo é o que são os outros; na
consciência de cada um predominam, em número e intensidade, os sentimentos comuns a
todos, os sentimentos coletivos. (Aron, 1999: p.288)
Nesta forma de sociedade, é a
semelhança que gera a solidariedade. Já nas sociedades em que a solidariedade orgânica é
muito desenvolvida — gerada pela divisão do trabalho — a consciência coletiva tornava-se
mais fraca, e mais vaga à medida que a divisão do trabalho se desenvolvia. (Durkheim, 1999:
p.283)
Portanto, pode-se dizer que a consciência coletiva, que consiste no conjunto das
crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade, forma um
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sistema determinado que tem vida própria (id., ibid., p.50), se apresenta com maior ou menor
extensão de acordo com as sociedades.
Nas sociedades de solidariedade mecânica a
consciência coletiva se apresenta muito forte, o que se observa a partir do rigor dos castigos
impostos aos que violam as proibições sociais. Ao contrário, nas sociedades de solidariedade
orgânica, a consciência coletiva se manifesta de forma mais reduzida, à medida que se
percebe um enfraquecimento das reações coletivas contra a violação das regras sociais, e uma
maior liberdade dos indivíduos.
III - A TEORIA DO CONHECIMENTO
Uma das maiores contribuições que oferecem As Formas Elementares da Vida
Religiosa2 refere-se à Epistemologia. Durkheim, como filósofo conhecia os problemas sutis
da teoria do conhecimento. Especificamente, se interessava pelas chamadas categorias do
entendimento: as idéias de tempo, espaço, número, causa, e assim por diante.
Partindo da discórdia entre racionalistas e empiristas, no que tange essas
categorias, Durkheim a partir da análise do totemismo apresenta uma teoria sociológica do
conhecimento, a qual fornece o meio para superar a oposição entre essas doutrinas filosóficas,
que interpretavam de forma diferente a origem das categorias do entendimento. Para os
empiristas, as categorias seriam construídas feitas de peças e pedaços, e o indivíduo seria o
operário desta construção. Ao contrário, para os aprioristas as categorias não podem ser
derivadas da experiência: elas lhe são logicamente anteriores e a condicionam.
São
representadas como tantos dados simples, irredutíveis, imanentes ao espírito humano em
virtude da sua constituição nativa (Durkheim, 1983, p.214) Isto significa dizer que para os
empiristas as categorias são construídas pela mente após a experiências dos objetos do mundo
externo; e para os aprioristas as categorias seriam anteriores a toda experiência e parte
inerente da mente humana.
Frente a essa discussão, Durkheim apresenta a natureza essencialmente social das
categorias. Ele parte do princípio de que:
...se se admite a origem social das categorias, uma nova atitude
torna possível, permitindo escapar destas dificuldades
2
Nesta obra, Durkheim teve por objetivo elaborar uma teoria geral das religiões, tendo como base o estudo do
totemismo, o qual apresenta uma descrição e uma análise completa do sistema de clãs e do totemismo da
Austrália.
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contrárias. (...)
As categorias são representações
essencialmente coletivas, elas traduzem antes de tudo estados
da coletividade: dependem da maneira pela qual esta é
constituída e organizada, de sua morfologia, de suas
instituições religiosas, morais, econômicas, etc. A sociedade é
uma realidade sui generis, ela tem seus caracteres próprios que
não se reencontram, ou não se reencontram sob a mesma forma,
no resto do universo. As representações que a exprimem têm,
portanto, um conteúdo completamente diferente que as
representações puramente individuais e pode-se de início estar
seguro de que as primeiras acrescentam alguma coisa as
segunda. As representações coletivas são o produto de uma
imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas
no tempo. (id., ibid., p.216)
Na concepção de Durkheim, somente pela admissão das origens sociais das
categorias pode evitar-se a inaceitável dualidade filosófica. Ou seja, se as categorias são
representações coletivas, são superáveis as objeções às posições clássicas.
