ECOLOGIA SOCIAL TEXTOS E TRECHOS DE BOOKCHIN + ANEXOS seleção canto libertário www.cedap.assis.unesp.br/cantolibertario/textos/textos.html compilação e diagramação juno www.incandescencia.org autoram murray bookchin j. m. carvalho ferreira manuel portela joão freire mimmo pucciarelli andré gorz victor fucks você pode requerer um arquivo odt editável deste documento através do e-mail [email protected] ECOLOGIA E PENSAMENTO REVOLUCIONÁRIO Condensado e adaptado de "Ecology and Revolutionary Thought". Em "Post-Scarcity Anarchism" Uma das características da Ecologia é a de não estar perfeitamente contida no nome - cunhado por Haeckel, em 1866, para indicar a "investigação da totalidade das relações do animal tanto com seu ambiente inorgânico como orgânico". No entanto, concebida de maneira ampla, a Ecologia lida com o equilíbrio da natureza. Visto que a natureza inclui o homem, esta ciência trata da harmonização da natureza e do homem. Esta abordagem, mantida em todas as suas implicações, conduz às áreas do pensamento social anarquista. Em última análise, é impossível conseguir a harmonização do homem com a natureza sem criar uma comunidade que viva em equilíbrio permanente com o seu meio ambiente. As questões com que a Ecologia lida são permanentes: não se pode ignorálas sem pôr em risco a sobrevivência do homem e do próprio planeta. No entanto, hoje, a ação humana altera virtualmente todos os ciclos básicos da natureza e ameaça solapar a estabilidade ambiental em todo o mundo. As sociedades modernas, como as dos Estados Unidos e Europa, organizam-se em torno de imensos cinturões urbanos, de uma agricultura alta mente industrializada e controlando tudo, um inchado, burocratizado e anônimo aparelho de estado. Se colocarmos todas as considerações de ordem moral de lado e examinarmos a estrutura física desta sociedade, o que nos impressionará são os incríveis problemas logísticos que ela deve resolver: transporte, densidade, suprimentos, organização política e econômica e outros. O peso qu tal tipo de sociedade urbanizada e centralizada acarreta sobre qualquer área oriental é enorme. A noção de que o homem deve dominar a natureza vem diretamente da dominação do homem pelo homem. Esta tendência, antiga de séculos, encontra seu mais exarcebado desenvolvimento no capitalismo moderno. Assim como os homens, todos os aspectos da natureza são convertidos em bens, um recurso para ser manufaturado e negociado desenfreadamente. Do ponto de vista de Ecologia, o homem está hipersimplificando perigosamente o seu ambiente. O processo de simplificação do ambiente, levando ao aumento do seu caráter elementar - sintético sobre o natural, inorgânico sobre o orgânico - tem tanto uma dimensão física quanto cultural. A necessidade de manipular imensas populações urbanas, densamente 3 concentradas, leva a um declínio nos padrões cívicos e sociais. Uma concepção massificadora das relações humanas tende a se impôr sobre os conceitos mais individualizados do passado. A mesma simplificação ocorre na agricultura moderna. O cultivo deve permitir um alto grau de mecanização - não para reduzir o trabalho estafante mas para aumentar a produtividade e maximizar os investimentos. O crescimento das plantas é controlado como em uma fábrica: preparo do solo, plantio e colheitas manipulados em escala maciça, muitas vezes inadequados à ecologia local. Grandes áreas são cultivadas com uma única espécie - uma forma de agricultura que facilita não só a mecanização mas também a infestação das pragas. Por fim, os agentes químicos são usados para eliminar as pragas e doenças das plantas, maximizando a exploração do solo. Este processo de simplificação continua na divisão regional do trabalho. Os complexos ecossistemas regionais de um continente são submersos pela organização de nações inteiras em entidades economicamente especializadas (fornecedoras de matéria-prima, zonas industriais, centros de comércio). O homem está desfazendo o trabalho orgânico da evolução. Substituindo as relações ecológicas complexas, das quais todas as formas avançadas de vida dependem, por relações mais elementares, o homem está restaurando a biosfera a um estágio que só é capaz de manter formas simples de vida, e incapaz de manter o próprio homem. Até recentemente, as tentativas de resolver contradições criadas pela urbanização, centralização, crescimento burocrático e estatização eram vistas como contrárias ao progresso e até reacionárias. O anarquista era olhado como um visionário cheio de nostalgia de uma aldeia camponesa ou de uma comuna medieval. O desenvolvimento histórico, no entanto, tornou virtualmente sem sentido todas as objeções ao pensamento anarquista nos dias de hoje. Os conceitos anarquistas de uma comunidade equilibrada, de uma democracia direta e interpessoal, de uma tecnologia humanística e de uma sociedade descentralizada não são apenas desejáveis, eles constituem agora as pré-condições para a sobrevivência humana. O processo de desenvolvimento social tirou-os de uma dimensão ético-subjetiva para uma dimensão objetiva. A essência da mensagem reconstrutiva da Ecologia pode ser resumida na palavra "diversidade". Na visão ecológica, o equilíbrio e a harmonia na natureza, na sociedade e, por inferência, no comportamento, é alcançado 4 não pela padronização mecânica, mas pelo seu oposto, a diferenciação orgânica. Vamos considerar o princípio ecológico da diversidade no que se ele aplica à biologia e à agricultura. Alguns estudos demonstram claramente que a estabilidade é urna função da variedade e da diversidade: se o ambiente é simplificado e a variabilidade de espécies animais e vegetais diminui, as flutuações nas populações tornam-se marcantes, tendem a se descontrolar e a alcançar as proporções de uma peste. O ambiente de um ecossistema é variado, complexo e dinâmico. As condições especiais que permitem grandes populações de uma única espécie são eventos raros. Conseguir, portanto, gerenciar adequadamente os ecossistemas deve ser o nosso objetivo. Manipular de tato o ecossistema pressupõe uma enorme descentralização da agricultura. Onde for possível, a agricultura industrial deve ceder lugar à agricultura doméstica. Sem abandonar os ganhos da agricultura em larga escala e da mecanização, deve-se, contudo, cultivar a terra como se fosse um jardim. A descentralização é importante tanto para o desenvolvimento da agricultura quanto do agricultor. O motivo ecológico pressupõe a familiaridade do agricultor com o terreno que cultiva. Ele deve desenvolver sua sensibilidade para as possibilidades e necessidades do terreno, ao mesmo tempo que se torna parte orgânica do meio agrícola. Dificilmente poderemos alcançar este alto grau de sensibilidade e integração do agricultor sem reduzir a agricultura ao nível do indivíduo, das grandes fazendas industriais para as unidades de tamanho médio. O mesmo raciocínio se aplica ao desenvolvimento racional dos recursos energéticos. A Revolução Industrial aumentou a quantidade de energia utilizada pelo homem, primeiro por um sistema único de energia (carvão) e mais tarde por um duplo (carvão-petróleo, ambos poluentes). No entanto, podemos aplicar os princípios ecológicos na solução do problema. Pode-se tentar restabelecer os antigos modelos regionais de uso integrado de energia baseado nos recursos locais usando um sofisticado sistema que combine a energia fornecida pelo vento, a água e o sol. Essas alternativas em separado não podem solucionar os problemas ecológicos criados pelos combustíveis convencionais. Unidos, contudo, num padrão orgânico de energia desenvolvido a partir das potencialidades da região, elas podem satisfazer as necessidades de uma sociedade descentralizada. 5 Manter uma grande cidade requer imensas quantidades de carvão e petróleo. No entanto, as fontes alternativas fornecem apenas pequenas quantidades de energia para usá-las de modo efetivo, a megalópolis deve ser descentralizada e dispersa. Um novo tipo de comunidade, adaptada às características e recursos da região e com todas as amenidades da civilização industrial, deve substituir os extensos cinturões urbanos atuais. Resumindo a mensagem critica da Ecologia: a diminuição da variedade no mundo natural retira a base de sua unidade e totalidade, destruindo as forças responsáveis pelo equilíbrio e introduz uma retrogressão absoluta no desenvolvimento do mundo natural, a qual pode resultar num ambiente inadequado a formas avançadas de vida. Resumindo a mensagem reconstrutiva: se desejamos avançar na unidade e estabilidade do mundo natural, devemos conservar e promover a variedade. Como aplicar estes conceitos à teoria social? Tendo-se em mente o princípio da totalidade e do equilíbrio como produto da diversidade, a primeira coisa que chama a atenção é que tanto ecólogo como anarquista colocam uma ênfase muito grande sobre a espontaneidade. O ecólogo tende a rejeitar a noção de "poder sobre a natureza". O anarquista, por sua vez, fala em termos de espontaneidade social, dando liberdade a criatividade da pessoas. Ambos, ao seu modo, vêm a autoridade como inibidora, como um limitante à criatividade potencial dos meios social e natural. Tanto o ecólogo como o anarquista vêem a diferenciação como uma medida de progresso, para ambos uma unidade sempre maior é alcançada pelo crescimento da diferenciação. Uma crescente totalidade é criada pela diversificação e aprimoramento das partes. Assim corno o ecólogo busca ampliar um ecossistema e promover a livre interação entre as espécies, o anarquista busca ampliar as experiências sociais e remover as restrições ao seu desenvolvimento. O anarquismo é urna sociedade harmônica que expõe o homem aos estímulos tanto da vida agrária como urbana, da atividade física e da mental, da sensualidade não reprimida e da espiritualidade autodirigida, da espontaneidade e da autodisciplina etc. Hoje, esses objetivos são vistos como mutuamente excludentes devido à própria lógica da sociedade atual -- a separação da cidade e do campo, a especialização do trabalho, a atomização do homem. 6 Uma comunidade anarquista deverá aproximar-se de um ecossistema bem definido: será diversificada, equilibrada e harmônica. A procura da auto suficiência levará a um uso mais inteligente e amoroso do meio-ambiente, permitindo o contato dos indivíduos com uma vasta gama de estímulos agrícolas e industriais. O engenheiro nãu estará separado do solo, nem o pensador do arado ou o fazendeiro da indústria. A alternância de responsabilidades cívicas e profissionais criará uma nova matriz para o desenvolvimento individual e comunitário, evitando a hiperespecialização profissional e vocacional que impediria a sociedade de alcançar seu objetivo vital: a humanização da natureza pelo técnico e a naturalização da sociedade pelo biólogo. Nas comunidades ecológicas a vida social levará ao incremento da diversidade humana e natural, unidas em harmônica totalidade. Haverá uma colorida diferenciação dos grupos humanos e ecossistemas, cada um desenvolvendo suas potencialidades únicas e expondo os membros das comunidades a um leque de estímulos econômicos, culturais e comportamentais. A mentalidade que hoje organiza as diferenças entre o homem e outras formas de vida em esquemas hierárquicos e definições de "superioridade" e "inferioridade", dará lugar a uma visão ecológica da diversidade. As diferenças entre as pessoas não só serão respeitadas mas estimuladas. As relações tradicionais que opõem sujeito e objeto serão alteradas qualitativamente, o "outro" será concebido como parte individual do todo que se aprimora pela complexidade. Este sentido de unidade refletirá a harmonização dos interesses entre indivíduos e grupo, comunidade e ambiente, humanidade e natureza. Murray Bookchin 7 A FILOSOFIA DA ECOLOGIA SOCIAL Os ecologistas têm geralmente considerado a diversidade como fonte de estabilidade ecológica, uma abordagem que, acrescentarei, era bastante inovadora há cerca de vinte e cinco anos atrás. Experiências no domínio da agricultura mostraram que o tratamento de monoculturas por pesticidas podia facilmente atingir proporções alarmantes e parecia sugerir que, quanto mais diversificadas fossem as culturas, mais a interacção entre espécies vegetais e animais conduziria a resistência natural às pragas. Hoje, tanto esta noção como o valor dos métodos de agricultura biológica, tornou-se lugar comum no pensamento ecológico e ambiental dos nossos dias — uma opinião de que o autor foi pioneiro com alguns poucos colegas, como Charles S. Elton. Mas a noção que a evolução biótica — e social, como veremos — tem sido marcada até há pouco pelo desenvolvimento de espécies e ecocomunidades (ou "ecossistemas", para usar um termo muito pouco satisfatório) cada vez mais complexas, levanta uma questão ainda mais difícil. A diversidade pode ser encarada como fonte de maior estabilidade ecocomunitária, mas pode também ser encarada em sentido mais profundo como fonte de liberdade dentro da natureza, embora incipiente sempre em expansão, meio de fixar objectivamente vários graus de escolha, de autodirecção e de participação das formas de vida na sua própria evolução. Gostaria de propor como hipótese que a evolução dos seres vivos não é um processo passivo, o produto de conjunções de acaso entre alterações genéticas ocasionais e "forças" ambientais "selectivas", que a "origem das espécies" não é o mero resultado de influências externas que determinam a "aptidão" para "sobreviver" duma forma de vida como resultado de factores ocasionais em que a vida é meramente "objecto" dum processo "selectivo" indeterminável. 8 Gostaria de ir além da noção muito popularizada de que a simbiose é tão importante como a "luta", e sustentar que o aumento de diversidade na biosfera abre cada vez mais novas vias evolutivas, na realidade sentidos evolutivos alternativos em que as espécies desempenham um papel activo na sua própria sobrevivência e mudança. Ainda que incipiente e rudimentar, a escolha não está totalmente ausente na evolução biótica. Na verdade aumenta à medida que os animais se tornam estrutural, fisiológica e, sobretudo, neurologicamente mais complexos. A mente tem a sua própria história evolutiva no mundo natural e, à medida que nas formas de vida aumenta a capacidade neurológica para funcionar de maneira mais activa e flexível, também a própria vida ajuda a criar novos sentidos evolutivos que conduzem a maior consciência de si mesmo e maior actividade própria. 9 UM MANIFESTO ECOLÓGICO O Poder de Destruir - O Poder de Criar O poder que esta sociedade tem para destruir atingiu uma escala sem precedentes na história da humanidade - e este poder está a ser usado, quase sistematicamente, para causar uma destruição insensata em todo o mundo da vida natural e nas suas bases materiais. Em quase todas as regiões, o ar está a ser viciado, as águas poluídas, o solo está a ser levado pela água, a terra foi drenada e a vida natural destruída. As áreas costeiras e mesmo as profundezas do mar não são imunes ao alastramento da poluição. Com maior significância no fim de contas, os ciclos biológicos básicos, tais como o ciclo do carbono e do nitrogênio, dos quais todas as coisas vivas (incluindo os humanos) dependem para a manutenção e renovação da vida, estão a ser alterados até um ponto irreversível. A introdução arbitrária dos desperdícios radioativos, pesticidas de longa atividade, resíduos de chumbo e milhares de produtos químicos tóxicos ou potencialmente tóxicos na comida, água e ar; a expansão das cidades em vastas cinturas urbanas com concentrações densas de populações comparáveis em tamanho a nações inteiras; o aumento de ruído ambiente; as pressões criadas pela congestão, pela aglomeração e manipulação das massas; as imensas acumulações de lixo, refugo, dejetos e desperdícios industriais; o congestionamento do trânsito nas auto-estradas e nas ruas citadinas; a destruição pródiga de preciosos metais em bruto; a cicatrização da terra feita pelos especuladores da propriedade, os barões das indústrias mineira e da madeira, os burocratas da construção de auto-estradas. Todos eles fizeram tais estragos numa simples geração, que excede os que foram 10 feitos em milhares de anos pela habitação humana no seu planeta. Se tivermos em mente este ritmo de destruição, é aterrador refletir acerca do que acontecerá no futuro, à geração vindoura. A essência da crise ecológica do nosso tempo é que esta sociedade - mais do que qualquer outra no passado - está a desfazer literalmente o trabalho da evolução orgânica. É um axioma dizer que a humanidade faz parte do edifício da vida. É talvez mais importante, nesta fase tardia, sublinhar que a humanidade depende perigosamente da complexidade e variedade da vida, e que o bem-estar e a sobrevivência humanas assentam sobre uma longa evolução de organismos em formas crescentemente complexas e interdependentes. O desenvolvimento da vida num tecido complexo, a criação dos animais e plantas primordiais em formas altamente variadas, tem sido a condiçãso prévia para a evolução e sobrevivência da própria humanidade e para uma relação harmônica entre a humanidade e a natureza. Tecnologia e População Uma vez que a geração passada tem testemunhado a expoliação do planeta, que ultrapassa todos os estragos feitos pelas gerações primitivas, pouco mais do que uma geração poderá restar antes que a destruição do meio ambiente se torne irreversível. Por esta razão, devemos debruçar-nos sobre as origens da crise ecológica com honestidade implacável. O tempo corre precipitadamente e as décadas que restam do século XX podem bem ser a última oportunidade que teremos para restaurar o equilíbrio entre a humanidade e a natureza. 11 Assentarão as origens da crise ecológica no desenvolvimento da tecnologia? A tecnologia tem-se tornado um alvo fácil para aqueles que querem evitar encarar as condições sociais profundamente marcadas por máquinas e processos técnicos perigosos. É tão conveniente esquecer que a tecnologia tem servido não só para subverter o meio ambiente como também para o melhorar. A Revolução Neolítica, a qual produziu o período mais harmonioso entre a natureza e a humanidade pós-paleolítica, foi acima de tudo uma revolução tecnológica. Foi este período que trouxe à humanidade as artes da agricultura, tecelagem, cerâmica, da domesticação dos animais, a descoberta da roda e muitos outros melhoramentos básicos. É verdade que existem técnicas e atitudes tecnológicas que são inteiramente destruidoras do equilíbrio entre a humanidade e a natureza. É responsabilidade nossa separar a promessa da tecnologia - o potencial criativo - da capacidade da tecnologia para destruir. Na verdade, não existe tal palavra como "tecnologia" que presida a todas as condições e relações sociais. Existem sim, diferentes tecnologias e atitudes para com a tecnologia, algumas das quais são indispensáveis para restaurar o equilíbrio, e outras que têm contribuido profundamente para a sua destruição. Do que a humanidade necessita não é rejeitar em grande escala as tecnologias avançadas, mas sim peneira-las, necessita realmente de um maior desenvolvimento da tecnologia a par com os princípios ecológicos, o que contribuirá para uma nova harmonização da sociedade e do mundo natural. Será o crescimento da população, a origem da crise ecológica? Esta tese é a mais inquietante, e de muitas maneiras a mais sinistra, a ser formulada pelos movimentos ecológicos ativos nos E.U.A. Neste sentido, um efeito chamado 12 "crescimento populacional" baralhado na base de estatísticas e projeções superficiais, transforma-se numa causa. É dada assim supremacia a um problema de proporções secundárias no momento presente, obscurecendo as razões fundamentais da crise ecológica. De fato, se as atuais condições econômicas, políticas e sociais prevalecerem, a humanidade irá com o tempo superpovoar o planeta, e pelo puro peso dos números transformar-se-á num flagelo no seu próprio habitat global. Há qualquer coisa de obsceno, contudo, acerca do fato de que a um efeito "crescimento populacional", é concedida supremacia na crise ecológica por uma nação que tem pouco mais do que 7% da população mundial mas que consome prodigamente mais de 50% dos recursos mundiais, e que está atualmente ocupada no despovoamento de um povo do Oriente, que tem vivido à séculos em equilíbrio apurado com o seu meio ambiente. Devemos fazer uma pausa para examinar o problema populacional tão amplamente observado pelas raças brancas da América do Norte e da Europa - raças que têm explorado arbitrariamente os povos da Ásia, África, América Latina e do Pacífico Sul. Os explorados têm explorado delicadamente os seus exploradores que, do que eles necessitam não são dispositivos anticoncepcionais, nem "libertadores" armados, nem do Prof. R. Ehrlich para resolverem os seus problemas populacionais; precisam antes, de uma devolução justa dos imensos recursos que foram roubados das suas terras, pela América do Norte e pela Europa. Equilibrar estas contas é mais premente no momento, do que equilibrar as taxas de nascimentos e mortes. Os povos da Ásia, África, América Latina e do Pacífico Sul podem justamente apontar que os seus "conselheiros" Americanos têm mostrado ao mundo 13 como expoliar um continente virgem em menos de um século e têm acrescentado ao vocabulário da humanidade palavras como "esgotamento precoce" Isto é claro: quando grandes reservas de mão-de-obra foram necessárias durante a Revolução Industrial dos princípios do século XIX para equipar as fábricas e diminuir os salários, o crescimento populacional foi saudado entusiasticamente pela nova burguesia industrial. E o crescimento populacional ocorreu apesar do fato que, devido ao pesado horário de trabalho e às cidades altamente superpovoadas, a tuberculose, cólera e outras doenças eram epidemicas na Europa e nos Estados Unidos. Se as taxas de nascimento excederam as da morte nessa altura, não foi porque os progressos feitos ao nível de cuidados médicos e sanitários tenham produzido qualquer declínio dramático na mortalidade humana; antes, o excesso de nascimentos em relação às mortes pode ser explicado pela destruição das formas da família pré-industrial, instituições de vila, ajuda mútua e padrões de vida estáveis e tradicionais, às mãos da "empresa" capitalista. O declínio da moral social introduzido pelos horrores do sistema fabril, o aviltamento das populações agrárias tradicionais transformadas em proletários e moradores urbanos, brutalmente explorados, produziu uma atitude concomitantemente responsável para com a família e a procriação. A sexualidade tornou-se um refúgio de uma vida de trabalho duro, bem como o consumo do gin barato; o novo proletariado gerou crianças (muitas das quais nunca sobreviveram até a idade adulta), tão inconscientemente como foi levado ao alcoolismo. É muito semelhante o caso ocorrido quando as vilas Africanas, Asiáticas e Latino-Americanas foram sacrificadas ao santo altar do imperialismo. 14 Hoje a burguesia "vê" as coisas de uma forma diferente. Os anos dourados da "livre empresa" e do "trabalho livre" declinam perante uma era de monopólio, cartéis, economias controladas pelo estado, formas institucionalizadas de mobilização operária (sindicatos), e de máquinas automáticas ou cibernéticas. Largas reservas de mão-de-obra desempregada não são já necessárias para ir ao encontro das necessidades de expansão do capital, e os salários são em grande parte mais negociados do que deixados à livre atuação do mercado de trabalho. Anteriormente necessárias, as reservas de mão-de-obra inútil acabaram por tornar-se numa ameaça à estabilidade de uma economia burguesa manipulada. A lógica desta nova "perspectiva" encontrou a sua mais aterradora expressão no fascismo alemão. Para os nazis, a Europa estava já "superpovoada" nos anos trinta e o "problema populacional" foi "resolvido" nas câmaras de gás de Auschwitz. A mesma lógica está implícita em muitos dos argumentos neoMalthusianos que se mascaram hoje como ecologia. Que não haja dúvida quanto a esta conclusão. Mais tarde ou mais cedo a proliferação descuidada de seres humanos terá de ser detida, mas, ou o controle populacional terá de ser feito por meio de "controles sociais" (métodos autoritários ou racistas e, no fim, ser um genocídio sistemático), ou por uma sociedade libertária, ecologicamente orientada (uma sociedade que desenvolva um novo equilíbrio com a natureza fora da veneração pela vida). A sociedade moderna encontra-se perante estas alternativas mutuamente restritas e deve fazer uma escolha sem dissimulação. A ação ecológica é fundamentalmente ação social. Ou vamos diretamente às origens sociais da atual crise ecológica, ou seremos logrados por uma era de totalitarismo. 15 Ecologia e Sociedade A concepção básica de que a humanidade deve dominar e explorar a natureza, provém da dominação e exploração do homem pelo homem. Na verdade, esta concepção vem de tempos remotos em que o homem começou a dominar e explorar as mulheres dentro da família patriarcal. Desde essa altura os seres humanos foram olhados, cada vez mais, como meros recursos, como objetos em vez de sujeitos. As hierarquias, classes, sistemas de propriedade e instituições políticas que emergiram com o domínio social foram transferidas conceitualmente para a relação entre a humanidade e a natureza. Esta, também foi cada vez mais olhada como mero recurso, um objeto, uma matéria bruta a ser explorada tão implacavelmente como escravos num latifúndio. Esta "visão do mundo" impregnou não só a cultura oficial da sociedade hierárquica; tornou-se na maneira como os escravos, servos, trabalhadores da indústria e as mulheres de todas as classes sociais se começaram a considerar a eles mesmos. Contida na "ética do trabalho", na moralidade baseada na recusa e na renúncia, num modo de comportamento baseado na sublimação dos desejos eróticos e noutros aspectos mundanos (sejam eles Europeus ou Asiáticos), os escravos, servos, trabalhadores e metade das mulheres da humanidade foram ensinadas a vigiarem-se a si próprios, a talharem as suas próprias cadeias, a fechar as portas das suas prisões. Se a "visão do mundo" da sociedade hierárquica começa hoje a declinar é especialmente porque a enorme produtividade da moderna tecnologia abriu uma nova visão: a possibilidade de abundância material, um fim á escassez de uma era de tempos livres (o chamado "lazer") com um mínimo de trabalho duro. A nossa sociedade está a ser impregnada por uma tensão entre "o que é" e "o que poderia ser", uma tensão exacerbada pela exploração e 16 destruição irracional e desumana da terra e dos seus habitantes. O maior obstáculo que dificulta a solução desta tensão é a extensão até à qual a sociedade hierárquica ainda modela os novos pontos de vista e as nossas ações. É mais fácil refugirmo-nos nas críticas à tecnologia e ao crescimento populacional; tratar com um sistema social arcaico, destrutivo sobre as suas próprias condições e dentro da sua própria estrutura. Quase desde o berço temos sido socializados pela família, instituições religiosas, escolas e pelo próprio trabalho, aceitando a hierarquia, renúncia e sistemas políticos, como premissas sobre as quais todo o pensamento deve apoiar-se. Sem esclarecer essas premissas, todas as discussões, sobre o equilíbrio ecológico permanecerão meros paliativos e serão contraproducentes. Em virtude da sua excepcional bagagem cultural, a sociedade moderna sociedade burguesa orientada para os lucros - tende a exacerbar o conflito entre a humanidade e a natureza, de uma forma mais crítica do que as sociedades pré-industriais do passado. Na sociedade burguesa, os humanos não só se transformam em objetos mas também em mercadorias; em objetos claramente destinados a serem vendidos no mercado. A competição entre os seres humanos, como mercadorias, torna-se um fim em si, em conjunto com a produção de artigos totalmente inúteis. A qualidade transformou-se em quantidade, a cultura individual em cultura de massas, a comunicação pessoal em comunicação de massas. O meio ambiente natural tornou-se numa fábrica gigantesca e a cidade num imenso mercado: tudo, desde uma floresta Redwood até ao corpo de uma mulher tem "um preço". É tudo equacionado em dólares, seja uma catedral consagrada ou a honra individual. A tecnologia deixa de ser uma extensão da tecnologia. A máquina não amplia o poder do trabalhador; é o trabalhador que amplia o poder da máquina e na verdade ele mesmo se torna numa simples parte da máquina. 