Pode-se dizer que Durkheim ao apresentar a sociedade como uma realidade sui
generis, passa a delimitar o campo do conhecimento da Sociologia. Para ele, a sociedade é a
síntese gerada pela associação dos indivíduos, a qual produz uma realidade que apresenta
existência e concretudes próprias, independente das motivações individuais. Dessa forma, a
realidade social é como um plano independente, com regras e dinâmicas próprias.
É
precisamente nesta perspectiva que Durkheim diz que a sociedade era uma realidade sui
generis.
A posição assumida por Durkheim partia do princípio de que é o todo (a
sociedade) que deve explicar a parte (o indivíduo). Isto significa dizer que, nas análises
formuladas pelo autor, os indivíduos eram explicados pela sua posição no sistema. Em outras
palavras, o entendimento do indivíduo só era possível via sociedade. Portanto, a sociedade (o
reino social) se apresentava como o campo de investigação exclusivamente sociológico. Este
tem seu objeto, que são os fatos sociais, e seu método de investigação, o método comparativo,
que segundo o autor é o único que convém a Sociologia.
Na visão do autor, a necessidade das categorias do entendimento vem do fato de
que o homem é um ser social, que vive em sociedade. As categorias exprimem as relações
mais gerais que existem entre as coisas, ultrapassando em extensão todas as nossas outras
noções, elas dominam todo o detalhe de nossa vida intelectual. Portanto, se a cada momento
do tempo os homens não se entendessem sobre as idéias essenciais, se eles não tivessem uma
concepção homogênea de tempo, do espaço, da causa, do número etc, todo acordo entre as
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inteligências tornar-se-ia impossível e, por conseguinte, toda a vida comum. (id., ibid., p.217)
Dessa forma, as categorias são coisas sociais, à medida que não é meu tempo; é o tempo tal
como ele é objetivamente pensado por todos os homens de uma mesma civilização, o mesmo
acontece com as demais categorias. Assim, como idéias sociais impõem-se aos indivíduos,
pois são "necessárias" no sentido de que sem elas se tornaria impossível um contato entre as
mentes humanas.
Partindo desta análise, pode-se dizer que a religião é definida por Durkheim como
uma coisa eminentemente social, no sentido em que as representações religiosas são
representações coletivas que exprimem realidades coletivas. Disso resulta que as categorias
são coisas sociais, porque elas são de origem religiosa, produto do pensamento coletivo, por
sua vez, social. Durkheim diz que as categorias são coisas sociais porque elas são conceitos,
os quais são construídos socialmente, são representações coletivas, universais, imutáveis e
impessoais (são através delas que as inteligências humanas se comunicam). De acordo com o
autor:
como elas [as categorias] exprimem as condições fundamentais
do entendimento entre os espíritos, parece evidente que não
puderam ser elaborados senão pela sociedade (...) o papel das
categorias é o de envolver todos os outros conceitos, a
categoria por excelência parece dever ser o próprio conceito de
totalidade (...) Porque o mundo que exprime o sistema total dos
conceitos é aquele que a sociedade se representa, apenas a
sociedade pode fornecer-nos as noções mais gerais, segundo as
quais deve ser representado. (id., ibid., p.241)
A solução durkheimiana ao problema das categorias conserva aspectos tanto do
empirismo quanto do apriorismo.
Do empirismo conserva a postura positivista, a qual
colocava a questão do pensamento como pertencente ao mundo real; e do apriorismo a
irredutibilidade da razão à experiência.
Portanto, as categorias — as quais traduzem a
organização social — são construídas pela sociedade, ou seja, a sociedade é a fonte do
pensamento lógico. De acordo com Durkheim, a teoria do conhecimento parece portanto
chamada a reunir as vantagens contrárias das duas teorias rivais sem ter seus
inconvenientes. Ela conserva todos os princípios essenciais do apriorismo; mas ao mesmo
tempo, se inspira neste espírito de positividade ao qual o empirismo se esforçava em
satisfazer. (id., ibid., p.218).
Assim, pode-se dizer que a teoria do conhecimento apresentada por Durkheim
revela à Sociologia uma nova maneira de explicar o homem. Ou seja, através dessa nova
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postura — a qual reconhece que acima do indivíduo existe a sociedade e que esta é um
sistema de forças atuantes — torna-se possível uma outra forma de compreender a realidade.
IV - PROCEDIMENTO METODOLÓGICO
As Regras do Método Sociológico, constitui a obra de Durkheim que tem um
caráter exclusivamente metodológico, voltada para a investigação e explicação do social.
Para ele, os sociólogos se mostram pouco preocupados em caracterizar e definir o método
essencialmente sociológico. Para isto, sua obra, anteriormente citada, se apresenta como um
método próprio da Sociologia, ou seja, voltado para as análises que são próprias da sociedade.
O autor pretendeu desenvolver uma espécie de "manual" para o sociólogo, o qual destaca
algumas regras que são fundamentais para quem quer que se interesse em realizar uma análise
de caráter eminentemente sociológico.
Antes de demonstrar as regras, faz necessário dizer que a concepção da sociologia
de Durkheim se baseia em uma teoria do fato social. O objetivo é demonstrar que pode e
deve existir uma Sociologia objetiva e científica. Como vimos o objeto é o fato social, o qual
se caracteriza como objeto específico da Sociologia, e por ser observado e explicado de modo
semelhante ao que acontece com os fatos observados e explicados pelas Ciências Naturais.
Segundo Durkheim:
os fatos sociais consistem em maneira de agir, de pensar e de
sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder
de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele. Por
conseguinte, eles não poderiam se confundir com os fenômenos
orgânicos, já que consistem em representações e em ações;
nem com os fenômenos psíquicos, os quais só têm existência na
consciência individual e através dela. Esses fatos constituem
portanto uma espécie nova. (Durkheim, 1995: p.3).
Para ele, os fatos sociais não são todos os fenômenos que se passam no interior da
sociedade, porque os fatos sociais existem fora das consciências individuais, são fatos
exteriores ao indivíduo e dotados de um poder coercitivo.
Durkheim apresenta alguns
exemplos do nosso cotidiano para demonstrar a especificidade do fato social.
Os fatos sociais não se caracterizam apenas por sua exterioridade em relação às
consciências individuais e por exercer uma ação coercitiva sobre os indivíduos, mas também
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pela sua generalidade. Durkheim diz que um fenômeno só pode ser coletivo se for comum a
todos os membros da sociedade ou, pelo menos, à maior parte deles, portanto, se for geral.
Certamente, mas, se ele é geral, é porque ele é coletivo (...) o que é bem diferente de ser
coletivo por ser geral. (id., ibid., p.9) Por fim, caracteriza-se por existir independentemente
das formas individuais que assume ao difundir-se. Frente a essas características do fato
social, pode-se apresentar a sua definição mais elaborada dos fatos sociais.
Segundo
Durkheim, é fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o
indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de
uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas
manifestações individuais. (id., ibid., p.13)
Frente a esta definição de fato social, pode-se demonstrar algumas das regras
apresentadas por Durkheim para os sociólogos realizarem trabalhos de caráter exclusivamente
sociológico, ou seja, objetivo e científico. A primeira regra destacada por Durkheim e a mais
fundamental consiste em considerar os fatos sociais como coisas. Os fenômenos sociais são
coisas e devem ser tratados como coisas. (id., ibid., p.28) Para ele, é coisa tudo o que se
oferece à observação. O que Durkheim pretende ao considerar os fatos sociais como coisas é
chamar a atenção do sociólogo para que este se coloque no mesmo estado de espírito dos
físicos, quando se lançam numa região ainda inexplorada de seu domínio científico. Isto é, o
sociólogo, ao penetrar no mundo social, deve partir do princípio de que penetra no
desconhecido.
Para assegurar a realização prática da presente regra Durkheim apresenta três
regras principais, corolários da regra precedente. O primeiro corolário, se refere a ruptura
com as prenoções, base de todo método científico. Durkheim foi um sociólogo de extremo
rigor metodológico, à medida que uma das suas preocupações centrais na produção do
conhecimento era descartar sistematicamente todas as prenoções.