17 É assim tão surpreendente que esta sociedade exploradora, degradante e quantificada oponha a humanidade a si própria e à natureza, numa escala mais assombrosa do que qualquer outra no passado? Sim, necessitamos mudar, mas mudar tão fundamentalmente e em tão grande escala que mesmo os conceitos de revolução e liberdade devem ser ampliados para além de todos os primitivos horizontes. Não é já suficiente falar das novas técnicas para a conservação e promoção do ambiente natural; devemos tratar a terra comunalmente, como uma coletividade humana, sem aquelas peias da propriedade privada, que têm distorcido a visão da vida e da natureza da humanidade, desde a rutura da sociedade tribal. Devemos eliminar não só a hierarquia burguesa mas a hierarquia como tal; não só a família patriarcal, mas também todas as formas de domínio familiar e sexual; não só a classe burguesa e o sistema de propriedade, mas sim todas as classes sociais e a propriedade. A Humanidade deve tomar posse de si própria, individual e coletivamente, para que todos os seres humanos obtenham o controle de suas vidas diárias. As nossas cidades devem ser descentralizadas em comunidades ou ecocomunidades talhadas, fina e habilidosamente, para o aproveitamento da capacidade dos ecossistemas nos quais elas estão localizadas. As nossas tecnologias devem ser readaptadas e formuladas em ecotecnologias, fina e inteligentemente adaptadas para usarem as fontes de energia local e os materiais, com um mínimo ou sem poluição do ambiente. Necessitamos recuperar um novo sentimento das nossas necessidades - necessidades que fomentem uma vida saudável e que exprimam as nossas inclinações individuais, não as "necessidades" ditadas pelos meios de comunicação. Temos que restaurar a escala humana no nosso ambiente e nas nossas relações pessoais, substituto medianeiro das relações pessoais diretas na 18 gestão da sociedade. Finalmente, todas as formas de domínio - social ou pessoal - devem ser banidas das nossas concepções, de nós próprios, dos nossos semelhantes e da natureza. A administração dos humanos deve ser substituída pela administração das coisas. A revolução que pretendemos deve envolver não só as instituições políticas e as relações econômicas, mas também a consciência, o estilo de vida, os desejos eróticos e a nossa interpretação do significado da vida. O balanço aqui, é o espírito antiquado e os sistemas de domínio e repressão que não só opuseram o homem ao homem, mas a humanidade à natureza. O conflito entre estas é uma extensão do conflito entre o ser humano. A não ser que o movimento ecológico envolva o problema do domínio em todos os seus aspectos, ele não contribuirá em nada para a eliminação da origem das causas da crise ecológica do nosso tempo. Se o movimento ecológico se detém em simples reformas de controle da poluição e conservação, sem tratar radicalmente da necessidade de ampliação de um conceito de revolução, ele servirá meramente como uma válvula de segurança do sistema existente da exploração humana e natural. Objetivos Sobre certos aspectos o movimento ecológico de hoje está a mover uma ação tardia, contra a destruição desenfreada do ambiente. Noutros aspectos os seus elementos mais conscientes estão envolvidos num movimento criativo, pronto a revolucionar totalmente as relações sociais dos indivíduos para com os outros e da humanidade para com a natureza. Embora elas se interpenetrem intimamente, os dois esforços devem 19 distinguir-se um do outro. Ecology Action East (Ação Ecológica Leste) apoia qualquer esforço para a conservação do ambiente: preservar a água e o ar puros; limitar o uso dos pesticidas e adubos químicos nos alimentos; reduzir o trânsito de veículos nas ruas e auto-estradas; tornar as cidades mais saudáveis fisicamente; impedir que os desperdícios radioativos penetram no ambiente; proteger e aumentar as áreas desertas e os territórios para a vida selvagem; e defender as espécies animais da depredação humana. Mas a Ecology Action East não se ilude a si própria pensando que estas ações tardias constituem uma solução para o conflito fundamental que existe entre a atual ordem social e o mundo natural. Nem tão pouco que estas ações tardias possam deter o ímpeto esmagador de destruição existente nesta sociedade. Esta ordem social joga conosco. Ela concede reformas a longo prazo, aos poucos e dolorosamente inadequadas, a fim de desviar os nossos esforços e atenção de atos destruidores ainda mais vastos. Em certo sentido, é-nos oferecido um pedaço de terreno da floresta Redwood em troca das Cascades. Visto numa maior perspectiva, esta tentativa para reduzir a ecologia a uma relação de permuta não salva nada; é um modus operandi barato de negociar a maior parte do planeta por umas quantas ilhas desertas, por parques de bolso num mundo devastado de betão. A Ecology Action East tem dois objetivos principais: um é incrementar no movimento revolucionário, o conhecimento de que a consequência mais urgente e destrutiva da nossa sociedade exploradora e alienante é a crise ambiente, e que a verdadeira sociedade revolucionária deve ser construída 20 de acordo com preceitos ecológicos; o outro objetivo é provocar na mente de milhões de Americanos que estão preocupados com a destruição do nosso ambiente, uma tomada de consciência de que os princípios da ecologia, levados até ao final lógico, exigem mudanças radicais na nossa sociedade e no nosso modo de olhar o mundo. A Ecology Action East fundamenta-se na revolução do estilo de vida que, no máximo, pretende uma consciência aumentada de experiência e de liberdade humanas. Nós pretendemos a libertação das mulheres, das ciranças, dos homossexuais, dos povos negros e colonizados, dos trabalhadores de todas as profissões, como parte da crescente luta social contra as tradições e instituições que têm tão destruidoramente modelado a atitude da humanidade para com o mundo natural. Nós apoiamos comunidades libertárias e lutas pela liberdade aonde quer que surjam; apoiamos também qualquer esforço para promover o auto-desenvolvimento espontâneo dos jovens; opomo-nos a qualquer esforço para reprimir a sexualidade humana e negar à humanidade a experiência do erótico em todas as suas formas. Unimos todos os esforços para fomentar um artifício feliz, na vida e no trabalho: a promoção dos ofícios e da qualidade de produção; o planejamento de novas ecocomunidades e ecotecnologias; o direito à experiência, numa base diária da beleza do mundo natural, o parzer aberto, espontâneo e sensual que os humanos podem oferecer uns aos outros, o respeito crescente pelo mundo da vida. Em resumo, nós temos esperanças numa revolução que produza comunidades politicamente independentes cujas fronteiras e populações sejam definidas por uma nova consciência ecológica; comunidades cujos habitantes determinarão por si mesmos, dentro da estrutura desta nova 21 consciência, a natureza e o nível das suas tecnologias, as formas tomadas pelas suas estruturas sociais, visões do mundo, estilos de vida, artes expressivas e todos os outros aspectos das suas vidas diárias. Mas nós não nos iludimos a nós mesmos de que este mundo orientado para a vida possa ser desenvolvido, inteiramente ou mesmo parcialmente conseguido, através de uma sociedade orientada para a morte. A sociedade Americana como hoje está constituída, está penetrada de racismo e ergue-se no topo do mundo inteiro não só como consumidora de sua riqueza e recursos, mas como um obstáculo a todas as tentativas de autodeterminação no interior e no estrangeiro. Os seus objetivos inerentes são a produção pela produção, a manutenção da hierarquia e do trabalho árduo à escala mundial, manipulação das massas e controle por meio de instituições políticas centralizadas. Este tipo de sociedade contrapõe-se inalteravelmente a um mundo orientado para a vida. Se o movimento ecológico não tira estas conclusões dos seus esforços para conservar o ambiente natural, então a conservação torna-se um mero obscurantismo. Se o movimento ecológico não dirige os seus esforços principais para uma revolução em todos os aspectos da vida - social bem como natural - então o movimento tornar-se-á gradualmente numa válvula de segurança para a ordem estabelecida. A nossa esperança está em que os grupos como nós, brotarão através do país, organizados como nós próprios numa base humanista e libertária, empenhada na ação conjunta e com um espírito de cooperação baseado no apoio mútuo. É também esperança nossa que eles tentem fomentar uma nova atitude ecológica, não só para com a natureza mas também para com os humanos: uma concepção de relações espontâneas variegadas dentro e entre grupos, dentro da sociedade e entre os indivíduos. 22 Nós esperamos que os grupos ecológicos evitarão todos os apelos aos "chefes de governo" e às instituições estatais nacionais e internacionais, os verdadeiros corpos criminosos e políticos que têm contribuído materialmente para a crise ecológica do nosso tempo. Cremos que os apelos devem ser feitos ao povo e à sua capacidade para a ação direta, que lhe possa permitir tomar o controle das suas próprias vidas e destinos. Porque só desta maneira pode emergir a sociedade sem hierarquia e domínio, a sociedade na qual cada indivíduo é o dono ou a dona da sua própria sorte. As grandes cisões que dividiram os humanos dos humanos, a humanidade da natureza, o indivíduo da sociedade, a cidade do campo, a atividade mental da física, a razão da emoção e geração de geração devem ser agora ultrapassadas. O cumprimento da luta antiquada pela sobrevivência e segurança material num mundo de escassez foi uma vez olhado como a condição prévia para a liberdade e para uma vida inteiramente humana. Para viver nós tivemos que sobreviver. Como Brecht disse: "Primeiro a alimentação e depois a moralidade". A situação começou agora a modificar-se. A crise ecológica do nosso tempo, crescentemente, inverteu esta máxima tradicional. Hoje, se nós temos que sobreviver, devemos começar por viver. As nossas soluções devem ser proporcionais ao nível do problema, ou então a natureza vingar-se-á, terrivelmente, da humanidade. 23 PARA UM NOVO MUNICIPALISMO Dada a crescente centralização do estado e a depressão de todas as formas sociais, o problema do desenvolvimento de formas populares de organização social tornou-se a responsabilidade histórica de um movimento anarquista importante. O mito do "estado mínimo" proposto pelos neo-marxistas, pelos descentralizadores da "Nova Era" e pelos "libertários" de direita - por bem intencionadas que sejam as suas noções - é, em última instância, uma justificação do estado enquanto tal. Dentro do conceito da crise presente, qualquer estado mínimo torna-se uma ideologia ingénua para o único tipo de estado que é possível numa sociedade cibernética de grandes empresas - de fato, um estado máximo. Faz parte da própria dialética da presente situação que qualquer estado não possa ser mais "mínimo" , tal como uma bomba de hidrogênio não se pode transformar num instrumento pacífico. Discutir o "tamanho" de um estado - as suas dimensões, grau de controle e funções reflete a mesma sabedoria que é inerente ás discussões sobre o tamanho da arma que só pode levar ao extermínio da sociedade e da biosfera. O grau das discussões acerca do estado focando os seus objetivos e autoridade permanece num nível de discurso que é tão racional como as discussões sobre o nosso arsenal nuclear conterá armas para destruir o mundo, cinco, dez ou cinquenta vezes. Uma vez chega, quer para os arsenais nucleares, quer para o estado. Se uma oposição descentralizadora ao estado, à arregimentação e militarização da sociedade americana quer ser de fato significativa, o termo "descentralização" deve então adquirir forma, estrutura, substância e coerência. Expressões como "escala humana" e "holism" tornam-se clichés enfraquecidos quando não são compreendidas em termos da sua plena lógica revolucionária, isto é, como reconstrução revolucionária de todas as 24 relações e instituições sociais; A criação de uma economia inteiramente nova, baseada não só na "democracia no local de trabalho" mas na esteticização das capacidades produtivas humanas; a abolição da hierarquia e dominação em todas as esferas da vida pessoal e social; a reintegração de todas as comunidades sociais e naturais num ecossistema comum. Esta projeto implica um corte total com a sociedade de mercado, as tecnologias dominantes, o estatismo, as sensibilidades patricêntricas e prometaicas para com os humanos e a natureza, que foram absorvidas e realçadas pela sociedade burguesa. Cada falso passo nesta direção, é uma falta grosseira em relação ao projeto e à sua essência. Ele admitiria inevitavelmente uma traição total, um apoio ideológico à centralização disfarçada em "descentralização". Ou o projeto é levado à prática até aos seus mais radicais fins, ou ele entrará em conflito consigo próprio e com os seus objetivos originais. Qual é o lugar autêntico deste projeto? Não é certamente o local de trabalho atual - a fábrica e o escritório- o qual tem que ser, ele próprio, reconstruído fundamentalmente, partindo do atual campo (hierárquico e tecnologicamente obsoleto) de mobilização da mão de obra, para um mundo criativo que se combine ricamente com a esfera pública e que transcenda o mero conflito de interesses econômicos. Neste sentido, o sindicalismo e o comunismo conselhista, ao perpetuarem o mito do local de trabalho como esfera revolucionária, tornam-se numa forma tosca de marxismo sem as suas manifestas características autoritárias. Tão pouco pede a localização deste projeto situar-se na comunidade isolada ou na cooperativa, a despeito das suas inestimáveis qualidades como escola para aprendizagem dos conhecimentos e resolução dos problemas de ação direta, autogestão e interação social. Nenhuma cooperativa de alimentação substituirá jamais as 25 grandes cadeias de produtos alimentares como o Pão de Açucar, e nenhuma fazenda de agricultura biológica substituirá os negociantes agrícolas sem que haja mudanças fundamentais na sociedade em geral. Como núcleos numa sociedade de mercado invasora, elas mal podem esperar enfrentar significativamente uma economia sólida e politizada, baseada em ótimos recuros materiais e, se necessário, na coerção física. Elas podem ser focos de resistência indispensáveis para enfrentar os novos desafios com que hoje se confronta uma oposição revolucionária. Mas a noção proudhoniana de que elas seriam o manancial material de uma nova sociedade que iria gradualmente substituir a velha é totalmente mítica - ou pior, obscurantista. Daí a sutil corrupção da visão do Stanford Research Institute de uma dupla sociedade: uma, pequena e auto-complacente, que viverá pelo cânones da "simplicidade voluntária"; a outra, sólida e esmagadora em números, que viverá pelas necessidades engendradas pela produção de massa e por uma sociedade de massa. Em última análise, esta imagem serve para desviar qualquer conflito que a esfera pessoal, com o argumento da confrontação com os media massificados que esmagam o espírito de resistência da grande maioria da sociedade. A resistência e a recolonização da sociedade devem surgir da lógica de um conflito baseado claramente entre a sociedade e o estado centralizado, e não de esforços singulares que estão incorporados em esforços comunitários e pessoais. Todas as revoluçòes têm sido isso mesmo: um conflito entre a sociedade e o estado. E, tal como atualmente o estado centralizado significa o estado nacional, também a sociedade de hoje está a ser cada vez mais representada pela comunidade local - o distrito, a freguesia e o município. A exigência de um "controle local" deixou de significar paroquialismo e insularidade, com a estreiteza de visão que despertou os receios de Marx. 26 No terreno gerado pelo crescimento de uma economia centralizada e cartelizada, o grito para a descoberta da comunidade, da autonomia, de uma relativa auto-suficiência, auto-confiança e democracia direta, tornou-se o último reduto de resistência social e crescente autoridade do estado. O esmagador acento que os media têm posto na autonomia local e no municipalismo militante como refúgios para um paroquialismo de classe média - muitas vezes com restrições exclusivamente racistas e econômicas esconde a latente ofensiva radical que pode dar uma nova vitalidade às aldeias, subúrbios e cidades, contra o estado nacional. Ainda que escolhamos termos como "socialismo" e "anarquismo" para marcar o contraste com as conotações paroquiais de termos como "municipalismo", convém não esquecer que mesmo "socialismo" e "anarquismo" têm o seu lado negativo, se realçarmos os aspectos autoritários do primeiro e o falhanço crónico do último para se consolidar organizacionalmente na maior parte dos países do mundo. A verdade é, finalmente, uma linha muito fina que pode facilmente serpentear ao longo do seu curso. Neste aspecto, não existem regras, dogmas e tradições que substituam a consciência. Deste modo, o município pode facilmente tornar-se o ponto de partida para uma constelação de instituições sociais largamente assentes na democracia direta, verdadeiramente popular e à escala humana, que, pela sua própria lógica, se encontrem em oposição aguda às crescentemente invasoras instituições políticas. Isto deve ser claro: o potencial de um radicalismo libertário é inerente ao municipalismo. Este constitui a base para relações sociais diretas, democracia frontal e a intervenção pessoal do indivíduo, para que as freguesias, comunidades e cooperativas convirjam na formação de uma nova esfera pública. Liberto das suas próprias instituições políticas, tais como a sua estrutura presidencial, a burocracia civil e o seu monopólio 27 organizado da violência, ele conserva ainda os seus elementos históricos para a reconstrução (e ulterior superação) da polis, da comuna livre medieval, do sistema de assembleia da Nova Inglaterra, das seções parisienses, da estrutura descentralizada cantonal e da Comuna de Paris. De certeza que, em si, o município é tão inutil como força social como o são a fazenda comunitária e a cooperativa. Além disso, desde que ele preserve as instituições políticas do estado, permanece não só como uma entidade social ineficaz, mas também um estado em miniatura. Mas a partir do momento em que os municípios se federam para formar uma nova rede social; que interpretem o controle local com o significado de assembleias populares livres; que a auto-confiança signifique a coletivização dos recursos; e que, finalmente, a coordenação administrativa dos seus interesses comuns seja feita por delegados - não por "representantes" - que são livremente escolhidos e mandatados pelas suas assembleias, sujeitos a rotação, revogáveis e as suas atividades severamente limitadas à administração das políticas sempre decididas nas assembleias populares - a partir deste momento os municípios deixam de ser instituições políticas ou estatais em qualquer sentido do termo. A confederação destes municípios uma comuna de comunas - é o único movimento social anarquista de ampla base que pode ser visionado hoje, aquele que poderá lançar um movimento verdadeiramente popular que produzirá a abolição do estado. É o único movimento que pode responder às crescentes exigências de todos os setores dominados da sociedade para dar poder e propôr pragmaticamente a reconstrução de uma sociedade comunista libertária nos termos viscerais da nossa problemática social atual - a recuperação de uma personalidade poderosa, de uma esfera pública autêntica e de um conceito ativo e participatório de cidadania. 28 O anarquismo inspirou desde há várias gerações a visão de uma confederação de municipalidades, em parte desde os escritos de Proudhon, e mais notavelmente na obra de Kropotkine. Tragicamente, os teóricos anarquistas do passado foram demasiado sensíveis às armadilhas políticas dos municípios do seu tempo para darem a necessária atenção à anatomia social da municipalidade que jaz por debaixo da sua aparente fachada estatal. Historicamente, o próprio município foi sempre um campo de batalha entre a sociedade e o estado. De fato, ele antecede historicamente o estado e tem permanecido sempre em conflito com ele. Tem sido um campo de batalha porque o estado, até data relativamente recente, nunca reclamou por inteiro o município, devido à sua vida socialmente rica - famílias, corporações, a igreja, as freguesias, as sociedades locais, os bairros e as assembleias populares. Estas estruturas ricas de núcleos, apesar das suas divisões internas, têm sido espantosamente impenetráveis à institucionalização política. Ironicamente, a tensão entre sociedade e estado a nível municipal nunca atingiu a situação grave de hoje porque as forças internas da cidade e dos subúrbios possuiam os meios materiais, culturais e espirituais para resistir às tendências invasoras das forças políticas. A vida municipal ricamente texturada por redes familiares, compromissos locais, organizações profissionais, sociedades populares e até estabelecimentos de convívio, como cafés - proporcionava um refúgio humano contra as forças burocráticas e homogeneizadoras do aparelho estatal. Hoje, o estado, particularmente o da forma de economia de mercado, ameaça destruir este refúgio e o municipalismo tornou-se o terreno mais significativo da luta contra o estado num terreno não-político. O próprio conceito de cidadania, e não só o de 29 autonomia cívica, está em jogo neste conflito. É neste momento crucial para qualquer movimento anarquista que procure ser socialmente relevante perante a natureza única da crise americana, reconhecer o significado e a importância do terreno cívico - para explorar, desenvolver e ajudar a reconstruir o seu fundamento social. A política urbana não está predestinada a tornar-se política de estado. Para um anarquista, tornar-se Ministro da Saúde ou Ministro da Justiça num governo republicano é imperdoável. Mas para um anarquista, ajudar a organizar uma assembleia de freguesia, a avnçar a sua consciência numa linha libertária, apresentar reivindicações sobre a revogabilidade e a rotatividade dos delegados escolhidos pela assembleia, fazer distinções claras entre formulações de políticas e coordenação administrativa, recusar o burocratismo civil em todas as suas formas, educar a comunidade para o coletivismo e a ajuda mútua e, finalmente, encorajar relações confederais entre assembleias populares e municipalidade e entre municipalidades, em desafio aberto ao estado nacional - este programa constitui uma "política" anarquista que, na sua lógica própria, contém a negação da política. Para os anarquistas, candidatar-se às eleições... sim, usemos a palavra abertamente - tendo em vista a reformulação das cartas cívicas das cidades e vilas americanas na linha deste programa, não é diferente, em princípio, do que candidatar-se nos sindicatos e locais de trabalho com vista a criar estruturas anarcosindicalistas. A diferença de situações não é sobre o ponto dos anarquistas se candidatarem a "eleições" ou se envolverem na política. A diferença real está em se o terreno do seu "elitoralismo" e da sua "política" se situa na esfera estatal ou na esfera social. O argumento sindicalista tradicional de que é perfeitamente válido os libertários apresentarem-se às eleições no local de trabalho e nos sindicatos, assenta no pressuposto duvidoso de que este 30 terreno está fora do aparelho de estado e permanece uma arena revolucionária. Perante a crescente interrogação posta pelas realidades, eles mantêm a afirmação de que o local de trabalho e os sindicatos, como organizações de classe, não são nem instituições burguesas nem estatais. Encerrar a discussão sobre estas propostas com o argumento de que as atividades cívicas são uma capitulação perante a política burguesa é ignorar realidades muito fortes sobre a própria esfera cívica - ou, para usar termos mais tradicionalmente anarquistas, sobre a esfera comunitária. Como resultado disto, aparências como "eleições", "deputados", e "coordenação" são tirados do contexto no qual ganham todo o sentido e conteúdo. Tornamse termos autônomos e flutuantes que determinam uma política sem discernimento nem a matéria da realidade. Isto deve ser muito claro: nos Estados Unidos, as fábricas são virtualmente mudas, enquanto que as cidades, particularmente os ghetos e os subúrbios não estão. Hoje, os trabalhadores americanos podem ser atingidos mais rápida e receptivamente como vizinhos e cidadãos do que como trabalhadores assalariados das fábricas - uma situação que envolve consequências muito graves numa discussão sobre a classe operária americana. Se os grupos anarquistas dos Estados Unidos - apoiando-se nas suas tradições do século XIX, no seu ligeiro anti-estatismo e no seu economicismo - ignorarem o conflito histórico entre as periferias sociais chamadas vilas, freguesias e cidades, por um lado, e o estado, por outro, eles ganharão as suas bandeiras negras, não como bandeiras de protesto, mas como mortalhas. A demarcação entre estatismo e anarquismo deve ser sempre clara, mas também o deve ser a demarcação entre sociedade e estado, ou então não conheceremos nunca o tempo em que a batalha terá lugar. Na crise histórica com que nos confrontamos, que a própria vida 31 pública ameaça fazer desaparecer, a recriação de uma esfera pública - à escala humana, diretamente democrática, e composta de cidadãos ativos - é talvez a responsabilidade mais premente do nosso tempo. Porque sem essa esfera pública, que deve ter tangibilidade cívica e substância se quiser ser mais do que simples metáfora, as prórpias condições e substância para o protesto teriam desaparecido. Postscriptum O último número de Comment terminava com uma discussão sobre o "novo municipalismo"como projeto focal do anarquismo para os anos futuros. Parece apropriada uma discussão sobre o tema "anarquismo: passado e presente", tratando, embora levemente, os problemas que este projeto levanta e a filosofia libertária que lhe serve de base. Existem dois campos que o anarquismo reclamou historicamente para a sua intervenção: o local de trabalho e a comunidade. Tanto na oficina artesanal como na povoação, na fábrica como no concelho, a teoria anarquista sugere, quando não afirma explicitamente, que ambos estes campos são mais sociais do que estatais. O local de trabalho, particularmente a fábrica industrial, encontrou a sua apoteose nos sindicatos anarco-sindicalistas e nos diversos movimentos para a "democracia no local de trabalho". Se este campo pode olhar-se hoje como "necessariamente" ou "potencialmente" revolucionário, é uma questão em aberto que requer uma discussão aparte e é agora assunto de largo debate, quer nos meios marxistas, quer nos meios anarquistas. Que lideres anarco-sindicalistas possam ter ocupado altos cargos estatais não é argumento que invalide a interpretação sindicalista das 32 idéias anarquistas, tal como o não é o fato de que os mutualistas e possibilistas do século XIX - que privilegiaram a atividade municipal - possam ter sido atraídos para a política parlamentar. Será que o que é realmente importante é o significado por nós atribuído ao novo municipalismo? os anarquistas tradicionais tinham da vida municipal a visão de um parlamentarismo local, cujos fins últimos estavam na plítica eleitoral. Será assim? Também se poderá argumentar que o sindicalismo, de qualquer tipo, envolve uma adaptação à hierarquia industrial e à racionalização, e conduz em última instância, a uma política de sindicatos burocratizados - um argumento que tem mais história atrás de si, do que a atividade municipal. Nós devemos ser muito honestos connosco mesmos, neste período crucial da história. Se um movimento anarquista nos Estados Unidos não se torna uma coligação livre de indivíduos, comunidades, cooperativas e grupos de afinidade - vitais como são a própria natureza e integridade de um tal movimento - ele não poderá implantar-se numa larga base de desenvolvimento social. E tal desenvolvimento compreende a esmagadora realidade de que a grande maioria dos americanos vive numa ou noutra forma de fixação urbana. Convém realçar que, se um novo municipalismo apenas significar uma política liberal, social-democrática ou mesmo "radical", confinada à melhoria dos serviços para os pobres, idosos e desprotegidos, então ele será um remendo do reformismo paroquial que, finalmente, fornecerá uam maquilhagem ao sistema, em vez de o desafiar. Mas se um novo municipalismo for guiado por um programa radicalmente diferente, ele pode tornar-se numa visão revolucionária praticável e muito necessária que engloba respostas ecológicas, feministas, étnicas, homossexuais e cívicas libertárias - com o carater fundamental de serem respostas cívicas, ou, mais precisamente, comunitárias. 33 Os requisitos minimamente indispensáveis para a realização desta visão são: 1- a formação de um movimento anarquista de elevado comprometimento e altamente consciente. Sem o desenvolvimento desse movimento, antes de tudo, o municipalismo degenerará inevitavelmente em reformismo e parlamentarismo; 2- o encorajamento e desnvolvimento de assembleias populares em áreas urbanas e concelhos; 3- e só então, poderia esta visão ser corporizada num movimento consciente largamente apoiado, uma Confederação de Municípios, que interligasse aquelas assembleias com comunidades urbanas mais vastas e, por fim, entre municipalidades que contestassem o estado e o governo nacionais, consciente e radicalmente. As suas reivinvicações: a reformulação das cartas cívicas de todas as cidades e vilas, para eleger (com direito a revogação e com rotatividade) os deputados concelhios a partir das assembleias populares, encarregando-os de funções mais administrativas do que políticas. Estas novas cartas, estando em franca contradição com a "Constituição" Federal, dariam às municipalidades o direito de municipalizar a indústria, os solos e o comércio; de determinar as suas necessidades sociais e de satisfazê-las; e finalmente de suplantar as instituições nacionais do estado pelas instituições confederais das comunidades locais. É nesta base que um novo anarquismo americano se pode e deve fundamentar para adquirir a relevância, a influência e o potencial revolucionário capaz de enfrentar a crise que se lhe deparará. Não perceber que o anarquismo pode orientar a maré de um ódio popular irresistível (não se pode descrevê-lo de outra maneira) contra a centralização, burocratização e interferência governamental em todos os aspetos da vida; não perceber este fato determinante, seria uma incrível miopia e condenaria o anarquismo 34 ao destino de uma mera tendência periférica na orla de uma monumental tempestade social. Em 19 de Abril de 1871, a Comuna de Paris proclamou no seu Programa Oficial ao Povo de França: "Exigimos a total autonomia da Comuna, extensiva a todo o território de França, assegurando a cada um a plenitude dos seus direitos, e a todos os franceses a livre expressão das suas faculdades como homem, como cidadão e como trabalhador". Sabendo que estas proclamações foram feitas há um século, podemos pedir menos do que isto? 35 MUNICIPALISMO LIBERTÁRIO Local de trabalho e comunidade são os pólos em que se tem centrado, ao longo da história, a teoria e pratica social radical. Com o aparecimento do Estado-Nação e da revolução industrial, a economia adquiriu proeminência sobre a comunidade, não só na ideologia capitalista como também nas várias modalidades de socialismo libertário e autoritário surgidas no século passado. Esta mudança de tônica do pólo ético para o econômico foi de enorme alcance, conferindo aos diversos socialismos inquietantes atributos burgueses. Tal evolução foi particularmente nítida no conceito marxista de emancipação humana através do domínio da natureza, projeto que implicando o domínio do homem pelo homem, justificava o aparecimento da sociedade de classes como condição prévia dessa emancipação. Infelizmente, a ala libertaria do socialismo não propôs com a necessária coerência, o primado da moral sobre o econômico, provavelmente em razão do nascimento do sistema de fábrica ( lugar clássico da exploração capitalista) e do proletariado industrial como agente de uma nova sociedade. O próprio sindicalismo revolucionário, apesar de todo o seu fervor moral, concebeu a organização social sindicalista pós-revolucionária nos moldes da sociedade industrial, o que testemunha bem a mudança de tônica do comunitarismo para o industrialismo, dos valores comunitários para os da fábrica. Obras que gozaram de prestigio quase sagrado no meio sindicalista 36 revolucionário, como “O organismo econômico da revolução” de Santillan, exaltam o significado da fábrica e do posto de trabalho, para não falar já do papel messiânico do proletariado. Todavia, o local de trabalho ( a fábrica na sociedade industrial) foi, ao longo da história, não só lugar de exploração, mas de subordinação hierárquica. Não serviu para “disciplinar”, “unir” e “organizar” o proletariado para mudança revolucionária mas, pelo contrario, para acostumar à obediência. O proletariado, como qualquer setor oprimido da sociedade, liberta-se abandonando os hábitos industriais e participando ativamente na vida comunitária. Da Tribo à cidade O município é espaço econômico e espaço humano de transformação do grupo quase tribal em corpo político de cidadãos. A política – gestão da cidade (polis) – tem sido desvirtuada em governo do estado tal como a palavra polis tem sido impropriamente traduzida por estado. Esta degradação da cidade em estado repugna aos antiautoritários, dado que o estado é instrumento das classes dominantes, monopólio institucionalizado da violência necessária para assegurar o domínio e a exploração do homem pelo homem. O estado desenvolveu-se lentamente a partir de base mais ampla de relações hierárquicas até se converter no Estado-Nação e, mais modernamente, no estado totalitário. Por outro lado, a família, o local de trabalho, as associações, as relações interpessoais e, de modo geral, a esfera privada da vida, são fenômenos especificamente sociais, distintos do âmbito estatal. O social e o estatal misturam-se; os despotismos arcaicos não foram senão ampliação da estrutura familiar patriarcal e, na atualidade, a absorção do social pelo estado totalitário nada mais é que o alargamento da burocracia a esferas não meramente administrativas. Esta mistura do social 37 e do estatal apenas prova que os modos de organização social não existem em formas puras. A “pureza” é termo que só pode ser introduzido no pensamento social a expensas da realidade concreta. A História na apresenta a categoria política como forma pura,m assim como não oferece qualquer exemplo de relações sociais não hierárquicas (acima do nível do bando ou aldeia) ou de instituições estatais puras (até época recente). O aparecimento da cidade abre espaço a uma humanidade universal distinta da tribo agro-pastoril, a um civismo inovador distinto da comunidade fechada na tradição e que exprime na gestão da polis por um corpo de cidadãos livres. Aproximações a uma política não estatal encontram-se na democracia ateniense, no town meetings da Nova Inglaterra ou nas assembléias de seção da comuna de Paris de 1793,. Experiências por vezes duradouras, por vezes efêmeras, que embora inquinada por traços opressivos característicos das relações sociais do seu tempo, permitem conceber um modelo político não parlamentar (burocrático e centralizado), mas cívico. A Cidade e a Urbe A era moderna caracteriza-se pela urbanização, degradação do conceito de cidade (civitas, corpo político de cidadãos livres) em urbe (conjunto de edifícios, praças, isto é, o fato físico da cidade). Os dois conceitos foram distintos em Roma até a época imperial e é elucidativo que a sua confusão corresponda ao declínio da cidadania. Os Gracos tinham procurado transformar a urbe em cidade, dar primazia ao cidadão, ao político sobre o econômico. Fracassaram e, sob o império, a urbe devorou a cidade. A distinção entre os conceitos de cidade e urbe encontra-se em outros países como a França, onde Rousseau já assinalava que “as casas fazem o aglomerado urbano (ville) mas só os cidadãos fazem a cidade (cité)”. Vistos como simples eleitores ou contribuintes – quase um eufemismo para súditos 38 – os habitantes da urbe tornam-se abstrações, meras criaturas do estado. Um povo cuja única função política é eleger deputados não é, de fato povo, mas “massa”. A politica entendida como categoria distinta do estatal, implica a reencarnação das massas num sistema articulado de assembléias, a constituição de um corpo político atuando num espaço de livre expressão, de racionalidade comum e de decisão radicalmente democrática. Sem autogestão nas esferas econômicas, ética e política, não será possível transformar os homens de objetos passivos à sujeitos ativos. O espaço cívico (bairro, cidade) é o berço em que o homem se civiliza e civilizar é sinônimo de politizar, de transformar a “massa”em corpo político deliberativo, racional e ético. Formando e fazendo funcionar tais assembléias, os cidadãos formam-se a si mesmos, porque a política nada é se não for educativa e não promover a formação do caráter. O município não é apenas o local onde se vive, a casa, serviços de higiene e salubridade, de previdência, emprego e cultura. A passagem da tribo à cidade representa uma transformação radical da sociedade primitiva ( de caça e colheita)à sociedade agrícola e desta à de manufatura,. A revolução urbana não foi menos profunda que a revolução agrícola ou que a industrial. Município e democracia direta Ao exaltar a atividade legislativa e executiva por delegados na comuna de Paris de 1871, Marx prestou um péssimo serviço ao pensamento social radical. Já Rousseau afirmava que o poder popular não pode se delegado sem ser destruído. Ou há assembléia popular dotada de plenos poderes ou o poder pertence ao estado. A delegação deturpou a comuna de Paris de 1871, 39 os sovietes e, mais geralmente, os sistemas republicanos em nível municipal e nacional. A expressão democracia representativa é, em si mesma, contraditória. O povo, ao delegar em órgãos que o excluem da discussão e decisão e definem o âmbito das funções administrativas, lança as bases do poder estatal. A supremacia da assembléia sobre os órgãos administrativos é a única garantia da supremacia do cidadão sobre o estado, crucial numa sociedade como a nossa, repletos de peritos que a extrema especialização e complexidade torna indispensáveis. A supremacia da assembléia é particularmente importante no período de transição de uma sociedade administrativamente centralizada para uma sociedade descentralizada. A democracia libertária só é concebível se assembléias populares, em todos os níveis, mantiverem sob a maior vigilância e escrupuloso controle os seus órgãos federais ou confederais de coordenação.isto não suscita problemas importantes do ponto de vista estrutural. Desde tempos remotos que as comunidades utilizam peritos e administradores sem perda da sua liberdade. A destruição das comunidades teve em geral origem estatal e não administrativa. Corporações sacerdotais e chefes serviram –se da ideologia e da ingenuidade publica, mais que da força, para reduzir primeiro e depois eliminar o poder popular. O Estado Contra a Cidade O estado nunca absorveu, no passado, a totalidade da vida social. Fato que Kropotkin assinalou implicitamente em O apoio mutuo, ao descrever a rica e complexa vida cívica das comunidades medievais. A cidade foi a principal força de oposição aos estados imperiais e nacionais, da antiguidade aos nossos dias. Augusto e seus sucessores fizeram 40 da supressão da autonomia municipal a chave da administração imperial romana e o mesmo fizeram os monarcas absolutos da época da reforma. “Abater os muros da cidade” foi uma constante da política de Luis XIII e de Richelieu, política que ressurge em 1793-94, com a progressiva e implacável restrição dos poderes da Comuna pelo Comitê de Salvação Publica robespierrista. A “revolução urbana”, enquanto poder alternativo, isto é, desafio potencial ao poder central, foi uma obsessão do estado ao longo da história. Esta tensão subsiste ainda, como o demonstram os conflitos entre o estado e as municipalidades na Inglaterra e América. Quando a urbanização tiver anulado a vida da cidade a ponto de sta não ter mais identidade, cultura e espaço associativos próprios, as bases para uma democracia terão desaparecido e a questão das formas revolucionárias será mero jogo de sombras. Qualquer perspectiva radical em moldes libertários perderá significado. Por outro lado, é ingênuo supor que assembléias populares (de aldeia, de bairro, de cidade) possam alcançar o nível de uma vida publica libertária sem a existência de um movimento libertário consciente, bem organizado e com programa claro. E este não poderá surgir sem a contribuição de uma intelectualidade radical, vibrante de vida comunitária, como a intelectualidade francesa do Iluminismo, com a sua tradicional presença ns cafés e bairros de Paris. Intelectualidade bem diversa da que povoa academias e outras instituições culturais da sociedade ocidental. Se os anarquistas não reforçarem esse extrato de pensadores em declínio, com vida publica vivaz, em comunicação ativa com o ambiente social, terão de enfrentar o risco de uma transformação das idéias em dogmas e de si 41 próprios em herdeiros presunçosos das grandes personalidades vivas do passado. As Classes Sociais em Reformulação Pode-se jogar com palavras como município, comunidade, assembléia e democracia direta, negligenciando diferenças de classes, étnicas e de sexo, que fizeram de termos como povo abstrações insignificantes. As assembléias de secção parisienses de 1793 não só estavam em oposição à comuna e à convenção mais burguesas, como eram, internamente campo de batalha entre assalariados e proprietário, democratas e realistas, radicais e moderados. Reduzir esta conflitualidade a meros interesses econômicos é tão incorreto como ignorar diferenças de classe e falar de fraternidade, liberdade e igualdade como se estas fossem meras expressões retóricas, esquecendo sua dimensão populista e utópica. Tanto se escreveu já sobre os conflitos econômicos nas revoluções inglesa, americana e francesa, que os historiadores futuros fariam melhor serviço se revelassem o medo burguês da revolução o seu conservadorismo inato e sua tendência para o compromisso com a ordem instituída. Mais útil ainda seria revelar como as classes oprimidas da era revolucionária empurraram as revoluções “burguesas” para fora das balizas estabelecidas pela burguesia, para espaços de democracia a que esta sempre se acomodou com dificuldade e suspeição. Os vários “direitos” então alcançados foram-no apesar da burguesia e não graças a ela; graças sim aos agricultores americanos de 1770 e aos sans-culottes parisienses de 1790. E o futuro destes direitos torna-se cada vez mais incerto. 42 A recente evolução tecnológica, social e cultural e seu desenvolvimento futuro poderá alterar a tradicional estrutura de classes criada pela revolução industrial e permitir que, da redefinição do interesse geral daí resultante, possa emergir novamente a palavra Povo no vocabulário radical. Não como abstração obscurantista, mas como expressão extratos desenraizados, fluídos e tecnologicamente deslocados, não integrados numa sociedade cibernética e automatizada. A estas camadas desprezadas pela tecnologia poderão juntar-se os idosos e os jovens, para que o futuro se apresenta incerto por difícil definição do seu papel na economia e na cultura. Estas camadas já não se enquadram na elegante e simplista divisão de classes correspondente ao trabalho assalariado e ao capital. O povo pode voltar, ainda, como referência ao interesse geral que se criou em torno de mobilizações publicas sobre temática ecológica, comunitária, moral, de igualdade de sexos ou cultural. Seria insensato subvalorizar o papel crucial destes problemas ideológicos, aparentemente marginais. Há 50 anos, já Borkenau fazia notar que a história do ultimo século mostrava que o proletariado podia enamorar-se mais do nacionalismo que do socialismo e ser mais facilmente conduzido pelo interesse patriótico que pelo de classe. Note-se também que a ideologia como o cristianismo e o islamismo ainda hoje mantém frente a ideologia sociais progressistas, nomeadamente ecológicas, feministas, étnicas, morais e contraculturais em que navegam elementos pacifistas e de cariz anárquico que aguardam ser integrados numa perspectiva coerente. Estão a desenvolverse à nossa volta novos movimentos sociais que ultrapassam as tradicionais fronteiras de classe. Deste fermento pode nascer um interesse geral mais 43 amplo pela sua finalidade, novidade e criatividade que os interesses economicamente orientados do passado. A Comunidade e a fábrica O “1984” Orwelliano traduz-se hoje pela megalópole de um estado muito centralizado e de uma sociedade profundamente institucionalizada. É nossa obrigação tentar opor a esta evolução social estatizante a ação política municipal. A revolução tradus-se sempre pelo aparecimento de um poder alternativo – sindicato, soviete, comuna – orientado contra o estado. O exato atento da história mostra que a fábrica, produto da racionalização burguesa, deixou de ser o local da revolução. Os operários mais revolucionários (espanhóis, russos, franceses e italianos) pertenceram sobretudo a estratos em transição, estratos agrários tradicionalmente em decomposição submetidos ao impacto corrosivo de uma cultura industrial. A luta operaria de hoje, que reflete os últimos sobressaltos de uma economia em extinção, é sobretudo defensiva, visando conservar um sistema industrial que esta sendo substituído por uma tecnologia de capital intensivo e cada vez mais cibernética. A fábrica deixou de ser o reino da liberdade (de fato foi sempre o reino da necessidade, da sobrevivência). Ao seu nascimento opuseram-se os setores artesanais, agrícolas e, em geral,o mundo comunitário. Obcecados pela idéia de socialismo cientifico e pela ingênua concepção de Marx e Engels, segundo a qual a fábrica servia para disciplinar, unir e organizar o proletariado, muitos radicais ignoraram o seu papel autoritário e hierarquizaste. A abolição da fábrica e sua substituição por uma ecotécnica (caracterizada por trabalho criativo e aparelhos cibernéticos 44 projetados para responder às necessidades humanas) é auspiciosa na perspectiva do socialismo libertário. A revolução urbana desempenhou um papel bem diferente do da fábrica. Criou a idéia de uma humanidade universal e da sua socialização segundo linhas racionais e éticas. Removeu as limitações ao seu desenvolvimento decorrentes dos vínculos do parentesco e do peso sufocante do costume. A dissolução do município representaria grave regressão social, pela destruição da vida civil e do corpo de cidadãos que confere sentido ao conceito de política. Para Um Municipalismo libertário O anarquismo sempre sublinhou a necessidade de uma regeneração moral e de uma contracultura (no melhor sentido do termo), antagônica da cultura dominante. Daí a importância a.ética, a coerência entre meios e fins e à defesa dos direitos humanos e cívicos contra qualquer forma de opressão e em qualquer aspecto da vida. A idéia de contra-instituíção é mais problemática. Vale a pena relembrar que no anarquismo houve sempre a par das tendências individualista e sindicalista, uma tendência comunalista. Esta ultima com forte orientação municipalista, como se depreende das obras de Proudhon e Kropotikin. Todas as tendências radicais sofrem de certa dose de inércia intelectual, a libertária não menos que a socialista autoritária. A segurança da tradição pode ser suficientemente reconfortante para bloquear qualquer possibilidade inovadora. O anarquismo tem estado obcecado pelo problema do parlamentarismo e do estatismo, preocupação historicamente justificada mas 45 que pode conduzir a uma mentalidade de estado de sítio, de cariz dogmático. O municipalismo libertário pode ser o ultimo reduto de um socialismo orientado para instituições populares descentralizadas. É curioso que muitos anarquistas que se entusiasma com qualquer chácara coletivizada no contexto de uma economia burguesa encare com desgosto uma ação política municipal que comporte qualquer tipo de eleições, mesmo se estruturadas em assembléias de bairro e com mandatos revogáveis, radicalmente democráticos. Se anarquista viessem a integrar conselhos comunais, nada obrigaria a que sua politica se orientasse para um modelo parlamentar, sobretudo se confinada ao âmbito local, em oposição consciente ao estado e visando a legitimação de formas avançadas de democracia direta. A cidade e o estado não se identificam. As suas origens são diversas e os seus papeis históricos diferentes. O fato de o estado permear hoje todos os aspectos da vida, da família à fábrica, do sindicato à cidade, não significa que se deva abandonar toda e qualquer forma de relação humana. Os fantasmas que devemos temer são os do dogmatismo e do imobilismo ritualístico.estes representam para a autoridade sucesso mais completo que o obtido através da coação, pois significariam que o seu controle está próximo de bloquear a capacidade de pensar livre e criticamente e de resistir com as idéias, mesmo quando a capacidade de agir se encontra bloqueada pelos acontecimentos. Murray Bookchin Viva a Anarquia!! 46 47 POR QUE ECOLOGIA SOCIAL? É hoje impossível considerar pouco importantes, marginais ou "burgueses" os problemas ecológicos. O aumento da temperatura do planeta em virtude do teor crescente de anidrido carbônico na atmosfera, a descoberta de enormes buracos na camada de ozônio - atribuíveis ao uso exagerado de clorofluorcarbonetos - que permitem a passagem das radiações ultravioletas, a poluição maciça dos oceanos, do ar, da água potável e dos alimentos, a extensa deflorestação causada pelas chuvas ácidas e pelo abate incontrolado, a disseminação de material radioativo ao longo de toda a cadeia alimentar... tudo isto conferiu à ecologia uma importância que não tinha no passado. A sociedade atual está a danificar o planeta a níveis que superam a sua capacidade de auto-depuração. Avizinhamo-nos do momento em que a Terra não terá condições de manter a espécie humana nem as complexas formas de vida não humana, que se desenvolveram ao longo de milhões de anos de evolução orgânica. Face a este cenário catastrófico há o risco, a julgar pelas tendências em curso na América do Norte e nalguns países da Europa ocidental, de se tentar curar os sintomas em vez das causas e de pessoas ecologicamente empenhadas procurarem soluções cosméticas em vez de respostas duradouras. O crescimento dos movimentos "verdes" um pouco por todo o mundo - inclusive no Terceiro Mundo- testemunha a existência de novo impulso para combater corretamente o desastre ecológico. Mas torna-se cada vez mais evidente que se necessita de bastante mais que de um "impulso". Por importante que seja deter a construção de centrais nucleares, de auto-estradas, de grandes aglomerações urbanas ou reduzir a utilização de produtos químicos na agricultura e na indústria alimentar, é necessário darmo-nos conta que as forças que conduzem a sociedade para a destruição 48 planetária têm as suas raízes na economia mercantil do "cresce ou morres", num modo de produção que tem de expandir-se enquanto sistema concorrencial. O que está em causa não é a simples questão de "moralidade", de "psicologia" ou de "cobiça". Neste mundo competitivo em que cada um se acha reduzido a ser comprador ou vendedor e em que cada empresa se deve expandir para sobreviver, o crescimento limitado é inevitável. Adquiriu a inexorabilidade duma lei física, funcionando independentemente de intenções individuais, de propensões psicológicas ou de considerações éticas. Hecatombes de Quarenta Milhões de Bizontes Atribuir toda a culpa dos nossos problemas ecológicos à tecnologia ou à "mentalidade tecnológica" e ao crescimento demográfico (para citar dois dos argumentos que mais freqüentemente emergem na mídia) é como castigar a porta que nos trancou ou o cimento em que caímos e nos machucamos. A tecnologia - mesmo a má como os reatores nucleares- amplifica problemas existentes, não os cria. O crescimento populacional é um problema relativo, se efetivamente o é. Não é possível dizer com segurança quantas pessoas poderiam viver decentemente no planeta sem produzir transtornos ecológicos. Os Estados Unidos, na última metade do século XIX, chacinaram quarenta milhões de bisontes, exterminaram espécies como o pombo correio, cujos bandos obscureciam o céu, destruiram vastas áreas de floresta original e entregaram à erosão ótima terra cultivável, de superfície comparável à de um grande país europeu... e todo este dano foi levado a cabo com uma população de menos de cem milhões de habitantes e uma tecnologia atrasada, pelos padrões atuais. Em suma, Havia outros fatores em jogo além da 49 tecnologia e da pressão demográfica quando este drama se desenrolou. A praga que afligiu o continente americano era mais devastadora que uma praga de gafanhotos. Era uma ordem social que se deve chamar sem cerimônias pelo nome que tinha e tem: capitalismo, na sua versão privada a Ocidente e na sua forma burocrática a Oriente. Eufemismos como "sociedade tecnológica" ou "sociedade industrial", termos muito difundidos na literatura ecológica contemporânea, tendem a mascarar com expressões metafóricas a brutal realidade duma economia baseada na competição e não nas necessidades dos seres humanos e da vida não humana. Assim a tecnologia e a indústria são representadas como os protagonistas perversos deste drama, em vez do mercado e da ilimitada acumulação de capital, sistema de "crescimento" que por fim devorará toda a biosfera se para tanto se lhe consentir sobrevivência suficiente. Sem Hierarquia e Sem Classes Aos enormes problemas criados por esta ordem social devem juntar-se os criados por uma mentalidade que começou a desenvolver-se muito antes do nascimento do capitalismo e que este absorveu completamente. Refiro-me à mentalidade estruturada em torno de hierarquia e do domínio, em que o domínio do homem sobre o homem originou o conceito do domínio sobre a natureza como destino e necessidade da humanidade. É reconfortante que se haja insinuado no pensamento ecológico a idéia de que esta concepção do destino humano é perniciosa. Contudo, não se compreendeu claramente como surgiu, persiste e como pode ser eliminada esta concepção. E se se quer achar remédio para o cataclismo ecológico, deve procurar-se a origem da hierarquia e do domínio. O fato da hierarquia sob todas as formas -domínio do jovem pelo velho, da mulher pelo homem, do homem pelo homem na forma de subordinação de classe, de casta, de etnia ou de 50 qualquer outra estratificação da sociedade - não haver sido identificada como tendo âmbito mais amplo que o mero domínio de classe, tem sido uma das carências cruciais do pensamento radical. Nenhuma libertação será completa, nenhuma tentativa de criar harmonia entre os seres humanos e entre a humanidade e a natureza poderá ter êxito se não forem erradicadas todas as hierarquias e não apenas a de classe, todas as formas de domínio e não apenas a exploração econômica. Estas idéias constituem o núcleo essencial da minha concepção de ecologia social e do meu livro A Ecologia da Liberdade. Sublinho cuidadosamente o uso que faço do termo "social", quando me ocupo de questões ecológicas, para introduzir outro conceito fundamental: nenhum dos principais problemas ecológicos que hoje defrontamos se pode resolver sem profunda mutação social. Esta é uma idéia cujas implicações não foram ainda plenamente assimiladas pelo movimento ecológico. Levada ás suas conclusões lógicas significa que se não pode transformar a sociedade presente aos poucos, com pequenas alterações. Quando muito estas pequenas mudanças são entraves que apenas reduzem a velocidade louca a que se está a destruir a biosfera. Devemos certamente ganhar o máximo tempo possível nesta corrida contra o biocídio e fazer todo o possível para a deter. Não obstante o biocídio prosseguirá, a menos que as pessoas se convençam da necessidade duma mudança radical e da de se organizarem para esse efeito. Deve aceitar-se a substituição da sociedade capitalista atual pelo que denomino "sociedade ecológica", isto é, por uma sociedade que implique as mutações sociais indispensáveis para eliminar os abusos ecológicos. É imprescindível refletir e debater profundamente sobre a natureza de tal "sociedade ecológica". Algumas conclusões são quase óbvias. Uma 51 sociedade ecológica deve ser não-hierárquica e sem classes, deve eliminar mesmo o conceito de domínio da natureza. A este propósito têm de se retomar os fundamentos do eco-anarquismo de Kropotkin e dos grandes ideais iluministas da razão, liberdade e força emancipadora da instrução, defendidos por Malatesta e Berneri. Melhor, os ideais humanistas que guiaram os pensadores anarquistas do passado devem ser recuperados na globalidade e transformados num humanismo ecológico que incarne nova racionalidade, nova ciência e nova tecnologia. O motivo pelo qual sublinhei os ideais iluministas libertários não é redutível aos meus gostos e predileções ideológicas. Trata-se realmente de ideais que não podem dispensar atenta consideração de qualquer indivíduo empenhado ecologicamente. Oferecem-se, hoje em todo o mundo, alternativas inquietantes ao movimento ecológico. Por um lado vai-se difundindo, sobretudo na América do Norte, mas também na Europa, uma espécie de doença espiritual, uma atitude contra iluminista que, em nome do "regresso à natureza", evoca racionalismos atávicos, misticismos e religiosidade de índole "pagã". Culto de "divindades femininas", "tradições paleolíticas" (ou "neolíticas", consoante os gostos), rituais "ecológicos" (espécie de ecologia vodu da administração Reagan) vão tomando forma deste e do outro lado do Atlântico em nome duma nova "espiritualidade". Este revivalismo do primitivismo não é fenômeno inócuo: frequentemente está imbuído de um neo-malthusianismo pérfido que se propõe, no essencial, deixar morrer de fome os pobres, vítimas principais da carestia do Terceiro Mundo, com a finalidade de "reduzir a população". A Natureza, diz-se, deve ser deixada livre para "seguir o seu curso". A fome e a carestia não são causadas, diz-se, pelos negócios agrários, pelo saque levado a cabo pelas grandes empresas, pelas rivalidades imperialistas, pelas guerras civis nacionalistas, mas têm a 52 sua origem na superpopulação. Deste modo o problema econômico é completamente esvaziado de conteúdo social e reduzido à interação mítica das forças naturais, freqüentemente com forte carga racista de pendor fascistizante. Por outro lado está em construção o mito tecnocrático segundo o qual a ciência e a engenharia resolveriam todos os males ecológicos. Como nas utopias de H. G. Wells procura-se fazer acreditar na necessidade duma nova elite para planificar a solução da crise ecológica. Fantasias deste tipo estão implícitas na concepção da terra como "astronave" (segundo a grotesca metáfora de Buckiminister Fuller), que pode ser manipulada pela engenharia genética, nuclear eletrônica e política (para dar um nome altissonante à burocracia). Fala-se da necessidade de maior centralização do Estado, desembocando na formação de "mega-Estados", em paralelo arrepiante com as empresas multinacionais. E como a mitologia se tornou popular entre os eco-místicos, promotores dum primitivismo em versão ecológica, o sistema tecnoburocrático logrou grande popularidade entre os "eco-tecnocratas", criadores dum futurismo em versão ecológica. Nos dois casos o ideal libertário do iluminismo - valorização da liberdade, da instrução, da autonomia individual – são negados pela pretensão de nos impedir a quatro patas para um "passado" obscuro, mistificado e sinistro, ou de nos catapultar como míssil para um "futuro" radioso, igualmente mistificante e sinistro. O Que É a Natureza A ecologia social, tal como a concebo, não é mensagem primitivista tecnocrática. Tenta definir o lugar da humanidade "na" natureza - posição singular, extraordinária - sem cair num mundo de cavernícolas antitecnológicos, nem levantar voo do planeta com fantasiosas astronaves e estações orbitais de fição científica. A humanidade faz parte da natureza, 53 embora difira profundamente da vida não humana pela sua capacidade de pensar conceitualmente e de comunicar simbólicamente. A natureza, por sua vez, não é simplesmente cena panorâmica a olhar passivamente através da janela, é a evolução na sua totalidade, tal como o indivíduo é a sua própria biografia e não a simples edição de dados numéricos que exprimem o seu peso, altura, talvez "inteligência" e assim por diante. Os seres humanos não são unicamente uma entre muitas formas de vida, forma especializada para ocupar um dos muitos nichos ecológicos no mundo natural. São seres que, pelo menos potencialmente, podem tornar auto-consciente e, por conseguinte, auto-dirigida a evolução biótica. Com isto não quero dizer que a humanidade chegue a ter conhecimento suficiente da complexidade do mundo natural para poder ser o tomoneiro da sua evolução, dirigindo-a à sua vontade. As minhas reflexões sobre a espontaneidade sugeram prudência nas intervenções sobre o mundo natural, (sustentam que se requer) grande cautela nas modificações a empreender. Mas, como disse em "Pensar Ecologicamente", o que verdadeiramente nos faz únicos é podermos intervir na natureza com um grau de auto-consciência e flexibilidade desconhecido nas outras espécies. Que a intervenção seja criadora ou destrutiva é problema que devemos enfrentar em toda a reflexão sobre a nossa interação com a natureza. Se as potencialidades humanas de auto-direção consciente da natureza são enormes devemos contudo recordar que somos hoje ainda menos que humanos. A nossa espécie é uma espécie dividida - dividida antagonisticamente por idade, carácter, classe, rendimento, etnia, etc. - e não uma espécie unida. Falar de "humanidade" em termos zoológicos, como fazem atualmente tantos ecologistas - inclusivamente tratar as pessoas como espécie e não como seres sociais que vivem em complexas criações institucionais – é 54 ingenuamente absurdo. Uma humanidade iluminada, reunida para se dar conta das suas plenas potencialidades numa sociedade ecologicamente harmoniosa, é apenas uma esperança e não apenas uma realidade, um "dever ser" e não um "ser". Enquanto não tivermos criado uma sociedade ecológica, a capacidade de nos matarmos uns aos outros e de devastar o planeta fará de nós - como efetivamente faz - uma espécie menos evoluída do que as outras. Não conseguir ver que atingir a humanidade plena é problema social que depende de mutações institucionais e culturais fundamentais é reduzir a ecologia radical à zoologia e tornar quimérica qualquer tentativa de realizar uma sociedade ecológica. Vínculos Comunitários Como é possível conseguir as transformações sociais de grande alcance que preconizo? Não creio que possam vir do aparelho de Estado, quer dizer, num sistema parlamentar de substituição dum partido por outro (por altamente inspirado que este último possa parecer durante o seu período heróico de formação). A minha experiência com o movimento verde alemão demonstroume (partindo do princípio que teria necessidade dessa demonstração) que o parlamentarismo é moralmente nocivo no melhor dos casos e totalmente corrupto na pior das hipóteses. A representação dos verdes no Bundestag confirmou, nestes últimos tempos, os meus piores temores: a sua maioria "realista" é favorável à participação da Alemanha Ocidental na NATO e apoia uma forma de "eco-capitalismo" (contradição nos termos) incompatível com qualquer abordagem ecológica radical. Além disso o parlamentarismo mina invariavelmente a participação popular 55 na política, no significado que há muitos séculos lhe é atribuído. Para os antigos atenienses política significava a gestão da polis, isto é, da cidade, diretamente pelos cidadãos reunidos em assembléia e não através de burocratas ou de representantes eleitos. É verdade que somente os homens eram cidadãos e que, além das mulheres, estrangeiros e escravos eram igualmente excluídos. É ainda verdade que os cidadãos ricos dispunham de recursos materiais e gozavam de privilégios recusados aos cidadãos pobres. Mas é também verdade que a antiga cidade mediterrânea não havia ainda alcançado, há dois mil e tantos anos, o seu pleno desenvolvimento, a "sua verdade" como diria Hegel. A liberdade do cidadão participar na vida política não dependia da tecnologia mas do trabalho: dos escravos, das mulheres e do seu próprio. Aristóteles não via qualquer dificuldade em admitir que quando os teares tecessem sozinhos os gregos não necessitariam de escravos, nem - acrescento eu - de explorar o trabalho alheio para dispôr de tempo livre para si mesmos. Hoje as máquinas fazem o que Aristóteles dizia e muito mais. Podemos finalmente fruir o tempo livre necessário para nos desenvolvermos e participar amplamente na vida pública sem precisarmos de pôr em perigo o mundo natural nem explorar o trabalho alheio. A ecologia radical não pode ser indiferente ás relações sociais e econômicas. O delicado equilíbrio entre o uso da tecnologia com fins libertadores e o seu uso com fins destrutivos para o planeta é matéria de apreciação social, mas tal apreciação é grandemente ofuscada quando ecologias sui generis denunciam a tecnologia como mal irrecuperável ou a exaltam como virtude indiscutível. Curiosamente, místicos e tecnocratas têm importante característica em comum: nem uns nem outros examinam a fundo os problemas nem seguem a lógica para além das premissas mais elementares e simplistas. 56 Uma nova política deveria, quanto a mim, implicar a criação duma esfera pública "de base" extremamente participativa, a nível da cidade, do campo, das aldeias e bairros. Decerto o capitalismo provocou destruição tanto dos vínculos comunitários como do mundo natural. Em ambos os casos encontramo-nos face a simplificação das relações humanas e não humanas, à sua redução a formas interativas e comunitárias elementares. Mas onde existam ainda laços comunitários e onde - mesmo nas grandes cidades possam nascer interesses comuns, esses devem ser cultivados e desenvolvidos. Estudei este tipo de política comunal (repito: entendo política no sentido helenico, não no seu significado atual que denomino "estatalidade") no meu livro "O Progresso da Urbanização e o Declínio da Cidadania". Por difícil que pareça, na Europa (e em menor grau, creio, nos Estados Unidos) acredito na possibilidade duma confederação de municípios livres como contra-poder de base à centralização crescente do poder por parte do Estado-nação. Quero fazer notar que, neste campo, a política ecológica é em muitos casos não apenas possível mas também coerente com a ecologia concebida como estudo da comunidade, quer humana quer não humana. Uma sociedade ecológica pressupõe formas participativas de base, comunitárias, que tal política se propõe realizar no futuro. A ecologia não é nada se se não ocupar do modo como interatuam as formas de vida para construir e se desenvolverem como comunidades. 