O segundo, ensina o
sociólogo a escapar ao domínio das noções vulgares, para dirigir sua atenção aos fatos, o
sociólogo deve iniciar definindo as coisas de que ele trata, para conhecer bem o que está em
questão. Dessa forma, jamais tomar por objeto de pesquisas senão um grupo de fenômenos
previamente definidos por certos caracteres exteriores que lhe são comuns, e compreender na
mesma pesquisa todos os que correspondem a essa definição. (id., ibid., p.36) Portanto, para
Durkheim, a ciência para ser objetiva deve partir da sensação, mas o sociólogo deve tomar as
mesmas precauções que o físico, porque os caracteres exteriores em funções dos quais ele
define o objeto de suas pesquisas devem ser tão objetivos quanto possível.
O terceiro
corolário diz que quando, portanto, o sociólogo empreende a exploração uma ordem
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qualquer de fatos sociais, ele deve esforçar-se em considerá-los por um lado em que estes se
apresentem isolados de suas manifestações individuais. (id., ibid., p.46)
As demais regras apresentadas por Durkheim para a investigaçãao dos fenômenos
sociais são:
1) Um fato social é normal para um tipo social determinado,
considerado numa fase determinada de seu desenvolvimento,
quando ele se produz na média das sociedades dessa espécie,
considerados na fase correspondente de sua evolução.
2) Os resultados do método precedente podem ser verificados
mostrando-se que a generalidade do fenômeno se deve às
condições gerais da vida coletiva no tipo social considerado.
3) Essa verificação é necessária quando esse fato se relaciona a
uma espécie social que ainda não consumou sua evolução
integral. (id., ibid., p.65)
Em relação ao princípio de classificação, Durkheim partia da concepção de que
deve-se iniciar por classificar as sociedades de acordo com o grau de composição que elas
apresentam, tomando por base a sociedade perfeitamente simples ou de segmento único.
Na concepção de Durkheim, ao mesmo tempo que é finalista, o método seguido
geralmente pelos sociólogos é essencialmente psicológico, e só são aplicados aos fenômenos
sociológicos desnaturando-os.
Assim, descartando o indivíduo, Durkheim apresenta a
sociedade. Para ele, é na natureza da própria sociedade que se deve buscar a explicação da
vida social, porque ela supera infinitamente o indivíduo. Em virtude desse princípio, a
sociedade não é uma simples soma de indivíduos, mas o sistema formado pela associação
deles representa uma realidade específica que tem seus caracteres próprios. (id., ibid., p.106)
Este é o ponto principal do pensamento metodológico de Durkheim.
A partir dessas
observações pode-se apresentar à seguinte regra: a causa determinante de um fato social deve
ser buscada entre os fatos sociais antecedentes, e não entre os estados da consciência
individual. (id., ibid., p.112). De acordo com o autor, foi por terem os sociólogos ignorado
essa regra e considerado os fenômenos sociais de um ponto de vista demasiado psicológico,
que suas teorias apresentam-se distantes da natureza especial das coisas que eles crêem
explicar.
Em linhas gerais, estas regras apresentadas por Durkheim se constituem o centro
do seu pensamento metodológico, o qual se caracteriza na sua afirmação fundamental que a
sociedade é uma realidade de natureza diferente das realidades individuais, e que a Sociologia
tem como objeto os fatos sociais, os quais devem ser tratados como coisas e explicados da
mesma forma como os especialistas das ciências da natureza explicam os fenômenos naturais.
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Para tanto, ele expressa seu método através dessas regras com a finalidade de "ensinar" ao
sociólogo os passos corretos de se fazer ciência.
V - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos que a preocupação de Durkheim era demonstrar que a Sociologia se
constituía numa disciplina autônoma. Afirmava que esta possuía seu próprio campo de
aplicação (a sociedade), e as suas obras ilustram o seu esforço em mostrar que a Sociologia
tinha seu objeto de estudo, bem como métodos próprios.