57 ANARQUISMO E ECOLOGIA O anarquismo não se limita apenas a idéia de criar comunas independentes. E, se me detive a examinar esta possibilidade, foi apenas para demostrar que, longe de ser um ideal remoto, a sociedade anarquista tornou-se um prérequisito para a prática dos princípios ecológicos. Sintetizando a mensagem crucial da ecologia, diremos que, ao reduzir a variedade no mundo natural, estaremos aviltando sua unidade e integridade, destruindo as forças que contribuem para a harmonia natural e para o equilíbrio duradouro e, o que é ainda mais importante, estaremos provocando um retrocesso no desenvolvimento do mundo natural. Retrocesso que poderá eventualmente, impedir o aparecimento de outras formas mais avançadas de vida. Sintetizando a mensagem reformadora da ecologia, poderíamos afirmar que, se desejamos promover a unidade e estabilidade do mundo natural, tornando-o mais harmonioso, precisamos estimular e preservar a variedade. Mas estimular a variedade pela variedade seria um vazio. Na natureza, ela surge espontaneamente. As possibilidades de sobrevivência de uma nova espécie são testadas pelos rigores do clima, pela sua habilidade em enfrentar seu inimigos, pela sua capacidade de estabelecer e ampliar o espaço que ocupa no meio ambiente. Entretanto, qualquer espécie que consegue aumentar seu território estará, ao mesmo tempo, ampliando a situação ecológica como um todo. Citando A. Gutkind, ela estará "ampliando o meio ambiente tanto para si própria quanto para qualquer outra espécie com a qual mantenha um relação equilibrada". 58 Como aplicar este conceito a teoria social? Creio que para muitos leitores bastaria dizer que, na medida que o homem é parte da natureza, a ampliação do meio ambiente natural implicaria um maior desenvolvimento social. Mas a resposta para essa pergunta é bem mais profunda do que poderiam supor ecológicos e libertários. Permintam-me retornar mais um vez a idéia ecológica que afirma ser a diversidade uma consequência da integridade e do equilíbrio. Tendo em mente essa idéia, o primeiro passo para encontrar a resposta seria a leitura de um trecho da Filosofia do anarquismo de Herbert Read, onde, ao apresentar seus "critérios de progresso", ele observa que o progresso pode ser mediado pelo grau de diferenciação existente na sociedade. Se o indivíduo é apenas uma unidade da massa coletiva, sua vida será limitada, monótona e mecânica. Mas, se ele for uma unidade independente, poderá estar sujeito a acidentes ou azares da sorte, mas ao menos terá a chance de crescer e expressar-se. Poderá desenvolver-se - no único sentido real do termo - na consciência de sua própria força, vitalidade e alegria. Embora não tenha encontrado seguidores, as idéias de Read nos fornecem um importante ponto de partida. O que primeiro nos chama a atenção é o fato de que, tanto ecologista como anarquista ressaltam a importancia da espontaneidade. Na medida em que é mais que um simples técnico, o ecologista tem um tendência a desprezar o conceito de "domínio sobre a natureza" preferindo falar em "conduzir" uma situação ecológica, em gerir um ecossistema, em vez de recría-lo. O anarquista, por sua vez, fala em espontaneidade social, em libertar o potencial da sociedade e da humanidade, em dar rédeas soltas a criatividade humana. Ambos vêem na autoridade uma força inibidora, um 59 peso que limita o pontencial criativo de uma situação natural ou social. Assim como o ecologista procura ampliar o alcance de um ecossistema e estimular a livre ação recíproca entre as espécie, o anarquista busca ampliar o alcance da experiência social e remover os obstáculos que possam impedir seu desenvolvimento. O anarquismo não é apenas uma sociedade sem governo, mas uma sociedade harmoniosa que procura expor o homem a todos os estímulos da vida urbana e rural, da atividade física e mental, da sensualidade não reprimida e da espiritualidade, da solidariedade ao grupo e do desenvolvimento individual. Na sociedade esquizóide em que vivemos, tais objetivos não só são considerados irreconciliáveis, como diametralmente opostos. Uma sociedade anaquista deveria ser descentralizada, não apenas para que tivesse condições de criar bases duradouras que garantissem o estabelecimento de relações harmoniosas entre o homem e a natureza, mas para que fosse possível dar uma nova dimensão ao relacionamente harmônico entre os próprios homens. Há uma necessidade evidente de reduzir as dimensões das comunidades humanas - em parte para solucionar os problemas da poluição e em parte para que pudéssemos criar verdadeiras comunidades. Num certo sentido, seria necessário humanizar a humanidade. O uso de aparelhos eletrônicos, tais como telefones, telégrafos, rádios e televisão, como forma de intermedia a relação entre as pessoas, deveria ser reduzido ao mínimo necessário. As comunidade menores teriam uma economia equilibrada e vigorosa, em parte para que pudessem utilizar devidamente as matérias-primas e as 60 energias locais, e em parte para ampliar os estímulos agrícolas e industrias. O membro da comunidade que tiver inclinação para engenharia, deveria ser encorajado a mergulhar suas mãos na terra, o intelectual a usar seu músculos, o fazendeiro a conhecer o funcionamento da fábrica. Separa o engenheiro da terra, o pensador da espada, o fazendeiro da fábrica, gera um grau de superespecialização, onde os especialistas assumem um perigoso controle da sociedade. Uma comunidade auto-suficiente, que dependesse do meio ambiente para sua subsistência, passaria a sentir um novo respeito pelas interrelações orgânicas que garantem sua sobrevivência. Creio que longe de resultar em provincianismo, essa relativa auto-suficiencia criaria uma nova matriz para o desenvolvimento do indivíduo e da comuna - uma integração com a natureza que revitalizaria a comunidade. Se algum dia tivermos conseguido ter na prática uma verdadeira comunidade ecológica, ela produzirá um sensível desenvolvimento na diversidade natural, formando um todo harmônico e equilibrado. E, estendendo-se pelas comunidades, regiões e continentes, veremos surgir diferentes territórios humanos e diferente ecossistemas, cada um deles desenvolvendo suas próprias potencialidades e expondo seus membros a uma grande variedade de estímulos econômicos, culturais e de conduta. As diferenças que existem entre indivíduos serão respeitadas como elementos que enriquecem a unidade da experiência e do fenômeno. Libertos de uma rotina monótona e repressiva, das inseguranças e opressões, da carga de um trabalho demasiado penoso e das falsas necessidades, dos obstáculos impostos pela autoridade e das compulsões irracionais, os indivíduos estarão, pela primeira vez na história, numa posição que lhes permitirá 61 realizar seu potencial como membros da comunidade humana e do mundo natural. (em: O Anarquismo Pós-Escassez, 1974) 62 ANEXOS 63 David Watson Além de Bookchin: Prefácio para uma Ecologia Social do Futuro: Detroit, EUA. Black&Red/Autonomedia, 1996 Resenha de Manuel Portela Este livro de David Watson faz uma análise e uma crítica do conjunto da obra do pensador norte-americano Murray Bookchin, um dos principais teorizadores do movimento da ecologia social. Bookchin, que começou a publicar no início dos anos 70, tentou ligar a teoria do movimento ecologista, a teoria marxista e a crítica anarquista da tecnologia e da civilização. Além de diversos artigos, entre as obras de Bookchin que são minuciosamente escrutinadas nesta análise contam-se: Toward an Ecological Society (1980), The Ecology of Freedom (1982), The Modern Crisis (1986), The Rise of Urbanization and the Decline of Citizenship (1987), Remaking Society: Pathways to a Green Future (1990), Which Way for the Ecology Movement? (1994) e The Philosophy of Social Ecology (1995). Watson, por seu lado, além de colaborador e editor da revista de Detroit Fifth Estate, é também autor de How Deep Is Deep Ecology? (1989). A ecologia social tem como programa construir uma representação capaz de transcender as dicotomias ser humano/natureza, numa visão holística da actividade social humana enquanto elemento da esfera ecológica. Uma tal teoria implica uma profunda crítica da organização social do trabalho, do desenvolvimento urbano e da coisificação da natureza, que resultaram do desenvolvimento tecnológico, da ideologia do progresso e da glorificação da civilização. 64 Segundo David Watson, a ecologia social de Bookchin, no entanto, fica muito aquém das suas intenções. Ao mesmo tempo que identifica exaustiva e claramente muitas limitações e contradições na obra de Bookchin, Watson é particularmente demolidor em relação ao autoritarismo de Bookchin, que se tem furtado ao confronto com outras versões da ecologia social dentro dos movimentos ecologista e anarquista norte-americanos. Esta obra tem portanto um carácter eminentemente polémico, mas está longe de se esgotar aí. A sua estrutura é definida, em boa parte, por uma série de conceitos que Watson vai expor e criticar na formulação bookchiniana: razão, civilização, técnica, progresso, natureza, espiritualidade, cidade e primitivo. Watson mostra, nomeadamente, até que ponto a ecologia social de Bookchin está prisioneira da racionalidade tecnocrática e da ideologia do progresso, não apenas nos conceitos muito restritos de razão e de civilização, ou através de uma confiança contraditória na tecnologia, mas também por via de uma conceptualização logocêntrica da natureza e da espiritualidade. Há também um capítulo dedicado à injustificada profissão de fé de Bookchin nas virtudes do municipalismo democrático norte-americano, em face da organização das cidades contemporâneas e da natureza burocrática da política. Nos dois últimos capítulos, dedicados à representação das culturas ditas primitivas, Watson contesta as análises economicistas das duas últimas décadas, considerando que as teorias revisionistas da antropologia pós-moderna acabam por re-mistificar as culturas primitivas. Uma das grandes qualidades desta obra está em fazer plena justiça ao seu título, tornando-se uma excelente introdução para quem, como eu, desconhecia quase por completo a ecologia social norte-americana. Em vez 65 de oferecer uma doutrina panfletária, auto-satisfeita com as suas próprias análises e palavras de ordem, Watson optou por inspeccionar atentamente o vocabulário crítico de um dos seus expoentes e mostrar como a ecologia radical de Bookchin se encontra ainda ideologicamente dependente das categorias que quer contestar, o que compromete muitas das suas intuições mais valiosas. David Watson conseguiu assim uma relativa descolonização dos conceitos da ecologia social de Bookchin, revelando as insuficiências da sua linguagem erigida em sistema e abrindo caminho para outras ecologias sociais. A técnica de fazer falar de outro modo as inúmeras citações de Bookchin tem, de resto, um elucidativo paralelo visual: cada capítulo é introduzido por uma gravura dos Caprichos de Francisco Goya, através da qual a interpelação céptica de David Watson comenta o dogmatismo de Murray Bookchin. A argumentação polémica do livro abre-se por isso inteiramente para o leitor, que ganha uma viva consciência dos problemas de uma conceptualização ecológica da razão, da natureza e da sociedade. 66 J. M. Carvalho Ferreira ECOLOGIA SOCIAL E DESENVOLVIMENTO É indubitável que em pleno apogeu do progresso e da razão, a complexidade da mudança sócio-cultural, política e económica mergulhou todas as sociedades numa crise profunda que tende inclusive a pôr em causa a sobrevivência da espécie humana. Estamos, portanto, num período histórico de paradoxos estruturados pela sofisticação e o desenvolvimento gigantesco das capacidades e possibilidades científicas e tecnológicas. Entre as várias manifestações em que se corporiza essa realidade, emerge a atividade econômica com um desenvolvimento ininterrupto das funções de produção e de consumo de bens e serviço. Paradoxalmente, no entanto, a riqueza produzida não se traduz numa distribuição e apropriação equitativa pelos diferentes indivíduos, grupos e classes sociais que constituem as diferentes sociedades. Por outro lado, a relação do homem com a natureza tende a agravar-se no sentido de um desequilíbrio irreversível, destruindo progressivamente a harmonia ecossistémica que subsistia há vários milénios. Hoje, face à gravidade dos problemas existentes, para além de perceber os sintomas dessa crise, interessa-nos explicitar os factores e as condições que se revelam mais emblemáticos para o devir da natureza e da humanidade. Assim, quando nos debruçamos na análise do sistema social global, deparamos, quase sempre, com uma situação sócio-cultural que põe em risco as hipóteses de interacção social que fundamentam os processos de sociabilidade e de socialização dos indivíduos à escala planetária. Para tal basta olharmos para os níveis de pobreza e de desemprego, de marginalidade e de miséria social, pressão demográfica, fome e guerra que 67 persistem à escala mundial. Simultaneamente, quando observamos as modalidades de intervenção e de transformação do homem nas suas relações com a natureza e o ambiente em geral, questionamos até que ponto ainda nos é possível sobreviver no planeta Terra. Cientistas e políticos são pródigos em interpretações que indiciam que caminhamos para o abismo, caso nos mantenhamos com o mesmo modelo de desenvolvimento económico e social (ROBIN, 1977). Essas hipóteses são de tal modo negativas que, face à impotência das soluções racionaisinstrumentais da sociedade capitalista para inverter essa evolução, revela-se cada vez mais banal a função utilitária das alternativas ecologistas até há pouco tempo consideradas utópicas pelo mercado e o poder normativo vigente. Tendo presente essa realidade, mais do que enumerar e pretender superar as contradições existentes através das múltiplas soluções terapêuticas normativas que pretendem superar os efeitos da crise social e humana e da natureza, sem se preocuparem de extinguirem as causas da mesma, torna-se imperioso e urgente analisar o modelo de desenvolvimento económico, social, cultural e político que está na origem do dilema histórico em que nos encontramos. Infelizmente, nos dias que correm, as análises científicas tendem a reflectir os desígnios ideológicos da racionalidade instrumental do capitalismo e a servirem como um produto circunscrito aos sucessos conjunturais da moda intelectual e espectáculo informativo dos "mass media". Acresce a esse facto, revestirem-se ainda de uma pseudo-neutralidade científica identificada com as necessidades intrínsecas da sociedade, esquecendo-se que foram objecto de uma institucionalização, cuja legitimidade foi outorgada em função dos interesses das classes dominantes e do Estado. Os paradigmas 68 científicos mais representativos são, neste domínio, o exemplo mais acabado desse tipo de posição. É muito fácil chegar a essa conclusão. Verifique-se a "objectividade" e a "neutralidade" dos milhares de artigos e livros escritos sobre os temas sublinhados e tenha-se presente, a esse respeito, os milhares de análises que se realizaram sobre a natureza e a história dos países denominados "socialistas". Numa outra perspectiva, observe-se o sentido meta-histórico de uma evolução unilinear pretensamente harmoniosa que se pretende dar ao modelo de sociedade capitalista, enquanto processo histórico distintivo do desenvolvimento sócio-cultural, económico e político das sociedades. Contra esta hegemonia totalitária, persistem um conjunto de autores que se revelam excepções marginais às regras científicas predominantes. Por opções éticas, morais e científicas têm analisado, de forma radical, esse modelo de desenvolvimento, demonstrando as suas contradições e limites históricos. Não obstante saber do peso dessas posições hegemónicas e contradições paradigmáticas, perante os desafios que se nos apresentam, mais do nunca, torna-se imperioso compreender e explicitar as características e tendências do modelo de desenvolvimento que está na origem da crise que atravessamos. Quase sempre, em situações históricas semelhantes, quando assistimos a este tipo de fenómenos, os sintomas críticos do modelo de desenvolvimento capitalista, tendem a ser resolvidos pela via da reforma ou de uma hipotética revolução. Ambas coexistem num processo de interdependência e complementaridade, estimulando e estruturando soluções de ultrapassagem 69 da crise social, humana e ecológica. Tendo presente os sucessivos insucessos das reformas e revoluções já realizadas, assunção, os cenários de mudança ou de transformação radical da sociedade capitalista que possamos deduzir, revestem-se de contingências e ensinamentos históricos que não podemos descurar. Numa óptica estrita de sobrevivência histórica e de intervenção social pautada pela coerência e a eficácia, nada mais nos resta do que evoluir no sentido da construção de uma outra sociedade. Esta terá que ser ser dinamizada com base em transformações económicas, sociais, políticas e culturais de características radicais. Na emergência deste quadro revolucionário, a ecologia social assente nos princípios e práticas do anarquismo, tantas vezes esquecida e adulterada como um modelo utópico, revela-se, hoje, com virtualidades inesgotáveis. A ecologia social aparece, assim, como uma hipótese histórica de superação das incongruências funcionais do atual modelo de desenvolvimento que subsiste à escala planetária. Nesse sentido, ela introduz novas perspectivas de equilíbrio ecossistémico entre as diferentes espécies animais e vegetais e, sobretudo, entre o homem e a natureza. Finalmente, pela sua essência anarquista, ela aparece como uma potencialidade real de construirmos um novo mundo, o que nos indicia desenvolvermos uma ética e uma filosofia apoiada em princípios humanistas e fraternais em relação à sociedade e à natureza. 1. Características da crise do sistema social global no limiar do século XXI A generalidade das análises que se debruçam sobre a atual crise da evolução das sociedades contemporâneas sublinham, com especial 70 significado, os problemas relacionados com a explosão demográfica, a destruição do ambiente, a guerra, o desemprego, a marginalidade social, a fome e a pobreza. Se pensarmos na pertinência desses diferentes flagelos no contexto estrutural e institucional das atuais sociedades, verifica-se que todos eles estão em estreita sintonia, quer nas causas que estão na sua origem, quer nos seus efeitos perversos. Todos esses fenómenos resultam de uma lógica competitiva e concorrencial, na qual os objectivos do lucro e da exploração estão sempre presentes. Em termos de uma racionalidade pautada por fins e meios, todos eles estão submetidos a um sistema de eficácia e eficiência capitalista. Na maneira como estão articulados entre si, cada um deles desenvolve-se num sentido interdependente e complementar. Os resultados lógicos da interacção que resulta desse sistema complexo são visíveis através da produção e consumo de bens e serviços, na transformação e esgotamento dos recursos naturais e num crescendo populacional inaudito. A outra versão dessa interacção produzida pelos diferentes componentes do sistema social global observa-se através da explosão dos fenómenos migratórios, da pobreza, da segregação e marginalidade social provenientes da catástrofe ambiental, da guerra, do desemprego e da fome à escala universal (PNUD, 1994). As projeções da população mundial para o ano de 2050 apontam para cerca de 10.000 milhões de pessoas no planeta Terra. Entre as várias consequências, importa referir as suas incidências geográficas e ambientais. O continente africano, que conta atualmente com 12% da população mundial, no ano de 2050 passará a deter 27% da referida população. Em comparação, para o mesmo ano de 2050, a Ásia manter-se-á ligeiramente 71 acima dos 50% da população total, enquanto que a América Latina passará dos 9% actuais para 10% da população total no ano de 2050 e a população total dos países considerados desenvolvidos tenderá a decrescer dos 23% actuais para 13% (FNUAP, 1992). Sem descrever as profundas implicações que resultam da pressão demográfica em termos ambientais, económicos, políticos, sociais e culturais, importa, para já, pensar em alguns dos seus aspectos mais significativos. Segundo as projeções do Relatório sobre a População Mundial de 1992 elaborado pelas Nações Unidas, a manter-se essa evolução demográfica, persiste a necessidade de aumentar em 56% a área de terreno cultivável que os países "considerados em desenvolvimento" actualmente dispõem: isto é, só para as necessidades de terrenos não agrícolas ter-se-á que recorrer a 4,5 milhões de quilómetros quadrados de "habitat" da fauna selvagem considerados para fins agrícolas. Dito de outro modo, cada pessoa nos países em desenvolvimento terá possivelmente à sua disposição 11% de 1 (um) hectare de terra cultivável. A destruição do ambiente é visível a diferentes níveis. Para essa averiguação basta olharmos para o grau de destruição dos recursos renováveis até agora considerados "ilimitados": água, terra, espécies vegetais e animais. A erosão dos solos, a desertificação das zonas semi-áridas, a salinização das áreas irrigadas e a poluição dos rios e dos mares são disso uma prova irrefutável (SACHS, 1980). Acresce a essa realidade ambiental negativa, a poluição atmosférica e hídrica, o sobre-aquecimento da terra, a destruição progressiva da camada do ozono, a destruição das florestas e de milhares de outras espécies vegetais e animais (WEINER, 1991). 72 O esgotamento e a erosão dos recursos naturais considerados "renováveis", como é o caso da água e dos solos aráveis, são previsíveis nessas projecções e sobretudo apontam para uma eventual catástrofe ecológica. Em presença de um crescente agravamento da poluição atmosférica e hídrica, da destruição progressiva da camada do ozono, do sobre-aquecimento global do planeta Terra, das calamidades naturais que estão ocorrer nos países mais industrializados e urbanizados, etc..., essas tendências negativas desenvolvem-se, cada vez mais, com maior acuidade. Não se pode analisar a destruição do ambiente em função exclusiva da erosão e esgotamento dos recursos naturais. A lógica racional da sociedade capitalista assente numa economia de produção e consumo de bens e serviços efémeros, e a guerra que emerge em inúmeros países, estão a contribuir enormemente para essa situação. O número de refugiados internacionais é neste aspecto muito elucidativo. Para fugir à guerra ou à miséria provocada por cataclismos naturais de uma economia depradadora, percebe-se, de certa maneira, porque dos 2,8 milhões de refugiados em 1976, passou-se para 17,3 milhões em 1990. Com o agravamento da crise económica e a proliferação dos conflitos bélicos à escala regional, o número de refugiados tende a aumentar assustadoramente. Se juntarmos a esta realidade o número de emigrantes clandestinos, depreende-se de como a África, a América Latina, a Ásia e a África estão a tornar-se um laboratório experimental migratório para outras regiões geográficas. Vivendo em condições infra-humanas, sujeitam-se a emigrar para os países vizinhos, ou em última análise para os EUA e a Europa ocidental, de modo a evitarem o genocídio provocado pela guerra e a fome. Se tivermos, ainda, em linha de conta a desintegração social e económica que subsiste nos países do leste europeu que tinham enveredado pelo "socialismo real", os problemas das 73 migrações clandestinas assumem proporções alarmantes no continente europeu. Acresce que os fenómenos migratórios resultam também da miséria existencial que abunda numa parte significativa desses países. O número de pobres que era de 944 milhões em 1970, segundo o relatório das Nações Unidas já mencionado, subiu para 1.156 milhões em 1985 e na perspectiva de outras fontes recentes esse número não pára de aumentar (PNUD,1994). Em termos da sua situação geográfica, 273 milhões vivem na África, 204 milhões na América Latina e 737 milhões na Ásia. É notória a intenção dos referidos relatórios em demonstrarem as incidências negativas da pobreza nos países em desenvolvimento. Ora este panorama não é muito brilhante nos países "considerados desenvolvidos". Segundo estimativas recentes (Diário de Notícias, 1992), havia 53 milhões de pobres na CEE numa população de 340 milhões, enquanto que nos EUA, para uma população de 245 milhões, existiam 31,5 milhões de pobres. Este tipo de pobreza embora possa ser considerado diferente daquela que ocorre nos países em desenvolvimento, na medida em que podem usufruir de educação, saúde, da segurança social e habitação num limiar de sobrevivência mínima, ela revela-se fundamentalmente uma chaga social que não pára de crescer e de se identificar com as causas e os efeitos perversos do funcionamento normativo dos países capitalistas desenvolvidos (PNUD, 1994). Torna-se claro, cada vez mais, que a crise actual da sociedade capitalista e do seu modelo de desenvolvimento não afeta exclusivamente os países em vias de desenvolvimento. O desemprego e a marginalidade social, a violência, a droga, o crime, a guerra, a xenofobia, o racismo e o etnocídio, assim como a segregação social, também fazem parte do mundo "civilizado" 74 do ocidente. Numa perspectiva sociológica, todos esses fenómenos resultam de um conjunto de fatores cuja evolução tende a agravar a crise do modelo de desenvolvimento da sociedade capitalista. Sem querer dar-lhes uma base determinista, entre os mais importantes, sublinhe-se: a pressão demográfica; a urbanização e burocratização das relações sociais e dos processos de socialização dos indivíduos e grupos sociais; pobreza e desigualdade social; nacionalismos e integrismos religiosos; anomia e desintegração social. As manifestações sócio-culturais da pressão demográfica não se coadunam com os pressupostos analíticos das teses malthusianas e darwinistas. A espécie humana vê-se constrangida a lutar pela sobrevivência, utilizando formas relacionais de tipo coletivo e individual alienantes. É uma luta traduzida por uma racionalidade espaço-temporal mercantil, regulada, em parte, por processos migratórios conflitantes, fomentadores de uma segregação ecológica e social. Porém, com base nas virtualidades explicativas dessas teses, nem a função estruturante da racionalidade económica, nem as virtualidades do determinismo biológico da natureza humana têm impedido que o crescimento da população mundial evolua de modo caótico e as excrecências comportamentais das elites governamentais sejam irracionalmente competitivas. Em contextos estruturantes da pobreza e da miséria e em situações contingenciais ambientais adversas, é natural que as taxas de fecundidade e 75 de natalidade aumentem de forma desproporcionada. Na Europa Ocidental e nos EUA passa-se um fenómeno inverso: as taxas de fecundidade e da natalidade tendem para a estacionaridade. Esta realidade aponta para a importante função da diversidade dos valores sócio-culturais, quase sempre identificados com comportamentos humanos estandardizados no domínio da procriação e reprodução da sua espécie. Num outro plano, importa referir que os princípios e práticas do mimetismo polarizado no sistema capitalista à escala universal tem gerado processos de êxodo rural e de urbanização desequilibrados. O desenvolvimento discrepante dos sectores agrícola, industrial e terciário, para além de gerar uma desigualdade social, económica, política e cultural de características negativas, transformou os aglomerados urbanos num antro de miséria e de marginalidade social. Destruindo-se as relações sociais comunitárias, diminuindo-se as bases de coesão social, desintegrando-se os laços de solidariedade social, criam-se as condições que fomentam um acréscimo gigantesco das taxas de fecundidade e de natalidade. Como consequência, a pressão demográfica nos grandes aglomerados urbanos desenvolve-se em termos de uma dimensão, heterogeneidade e densidade populacionais que conduzem à desintegração e à anomia social. Uma das outras vertentes da pressão demográfica e do processo de industrialização e urbanização das sociedades expressa-se em tipologias de ordenamento do território e na utilização do solo de forma caótica e desordenada. A distribuição e organização espacial das zonas de residência e de trabalho, assim como das infraestruturas e equipamentos coletivos, não se coadunam com uma organização social harmoniosa e, por outro lado, transforma a cidade num amontoado caótico de cimento, vidro e ferro, na 76 qual se torna impossível viver. O processo de urbanização das sociedades, ao mesmo tempo que induz à transformação da matéria orgânica em matéria inorgânica (ou seja, através da transformação dos elementos naturais em elementos de construção do "habitat", fábricas, hipermercados estradas, infraestruturas e equipamentos colectivos, etc.), traduz-se, por outro lado, numa organização social perpassada por uma crise de identidade e de representatividade social. O isolamento dos indivíduos e dos grupos no contexto da complexidade organizacional dos grandes aglomerados urbanos assume proporções inauditas. As relações sociais não se fazem numa base directa em situações de co-presença física e visibilidade relacional, o que impossibilita a construção social de diálogos baseados na fraternidade e na solidariedade. Os indivíduo e os grupos, estando sós e sendo dependentes de um poder dominante que lhes escapa, entram num processo de desintegração social. Pode-se compreender esses fenómenos se tivermos presente as dificuldades de uma interacção social positiva e funcional em contextos urbanos que atingiram uma grande dimensão, níveis de densidade e de heterogeneidade populacionais altíssimas. Desse contexto, depreende-se as contingências e os constrangimentos provindos do exercício burocrático da representatividade formal para suprir as exigências funcionais de uma sociedade, cada vez mais, complexa e sofisticada. A anomia e a desintegração social são passíveis de observar tendo presente o peso da burocratização e da centralização dos processos de regulação social. A outra versão moderna da desintegração social e da anomia subsistem ao 77 nível das perdas de referência e de identidade social. Esta realidade é não só perceptível no âmbito da especificidade das relações sociais corporizadas na superficialidade e transitoriedade relacional nos contextos urbanos, mas também ao nível da destruição progressiva das relações sociais baseadas no interconhecimento e nos processos de aprendizagem social e de aculturação que só podem ser dinamizados pelos pequenos grupos e as comunidades locais (CHOMBART DE LAUWE, 1982). Na ausência desses requisitos de organização social, formaram-se, entretanto, estruturas burocráticas gigantescas que decidem anacronicamente do governo e da gestão das cidades. Simultaneamente, a longiquidade espaço-temporal que persiste entre a sociedade global e os indivíduos, entre o Estado, instituições, organizações, os grupos e indivíduos, leva a que o sistema de representatividade formal de natureza burocrática e centralista não permita uma socialização e sociabilidade positivas dos indivíduos e dos grupos, razão pela qual os fenómenos de desintegração social e de marginalidade social crescem em exponencial e certas instituições e cientistas sociais reivindiquem uma maior participação dos indivíduos nos mecanismos processuais de integração social (PNUD, 1993). Desde que não haja uma participação e decisão dos indivíduos e grupos sobre a governação das cidades, persiste um alheamento generalizado dos mesmos sobre todas as contingências negativas que daí resultam. As relações de identidade entre o que é do foro individual e colectivo não existe. A interação entre os diferentes elementos humanos que constituem o sistema urbano revela-se difícil de realizar, o que condiciona enormemente as relações de interdependência e de complementaridade relacionadas com as tarefas e funções do seu funcionamento global. 78 Um outro fator da crise do modelo de desenvolvimento capitalista emerge do desemprego. Este, como todo o trabalho baseado num vínculo contratual precário, exprime o estádio normativo de regulação das necessidades do mercado de trabalho capitalista à escala da economia global. Corresponde, estruturalmente, aos ditames do crescimento e progresso económico e está articulado deterministicamente às vicissitudes da revolução tecnológica em curso, com especial incidência na informática, micro-electrónica, biotecnologia, telemática, robótica, indústria espacial, etc. Estes factores desintegram o sistema de relações sócio-profissionais e das relações industriais que perdurava há vários decénios, por via das restruturações sistemáticas realizadas no âmbito das qualificações e divisão social do trabalho do trabalho e, por outro lado, desenvolvem-se novos saberes técnicos e humanos nos sectores terciário e industrial à escala universal, em detrimento progressivo dos saberes e práticas relacionadas com a actividade dos sector primário. No fundo, as bases estruturais e institucionais, do que foi denominada a segunda revolução industrial, estão a desintegrar-se, dando origem à formação de um mercado de trabalho segmentado numa regulação sustentada por trabalhadores desqualificados, qualificados, desempregados ou com vínculo contratual precário. Em parte, enquanto consequência lógica do mundo dos desempregados que pululam nos grandes aglomerados urbanos, a marginalidade e a segregação social são também a expressão genuína da competição e da concorrência desenfreada que decorrem de uma regulação social apoiada num crescimento económico desenfreado. Esta racionalidade económica levada ao extremo tem custos irreversíveis. Quem não consegue posicionar-se no mercado do trabalho em situação privilegiada de concorrência ou de 79 vantagem competitiva, facilmente soçobrará na pobreza ou na exclusão social. Quem não consegue adaptar-se aos padrões competitivos das funções de produção e de consumo mercantil identificado com a lógica normativa de capitalização humana, ver-se-á impossibilitado de apropriar-se do conjunto de necessidades que lhe permitem sobreviver, o que geralmente se traduz a evoluir para formas de existência pautadas pela marginalidade social e, logicamente, a ser objecto de exclusão e segregação social (PASSET, 1979). Não podemos, porém, confinar os problemas da marginalidade e da segregação social ao determinismo económico da sociedade capitalista. Ambas as realidades são também o produto de modelos sócio-culturais e políticos predominantes que se estruturam através de um processo social fundamentado na inclusão e de exclusão de grupos sociais diferenciados e contrastantes. A alteridade sócio-cultural não é passível de socializar com base em identidades comunitárias diferenciadas. No período histórico que atravessamos, em que a interacção social no sistema social global se objetiva com base nas capacidades de competição e de segregação social, quando as comunidades nacionais, regionais e étnicas se vêem incapacitadas de subsistir, utilizam as outras como bode expiatório das suas situações negativas. A "guerra contra o outro" assume uma preponderância capital na manutenção do poder por parte das classes dominantes e, por outro lado, alimenta a coesão e a identidade das comunidades nacionais que tendem a desintegrar-se socialmente. Nestas condições, apercebemo-nos como certas elites que lideram os nacionalismos e os integrismos religiosos socializam e controlam ideológica e politicamente os fenómenos da 80 marginalidade e da segregação social existentes nos seus países. Os problemas da pobreza e da desigualdade social demonstram, de forma inequívoca, a tragédia existencial humana actual (PNUD, 1994). Sem cair na averiguação fácil da existência de "sub-espécies humanas" estratificadas por níveis de vida abaixo do mínimo de subsistência vital, torna-se, no entanto, pacífica a afirmação de que a grande maioria dos 4.000 milhões de seres humanos dos países em vias de desenvolvimento estão submergidos pela fome, a pobreza e a exclusão social. Em contrapartida, grande parte dos 1.000 milhões que existem nos países desenvolvidos são constrangidos a levar uma vida quotidiana baseada na ostentação, produção e consumo de bens e serviços efémeros. Tendo em atenção os milhões de seres humanos que pululam no pântano do genocídio, da miséria e da pobreza gerada nos grandes aglomerados urbanos da África, da Ásia e da América Latina, há também que não esquecer a outra versão da miséria e da pobreza urbana existente no "eldorado" dos países do mundo capitalista considerado desenvolvido. Estes últimos, muito embora demonstrem que têm "estatísticas positivas, com indicadores sociais sobre o saneamento básico, políticas assistenciais nos domínios da educação, saúde e segurança social estatais para a maioria da população, estão, no entanto, mergulhados no asfalto do desemprego, da indiferença e da exclusão social. Um outro fenómeno crítico da modernidade do desenvolvimento capitalista à escala mundial é visível na emergência dos movimentos sociais e guerras regionais estruturados pelo nacionalismos e integrismos religiosos actuais. O 81 etnocídio, o racismo e a xenofobia são outras manifestações articuladas com uma realidade socioeconómica, política e cultural que evolui no mesmo sentido racional-instrumental capitalista. Como primeira abordagem desses fenómenos, dir-se-ia que todos eles têm causas lógicas comuns, se pensarmos nas consequências geradas pelo desmembramento do "socialismo real" nos países do leste europeu e, sobretudo, olharmos para o desemprego que afectam todos os estratos sócio-profissionais clássicos na Europa Ocidental. Importa, por outro lado, pensar as próprias consequências da fome e da pobreza que atravessam certas regiões na África, América Latina e Ásia e as suas correlações com os surtos migratórios e a segregação social existente entre as diferentes identidades étnicas e nacionais. A explicação mais plausível das suas causas não deve, não obstante, servir para omitir a função negativa que assumem esses fenómenos. O nacionalismo, o integrismo religioso, o racismo e a xenofobia, na medida em que se apoiam em modelos sociais tendentes a estruturar-se numa perspectiva unidimensional e segregacional negam, com facilidade, a alteridade sócio-cultural, política, económica e religiosa a identidade dos outros povos, etnias e comunidades que compõem as múltiplas sociedades humanas do planeta Terra. As práticas humanas de cooperação e da solidariedade inter-étnicas e inter-comunitárias dos povos e nações são destruídas. Em alternativa, persiste a lógica de uma guerra imperialista confinada a interesses económicos e políticos geo-estratégicos, mas simultaneamente fundamentada no extermínio das diferenças sócio-culturais que as outras comunidades étnicas personificam. 82 2. Características do modelo de desenvolvimento que funciona como paradigma dominante Genericamente, o conceito de desenvolvimento, situado nos parâmetros da lógica do progresso e da razão, consubstancia-se na melhoria progressiva e equilibrada do homem em termos de "bem-estar" económico, social, cultural e político. Esta visão apoia-se na quantificação e comparação de um conjunto de indicadores qualitativos específicos, considerados os mais representativos para um dado período histórico do desenvolvimento. Assim, quando se comparam o nível de desenvolvimento entre países, tem-se presente os índices que especificam o produto nacional bruto, o produto interno bruto, o rendimento "per capita", taxas de alfabetização, taxas de mortalidade e natalidade, número de telefones e automóveis por habitante, número de hospitais e médicos por habitante, etc... O desenvolvimento, nestas circunstâncias, avalia-se em função de um "bemestar" instrumentalizado pela quantidade de bens e serviços que uma dada sociedade pode usufruir. O conceito de "países desenvolvidos" e "países subdesenvolvidos" ou ainda de "países em desenvolvimento" é concebido em função dessa visão analítica. Esta concepção histórica da evolução das sociedades traduz-se num modelo de desenvolvimento que procura explicar o passado, em função do presente e o devir harmónico da sociedade capitalista. As variáveis que estruturam o modelo de desenvolvimento capitalista expressam a eliminação progressiva da dependência do homem em relação ao poder divino no sentido da sua transformação em uma entidade antropocêntrica. A base materialista da 83 produção de bens e serviços de características capitalistas provoca progressivamente a separação do sagrado e do profano, ao mesmo tempo que estrutura a independência e a autonomia dos indivíduos na esfera do mercado e a sua adesão ideológica às normas e valores sócio-culturais identificados com uma racionalidade económica baseada na maximização do lucro. O processo interactivo do progresso e da razão materializou-se também na formação do "Welfare State" e no Estado-providência. Estes, conjugados com acção da racionalidade económica mercantil aumentou os índices de produção e consumo de saúde, educação e habitação, como inclusivé, sancionaram as inovações e mudanças operadas no campo do trabalho, da tecnologia e da ciência. Essas funções permitem que haja simultaneamente um crescendo progressivo de produção e consumo de bens e serviços múltiplos. Deste modo, o modelo de desenvolvimento do capitalismo satisfaz, como sistema paradigmático, as necessidades básicas dos indivíduos e grupos que compõem as sociedades actuais. Para tal basta que haja uma repartição de rendimentos propiciadora de um consumo de um conjunto de necessidades básicas padronizadas num conjunto típico de bens e serviços circunscritos à alimentação, habitação, saúde, educação e transportes. Esgotando-se esse patamar de necessidades padronizadas, o modelo de desenvolvimento capitalista alarga e aprofunda a sua matriz do progresso e da razão. Novas necessidades básicas são criadas e não admira que hoje se corporizem no lazer, turismo, actividades lúdicas, jogos de guerra, espaços livres, ambiente despoluído, etc... (PASSET, 1979). Averiguando, no entanto, a realidade política, cultural, económica e social que sustenta e reproduz esse modelo de desenvolvimento, deparamos com 84 grandes contradições e antagonismos. Em primeiro lugar, assiste-se à desintegração das virtualidades positivas do homem antropocêntrico capitalista. Este para além de ser um objecto produtor e consumidor de bens e serviços, transformou-se basicamente numa entidade depredadora e destruidora de si próprio e da natureza. Esta contradição não somente alienou o homem das suas funções criativas cruciais nos domínios da actividade política, cultural e social, mas sobretudo transformou-o numa função competitiva e concorrencial de todos os outros que com ele interagem às escalas local, regional, nacional e transnacional. Em segundo lugar, as relações sociais capitalistas baseiam-se em funções hierarquizadas, onde tarefas e funções, assim como o poder e a autoridade obedecem a uma lógica de dominação. Indivíduos e grupos com tarefas, funções, poder e autoridade sustentadas pela dominação e a exploração do homem pelo homem, fomentam uma desigualdade social corporizada em privilégios, rendimentos, propriedade, exercício do poder e apropriação de riqueza diferenciada, etc... Essa exploração e dominação observa-se fundamentalmente nas relações sócio-organizacionais entre empresários, gestores e assalariados subalternos, na relações entre homem e mulher, nas relações entre estratos sócio-profissionais, entre o Estado, indivíduos e grupos que compõem a sociedade civil, etc..., e, quando nos situamos numa escala geográfica universal, entre etnias, o Estado-Nação e instituições transnacionais. Em terceiro lugar, o sistema democrático representativo capitalista não funciona em exclusiva sintonia com as virtualidades do mercado e da 85 liberdade humanas. A racionalidade sociobiológica do ser humano "capitalista" e os predicados de regulação do mercado tão queridos de Darwin e Malthus, como dos liberais modernos, não funcionam plenamente. Por tais motivos, para suprir as insuficiências da integração e controlo social subjacentes à dinâmica social das sociedades actuais, o Estado, indivíduos e grupos recorrem a formas violentas e irracionais a fim de manterem o "status quo". Nestes termos, observamos que as relações sociais nos planos institucional e organizacional são perpassadas por tipologias de exercício de poder baseadas na dominação, na qual a participação, a decisão e a concepção das actividades económica, política, cultural e social são arbitrariamente assumidas e partilhadas, sem que se nos apercebamos do carácter prescritivo e funcional das regras e normas que determinam o exercício da autoridade hierárquica formal. O exemplo do Estado, de instituições e organizações com vocações repressivas, quando exercem as suas funções de socialização, são bem patentes na forma insuficiente e arbitrária como controlam, integram e sancionam todas as transgressões e potenciais desvios normativos desenvolvidos pelos indivíduos e grupos em relação à ordem social vigente. Finalmente, a expansão universal do capitalismo tornou-o mais complexo e sofisticado. Como sistema social, as suas diferentes componentes quando estão em interacção, nem sempre funcionam como função de complementaridade e interdependência, de forma a construir sínteses positivas. A sua expansão geográfica revela-se demasiado abstracta e 86 formal. A longiquidade espaço-temporal embora seja mediatizada por uma interação social personificada pelas novas tecnologias e poder comunicacional dos "mass media", não tem evitado a artificialidade e a contradição nas relações sociais entre as diferentes partes que constituem a sociedade global. Por outro lado, as características competitivas do "homo economicus" atingiu um grande paroxismo. A sobrevivência da espécie humana persiste, mas à custa de uma socialização muito difícil. Os exemplos são elucidativos. Incapazes de se inserirem nos grupos, colectividades e sociedade, os indivíduos evoluem para múltiplas formas de morte e de desintegração social: desemprego, guerra, pobreza, violência, crime, droga, prostituição, etc. Desde que o desenvolvimento capitalista erigiu o homem em entidade antropocêntrica, o progresso e a razão associados à racionalidade económica assumiram-se como função de espoliação e de transformação da natureza de forma abrupta e irreversível (WEINER, 1991). O capitalismo ao transformar o homem em objecto de produção e de consumo de mercadorias, transformou a natureza num espaço vital de parasitismo, na qual os recursos naturais tornaram-se uma fonte inesgotável dos desígnios de uma sociedade insaciável. Como consequência, o homem deixou progressivamente os últimos laços de identidade que ainda mantinha com a natureza. Em vez de adaptar-se, reagir e regular as leis da natureza numa perspectiva de equilíbrio ecossistémico, transforma e destrói a unidade da diversidade criativa e dialógica dos diferentes seres que compõem o universo. Em função dos parâmetros 87 determinísticos do modelo de desenvolvimento capitalista, a natureza em geral e todas as espécies vegetais e animais, em particular, são constrangidos a evoluir dentro dos parâmetros totalitários da racionalidade económica capitalista. Esta tem um objectivo central: transformação da matéria orgânica em matéria inorgânica, produzir, distribuir e consumir mercadorias. O que hoje os políticos, cientistas, profetas e ideólogos da salvação do impossível denominam de "mau ambiente", decorre da sua visão apocalíptica e reformista. Facilmente chegam à conclusão de que se caminha para uma catástrofe ecológica, caso a sociedade não consiga inverter os efeitos da crise ambiental polarizada à volta do efeito estufa, da degradação da camada do ozono, da extinção da biodiversidade e do esgotamento e poluição dos recursos naturais (ROYAL, 1992). Está-se perante uma visão em que a degradação do ambiente é algo que pode ser objecto de reparação, regulação e controlo, bastando para tal reconstituir os equilíbrios ecossistémicos que, entretanto, foram destruídos. Em presença de tais terapêuticas, tantas vezes testadas e frustradas, o mínimo que delas se pode depreender é a sua inoperância, já que após sucessivas aplicações, tudo isso não consegue evitar a mesma tendência suicidária. Mais do que encontrar nos sintomas da crise ecológica uma forma airosa ideológica de omitir as causas que estão na origem da destruição do planeta Terra, torna-se necessário inferir que os problemas do ambiente não decorrem de causas exteriores à sociedade capitalista e que, desse modo, 88 há que situar toda a análise na lógica normativa do desenvolvimento do capitalismo e, mais concretamente, na sua esfera de actividade económica mercantil (PASSET, 1992). Objectiva e subjectivamente, o que importa referir radica no sentido da transposição mecânica que o capitalismo pratica, ao transformar a natureza num objecto de dominação e de hierarquização idêntico à ordem social que estrutura os processos de socialização e de regulação das relações sociais da sociedade capitalista (BOOKCHIN, 1989). A dominação e a hierarquização relacional que a espécie humana mantém com a natureza é modelada e projectada pelas exigências e contigências de uma a racionalidade mercantil concorrencial e competitiva. Recursos humanos e naturais fazem parte de uma lógica indissociável, em que meios e fins, se integram na consecução dos mesmos objectivos (SACHS, 1986). Não admira, portanto, que a ordem social capitalista transposta para o campo das relações do homem com a natureza resultem em transformações e configurações espaciais e físicas enquadradas numa determinada utilização do solo e do ordenamento do território e que estes, por sua vez, desenvolvam a crise ambiental e a destruição progressiva dos recursos naturais ainda disponíveis (PELT, 1991). Esta evolução tem, no entanto, custos, limites físicos e sociais. A natureza não pode ser modelada impunemente através de uma entidade antropocêntrica orientada pelos objectivos imperativos do progresso e da razão que estão identificados com a racionalidade económica capitalista. Mantendo-se a irreversibilidade deste modelo de desenvolvimento, assistiremos inevitavelmente a um crescendo progressivo da deterioração ambiental a todos os níveis. 89 Não se pode, porém, racionar como se não persistissem interdependências e complementaridades entre os fenómenos ambientais e os que relevam da realidade sócio-organizacional. Nesse aspecto, assim como somos capazes de observar os efeitos negativos que relevam da ordem social sobre a natureza, interessa, por outro lado, também perceber as incidências que a própria destruição do ambiente tem sobre o modelo sócio-organizacional vigente. A utilização e a apropriação do solo e as suas articulações com o ordenamento do território, assim como a poluição hídrica e atmosférica, como já referimos, estão bem patentes no processo de urbanização das sociedades. As configurações sociais e físicas da urbanização traduzem-se num aumento da competitividade e da concorrência interpessoais e intergrupais, dando azo à construção de tipologias de interacção social padronizadas em formas específicas de apropriação e utilização do espaço vital que é imprescindível à vida quotidiana dos indivíduos e colectividades. Essa interacção social torna-se propícia à construção de territórios segregacionais que se identificam com a capacidade competitiva dos grupos e indivíduos e que, por sua vez, permitem a dinamização de uma acção individual colectiva orientada pela força constrangedora da sua representatividades social no contexto da sociedade global. Por outro lado, a complexidade organizacional resultante das configurações físicas e sociais que emergem da regulação do mercado e do Estado 90 constrange os sistemas de decisão e de controlo da sociedade civil a evoluirem para uma crescente burocratização e centralização. As relações entre os diferentes poderes instituídos, os indivíduos, as comunidades locais e regionais, as sociedades nacionais e transnacionais revelam-se progressivamente conflituais. O paradoxo é no mínimo contraproducente. É no mínimo contraditório que um sistema global, cada vez mais hegemónico e totalitário, crie instituições supra-nacionais, viva vicissitudes de crise ambiental de natureza universal e, na ocorrência, não consiga legitimar de forma idónea e funcional o seu sistema político. Finalmente, a regulação e controlo das complementaridades e das interdependências físicas e sociais que subsistem à escala universal revelam-se difíceis de realizar pela entidade Estado-Nação. Em presença da destruição do ambiente gerado pela lógica do desenvolvimento capitalista, o Estado-Nação, enquanto entidade fiscalizadora dos recursos naturais e, por outro lado, gestor e planificador das políticas económicas, revela-se impotente perante a acção estruturante das economias subterrâneas de âmbito nacional e transnacional. Este aspecto revela-nos que o Estado-Nação e as comunidades nacionais, regionais e locais não têm capacidade política e económica suficiente para adaptarem o ambiente à sua identidade sócio-cultural e fronteiras específicas, conseguindo um controlo eficiente na utilização e ordenamento dos seus espaços físico e social. No momento histórico actual verifica-se que a regulação do ambiente não é passível de gerir dentro dos limites das fronteiras territoriais, institucionais e administrativas do Estado-Nação clássico. Este último não é funcional e idóneo, não tem legitimidade nem poder suficiente para inverter o processo de destruição da natureza. 91 Depreende-se, por outro lado, que o Estado circunscrito ao espaço nacional tem extrema dificuldade em controlar atempadamente as variáveis sócioculturais, económicas e políticas em que se apoia o actual desenvolvimento capitalista, de forma a poder inverter os factores relacionais humanos que originam a destruição do ambiente. Nesta assunção, a atomização da acção social das comunidades locais, regionais e nacionais só é explicável pela crescente subalternização e dependência hierárquica que mantêm em relação Estado supra-nacional emergente. O indivíduo, por outro lado, ao ser transformado num puro objecto de produção e consumo de mercadorias com simbologia e proveniência universal, revela-se, cada vez mais, uma entidade amorfa e alienada, o que o leva a comportar-se como uma entidade anómica desprovida de sentido, de participação e decisão em todos os níveis espaciais em que se encontra inserido. Em presença desta nova configuração mundial estabelecida entre um Estado totalitário e o crescente amorfismo da capacidade das comunidades nacionais, regionais e locais, não é de admirar que as grandes organizações supra-nacionais assumam a liderança dos processos de transformação, controlo e regulação do sistema social global, a fim de inverter o colapso apocalíptico da natureza e a destruição do ambiente provocado pelo desenvolvimento capitalista. O exemplo dos últimos relatórios do Banco Mundial e a Eco-92 do Brasil, organizado sob os auspícios da ONU, é bem a demonstração da impossibilidade e fragilidade da acção do Estado, das instituições, organizações e indivíduos que se inserem nessas escalas sócioespaciais. 3. Potencialidades de uma ecologia social anarquista face à crise do modelo 92 de desenvolvimento capitalista Como verificámos nos capítulos precedentes, uma parte substancial dos cientistas que abordam as relações do homem com o ambiente, omitem o carácter indissolúvel dessa relação no quadro de categorias conceptuais sistémicas. Assim, tanto encontramos análises que vão no sentido de uma naturalização absoluta e conservadora do homem, referenciando este como uma entidade exclusivamente biológica e natural, perdendo-se dessa forma a sua essência criativa sócio-cultural que se manifesta na capacidade e possibilidade de construir modelos de organização social diferentes daqueles que são próprios às outras espécies animais e vegetais. (MALTHUS, s/d). Num sentido oposto, encontramos análises que estipulam deterministicamente a autonomia da espécie humana em relação ao seu ambiente, transformando-a numa espécie de sociologismo orgânico que se explica de forma específica e autónoma, sem para tal sujeitar-se às contingências da interacção e interdependência com o meio ambiente (DURKHEIM, 1975) É facto que não podemos prescindir de analisar a contribuição de alguns autores que ultrapassaram esta visão dicotómica das articulações e integrações dos espaços social e físico. Desde a década de 1920 que um grupo de investigadores da universidade de Chicago observou e analisou a influência do ambiente sobre os comportamentos humanos, referenciando as formas e conteúdos das configurações espaciais físicas e sociais que decorriam de uma matriz social diversificada corporizada na acção colectiva das múltiplas comunidades e etnias, com identidades sócio-culturais e capacidades concorrenciais e segregacionais específicas. Robert Park, Ernest Burgess, Louis Wirth e outros puderam, desse modo, enveredar por 93 uma abordagem sociológica que permitia percepcionar e explicar o homem e a natureza numa perspectiva ecológica e humana (PARK, BURGESS, McKENZIE, 1967). Na continuidade desta linha de pensamento científico, hoje, persiste uma abordagem mais sistematizada e enquadrada na crise ecológica da sociedade capitalista ao ponto de alguns investigadores contemporâneos, a partir da década de 1970, desenvolverem um conjunto de postulados teóricos conducentes à criação de uma disciplina denominada Sociologia Ambiental e, inclusivé, com intenções de a transformarem num novo paradigma ecológico (CATTON e DUNLAP, 1980). Estes trabalhos científicos têm indiscutivelmente um grande mérito. Face à crise interpretativa e explicativa dos múltiplos fenómenos relacionados com ambiente, eles tentam averiguar, de forma pertinente, os efeitos perversos mais representativos que emergem da actual crise ecológica do modelo de desenvolvimento capitalista. As suas análises pecam, no entanto, por uma série de limitações e contradições. Circunscrever os problemas da crise ecológica a uma racionalidade populacional e humana, de forma alguma pode-nos permitir culpabilizar e responsabilizar a espécie humana, os grupos e os indivíduos como um todo identitário e homogéneo na sua condiçãofunção de depredadora do equilíbrio ecossistémico. A acção colectiva e individual não pode ser analisada fora do tipo de sociedade em que elas se inscrevem. A ordem social capitalista, com as suas estruturas e modelos institucionalizados de cultura normativa, só legitima relações sociais hierárquicas e de dominação que se identificam com as funções de produção e de consumo de bens e serviços e, logicamente, com o consequente agravamento da crise ambiental. 94 Por estas razões, essas análises são redutoras. Nestas circunstâncias, torna-se impossível omitir as causas sócio-culturais, políticas e económicas que corporizam o modelo de desenvolvimento capitalista e, logicamente, a sua função estruturante na modelação das estruturas sociais hierarquizadas e de dominação que se traduzem num conjunto de regras e normas tipificadas por comportamentos humanos que, em última instância, determinam os seus padrões de interacção com a natureza. O ambiente é o resultado desse processo interactivo. Partindo desta perspectiva, observa-se que as contradições e antagonismos subsistentes residem no modelo de produção e de consumo de bens e serviços que acompanha a evolução da racionalidade económica capitalista. Esta é perpassada pela concorrência e competição mercantil e regulada socialmente por estruturas e relações sociais pautadas pela opressão e exploração do homem pelo homem. A personificação dessa realidade é averiguável pela condição-função de classes sociais, estratos sociais, etnias e castas hierarquizadas e estratificadas por escalas de rendimento, prestígio social, poder e posse de riqueza, como também pelas relações sociais de âmbito mais geral personificadas por uma condição/função de nível etário (velho/jovem), sexual (homem/mulher), e social (empregado/desempregado), etc ... Como não se pode percepcionar a crise do ambiente e da sociedade exclusivamente a partir de uma visão ecológica naturalista, também não nos parece possível fazer o mesmo através de análises centradas num sociologismo com os seus efeitos perversos e disfuncionais. 95 Em relação ao pensamento de outros autores procura-se associar a crise do ambiente e da sociedade a partir das características estruturantes da revolução tecnológica em curso e a natureza da pressão demográfica (FNUAP, 1992). Segundo estes, para superar a actual crise social e ecológica, bastaria reestruturar as tecnologias e adaptá-las ao meio ambiente de modo a torná-las menos depredadoras dos recursos naturais e menos poluidoras da biosfera. Se possível, elas deveriam não causar tantas mortes através das diversas guerras regionais e locais e, inclusivé, deveriam adaptar-se a funções circunscritas à saúde e educação e, sobretudo, fortalecer e aperfeiçoar a sua utilização sistemática em métodos científicos anti-concepcionais, de forma a inverterem e/ou estacionarem o surto de crescimento demográfico, miséria e a fome que ocorre na generalidade dos países do hemisfério Sul. Esta hipótese científico-tecnicista que pretende superar as excrecências populacionais mais significativas da crise do modelo de desenvolvimento da sociedade capitalista à escala mundial é, muitas vezes, confrontada outras que têm menor representatividade social: a naturalista-conservadora e a ecotecnocrática. A primeira procura solucionar a crise do modelo de desenvolvimento capitalista, com um retorno às configurações sóciohistóricas do passado, tentando fazer tábua rasa da historicidade dos construídos sociais que foram estruturados por uma matriz sócio-cultural secular. A segunda procura transformar o homem antropocêntrico numa categoria divina semelhante ao poder das máquinas e dos deuses. Estamos, neste caso, a pensar o "homem" como uma realidade omnipotente e omnisciente, com capacidades e possibilidades ilimitadas de inovação e de 96 mudança em todos os aspectos da vida social e humana. Os defensores da sociobiologia dão-nos algumas pistas nos campos da engenharia genética e social (BOOKCHIN, 1990). Todas essas perspectivas são redutoras e enfermam de um conjunto de contradições. A visão naturalista-conservadora, que é actualmente personificada pela maioria dos grupos ecologistas, esquece que o homem enquanto entidade auto-consciente e auto-reflexiva evolui num processo histórico, da qual é impossível dissociar o presente do passado e do futuro. Todo esse processo é um elo com laços contínuos e descontínuos. Nesta dimensão, só pode ser analisado e interpretado como um fenómeno estruturado por factores de natureza reversível e irreversível. A visão eco-tecnocrática pensa que é possível re-equacionar a relação do homem com a natureza através de uma função ilimitada do poderio dos meios técnicos e científicos, atribuindo-se um poder diabólico à espécie humana, como se esta pudesse assumir um domínio absoluto e arbitrário sobre si, sobre as outras espécies e própria natureza (PASSET, 1979). Nesta perspectiva, personificado poderíamos por uma até pensar espécie num humana "admirável mundo novo" modelada geneticamente, adquirindo, posteriormente, ela mesmo uma capacidade e possibilidade de criar e modelar a natureza à sua imagem e semelhança. Face ao actual cenário da crise do modelo de desenvolvimento capitalista não se vislumbra que o pragmatismo conjuntural das políticas económicas dos estados, nem a racionalidade económica do mercado capitalista, possam inverter ou superar essa realidade. Por outro lado, manifestamente, todos os 97 modelos analíticos, que se identificam científica e ideologicamente com o paradigma explicativo dominante, não conseguem interpretar de forma eficiente e coerente a crise que atravessamos, de forma a que se possa eventualmente verificar remediar algumas das contradições e antagonismos da sociedade capitalista. Tendo presente o legado histórico do pensamento e da acção social emancipalista, em face dos problemas que estamos a presenciar à escala mundial, surge-nos um dilema ambiental e social de proporções gravíssimas. Neste contexto, a ecologia social de características anarquistas tem um conjunto de virtualidades que urge referenciar e potenciar nas nossas sociedades. Mais do que inverter a lógica de evolução do sistema social global, importa, desde já, referir que a espécie humana é, acima de tudo, uma entidade que evolui através de um processo histórico pautado pela estruturação de uma auto-consciência progressiva e que, em função das suas capacidades e possibilidades ontológicas, adopta modelos de auto-governação e de autoorganização que a pode racionalmente diferenciar das outras espécies vegetais e animais. É nesta especificidade estrutural ontológica que podemos compreender, em grande parte, a sua evolução gregária no sentido da construção da sociedade, passando de modelos sociais simples para modelos sociais complexos. Os pressupostos da socialização e da sociabilidade humana, nessa assunção, só foram possíveis de concretizar na medida em que o ser humano conseguiu articular-se com a natureza de uma forma dialógica. 