Dessa forma, pode-se dizer que Durkheim apresentava uma posição metodológica
estritamente sociológica, à medida em que seu principal interesse foi destacar a especificidade
do social. Nisto implica sua teoria sociológica expressa a partir de suas obras. Em Da divisão
do trabalho social, ele procurou demonstrar a explicação de um fato social (a divisão do
trabalho) por outro fato social (o volume e a densidade das sociedades), tendo como problema
central demonstrar a passagem (a evolução) da solidariedade mecânica à solidariedade
orgânica.
Em As formas elementares Durkheim teve como objetivo principal o estudo das
religiões. Ele também apresenta uma solução para o problema entre as doutrinas filosóficas
(empiristas e aprioristas) no que se refere as categorias do entendimento. A origem social, a
necessidade, a universalidade, bem como a coerção externa que as categorias exercem sobre
os indivíduos, os quais são obrigados a aceitá-las porque são necessárias na medida em que
possibilita o contato entre as mentes humanas, constituem argumento contra as posições
acima mencionadas.
Como na concepção de Durkheim, em As regras do método, os sociólogos pouco
se preocuparam em caracterizar e definir o método próprio à explicação dos fenômenos
sociais, ele foi levado a elaborar um método próprio à Sociologia, o qual considerava mais
definido e mais adaptado para serem utilizados pelos sociólogos, quando estes fossem
desenvolver um estudo sociológico. Em síntese, as características do seu método sociológico
são: em primeiro lugar, ele é independente de toda filosofia (...). Em segundo lugar, é
objetivo. Ele é inteiramente dominado pela idéia de que os fatos sociais são coisas e como
tais devem ser tratados (...). É um terceiro traço característico o de ser exclusivamente
sociológico. (Durkheim, 1995: pp.145-149)
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Portanto, Durkheim partia do princípio de que o fato social se apresenta como o
elemento básico e decisivo para a explicação dos fenômenos que se encontram na sociedade;
que o social só se explica pelo social; e que a sociedade é um fenômeno sui generis,
independente das manifestações individuais. Estes são os aspectos principais da sociologia
durkheimiana.
Na concepção de José Pais, cem anos após a publicação das Regras do método
sociológico o que devemos fazer é nos questionar sobre os caminhos, os desafios e o estatuto
epistemológico do conhecimento sociológico. Isto significa dizer que se, com Durkheim, a
Sociologia procurava ver como a sociedade se traduzia na vida dos indivíduos, gradualmente
a focagem tem-se orientado no sentido de ver a sociedade ao nível dos indivíduos. Na
sociologia durkheimiana o indivíduo é sempre um agente socializado e as "leis sociais"
repousam numa "moralidade" que tende a adequar/subordinar o indivíduo ao corpo
doutrinal da sociedade. As regras do método são regras de uma sociologia hipersocializada.
Em contrapartida, a sociologia contemporânea repousa numa concepção hipossocializada do
indivíduo. (Pais, 1996: pp.96-97) Pode-se dizer que o Individualismo Metodológico —
doutrina segundo a qual todos os fenômenos sociais são explicáveis apenas em termos de
indivíduos em suas ações, relações e interações com os outros indivíduos — se apresenta
como uma das novas teorias do pensamento sociológico.
Diante desse panorama, pode-se dizer que Durkheim ocupa lugar de relevo na
sociologia, e é tratado com sumo respeito pelos sociólogos, porque a sua obra sociológica
marcou a etapa mais decisiva na consolidação acadêmica da Sociologia, como um novo
campo do saber. Assim, são de grande importância as contribuições de Durkheim para a
metodologia das Ciências Sociais.
Contudo, o reconhecimento da importância das
contribuições de Durkheim à sociologia não significa que aderimos a todas as suas propostas,
mas que como sociólogo temos a obrigação de conhecermos tanto a teoria quanto a
metodologia durkheimiana.
Parafraseando Rodrigues: o fato importante a ressaltar é que a Sociologia só se
desenvolve e se completa na medida em que assimila as contribuições de seus grandes
mestres. (Rodrigues, 1998: p.34).
VI - BIBLIOGRAFIA
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
14
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