98 Com base nestes princípios básicos, facilmente chegamos à conclusão que as relações do homem com a natureza não são deduzíveis de meras reacções adaptativas contingenciais impostas pelo poder inerente à natureza. A relação do homem com a natureza, neste sentido, não pode apoiar-se numa visão restritiva circunscrita às necessidades da sua sobrevivência material. Enquanto elemento da natureza que interage com milhões de seres vegetais e animais, o homem só pode partilhar e viver nessa mesma natureza como parte de um todo indissolúvel ecossistémico. Assim sendo, esse imperativo crucial só é passível de realizar através da transformação do homem numa entidade auto-consciente e humanizada, com a capacidade virtual e real de construir um modelo sócio-organizacional identificado com a sua essência humanista e emancipalista, alicerçada em relações sociais pautados pela fraternidade e a solidariedade. Nesta perspectiva, torna-se impossível pensar a ecologia sem alargar a sua dimensão fenomenal ao quadro epistemológico e metodológico da sociedade global em que persistimos. Na estrita medida em que as relações do homem com a natureza são mediatizadas por relações de tipo reflexivo e organizacional, a ecologia, em última instância, é e só pode ser de natureza social. Integrando-me no princípio tantas vezes já demonstrado de que é possível racionar e agir de uma maneira radicalmente diferente a que estamos habituados, a tragédia da crise social e ecológica que vivemos é passível de ser superada. Neste sentido, para tornar operacional o conceito de ecologia social, enquanto fenómeno de auto-consciência, de auto-governação e de auto-organização do ser humano, somos constrangidos à admissibilidade da exigência de uma transformação radical da sociedade em que persistimos 99 (KROPOTKINE,1906; BOOKCHIN,1976). Essa transformação radical da sociedade capitalista à escala universal implica a desestruturação da organização social, política, cultural e económica baseada em relações sociais hierarquizadas e na dominação. Ela passará, ainda, por uma redefinição radical do homem em relação à natureza, o que implica a criação e a dinamização de novos padrões de interacção social, tipificados por comportamentos humanos conducentes à manutenção e regulação de um novo equilíbrio ecossistémico assente na biodiversidade das diferentes espécies animais e vegetais (BOOKCHIN, 1976). De maneira a dar forma e conteúdo a essa exigência de transformação radical da sociedade capitalista e, por conseguinte, do seu modelo de desenvolvimento, o projecto de sociedade de ecologia social anarquista deve apoiar-se essencialmente na criação de eco-comunidades às escalas local, regional, nacional e transnacional. A integração e a articulação dessas realidades singulares estruturar-se-ão num sistema global de relações sociais fraternas e solidárias através de uma rede orgânica coordenada e regulada por laços federativos e confederais à escala universal. É uma alternativa de sociedade que supera os antagonismos e contradições da exploração e opressão capitalista, mas que também supera as causas e os efeitos perversos de um conjunto de factores: centralização, burocratização, concentração e complexidade organizacional e social; inexistência de participação e de decisão dos indivíduos e grupos nas colectividades e sociedade; desintegração e anomia social. O quadro epistemológico e metodológico da ecologia social tem as suas raízes históricas nos princípios e práticas do anarquismo. Essa plausibilidade é pacífica de demonstrar através dos indícios de certas experiências 100 históricas já realizadas (Comuna de Paris- 1871, Revolução Russa-19171921, Guerra Civil em Espanha-1936-1939, etc...) como, ainda, é personificada pelas obras de alguns autores anarquistas mais emblemáticos: Proudhon, Bakunine, Kroptokine, Malatesta e, modernamente, Murray Bookchin. Hoje, a ecologia social baseada nos princípios e práticas anarquistas, que tem sido analisada e dinamizada desde o século XIX, revela-se reforçada nas suas potencialidades históricas, nos domínios científico e social, a partir de várias dimensões. Em primeiro lugar, a dicotomia que subsiste entre a cidade e o campo chegou ao extremo de um paroxismo sem fim. As cidades, enquanto construídos sociais gigantescos, transformaram-se progressivamente em objectos de desintegração e segregação social, de violência, de marginalidade social e alienação. Por outro lado, revelam-se um mundo de miséria e de promiscuidade física e social, onde pessoas, objectos, resíduos sólidos, líquidos e gasosos se confundem e atrofiam num labirinto que caminha inexoravelmente para uma catástrofe ecológica (MUMFORD, 1982). Perante o seu gigantismo, complexidade sócio-organizacional e irreversibilidade destruidora dos aglomerados urbanos, os habitantes que neles vivem, estando desprovidos do exercício de uma cidadania plena, não participam, não concebem, nem planeiam, nem decidem sobre o governo e a gestão das suas cidades. Para a ecologia social anarquista impõe-se criar as condições sócioorganizacionais que possibilitem extinguir progressivamente os atuais aglomerados urbanos, de forma a tornar compatíveis as articulações e regulações da organização dos espaços físico e social e, por conseguinte, viabilizar as hipóteses de construção de um equilíbrio harmonioso entre o 101 homem e a natureza e permitir o restabelecimento da biodiversidade ecossistémica. As cidades devem configurar-se em comunidades populacionais geríveis no sentido da sua auto-governação e autoorganização. Quer em relação aos equipamentos colectivos, quer no tocante a infra-estruturas, produção e distribuição de bens e serviços, etc..., sem exceção, devem ser objecto de uma auto-regulação confinada à soberania do agregado populacional urbano. Todos os aspectos económicos, sócioculturais e políticos estão integrados nesse processo de modo harmonioso, estando os habitantes, das respectivas comunidades urbanas, dotados de uma ação social inteligível e construtiva. Acima de tudo, ela é soberana em todos os aspectos relacionados com a decisão e a participação nas múltiplas funções e tarefas que estão envolvidas na cidadania urbana. Essas comunidades urbanas não podem atingir uma dimensão populacional que ponha em causa a soberania dos seus habitantes. Os princípios e as práticas da democracia directa, implicam que as relações sociais sejam visíveis e directas e os pressupostos relacionais de toda a organização social não se coadunam com funções e tarefas assentes na hierarquia de uma hipotética autoridade formal. O poder de decisão sobre toda a governação e gestão das cidades está nas mãos dos habitantes da cidade. Indivíduos e grupos interagem no sentido da sua liberdade específica, tendo sempre presente que existe a liberdade dos outros e que as próprias comunidades urbanas livres são a sua síntese genuína. As relações sociais informais atravessam todo o tecido social urbano, submetendo as funções coordenação e regulação de tipo formal a uma reversibilidade e rotatividade sistemática. Neste aspecto, certas virtualidades intrínsecas do campo que ainda 102 perduram, pode-nos servir de exemplo. Para tal, basta observá-lo como espaço potencial de recursos naturais e, por outro, como modelo hipotético de organização social estruturado por relações e interacções sociais baseadas no interconhecimento, na concepção, decisão e participação das pessoas no quadro da sua vida quotidiana e comunitária. Isso, no entanto, não obsta a que a actual realidade sócio-organizacional, económica e política do espaço rural tenha também que sofrer uma transformação radical. Com virtualidades específicas próprias, o espaço rural deve ser concebido e construído num sentido sócio-organizacional autónomo e equilibrado. Enquanto contexto particular inserido numa realidade sócio-organizacional global só pode subsistir numa base de complementaridade e de interdependência com o espaço urbano. As comunidades rurais não podem ser o prolongamento lógico da estruturação unidimensional imposta pela urbanização capitalista. Na medida em que as comunidades rurais tem menor complexidade sócio-organizacional, só nesse capítulo se pode diferenciar das comunidades urbanas. A auto-suficiência económica, sóciocultural e política traduzir-se-á inevitavelmente numa realidade semelhante àquelas que se desenvolvem nos contextos considerados urbanos. Em segundo lugar, a oposição que subsiste entre o Estado e as diferentes comunidades urbanas e rurais deriva de um sistema hierárquico centralizado e burocratizado. São relações de coordenação e de controlo dos indivíduos e das colectividades legitimadas pelo uso da função repressiva da jurisprudência e da coação física das instituições militar e policial. Simultaneamente, a própria manutenção do Estado implica que o mesmo exerça uma espoliação sistemática dos recursos humanos naturais, financeiros e humanos que pertencem, em geral, à sociedade civil, às 103 comunidades locais e regionais e, particularmente, aos indivíduos. O Estado, para além disso, transformou-se num aparelho burocratizado e totalitário através das suas funções de representatividade social e de autoridade formal, no exercício tutelar das actividades políticas, sócioculturais e económicas. Esse facto, levou-o a distanciar-se e a oprimir a sociedade civil que "legitimamente" dirige e representa. Tornou-se inútil e disfuncional, mas simultaneamente demasiado perigoso, na medida em que mantém nas suas mãos poderes discricionários absolutos que resultam na utilização massiva de meios tecnológicos e militares sofisticados. As guerras fomentadas pelos estados levam à destruição irracional de recursos humanos e naturais. Elas atingem proporções inauditas, ao ponto de revelarem-se catastróficas para a sobrevivência da própria humanidade. Tudo isso é explicável, segundo aqueles que defendem a perpetuação do Estado, porque os indivíduos e as respectivas comunidades não são capazes de se auto-organizarem e auto-governarem. No sentido da perspectiva de Hobbes, o homem transformar-se-ia em lobo do próprio homem. Na ocorrência, os indivíduos e os grupos criaram e desenvolveram o Estado. É no mínimo uma posição que não se coaduna com a realidade. Hoje, os fenómenos de desintegração e marginalidade social são genuinamente efeitos perversos de causas que residem na função e acção do Estado. Olhe-se para o exemplo da droga e da violência que perpassam as sociedades actuais. A polícia, os tribunais, os serviços de saúde e educação actuam no sentido de eliminarem e controlarem esses "flagelos" da 104 sociedade. No mínimo são medidas aberrantes para um Estado e uma sociedade que funciona nos parâmetros da lógica da racionalidade mercantil. Se a droga e o crime são objectos de compra e venda deduzida da liberdade dos indivíduos no espaço do mercado. Se os mesmos estão em consonância estreita com a racionalidade dos meios e dos fins para se obterem lucros, não se compreende porque é que o Estado e as suas instituições são chamados a intervir nesse processo. No fundo, a função e a acção do Estado confina-se a controlar e a reprimir indivíduos e grupos que não pensam, não decidem, nem reflectem sobre as suas vidas em termos autónomos e livres. O que o Estado controla e reprime são indivíduos e grupos amputados de uma motivação assente em princípios e práticas fundamentados na liberdade, fraternidade e na solidariedade. No sentido amplo, a plausibilidade da erradicação hipotética da droga e do crime, passa previamente pela destruição das suas causas: o Estado. Em oposição a essa realidade estatal, as comunidades e colectividades de âmbito local e regional têm capacidades e possibilidades de autoorganização e de auto-governação superiores ao Estado. São entidades capazes de reflectir e organizar os recursos naturais e os recursos humanos com maior facilidade (CASTORIADIS, 1990). Com relações sociais baseadas no interconhecimento e uma identidade com o meio ambiente, torna-se possível produzir, distribuir e consumir bens e serviços em termos harmoniosos. Todas as relações internas e externas dinamizadas pelas diferentes colectividades devem ser pautadas com base na reciprocidade e igualdade, extinguindo-se as razões da trocas baseadas 105 no lucro, na opressão e exploração do homem pelo homem. Nesta assunção, pode-se prescindir do Estado e de outras instituições, na estrita medida que à escala espacial local, regional, nacional e transnacional, os indivíduos, grupos e colectividades diferenciadas assumiam uma soberania plena numa federação universal de povos e etnias. Em terceiro lugar, os modelos de produção e de consumo centrados nos sectores industrial e terciário tendem a destruir progressivamente as virtualidades reais do sector agrícola e, simultaneamente, desenvolvem assustadoramente a destruição do meio ambiente e, naturalmente, a desintegração do tecido social através da marginalidade social e do desemprego. Nunca é demais referir que as causas dessa evolução radicam essencialmente no modelo de desenvolvimento capitalista apoiado numa racionalidade económica que se alimenta de uma competição e de uma concorrência mercantil desenfreada. Esta lógica normativa só pode manterse com a produção e o consumo gigantesco de bens e serviços. No entanto, o crescendo progressivo desse processo chegou a um paroxismo tal que o homem, enquanto entidade produtora e consumidora de objectos, destruiu milhares de espécies, esgotou os recursos naturais, transformou a matéria orgânica em matéria inorgânica de forma absurda e está, simultaneamente, a auto-destruir-se como ser humano. O risco é, portanto, duplo. Destrói-se a Terra e os seres que nela vivem e desintegramse as estruturas sociais que compõem as sociedades. O retorno a um equilíbrio entre os sectores agrícola, industrial e terciário implica que os 106 modelos de produção e de consumo deixem de estar orientados e submetidos aos imperativos do lucro, da concorrência e da competição entre os seres humanos (GORZ, 1991). O mercado e o Estado funcionam como entidades externas dos interesses e motivações dos indivíduos e grupos que compõem a sociedade capitalista. São eles que decidem, em última instância, como se produz, consome e distribui a riqueza. Ou seja, quem trabalha, quem não trabalha. Quem é rico ou pobre. Quem detém poder ou não. Para os indivíduos e grupos que vivem nas actuais sociedades, torna-se imperioso extinguir as funções e as estruturas de socialização e de sociabilidade dos indivíduos e grupos, cuja proveniência decorre da racionalidade económica capitalista e do Estado. A autogestão da produção, da distribuição e o consumo de bens e serviços, estritamente identificada com as necessidades soberanas dos indivíduos e colectividades inseridas nos diferentes espaços locais e regionais à escala universal, revela-se, nestas condições, cada vez mais, pertinente. A participação e a decisão dos indivíduos e grupos em todo o processo autogestionário desenvolve-se harmoniosamente. A democracia directa impõe-se como modelo relacional básico, dando lugar a que todos os indivíduos e grupos tenham uma participação e decisão efectiva em todos os aspectos do funcionamento interno e externo das colectividades em que estão inseridos. A autogestão torna-se uma função pacífica de socializar entre todos os membros das diferentes colectividades, na medida em que a sua essência intrínseca apela à criatividade, à espontaneidade, à liberdade e responsabilidade de todos os indivíduos. Por outro lado, a autogestão de características anarquistas induz a que persista uma identidade real entre o produtor, o consumidor e o homem trabalhador. 107 Como consequência lógica dessas hipóteses, haverá que olhar para a natureza como a mãe de tudo aquilo que se produz e consome. A depredação do ambiente e apropriação e utilização de bens e serviços como objectos efémeros, como inclusivé o desperdício e o lixo que resultam das diferentes actividades humanas terão que ser totalmente reestruturados, ou substancialmente extintos, de forma a reencontrar o equilíbrio entre o homem e a natureza. O ordenamento do território e a utilização do solo, os equipamentos colectivos e as infra-estruturas, tecnologias, etc, serão sempre expressão de um modelo de produção e de consumo que se orienta e traduz em práticas humanas pautadas pela solidariedade e o apoio mútuo, onde coexistem a liberdade individual e social, mas onde também a criatividade e a responsabilidade estarão sempre presente. Finalmente, a organização social, económica, política e cultural identificada com os parâmetros da ecologia social anarquista terá que generalizar-se à escala universal e estruturar-se organicamente em termos autogestionários e federativos. Qualquer hipótese de emergência organizacional centralista ou burocrática, neste contexto, não se afigura plausível, na medida que a força estruturante das múltiplas colectividades, grupos e indivíduos federados nas diferentes escalas espaciais assumem uma soberania plena. A motivação e a identificação entre o homem e a natureza, neste âmbito, assume-se a uma escala universal. Bens e serviços, recursos naturais, florestas, rios, mares, etc..., fazem parte de um todo indissolúvel, que não pertence a uma colectividade específica, mas a um legado indelével da natureza e da comunidade universal. Mais de qualquer outra razão e mais além de qualquer pressuposto realista 108 da sociedade capitalista, é na sua essência universal e emancipação humana que o anarquismo se fundamenta. Assim sendo, há espaço interventivo de construção social sustentado pela auto-organização dos indivíduos e dos grupos, com uma interacção social suficientemente capaz de apoiar-se no interconhecimento e na democracia directa e dinamizar, por essa via, uma auto-consciência e um auto-governo corporizados em acções individuais e colectivas identitárias nas múltiplas colectividades que compõem a sociedade global. As diferentes colectividades, grupos e indivíduos localizadas aos níveis espaciais local, regional, nacional e transnacional, opor-se-ão ao centralismo burocrático e repressivo do Estado-Nação e do imperialismo das entidades estatais supra-nacionais. Elas têm virtualidades que podem-se tornar reais. Através dos indivíduos, grupos e movimentos sociais podem-se difundir práticas, teorias, manifestações, etc..., que decorrem de um projecto de sociedade anarquista. Mais do que nunca, as hipóteses de auto-organização e auto-reflexão no sentido da libertação da espécie humana impõem-se. Na medida em que toda a acção individual e colectiva inserida nos espaços locais, regionais, nacionais e transnacionais são progressivamente mais interdependentes e complementares, a construção de sínteses no âmbito do espaço mundial revela-se fulcral. Essa virtualidade, tantas vezes considerada utópica, pode tornar-se real. Hoje, podermos pensar e praticar a anarquia como algo natural e do domínio do possível. É pacífico começarmos a construirmos um movimento social suficientemente forte de forma a darmos início à extinção da sociedade em que persistimos. Para isso, basta aprender com o passado, olhar para o presente e lutar pela construção de uma sociedade futura baseada nos princípios e práticas da democracia directa, 109 fraternidade, igualdade, solidariedade e liberdade. 110 João Freire CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE ECOLOGIA SOCIAL E SUAS PERSPECTIVAS POLÍTICAS Realizou-se em Lisboa nos dias 26, 27 e 28 de Agosto de 1998 um encontro internacional subordinado à temática que figura no título deste texto: a ecologia social, as perspectivas políticas que esta teoria pode abrir e a conceptualização de um municipalismo marcado pelos valores do libertarismo e pelas referências ideológicas do anarquismo. A iniciativa desta conferência partiu dos libertários de Montreal e do Instituto de Ecologia Social de Plainfield, no Estado norte-americano do Vermont, onde ensina Murray Bookchin, tendo sido apoiada em Lisboa por um grupo informal de pessoas que puderam contar com uma base logística no centro de pesquisa Socius, do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa. Na realidade, para dar o devido reconhecimento às contribuições de cada um, deve confessar-se que o sucesso desta realização caberá, na sua maior parte aos esforços de Dimitri Roussopoulos, no plano americano e internacional, e de Carvalho Ferreira, no plano da organização em Lisboa. De resto, no próximo ano, a conferência prolongar-se-á com um outro encontro internacional em Vermont, que deverá desenvolver e aprofundar as ideias e perspectivas entreabertas em Lisboa. Nos meses e semanas que antecederam o evento, assistiu-se em alguns meios do militantismo anarquista a uma incompreensível campanha de imprensa para condenar politicamente a iniciativa. Tal atitude partiu dos anarquistas espanhóis da CNT e da FAI, contou em Lisboa com o olho e a mão do grupo "Acção Directa" e utilizou os sempre desagradáveis e 111 condenáveis métodos de caluniar pessoas, de fazer especulação afectiva e da veiculação de algumas inverdades. É natural que aqueles anarquistas que continuam a defender, contra ventos e marés, os princípios do anti-estatismo, do sindicalismo de de acção directa e da revolução insurrecionalista como pontos de doutrina absolutamente indiscutíveis se manifestem contra uma orientação ecologista libertária que se baseia mais no interclassismo, numa gestão alternativa territorialista e não desdenha a acção eleitoral no plano comunal ou municipal. É natural, embora fosse mais interessante e saudável que se dispuzessem a discutir racionalmente os vários temas e argumentos em causa. Mas já causa desgosto constatar como, numa época em que o anarquismo militante não tem qualquer peso nem reconhecimento social, em nenhum país ou região do mundo, existem militantes aferrados ao papel de sacerdotes guardiães duma ortodoxia cuja principal missão consiste precisamente em combater os ténues ensaios de discussão e experimentação de alternativas que possam remediar tal estado de coisas e descobrir modos de actualizar e melhorar a postura desta filosofia política nas sociedades existentes nos finais do Século XX, tão diferentes já daquelas em que Proudhon e Bakunin viveram e para as quais congeminaram respostas progressistas e emancipadoras. Tirando estes àpartes, a conferência revelou alguns motivos de interesse, mas também dificuldades e fragilidades que não seria bom esconder. Com efeito, por um lado, uma certa síndrome de pecado, desvio ou cisão pairou sobre parte dos debates, revelando que se tratava, antes do mais, de um conclave de anarquistas que estavam ensaiando terrenos de alguma infracção ideológica. Neste aspecto, ficaram frustrados aqueles que haviam tomado a iniciativa pelo seu valor facial, isto é, que esperavam da ecologia 112 social mais, ou outra coisa, do que uma variação nova sobre velhos temas anárquicos. No primeiro dia, os trabalhos começaram com as boas vindas de Carvalho Ferreira aos cerca de sessenta participantes presentes, a que se seguiu uma longa intervenção de Janet Biehl sobre o tema do encontro: "The Politics of Social Ecology: Libertarian Municipalism". Tratou-se duma exposição dos pontos essenciais da filosofia política desenvolvida há mais de vinte anos por Murray Bookchin, através da palavra e do texto de uma (aparentemente) sua fiel discípula e próxima colaboradora. Chaia Heller (também de Vermont, USA), Roger Jacobs (de Hasselt, Bélgica), Eirik Eigland (de Porsgunn, Noruega), Dimitri Roussopoulos e Maria Magos Jorge compuzeram o painel que, ainda nessa manhã, discutiu um ou outro aspecto particular do pensamento de Bookchin. E da parte da tarde, novas comunicações apresentadas por Chaia Heller e pelo canadiano do Quebeque Marcel Sevigny prolongaram este tipo de reflexão. Na realidade, durante todo este primeiro dia da conferência, foram efectivamente as ideias de Bookchin que estiveram postas a debate, questionadas sobretudo pelas teses do anarquismo mais tradicional, como por exemplo a questão da defesa das situações de influência social hipoteticamente alcançadas, perante o contraataque das forças e dos interesses sociais adversos. No final da jornada, pôde ver-se um vídeo contendo uma entrevista com Murray Bookchin, impossibilitado de deslocar-se à Europa por motivos de saúde. No segundo dia, os trabalhos decorreram basicamente em três workshops temáticos. No grande auditório – onde se dispunha de um sistema de tradução simultânea inglês-espanhol-português – o tema era "Problemas sociais e movimentos sociais urbanos". Na parte da manhã aí apresentaram 113 comunicações o australiano Hamish Alcorn, o espanhol Garcia Rey, e os portugueses José Tavares e José Luís Félix. Garcia falou sobre a necessidade de uma perspectiva territorial nos projectos de emancipação social, sobre a importância dos cenários urbano-territoriais na crise dos sistemas actuais e sobre a importância dos movimentos sociais em torno de práticas de resistência aos processos de mundialização e de imposição dum pensamento único simultâneo ao desenvolvimento de iniciativas de autogestão territorial. Tavares apresentou uma comunicação sobre "O trabalho e a sua ultrapassagem" e Félix interveio sobre "Processos de autoorganização em meio urbano", enfatizando as possibilidades existentes para formas de participação, mau grado o clima existente adverso à criatividade e à iniciativa solidária. Na parte da tarde, prosseguiram os debates nesta secção com uma comunicação do sociólogo espanhol Miguel Martinez sobre "A invenção estratégica: auto-planeamento popular e autogestão ecológica urbana", onde o autor apontou os limites do chamado planeamento estratégico no urbanismo, evidenciando as dimensões não planificáveis, para propor outras categorias adequadas como a de "invenção estratégica" na qual a acção precede ou é simultânea à reflexão. A esta se seguiu a comunicação dos turcos Sureya Evren e Rahmi Ogdul e, por fim, a de Carvalho Ferreira sobre "Tendências da marginalidade social e dos movimentos sociais no contexto urbano". Na secção "Cultura e vida social no Século XIX: o local e o global", da parte da manhã, puderam escutar-se as seguintes comunicações: de António Cândido Franco, acerca do despovoamento e desertificação do Sul de Portugal, enfocada na problemática das relações entre o mundo urbano e rural; do uruguaio Alberto Villareal; de Carlos Sousa, presidente da Câmara Municipal de Palmela, sobre a participação popular na gestão municipal; do 114 advogado Alfredo Gaspar, sobre o modo como os municípios estão integrados na ordem jurídica constitucional, concluindo que a tutela administrativa dos mesmos não é compatível com o conceito de municipalismo libertário; e do sociólogo António Pedro Dores sobre "As prisões e a acção cívica", questionando as actuais políticas prisionais (em relação à droga e à imigração clandestina, por exemplo) que, mesmo se marcadas por preocupações humanistas, podem legitimar práticas estigmatizantes e descuidadas com os direitos humanos, preocupando-se com este "lado fechado" da vida colectiva urbana. À tarde, a discussão do tema foi prosseguida pelo americano Bob Spivey, por Mário Rui Pinto, com uma exposição sobre as diferenças entre o contexto onde emergiu o "velho anarquismo" e aquele em que hoje nos encontramos, que apela à invenção de um "novo anarquismo", por Mimmo Pucciarelli, que igualmente acentuou as diferenças entre os velhos e os novos anarquistas, mas sobretudo no plano das suas respectivas inserções sociais; pelo canadiano anglófono Frank Harrison, que apresentou uma comunicação sobre os grandes pontos de contacto existentes entre os pensamentos de Kropotkin e de Bookchin, tais como o papel do território e da comunidade e os conceitos de evolução/re-volução; e, por último, por Ilídio Santos, com uma intervenção sobre "Socialização, conformidade, desvio", na qual foram postas em destaque as actuais "culturas psicotizantes" e a "função hipnótica e narcótica das máquinas de imagens". "Marx, como Bookchin tem reiterado desde o seu estimulante Escuta Marxista!, aceitou a estrutura produtiva, baseada em preceitos hierárquicos. Consequentemente, a sua solução política assentava na hierarquia; e quando os marxistas se apoderaram finalmente do poder político (em 115 sociedades onde Marx nunca sonhara que tal poderia acontecer) procuraram simplesmente reproduzir a estrutura do capitalismo num sistema de propriedade estatal. O resultado, como vimos nas duas últimas décadas, foi uma devastação do ambiente ainda mais excessiva e horrível do que a do capitalismo no Ocidente." Frank Harrison in Bookchin e Kropotkin: alguns temas intelectuais e organizativos comuns Na secção "A economia das pequenas e das grandes cidades" foram apresentadas e discutidas quatro comunicações: os noruegueses Eiglad e Legard expuseram os fundamentos do municipalismo libertário, num registo sobretudo político e ideológico; em seguida o espanhol Carlos Ramos interveio sobre "O municipalismo libertário, alternativa ao municipalismo capitalista" enfatizando o quadro político democrático existente em países como a Espanha actual, a rica experiência de vinte anos de "associações de vizinhos", a necessidade de "tradução" dos orçamentos municipais para os tornar compre-ensíveis para o cidadão comum, as possibilidades existentes de oposição – através da mobilização popular – à gestão capitalista dos municípios (tanto os geridos por partidos de direita como por partidos de esquerda), o conceito de movimento social municipal e, por último, a necessidade de estruturar formas de participação política municipal mais avançadas, estáveis e eficazes, embora sempre assentes em redes de associações populares de base, de natureza diversa mas onde a participação directa dos cidadãos seja uma realidade; o americano Dan Chordokoff relatou a experiência de mobilização popular dum bairro pobre de Nova Iorque com cerca de 30.000 habitantes, desde os anos 70, assente na colaboração estabelecida entre uma centena de associações populares de 116 base influenciadas por diversos grupos e ideologias políticas, mas que foram capazes de estruturar uma economia local a partir da inventariação de recursos e necessidades – de alojamentos, creches, escolas, clínicas e centros de saúde, emprego, marginalidade, etc. – e da mobilização das pessoas comuns, embora tal experiência tivesse, no entender do autor, demonstrado duas insuficiências importantes da acção desenvolvida, a saber, a dependência local da "grande economia" (a que determina os preços das casas ou o desemprego, por exemplo), e a incapacidade em apresentar alternativas políticas credíveis na altura das eleições para os órgãos do poder municipal; por último, o escossês Mike Small falou sobre o caso histórico do urbanista Patrick Geddes e da acção desenvolvida em Edimburgo nos finais do século passado tentando conjugar iniciativas populares de habitação, educação e trabalho, e articulando as identidades de base geográfica como os "regionalismos" às práticas políticas e cívicas da democracia directa, que estão na base do moderno pensamento da ecologia social. Este segundo dia encerrou com uma sessão plenária na qual os coordenadores dos diferentes seminários apresentaram sínteses das comunicações e dos debates havidos. No dia 28 os trabalhos decorreram de novo em plenário permanente (com o inestimável benefício da tradução simultânea). A parte da manhã foi consagrada à apresentação de relatórios das situações e experiências locais de ecologia social relativos a dezasseis cidades: Amsterdão, Brisbane (Austrália), Burlington e Plainfield (no Vermont, USA), Lyon, Montevideo, Salónica, Montreal, Madrid, Málaga, Valência, Porsgunn (na Noruega), Grafenau (na Alemanha), Antuérpia, Istambul e Edimburgo. 117 "O ideal tecnológico-racional, que guia a evolução brutal da nossa sociedade, cria um divórcio, cada vez mais pronunciado, entre uma vida profissional impessoal, submetida unicamente ao critério da eficácia, e uma vida emotiva extremamente restrita quanto à sua extensão e empobrecida quanto à sua intensidade. A maior parte dos nossos contemporâneos vive na fascinação de um optimismo tecnológico falso e de um pseudo-racionalismo insensato que servem de justificação e de disfarce para as angústias – bem reais desta vez – no que respeita à incerteza em relação ao futuro." Ilídio dos Santos in Socialização, conformidade e desvio À tarde, foram discutidos mais em particular dois temas cuja importância havia ressaltado dos relatos feitos das várias experiências locais: as relações entre as organizações populares de bairro ou vizinhança e as estruturas oficiais do poder municipal; e as experiências, mais ou menos frustradas, de candidaturas a eleições municipais por listas ou movimentos ecologistas, alternativos e libertários. Carvalho Ferreira e Dan Chordokoff encerraram os trabalhos da conferência, que, como se disse, irá ter continuação no Verão de 1999 em Vermont e para a preparação da qual foram designadas várias pessoas que compõem agora a respectiva comissão organizadora internacional. A Batalha - VI Série, Ano XXIV, Julho – Agosto, 1998. #170 118 Mimmo Pucciarelli QUE PRÁTICA LIBERTÁRIA NA CIDADE DOS NOSSOS DIAS? Entre 26 e 28 de Agosto realizou-se em Lisboa uma conferência internacional sobre a ecologia social e as suas perspectivas políticas, o municipalismo libertário. Este conferência foi organizada por uma comissão constituída por várias pessoas activas no movimento libertário internacional, apoiadas por centros de estudos libertários (como o de Milão ou a Fundação Salvador Ségui, de Madrid), por casas editoras, como a Black Rose Books (gostaria de precisar que se trata de uma das mais antigas e activas editoras libertárias actuais, com sede em Montréal) e a Trotzem verlag / Scharwz faden, da Alemanha, o Instituto de Ecologia Social, de Vermont, o Instituto por uma Eco-sociedade, de Montréal, ou o colectivo Los Arenalejos, de Espanha. O SOCIUS, centro de investigação em sociologia económica e das organizações, dirigido por José Maria Carvalho Ferreira, encarregou-se de forma admirável da organização prática destes três dias, enfim, a conferência teve ainda o apoio do departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, de Lisboa, entre outras instituições locais. Cerca de cento e trinta pessoas vieram assistir a estas jornadas. Deslocaram-se de vários países europeus (Alemanha, Espanha, Portugal, França, Holanda, Bélgica, Noruega, Escócia), da Turquia, da América Latina, dos Estados Unidos e do Canadá. Alguns representavam grupos locais ou organizações nacionais (por exemplo, da CGT espanhola estiveram presentes cerca de uma vintena de militantes), mas tantos outros aí estiveram a título individual. 119 A ideia desta conferência, segundo o que pude entender da leitura do manifesto publicado por vários jornais libertários e ecologistas, era reflectir sobre a questão da ecologia social e sobre aquela que parece ser a sua implicação prática e política mais provável, o municipalismo libertário. Entendo que com esta conferência se quis, por um lado, prestar homenagem à obra de Murray Bookchin, inspirador destes dois conceitos que ajudaram os libertários, a nível internacional, a enfrentar a problemática ecologista nos anos 70 e 80; por outro lado, quis-se igualmente procurar levar mais longe a reflexão sobre este tema, levando em conta o livro que Janet Biehl publicou recentemente e que retoma a ideia do municipalismo libertário de Bookchin, ampliando-o e estruturando-o a partir do conhecimento de algumas experiências que várias pessoas e grupos têm levado à prática, deste e daquele lado, desde há uma vintena de anos. Para dizer a verdade, tive a impressão de que se alguns dos organizadores do encontro tiveram, antes do mais, a ideia de reunir um grande número de libertários, a nível internacional, para uma reflexão conjunta, outros houve que desejavam que no final da conferência se tivesse podido estabelecer os fundamentos de uma rede dedicada ao municipalismo libertário, afinal criar uma organização específica. Durante os três dias do encontro, nas belas instalações do Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa, e graças à tradução simultânea a funcionar numa das salas, foi possível assistir a debates, se não ricos pelo menos bastante prometedores. Com efeito, à parte a diferença que já referi nos propósitos dos membros da organização, diferença que se tornou perceptível também nas intervenções de alguns dos participantes, deve dizer-se que o conjunto de pessoas que interveio exprimiu uma mesma 120 preocupação no que concerne ao que podemos considerar a preocupação quanto a uma intervenção política libertária na cidade. Se alguns o fizeram a partir de um ponto de vista "ideológico", outros trouxeram-nos exemplos concretos que nos mostraram a actualidade desta questão, e mesmo, de certa maneira, a urgência de a enfrentar, para responder ao mesmo tempo a uma necessidade do movimento e àqueles e aquelas que querem participar na via política, nos assuntos de uma outra cidade, ou se preferem, de um modo alternativo. No final da conferência, como lá diria Agustin Garcia Calvo, "estávamos todos um pouco mais ignorantes", pois se as nossas intenções nos mostraram que, por um lado, no movimento libertário somos capazes de enfrentar cada vez mais serenamente assuntos da delicadeza de uma intervenção política na cidade, como seja a própria participação em eleições locais, por outro lado constatamos que ainda não temos do nosso lado a resolução ou, se preferirem, todas as respostas práticas e teóricas a questões como estas. É certo que na assistência estavam, por exemplo, jovens companheiros aparentemente muito activos na sua cidade ou região e que não tinham dúvidas quanto à eficácia do "municipalismo libertário e das suas últimas consequências, ou seja, a revolução social", mas havia também quem, como eu próprio, procura desde há muito questionar os conceitos desse anarquismo clássico de que nos servimos ainda para apreender a realidade do ano 2000. Na verdade, desde que li as obras de Bookchin, e que com o Atelier de Création Libertaire contribuímos para o seu conhecimento em França, sempre pensei que a ecologia social e o municipalismo libertário poderiam 121 ser um dos meios para avançar nas nossas reflexões e nas nossas práticas. No entanto, nesta última conferência a que assisti, voltei a assinalar "uma lenta evolução" do pensamento libertário face ao que foram os propósitos definidos já há uma quinzena de anos nos nossos meios militantes "puros e duros", e pude também constatar que nos faz falta, absolutamente, um trabalho de reactualização dos conceitos como revolução, antiestatismo, antiparlamentarismo, luta de classes, movimento de massas, anarcosindicalismo, comunismo libertário ou a própria anarquia... Mas atenção, não se trata de retomar aqui o velho discurso sobre o tema mítico que opunha ideologicamente os "revolucionários" e os "reformistas", mas de confrontar as nossas práticas quotidianas com as nossas ideias, e de construir à sua volta um corpus que não atire para um beco tudo o que se passou no mundo nos últimos trinta anos. Enfim, e para lá de todas as críticas que sempre é possível fazer neste tipo de iniciativas (por exemplo, a pouca representação daqueles grupos que têm uma real prática local, ou a pouca presença de países como a Itália, a Inglaterra ou os países do Leste europeu, para não falar já de África ou da Ásia, ou ainda esta ânsia de avançar para uma estruturação formal de um movimento, sem levar em conta o que é que ele podia representar a um nível real, e os debates internos que continuam a sofrer de personalismo e por vezes de dogmatismo...), pareceu-me ter sido uma iniciativa bem conseguida. De facto, depois de três dias de debate e de algumas questões importantes levantadas por parte da assembleia (como por exemplo a defesa armada de uma hipotética municipalidade libertária atacada pelos seus inimigos...), os 122 participantes acordaram numa nova reunião, a realizar como previsto em Vermont, nos Estados Unidos, para uma segunda conferência durante o próximo verão de 1999. Até lá, irão promover a leitura do livro de Janet Biehl sobre o municipalismo libertário (de que existe uma edição alemã, uma espanhola e a francesa publicada pela Eco-sociedade em Montréal, enquanto se prevê a sua próxima tradução em Grego e em Italiano), em debates, conferências locais e, se possível, encontros que permitam continuar o debate sobre estas questões, por exemplo a criação de grupos de reflexão da hoc... o que acabou por ser a razão da minha participação pessoal nesta conferência. 123 André Gorz A IDEOLOGIA SOCIAL DO CARRO A MOTOR O que tem de pior nos carros é serem como castelos ou mansões à beira do mar: bens luxuosos inventados para o prazer exclusivo de uma minoria muito rica, os quais em concepção e natureza nunca foram direcionados para o povo. Ao contrário do aspirador de pó, do rádio, ou da bicicleta, que retêm seu valor de uso quando todos possuem um, o carro, como uma mansão à beira do mar, é somente desejável e útil a partir do momento que as massas não têm um. Por isso, tanto em concepção quanto na sua finalidade original o carro é um bem de luxo. E a essência do luxo é a de que ele não pode ser democratizado. Se todos puderem ter o luxo, ninguém obtém as vantagens dele. Do contrário, todos logram, enganam e frustram os demais, e é logrado, enganado e frustrado por sua vez. Isto é de muitíssimo conhecimento comum no caso das mansões à beira mar. Nenhum político ousou ainda reivindicar que democratizar o direito às férias significasse uma mansão com praia particular para cada família. Todos compreendem que se cada uma entre 13 ou 14 milhões de famílias devessem usar somente 10 metros da costa, tomaria-se 140.000km de praia para que todos tivessem sua parte! Para dar a todos sua parte teria-se que cortar as praias em tiras pequenas - ou espremer tão fortemente as mansões - que seu valor de uso seria nulo e sua vantagem sobre um complexo hoteleiro desapareceria. De fato, a democratização do acesso às praias aponta a somente uma solução: a solução coletivista. E esta solução está necessariamente em guerra com o luxo da praia particular, que é um privilégio que uma minoria pequena toma como seu direito às custas de todos. 124 Agora, por que aquilo que é perfeitamente óbvio no caso das praias não é geralmente visto da mesma forma no caso do transporte? Como a casa de praia, um carro também não ocupa espaço escasso? Não priva os outros que usam as estradas (pedestres, ciclistas, motoristas de ônibus, etal.)? Não perde seu valor de uso quando todos usam os seus próprios? No entanto há uma abundância de políticos que insistem que cada família tem o direito ao menos a um carro e que é até encargo do "governo" tornar possível que todos possam estacionar convenientemente, dirijam facilmente na cidade, e possam viajar no feriado ao mesmo tempo que todos outros, indo a 70 mph nas estradas, às estações de férias. A monstruosidade deste absurdo demagógico é imediatamente aparente, no entanto, mesmo a esquerda não desdém de recorrer a ela. Por que o carro é tratado como uma vaca sagrada? Por que, ao contrário de outros bens "privados", ele não é reconhecido como um luxo anti-social? A resposta deve ser procurada nos dois aspectos seguintes da atividade de dirigir: A massificação do automóvel efetua um triunfo absoluto do ideologia burguesa no nível da vida diária. Dá e sustenta em todos a ilusão de que cada indivíduo pode procurar o seu próprio benefício às custas de todos os demais. Leva ao egoísmo cruel e agressivo do motorista que em todos os momentos está figurativamente matando os "outros", que aparecem meramente como obstáculos físicos à sua velocidade. Este egoísmo competidor e agressivo marca a chegada do comportamento universal burguês, e tem existido desde que dirigir tornou-se lugar comum. ("você nunca terá o socialismo com aquele tipo de pessoas", um amigo alemão ocidental me disse, triste ao ver o espetáculo do tráfego de Paris). 125 O automóvel é o exemplo paradoxal de um objeto luxuoso que tem sido desvalorizado por sua própria propagação. Mas esta desvalorização prática não foi seguida ainda por uma desvalorização ideológica. O mito do prazer e benefício do carro persiste, embora se o transporte de massa fosse difundido, sua dominação seria golpeada. A persistência deste mito é explicado facilmente. A propagação do carro particular deslocou o transporte de massa e alterou o planejamento da cidade e da habitação de tal maneira que transfere ao carro o exercício de funções que sua própria propagação tornou necessárias. Uma revolução ideológica ("cultural ") seria necessária para quebrar este círculo. Obviamente não se deve esperar isto da classe dirigente (direita ou esquerda). Permita-nos olhar mais de perto agora estes dois pontos. Quando o carro foi inventado, ele o foi para prover poucos dos muito ricos com um privilégio completamente sem precedentes: viajar muito mais rapidamente do que todos os demais. Ninguém até então tinha sonhado com isso. A velocidade de todas as carroças era essencialmente a mesma, fosse você rico ou pobre. As carruagens dos ricos não eram mais velozes do que as carroças dos camponeses, e trens carregavam todos na mesma velocidade (não possuíam velocidades diferentes até eles começarem a competir com o automóvel e o avião). Assim, até a virada do século, a elite não viajava em uma velocidade diferente do povo. O carro a motor iria mudar tudo isto. Pela primeira vez as diferenças de classe foram estendidas à velocidade e aos meios de transporte. Este meio de transporte no início parecia inacessível às massas - ele era 126 muito diferente dos meios de transporte comuns. Não havia nenhuma comparação entre o carro a motor e os outros: o bonde, o trem, a bicicleta, ou a carroça. Seres excepcionais saíam em veículos com auto-propulsão que pesavam pelo menos uma tonelada e cujos órgãos mecânicos extremamente complicados eram tão misteriosos quanto escondidos das vistas. Um aspecto importante do mito do automóvel é que pela primeira vez as pessoas andavam em veículos particulares cujos mecanismos de funcionamento eram completamente desconhecidos deles, e cuja manutenção e alimentação tiveram que confiar a especialistas. Aqui está o paradoxo do automóvel: parece conferir aos seus proprietários liberdade ilimitada, permitindo que viajem quando e a onde quiserem em uma velocidade igual ou maior que a do trem. Mas de fato, esta aparência de independência tem por debaixo uma dependência radical. Ao contrário do cavaleiro, do carroceiro, ou do ciclista, o motorista iria depender para suprir combustível, assim como para o menor tipo de reparo, dos negociantes e dos especialistas em motores, lubrificação e ignição, e da possibilidade de troca das peças. Ao contrário de todos os proprietários anteriores de meios de locomoção, o relacionamento do motorista com seu veículo viria a ser aquele do usuário e consumidor - e não do proprietário e do mestre. Este veículo, em outras palavras, obrigaria o proprietário a consumir e usar uma gama de serviços comerciais e produtos industriais que somente poderiam ser fornecidos por um terceiro. A independência aparente do proprietário do automóvel apenas escondia a dependência radical real. Os magnatas do petróleo foram os primeiros a perceber o ganho que poderia ser extraído da distribuição em escala do carro a motor. Se as pessoas pudessem ser induzidas a viajar em carros, eles poderiam vender o combustível necessário para movê-los. Pela primeira vez na história, as 127 pessoas tornar-se-iam dependentes de uma fonte comercial de energia para sua locomoção. Haveriam tantos clientes para a indústria de petróleo quanto houvessem motoristas - e uma vez que haveriam tantos motoristas quanto houvessem famílias, a população inteira se transformaria em cliente dos comerciantes de petróleo. O sonho de todo capitalista estava a ponto de se realizar. Todos iriam depender para suas necessidades diárias de um produto que uma única indústria possuía em monopólio. Tudo que se deveria fazer era deixar a população dirigir carros. Pouca persuasão seria necessária. Seria suficiente baixar o preço do carro usando a produção em massa e a linha de montagem. As pessoas atropelariam umas as outras para comprá-lo. Correriam sem perceber que estavam sendo conduzidas pelo nariz. O que, de fato, a indústria do automóvel lhes ofereceu? Apenas isto: "de agora em diante, como a nobreza e a burguesia, você também terá o privilégio de dirigir tão rápido quanto qualquer um. Em uma sociedade de carro a motor o privilégio da elite é tornado disponível a você". As pessoas se apressaram para comprar carros até que, quando a classe trabalhadora começou a os comprar também, os motoristas perceberam que haviam sido enganados. Tinha sido prometido a eles um privilégio de burgueses, tinham entrado em débito para adquiri-lo, e agora viam que qualquer um poderia também obter um. Qual é o gosto de um privilégio se todos puderem o ter? É um jogo de tolo. Pior, ele coloca todos em posição antagônica contra todos. A paralisação geral é criada por um engarrafamento geral. Quando todos reivindicam o direito de dirigir na velocidade privilegiada da burguesia, tudo pára, e a velocidade do tráfego da cidade cai vertiginosamente - em Boston como em Paris, Roma, ou Londres - abaixo 128 daquele da carroça; no horário do rush a velocidade média nas estradas abertas cai abaixo da velocidade de uma bicicleta. Nada ajuda. Todas as soluções foram tentadas. Todas elas terminam piorando as coisas. Não importa se elas aumentam o número de vias expressas, túneis, elevados, estradas de 16 pistas e estradas com pedágio na cidade, o resultado é sempre o mesmo. Quanto mais estradas a serviço, mais os carros as obstruem, e o tráfego da cidade torna-se mais paralisantemente congestionado. Enquanto houverem cidades, o problema permanecerá sem solução. Não importa quão larga e rápida uma superhighway seja, a velocidade na qual os veículos podem sair dela para entrar na cidade não pode ser maior do que a velocidade média nas ruas da cidade. Enquanto a velocidade média em Paris é 10 a 20 kmh, dependendo da hora, ninguém poderá sair delas em torno e na capital a mais do que 10 a 20 kmh. O mesmo é verdadeiro para todas as cidades. É impossível dirigir a mais do que uma média de 20kmh na embaraçada rede de ruas, de avenidas, e de bulevares que caracterizam as cidades tradicionais. A introdução de veículos mais rápidos inevitavelmente atrapalha o tráfego da cidade, causando gargalos - e por fim uma paralisação completa. Se o carro deve prevalecer, há ainda uma solução: livre-se das cidades. Isto é, enfileire-os por centenas de milhas ao longo de enormes estradas, fazendo delas subúrbios de estradas. Isto é o que está sendo feito nos Estados Unidos. Ivan Illich mostra a conseqüência deste modo: "O americano típico devota mais de 1500 horas no ano (que são 30 horas por 129 semana, ou 4 horas por dia, incluindo domingos) a seu carro. Isto inclui o tempo gasto atrás do volante, andando e parado, as horas de trabalho para pagar por ele e para pagar pelo combustível, pneus, pedágios, seguro, bilhetes e taxas. Deste modo ele toma deste americano 1500 horas para andar 6000 milhas (no curso de um ano). Três milhas e meia custam-lhe uma hora. Nos países que não têm uma indústria do transporte, as pessoas viajam exatamente nesta velocidade a pé, com a vantagem que podem ir onde quiserem e de não estarem restritas às estradas de asfalto". É verdade, Illich aponta, que em países não-industrializados a viagem usa somente 3 a 8% do tempo livre da pessoa (que é aproximadamente duas a seis horas na semana). Assim uma pessoa a pé anda tantas milhas em uma hora gasta em viagem quanto uma pessoa em um carro, mas devota 5 a 10 vezes menos tempo na viagem. Moral: Quanto mais difundidos veículos rápidos estão dentro de uma sociedade, mais tempo - a partir de um determinado ponto - as pessoas gastarão e perderão viajando. Isto é um fato matemático. A razão? Nós acabamos de vê-la: As cidades foram divididas em infinitos subúrbios de estrada, porque esta era a única maneira de evitar o congestionamento em centros residenciais. Mas o lado oculto desta solução é óbvio: finalmente as pessoas não podem se deslocar convenientemente porque estão distantes de tudo. Para construir espaço para os carros, as distâncias foram aumentadas. As pessoas vivem longe de seu trabalho, longe da escola, longe do supermercado - que requer então um segundo carro para que as compras possam ser feitas e para as crianças irem à escola. Passeios? Fora da questão. Amigos? Há os vizinhos... e só. Na análise final, o carro desperdiça mais tempo do que economiza e cria mais 130 distâncias do que supera. Naturalmente, você pode ir ao trabalho a 60 mph, mas isto porque você vive a 30 milhas de seu trabalho e está disposto a dar meia hora às últimas 6 milhas. Somando tudo: "uma boa parte do trabalho diário é gasto para pagar pela viagem necessária para ir ao trabalho". (Ivan Illich). Talvez você esteja dizendo, "mas ao menos desta maneira você pode escapar do inferno da cidade após o fim do dia de trabalho". Lá nós estamos, agora nós sabemos: "a cidade", a grande cidade que por gerações foi considerada uma maravilha, o único lugar que vale a pena viver, é considerada agora um "inferno". Todos querem escapar dela para viver no campo. Por que esta reversão? Por uma única razão. O carro fez a cidade grande inabitável. A fez fedorenta, barulhenta, sufocante, empoeirada, congestionada, tão congestionada que ninguém quer sair mais de tardinha. Assim, uma vez que os carros mataram a cidade, nós necessitamos carros mais rápidos para fugir em superestradas para os subúrbios que estão ainda mais distantes. Que argumento circular impecável: dê-nos mais carros de modo que nós possamos escapar da destruição causada pelos carros. De um artigo luxuoso e uma marca de privilégio, o carro transformou-se assim numa necessidade vital. Você tem que ter um para escapar do inferno urbano dos carros. A indústria capitalista ganhou assim o jogo: o supérfluo tornou-se necessário. Não há mais a necessidade de persuadir as pessoas de quererem um carro; sua necessidade é um fato da vida. É verdadeiro que alguém possa ter suas dúvidas ao prestar atenção à fuga motorizada ao longo das estradas do êxodo. Entre 8 e 9:30 da manhã., entre 5:30 e 7 da tarde, e em fins de semana por cinco ou seis horas as rotas de fuga se prolongam nas procissões de para-choque-à-para-choque que vão (no 131 máximo) à velocidade de um ciclista e em uma nuvem densa de emanações da gasolina. O que sobra das vantagens do carro? O que é deixado quando, inevitavelmente, a velocidade superior nas estradas é limitada exatamente pela velocidade do carro mais lento? Nítido suficiente. Após ter matado a cidade, o carro está matando o carro. Prometendo a todos poderem andar mais rapidamente, a indústria do automóvel termina com o resultado previsível de que todos tem que andar tão lentamente quanto o mais lento, em uma velocidade determinada pelas leis simples da dinâmica dos fluidos. Pior: sendo inventado para permitir que seu proprietário vá a onde deseja, na velocidade e tempo que deseja, o carro transforma-se, de todos os veículos, no mais servil, perigoso, não dependente e incômodo. Mesmo se você deixa uma extravagante quantidade de tempo, você nunca sabe quando os gargalos o deixarão chegar lá. Você está limitado à estrada tão inexoravelmente quanto o trem a seus trilhos. Não mais do que o viajante de trem, pode você parar em um impulso, e como o trem você deve ir em uma velocidade decidida por outra pessoa. Concluindo, o carro não tem nenhuma das vantagens do trem e possui todas as suas desvantagens, mais algumas próprias: vibração, espaço apertado, o perigo dos acidentes, o esforço necessário para dirigi-lo. No entanto, você pode dizer, as pessoas não tomam trem. Claro! Como poderiam? Você já tentou alguma vez ir de Boston a New York de trem? Ou de Ivry a Treport? Ou de Garches a Fountainebleau? Ou de Colombes a l'Isle-Adam? Você tentou em um sábado ou domingo de verão? Bem, então tente e boa sorte! Você observará que o capitalismo do automóvel pensou em tudo. Tão logo o carro matou o carro, ele fez com que as alternativas desaparecessem, tornando compulsório, deste modo, o carro. Assim, 132 primeiramente o estado capitalista permitiu que as conexões de trilho entre as cidades e o campo circunvizinho se deteriorassem, e então acabou com elas. As únicas que foram poupadas foram as conexões inter-municipais de alta velocidade que competem com as linhas aéreas para uma clientela de burgueses. Há um progresso para você! A verdade é que ninguém tem realmente qualquer escolha. Você não é livre para ter um carro ou não porque o mundo dos bairros é projetado em função do carro - e, cada vez mais, é assim o mundo da cidade. É por isso que a solução revolucionária ideal, que é afastar o carro em proveito da bicicleta, do ônibus, e do bonde, não é sequer mais aplicável nas cidades grandes como Los Angeles, Detroit, Houston, Trappes, ou Bruxelas, que são construídas por e para o automóvel. Estas cidades estilhaçadas são formadas por alinhadas ruas vazias possuindo desenvolvimentos idênticos; e sua paisagem urbana (um deserto) diz, "estas ruas são feitas para se dirigir tão rapidamente quanto possível do trabalho para casa e vice-versa. Você anda através daqui, você não vive aqui. No fim do dia de trabalho todos devem permanecer em casa, e qualquer um encontrado na rua depois do anoitecer deve ser considerado suspeito de ‘fazer o mal’". Em algumas cidades americanas o ato de dar uma volta nas ruas à noite é vista como suspeita de crime. Então estamos fritos? Não, mas a alternativa ao carro terá que ser abrangente. Para que as pessoas possam abandonar seus carros, não será suficiente lhes oferecer um transporte de massa mais confortável. Terão que poder dispensar o transporte por se sentirem em casa nos seus bairros, nas suas comunidades, nas suas cidades de tamanho humano, e por sentirem prazer em andar do trabalho para casa a pé, ou se preciso for, de bicicleta. 133 Nenhum meio de transporte e fuga veloz jamais compensará a vexação de viver em uma cidade inabitável na qual ninguém se sente em casa, ou a irritação de somente ir à cidade para trabalhar ou, por outro lado, de estar sozinho e dormir. "As pessoas", escreve Illich, "quebrarão as correntes do domínio do transporte quando voltarem a amar, como se fosse seu próprio território, seu próprio ritmo particular, e temer ficar demasiado distante dele". Mas a fim de amar "o seu território" ele deve antes de mais nada ser habitável, e não congestionável. O bairro ou a comunidade devem novamente transformar-se em um microcosmo esculpido por e para todas as atividades humanas, onde as pessoas possam trabalhar, viver, relaxar, aprender, se comunicar, e discutir sobre ela, e no qual elas controlem conjuntamente como o lugar de sua vida em comum. Quando alguém lhe perguntou como as pessoas gastariam seu tempo após a revolução, quando o desperdício capitalista tivesse sido eliminado, Marcuse respondeu, "nós traremos à baixo as grandes cidades e construiremos novas. Isso manter-nos-á ocupados por enquanto". Estas novas cidades poderiam ser federações de comunidades (ou de bairros) cercadas por cinturões verdes nos quais cidadãos - e em especial crianças em idade escolar - passariam diversas horas da semana cultivando os alimentos frescos de que necessitam. Para se locomoverem todos os dias poderiam usar todos os tipos do transporte adaptados a uma cidade de tamanho médio: bicicletas, bondes ou bondes elétricos municipais, táxis elétricos sem motoristas. Para longas viagens no país, assim como para convidados, uma quantidade de automóveis comunais estaria disponível em garagens do bairro. O carro não seria mais uma necessidade. Tudo teria 134 mudado: o mundo, a vida, as pessoas. E isto não virá por si só. Entretanto, o que deve ser feito para se chegar lá? Sobretudo, nunca faça do transporte um assunto em si mesmo. Conecte-o sempre ao problema da cidade, da divisão social do trabalho, e à maneira que isto compartimentaliza as muitas dimensões da vida. Um lugar para o trabalho, outro para "viver", um terceiro para as compras, um quarto para aprender, um quinto para entretenimento. A maneira que nosso espaço é arranjado dá continuidade à desintegração das pessoas que começa com a divisão de trabalho na fábrica. Corta uma pessoa em fatias, corta nosso tempo, nossa vida, em fatias separadas de modo que em cada uma você seja um consumidor passivo a mercê dos comerciantes, de modo que nunca lhe ocorra que o trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das necessidades, e a vida pessoal podem e deveriam ser uma e mesma coisa: uma vida unificada, sustentada pelo tecido social da comunidade. Le Sauvage, Setembro-Outubro de 1973 135 Victor Fucks ECOLOGIA ALTERNATIVA: APRENDENDO COM OS ÍNDIOS TUPI GUARANI O Nível de sofisticação e desenvolvimento tecnológico alcançado pelas civilizações ocidentais contemporâneas constitui algo admirável e de grandes proporções. O controle de várias forcas e fenômenos naturais, a ênfase no individualismo, o culto quase ritualístico ao estimulo de "progressos," quantificações analíticas e resultados práticos, nos afetam em todos os sentidos, surpreendendo até Bacon, o criador desta filosofia. O impacto de diversas "maravilhas tecnológicas " indubitavelmente se faz sentir em nosso dia a dia. Essa ideologia acoplada ao sistema capitalista, cria uma constante geração e acumulo de riquezas, distribuição desigual de diversos recursos, dominação, exploração, superpopulação, poluição e "subprodutos." Como resultado outros , tais "maravilhas " perdem sua aura especial e passam a nos ameaçar, tornando-se "monstros" dos quais temos dificuldade de escapar. Estas ameaças não se restringem apenas à civilização Ocidental que as criou - mas se estendem a outros povos, em outras regiões, eventualmente ameaçando a própria sobrevivência da vida, na terra. Praticamente tudo o que fazemos, nossas opções e até mesmo criações estão ligadas a essa complexa estrutura, independente de nossas intenções. Este texto, por exemplo, está sendo escrito em um computador que por si só sintetiza parte do processo tecnológico. Este, por sua vez, se relaciona às técnicas de impressão, diagramação e distribuição da revista Utopia que, eventualmente, chega às mãos dos prezados leitores e, assim, por diante. As fábricas de computadores, acessórios etc. se relacionam em um complexo sistema econômico; do qual também fazemos parte. Deste sistema surgem diversos produtos que utilizamos em nossas vidas mas, ao mesmo tempo, 136 geram-se problemas diversos como poluição e eventuais explorações capitalistas. Assim sendo, nos vemos em uma situação paradoxal, pois, se de um lado, apreciamos grande parte dos implementos tecnológicos, frutos de nossa civilização, por outro, nos achamos presos a esta maquina" deliciosa " e "terrível" ao mesmo tempo. Como usufruir dos diversos implementos tecnológicos sendo que nos tornemos vítimas de um sistema perverso e nocivo? As alternativas demandam modelos ainda mais complexos pois não seria desejável e suficiente abandonarmos nosso conforto e prazeres cosmopolitanos –ou não -, para irmos viver isoladamente, em regiões remotas ou entre sociedades que não interagem com o sistema ocidental. Movimentos sociais independentes que encararam este problema lograram apenas sucesso limitado, como no caso das fazendas socialistas Kibutz em Israel e as comunidades e atividades ligadas ao movimento da contra-cultura, nos Estados Unidos (Zicklin 1983). O isolamento também se torna praticamente impossível, pois o impacto ocidental se faz sentir, nas regiões mais remotas do planeta, como por exemplo, entre tribos Amazônicas, Africanas e Asiáticas, mesmo antes destas sociedades estabelecerem contato direto com a nossa sociedade. Um exemplo dessa questão refere-se ao uso de objetos metálicos e outros produtos industrializados por comunidades indígenas isoladas na Amazônia. Quando certos grupos indígenas foram "oficialmente" contatados pela FUNAI, vários indivíduos já dispunham de facas, sandálias de plástico e tecidos diversos. Estes foram adquiridos por contatos intermediários, ou abandonados por garimpeiros e viajantes. A posição "ecológica" sugerida por Bookchin merece maiores considerações, uma vez que nos fornece um modelo teórico e não simplista. Neste modelo, o conceito de ecologia social propicia uma forma balanceada de relação 137 entre todas as espécies biológicas e diversos fenômenos naturais e, ao mesmo tempo, considera a viabilidade de implementação deste processo de equilíbrio ecológico, através do uso de tecnologia. A visão de Bookchin envolve fatores e processos adicionais que consideram a complexidade dos fenômenos sociais e naturais em suas formas globais (holísticas) e interrelacionadas. Uma das virtudes do modelo de Bookchin é a consideração de fatores não diretamente ligados a imediata sobrevivência biológica de cada indivíduo, ou à visão utilitária e funcionalista de cada atividade humana, pois afinal fazemos mais do que simplesmente procurar alimentos e buscar proteções a fenômenos naturais. Bookchin refere-se às "sensibilidades preliterais " características de certas sociedades tribais. Os esparcos dados antropológicos contribuem pouco para engrandecer a argumentação do autor, dando a impressão de uma visão utópica e romantizada destas sociedades. Ou seja, faltam dados para demonstrar a transição das "sensibilidades preliterais" para as "sociedades orgânicas, com intensa solidariedade interna e com a natureza" (Bookchin 1982:44). As idéias de Bookchin poderiam adquirir maior relevância se pudessem ser testadas ou investigadas em contextos sociais específicos, para terem um profundo impacto em nosso "modus vivendi". Neste artigo procuro continuar o diálogo proposto por Bookchin, com exemplos específicos de uma sociedade tribal. A seguir, tentarei abordar uma alternativa não tão utópica, pois vem sendo utilizada, com relativo sucesso e há séculos por comunidades indígenas amazônicas e, em particular, entre os Índios Tupi Guarani (Fuks 1989, Hill 1984, Kracke 1981 ). Este modelo de interação social e ecológico, longe de ser simplista, envolve interações diversas, em níveis diferentes e, ao mesmo tempo, preserva a individualidade de cada membro da sociedade. Nele a 138 importância de bens materiais se torna irrelevante e secundária às artes e às emoções. Com isso, deixa de existir a noção ocidental de acúmulo de bens ou capital, que por sua vez, gera um ciclo hierárquico, com diversas relações desiguais. Evidências etnográficas ajudam a identificar este sistema entre as tribos Waiapi. Para os indivíduos dessa sociedade não há importância material e acúmulo de bens. A irrelevância da noção de acúmulo de bens pode ser evidenciada pelo fato dos Waiapi contarem apenas até 4. Tudo além de 4 cai na categoria genérica e distante chamada "iro ironte" que seria traduzível por nossa noção de "muitos". Através dos meios de expressão artística, cada indivíduo aprende a conviver harmonicamente em grupo e com a natureza, mas mantendo sua individualidade a níveis dificilmente alcançáveis, no ocidente. Nestes contextos artísticos e de caráter festivo, cada indivíduo pode encontrar-se em situações nas quais cada um se relaciona entre si e com outras espécies de animais, insetos e peixes (Fuks 1989). Ao invés de perpetuar a visão ocidental de "dominação da natureza e desafios ao Cosmos," que por si só reflete a dominação da humanidade pela humanidade, o modelo TupiGuarani procura incorporar diversos conhecimentos sociais e naturais, de forma interativa. Neste, todos os indivíduos se relacionam entre si e com outras espécies. É importante frizar que estas relações mantêm um equilíbrio dinâmico no qual todos estão no mesmo plano, tanto no meio social quanto entre os Waiapi e outras espécies. Em diversos contextos, percebe-se a visão cíclica de complementariedade biológica, onde certas espécies protegem outras e geram produtos necessários para a sobrevivênica humana e de outras espécies. No ecossistema da aldeia onde se relacionam diversos indivíduos, de idéias, sexos e idades diferentes, existe também uma certa harmonia com o solo que lhes proporciona os alimentos e outros bens, com 139 os rios e florestas, e com as diversas espécies que neles habitam. Há vários anos, venho pesquisando uma pequena sociedade tribal no Amapá que emprega um sistema social compatível com as prioridades e dilemas individuais e sociais, mantém uma estreita relação com a natureza, estimula prazeres e diversas emoções. Trata-se da comunidade Indígena Waiapi, que pertence ao grupo lingüístico Tupi-Guarani. Os Waiapi vivem entre Brasil e a Guiana Francesa, sendo que meus estudos se concentram nas comunidades do Amapá que totalizam pouco mais de 300 habitantes. Estes, por sua vez, se dividem em diversas aldeias independentes e distantes várias horas ou dias entre si. O modelo social Waiapi possui ainda espaço para maiores subdivisões, com casas construídas em várias localidades e freqüentes migrações. A importância da fissão social se estende a outras comunidades Tupi-Guarani, como é o caso dos Índios Arawete (Viveiros de Castro, 1986). Este modelo não apenas cria as condições necessárias para contornar possíveis conflitos mas funciona, também, como forma de administração agro-florestal, ou seja, os recursos naturais de uma determinada região podem manter indefinidamente um determinado grupo de indivíduos. Em casos de explosão populacional estes recursos passam a ser utilizados ao extremo, causando sua exaustão e, freqüentemente, profundas mudanças no ecossistema. Especialmente na Amazônia, que se caracteriza por solos inadequados à agricultura de larga escala, a necessidade de se utilizar modelos que preservam a diversidade biológica e evitam a extinção de espécies, apontam cada vez mais para as soluções e técnicas desenvolvidas por sociedades tribais da região. Um certo equilíbrio populacional e demográfico, em uma determinada região, pode ser alcançado sem que seja necessário explorar o meio ambiente ao extremo, como demonstram os índios Waiapi. 140 Além do aspecto relativo a conhecimentos gerais da natureza amazônica, os Waiapi são encorajados a criar novas formas de expressão para serem compartilhadas, durante as festas coletivas. Esta expressão artística freqüentemente possui a função de ensinar à comunidade em geral aspectos do comportamento de certas espécies e de fenômenos naturais, gerando benefícios e, ao mesmo tempo, estimulando a liberdade artística e expressiva de cada membro da sociedade. Complementando a relação com o domínio natural, as festas coletivas dos Waiapi possuem, também, a possibilidade de acessar ou aumentar o conhecimento do domínio sobrenatural. Note-se que estes conhecimentos embasados em tradições orais e transmitidos de geração em geração permanecem flexíveis, podendo incorporar também os espíritos dos ancestrais Waiapi, novas espécies de peixes, insetos e animais, mudanças no seu comportamento e suas relações com os Waiapi. Como no meio natural e social, o meio espiritual também permanece flexível e ágil o suficiente para incorporar modificações das mais diversas. Como veremos a seguir, os diversos mecanismos sociais, ecológicos e emocionais se relacionam e fazem parte de um complexo que cria um certo "ethos" dos Waiapi (Bateson 1980). Para podermos entender como estas três dimensões (social, ecológica e emocional) se relacionam, é importante que observemos aspectos gerais da sociedade Waiapi, suas estruturas, conceitos e mecanismos diversos. A estrutura social dos Waiapi basicamente envolve famílias nucleares, grupos locais, liderança descentralizada e relações concretas e subjetivas entre si, com espíritos diversos e com outras espécies de animais, peixes e 141 insetos. Como foi dito, anteriormente, os Waiapi vivem em grupos locais identificados por conexões com uma certa região e relações diretas com um líder. Este, por sua vez, não assume a posição hierárquica que o termo significa em nossa sociedade, e refere-se principalmente ao fato de esse "líder" ser uma pessoa de conhecimento. Na sociedade Waiapi, só existem especializações para os líderes das aldeias, os shamas e os "organizadores de festas," sendo que todas estas posições possuem caráter transitório e negam qualquer forma de hierarquia ou possível dominação. Esta sutil separação de classes relaciona se mais a um processo de socialização de conhecimento. Como enfatizam os Waiapi, os alunos de cada festa serão os professores das futuras gerações. O líder de uma aldeia, segundo os Waiapi, é aquele que "achou um lugar" e que, por meio de relações familiares e demonstração da validade de seu conhecimento, pode atrair um grupo de famílias nucleares para uma certa região. O conhecimento do líder refere-se, principalmente, a fatores ecológicos que propiciam a escolha de solos adequados à agricultura, à falta de formigas e a outras espécies prejudiciais ao cultivo, bem como a fartura na caça, pesca e uso de demais recursos naturais (Fuks 1989). Este líder é, também, aquele que possui um vasto repertório de canções utilizadas nas festas coletivas (Fuks 1988). Estas canções não apenas representam mas freqüentemente descrevem características e propriedades ligadas às espécies honradas em cada festa. É importante frisar que a liderança Waiapi possui caráter passageiro e que, nas festas coletivas, todos os indivíduos são encorajados a serem "líderes" em performances diferentes. Desta forma, o conceito de liderança passa a ser diluído entre todos os membros da sociedade, o que eventualmente estimula níveis igualitários e desencoraja hierarquizações. Com isso, e com a ausência de posições dominadoras, a 142 sociedade Waiapi cria um modelo neutro e interno que, por sua vez, será refletido na visão não antropocêntrica dos Waiapi e suas relações com outras espécies. Em nível de comunidade, o líder nunca ordena nada a ninguém mas, através de uma retórica sofisticada, pode ou não persuadir certos indivíduos a fazerem o que ele deseja. Este aspecto de liderança é genenlizável entre comunidades Tupi Guarani (Kracke 1978, 1981, Viveiros de Castro, 1986). Crianças podem recusar pedidos de favores feitos por adultos, bem como homens e mulheres de idades diferentes nunca são forçadas a aceitarem ou fazerem nada para ninguém. Tais "favores" são feitos por livre e espontânea vontade, estimulados apenas pelo uso de técnicas de sedução e persuasão oral. Ducante as festas coletivas, esta liderança flexível se torna ainda mais aparente, com o resultado gradual de uma performance simultânea de diversos instrumentos musicais e vozes, levando a uma "cacofonia" ou polissincronia multisensorial envolvendo música, dança, caxiri (cerveja de mandioca), pintura corporal, etc. (Fuks 1988, 1989). Nesta estética, que funciona paralelamente a outros sistemas, cada indivíduo pode tocar ou cantar o que bem entender, seguindo apenas a estrutura básica de cada festa. Tais festas coletivas podem envolver um grande número de participantes, podendo até serem estendidas a outras aldeias. Em uma ocasião quatro aldeias organizaram um grande evento em reverência ao peixe paku açu. Em alguns casos, porém, apenas um pequeno número de participantes realizam festas coletivas, com o mínimo registrado envolvendo apenas três participantes. A importância destas festas e da música ,em geral, torna-se aparente quando observamos que elas constituem a atividade à qual os Waiapi dedicam a maior parte de seu tempo (Fuks 1989). Mesmo a agricultura somada às outras atividades de subsistência totalizam um 143 número menor de horas. Alem de nos surpreendermos como os Waiapi podem se dar a esse luxo, ficamos perplexos, ao tentarmos entender como e por que as festas coletivas adquirem tamanha importância. Uma razão para tanto refere-se a uma certa consciência ecológica (se usarmos nossos termos) refletida nestes eventos e aliada à possibilidade de expressar e sentir diversas emoções. Estes conhecimentos ecológicos e a expressão de emoções adquirem, também, um caráter didático, ilustrando-os às futuras gerações. A importância das formas de expressão orais em sociedade "preliteradas" não deve ser subestimada. Portanto as festas dos Waiapi adquirem uma certa função de ensino, em uma atmosfera prazeirosa que, freqüentemente chega ao êxtase. Estes aspectos (sociais, ecológicos emocionais) e suas interações ficam mais claros se observarmos detalhes da festa do mangengan, uma dentre as várias comemorações Waiapi. A abelha mangangan aparece em grande número, no início da estação das chuvas, época que indica transformações marcantes na floresta amazônica, o início do plantio e atividades agrícolas subsequentes. A relação entre o complexo natural e ecológico com o modelo de organização social dos Waiapi e dos mangangan, é refletida nesta festa. Isto ocorre, após os participantes terem chamado os "mangangan", através de danças e canções alternadas com os sons das flautas chamadas "mangangan ra'anga ". O termo rá´anga indica uma certa imitação auditiva e multissensorial das espécies representadas. Para cada festa coletiva, os Waiapi fazem novos instrumentos musicais que, por sua vez, pertencem à classe também chamada ra'anga. As flautas da festa do mangangan são chamadas mangangan ra'anga, e as da festa do jaguar (onça) jawarun ra'anga. Com a chegada dos mangangan, os participantes se transformam neste "outro" e 144 passam a agir de acordo com as características próprias, no caso, o mangangan. Uma dessas características é representada pela picada de "abelhas " que assume uma relação metonimica, pois um cinto de palha com formigas é colocado em volta dos participantes e dos membros da audiência. Outra modificação no comportamento regular Waiapi (humano), passando para o comportamento dos mangangan (inseto), é indicada pela forma com que a cerveja de mandioca é servida aos participantes. Convém frisar que todas as festas coletivas dos Waiapi são marcadas, também, pelo consumo de cerveja de mandioca ou caxiri. As festas são avaliadas pela quantidade e qualidade da cerveja. Nestas, emerge sempre a pessoa do "caxiri jara" ou dono da cerveja caxiri. São suas esposas que preparam e servem o caxiri, durante as festas, seguindo uma ética elaborada e organizada no preparar e servir, de acordo com o conhecimento de cada participante sobre o tema (como por exemplo o mangangan) de cada festa (Fuks 1989). Após a transformação em mangangan, os Waiapi adquirem uma "licença artística " e, teatralmente, passam a beber o caxiri direto de um pilão e de forma aleatória. Assim sendo, as abelhas vivem, cantam, dançam e bebem caxiri, de maneira diferente dos Waiapi, mas os Waiapi se mostram dispostos a aprenderem algo com os mangangan, e fazem isso, usando todos os sentidos. Se não bastasse o efeito catártico das festas coletivas, cada participante pode reinterpretar o "cenário natural" e agir, de forma não usual. Estas formas não Waiapi, podem então ser testadas por indivíduos ou pela comunidade e, dependendo de sua validade pratica, podem vir a ser incorporadas à sociedade Waiapi, já que esta propicia espaço para constantes modificações. Uma lição exposta na festa do mangangan se relaciona ao fato de as 145 abelhas serem atraídas pelo cheiro e beleza visual de certas flores, que passam a ser abundantes na época das chuvas. Desta forma, em uma seção da performance, os participantes dançam com um buquê de flores. A seguir, as mulheres ou parceiras de cada participante recolhem estes buquê. Segundo os Waiapi, isso é a ´forma utilizada pelos mangangan que após recolherem o néctar das flores, levam-no a sua "casa", passando-o para suas famílias e amigos.' Neste caso, observamos a visão não antropocêntrica dos Waiapi, que observam o comportamento das abelhas e suas relações complementares com as flores. O efeito da polinização simultâneo à extração do néctar das flores pelas abelhas, é representado através da música, dança e representações visuais, olfativas e táteis. Tudo isso ocorre em uma atmosfera festiva, com muitas gargalhadas, reflexões e comentários sobre as "coisas de mangangan" que somados a um efeito quase anestésico da música, dança e caxirí gera um contexto marcado por fortes emoções. Ao mesmo tempo, festas como a do mangangan, ilustram como um grande ecossistema composto de diversos fatores se relaciona a um complexo "drama social". Neste modelo o homem não é apenas um simples ator, mas interage em termos de igualdade com outras espécies. Esta mesma atitude se reflete na forma não hierarquizada de organização social dos Waiapi. O poder quando emerge e permanece por muito tempo é ridicularizado e passa a ser repudiado (Clastres 1979, Fuks 1991). Isto acontece na realidade com a temível é venerável onça (também honrada, na festa do jawarun). Segundo os Waiapi, a onça representa o pajé em sua eterna liminalidade entre os domínios humanos e espirituais. Tanto a onça quanto o pajé possuem poderes supernaturais que os distinguem dos outros. Tais poderes podem ser utilizados para o bem ou o mal dos Waiapi e de outras espécies 146 de animais, peixes e insetos. Assim sendo, as festas coletivas dos Waiapi se encaixam com outras instituições liberalizantes que, ao mesmo tempo, criam uma forma autosuficiente e descentralizada de organização social, semelhante à "ecologia da liberdade" sugerida por Bookchin (1982). Esta autosuficiência, aliada à ênfase na criatividade artística, estimula a individualidade entre os Waiapi, mas considerando sempre o equilíbrio social na aldeia, o equilíbrio em relação a outras culturas e sociedades, o equilíbrio com outras espécies e espíritos, criando um super "multiecosistema global". Volto a frisar a complexidade deste sistema que, de maneira sutil, preza a interdependência e complementariedade de fatores sociais, emocionais e ecológicos. Neste complexo ecossistema, os Waiapi apenas contribuem com uma pequena parte sem se sobressaírem aos demais, ajudando-se uns aos outros. CONCLUSÕES As diferenças entre nossa sociedade industrial e a sociedade tribal dos Waiapi são evidentes e transplantar um modelo de um contexto para outro tende a ser impraticável. Mas, se observarmos nossas aspirações e necessidades básicas (incluindo não apenas nossa sobrevivência em termos de alimentação, moradia, desejos sexuais e outros) passamos a observar um número de semelhanças com os Waiapi. É importante frisar que a sociedade Waiapi não vive em um paraíso idealizado pela visão romântica criada sobre certas sociedades tribais. Os Waiapi freqüentemente se vêem forcados a enfrentar crises e catástrofes sociais e ecológicas. 147 De maneira análoga ao nosso conhecimento prático das condições climáticas, meteorológicas e geológicas, incapaz de prever com exatidão e evitar enchentes, terremotos e furacões, o conhecimento Waiapi também é vítima de erros e de elementos indeterminados. A suscetibilidade a doenças diversas e a capacidade parcial de curá-las ou controlá-las é outra semelhança entre a nossa sociedade e a dos Waiapi. Apesar das semelhanças e diferenças entre nossa sociedade e a dos Waiapi, algumas sugestões de formas alternativas de controle ecológico, social e emocional podem ser inferidas. Creio que várias destas sugestões são perfeitamente compatíveis com nossos modelos e nos permitem encarar certos problemas sociais, econômicos, e ambientais, bem como as crises de razão, economia e ciência apontadas por Theodore Adorno, Karl Marx e Max Webern. Estas sugestões focalizam-se em idéias Waiapi que se assemelham ao modelo da ecologia social proposto por Bookchin e se ajustam as nossas necessidades e aspirações: 1. Manter um equilíbrio com aqueles que fazem parte de nosso "milieu" e com os quais interagimos regularmente, e com o meio ambiente em geral. De certa forma, vivemos nestas condições buscando tais equilíbrios, mas nos concentramos em nossos pequenos e isolados microcosmos. No modelo Waiapi, não apenas nossas relações com familiares e amigos mais próximos se mostram necessárias mas em um amplo contexto socio-ecológico. Neste modelo homeostático relativo existe espaço, também, para possíveis conflitos, suas resoluções, separações e eventuais interações. A relação refletida na consciência ecológica mais ampla pode ser esclarecida se observarmos a relação metafórica que mantemos com animais de estimação. O mesmo afeto e falta de exploração que demonstramos com nossos 148 animais de estimação podem ser estendidos a outras espécies das quais usufruímos os subprodutos. Com moderação, podemos continuar a utilizar estes benefícios sem impor, subjugar, explorar e dominar "outros", humanos ou não. 2. Interação: Combinar os três elementos básicos do ethos Waiapi igualdade social, consciência ecológica e liberdade emocional - constitui algo que podemos aprender. Segundo a abrangente "Ecologia Social" de Bookchin, existe uma certa compatibilidade entre possíveis igualdades sociais e consciências ecológicas, unidas pela falta de exploração e dominação, seja ela intra ou extra humana. Como vimos antes, no modelo Waiapi, isto também ocorre, mas para manter a sociedade em sua vitalidade plena é necessário um certo "tempero" a ser compartilhado por todos. Este "tempero" emerge justamente das emoções expressadas nos contextos artísticos, e levando junto um corpo de conhecimento que, por sua vez, reenfatiza as relações sociais igualitárias e as diversas formas de interação com o meio ambiente e com outras espécies. Esta visão não antropocêntrica, até nas sensações daquilo que consideramos marcadamente humano (emoções), mais uma vez afirma a falta de hierarquia na sociedade Waiapi, tanto internamente quanto em relação às outras espécies. Esta visão interativa poderia ser aplicada à nossa sociedade, de maneira análoga a uma grande orquestra, sem maestro e tocando uma grande sinfonia composta (de maneira não dogmática) ou improvisada por todos. Nesta grande orquestra, para que se faça música em conjunto, é necessário passar por processos e experiências semelhantes à afinação dos instrumentos musicais. Cada um se coloca à disposição, para ceder um pouco, até que se encontrem em um denominador comum, para então poderem expressar sua arte e, eventualmente chegarem a um estado de equilíbrio ou "communitas". Assim 149 sendo, aplicando o modelo Waiapi, poderíamos tocar outras músicas com os temas que enfatizam a "harmonia" ou interação entre as consciências sociais e ecológicas e os "temperos" emocionais. Minha intenção, neste artigo, foi mostrar a viabilidade de um modelo social utilizado por uma pequena sociedade tribal Amazônica. Através de forças socioculturais, pode-se criar uma sociedade que mantém um equilíbrio entre seus membros e em relação a outras espécies e ao meio ambiente. Nesse modelo interativo todos possuem liberdade para fazerem o que quiserem, mantendo suas individualidades e, ao mesmo tempo, considerando as formas de interação com "outros". Assim sendo, a expressão de emoções assume posição essencial no modus vivendi", e se relaciona com o conhecimento social e ecológico. Assim sendo, podemos aprender a ser índio e refletir sobre as idéias Waiapi, com resultados benéficos para todos. Referências Bateson, Gregory. 1980 Steps Towards an Ecology of Mindi. San Francisco: Chadler Pub. Co. Bookchin, Murny. 1982 The Ecology of Freedom: An Eminent Social Thinker's Provocative Vision of a Free Society in Harmony with Nature. Clastres, Helen 1978 Terra sem Mal: O Profetismo Tupi-Guanni. São Paulo: editora Brasiliense. Original in French published in 1975. Clastres, Pierre 1978 A Sociedade Contra o Estado. Rio de Janeiro: 150 Francisco Alves Editora. Original in French published in 1974. Fuks, Victor 1988 Music, Dance and Beer Drinking. In Latin Americxn Music Review Fall/Winter Vol. 9, No. 2:150-186. 1989 Demonstration of Multiple Relationships Between Music and Culture of the Waiapi Indians of Brazil. Bloomington, Indiana. Unpublished PhD dissertxtion. 1991 "Postmodern Musical Episcemology: The Power and Knowledge of Tupi Guarani Musical Performances." In proceedings of the ICTM coloquium on Music Knowledge and Power. In press. Hill, Jonathan 1984 "Social Equality and Ritual Hietarchy: The Anwakan Wakuenai of Venezuela." In American Ethnologist 11(3):528-544. Kracke, Waud 1978 Force and Persuasion: Leadership in na Amazonian Sociery. Chimgo: University of Chimgo Press. Kracke, Waud 1981 "Don't Let the Piranha Bite Your Liver: A Psychoanalytic Appronch to Kagwahiv (Tupi) Food Taboos." In Working Papers on South American Indians, No. 3: Food Taboos in Lowland South America, edited by Kenneth M. Kensinger and Waud Kracke. Bennington College, Vermont. Viveiros de Castro, Eduardo B. 1986 Araweta: Os Deuses Canibais. Rio de 151 Janeiro: Jorge Zahar Ed. Weber, Max. 1948 The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, translated by Talcott,. Parsons. London: Allen & Unwin. Zicklin, Gilbert. 1983 Counter Cultural Perspective. Waport, Conn.: Grecnwood Press. 152 Communes: A Sociological Coletivo Domingos Passos Ecologia Social é Pelegagem!? A Ecologia Social é pelegagem ou a Pedagogia Libertária é mera retórica, para um falar e agir intelectualmente "confortante"? Todas as idéias novas e constatação de fatos quando concebidos ou descobertos, a princípio, sempre são recebidos com a "desconfiança" do preconceito e a sua decorrente animosidade e desvalorização. Isto para apresentar uma forma mais amena de contrariedade. Vide o que ocorreu com "livres–pensadores" como Copérnico, Giordano Bruno e Galileu Galilei na assim chamada idade média. Homens que podem representar o advento da série de questionamentos em diversos setores do saber e na visão de mundo que desembocou no "Renascimento" cultural e a redescoberta do próprio Ocidente. No caso de Copérnico foi uma profunda e radical mudança de paradigma, chamada de revolução Copernicana, que consistiu na teoria de que a terra move-se em torno do sol e não o inverso, que era postulado dogmaticamente pela igreja. Consiste na oposição do geocentrismo da igreja ao heliocentrismo de Copérnico, pela qual a detentora do monopólio ideológico perdia, e perdeu, muito de sua influência e poder. Em seguida, com o "Renascimento", como autoproclamado pelos estetas da época, surgiram novos paradigmas como o antropocentrismo, que colaborou 153 para a desconstrução do teocentrismo até este momento dominante neste processo de transformações do Ocidente. Decorreu em seguida o mercantilismo, a reforma protestante e o racionalismo cartesiano, de base "mecanicista" e etc. sendo que este último erigiu–se como uma "nova moral religiosa da modernidade" e sua conseqüência direta foi uma visão extremamente utilitarista do mundo, subordinando–o à sua lógica "analógica", "analítica" e "digital", antes da cibernética, com os seus: racional ou irracional, certo ou errado, lucrativo ou não. Este tipo de visão tem como prioridade secionar, atomizar o conhecimento e a sua experiência. Ele vê as partes de uma árvore ao invés da árvore, ou de um bosque. "Adestra" a visão do homem em relação ao mundo e à "natureza", das coisas a uma determinada lógica. Este paradigma gera um "conforto", uma "conformidade" do pensamento no que ele poderia inspirar de reflexões mais instigantes, obscuras e ansiosas, pois as grandes questões não-eleitas como utilitárias ou importantes, e a própria reflexão sobre esses valores, são deixadas de lado. É um "conforto" que gera "conformismo" intelectual e pensamento estático. Ela divide, escrutina, separa, seciona o conhecimento e conquista o imaginário social diminuindo o poder de intervenção e elaboração simbólica de outros saberes como as culturas e tradições ancestrais em relação à natureza, sua ética e visão do mundo e para com o mundo. Estamos numa época de profundos conflitos, gerados pela "globalização". Também dentro desta conjuntura há o florescimento, e o resgate de outras 154 visões de mundo, ou o surgimento de outras. Podemos afirmar que estamos caminhando, se não houver nenhum "acidente", para uma provável nova "revolução Copernicana". Mas deixemos este ponto para mais adiante. Falemos agora das polêmicas surgidas dentro do "movimento libertário" a partir destas novas conjunturas. Com a derrocada dos regimes do capitalismo estatal, como ex–URSS e leste europeu, ou seja, o fim da "guerra fria", com o mundo todo se tornando um imenso burgo lamacento, onde espaços antes ocupados no imaginário social, e antes de tudo nos movimentos sociais, em que esquerda fetichizava o operário industrial urbano e colonizava com o seu programa outros setores, tais como camponeses, favelados e contestações de fundo étnico, dando– lhes uma dinâmica monolítica e unidimensional, e com a falência deste projeto, novos movimentos e alternativas começaram a surgir ocupando estes espaços, dentro de uma enorme multiplicidade. Estes movimentos são de todos os tipos e aspectos. Muitos são meras reivindicações como princípios em si mesmos, como o movimento dos consumidores "conscientes". Outros de perfil que poderíamos chamar "não rigidamente" de "libertários". E muitos outros fundamentalistas, como os religiosos, nacionalistas e "Nazis". Dos anos 60, séc. XX, até a atualidade, popularizou–se a revalorização das teses e práticas "libertárias anarquistas", o surgimento e valorização de movimentos étnicos, indígena e negro por exemplo, de gênero e anti– patriarcais, gays, lésbicas e mulheres, e a verdadeira "febre"” que é o "movimento ecológico internacional", sendo isto, em muito, herdeiro de um arcabouço teórico de origem anarquista, tendo como exemplo evidente a obra "Campos, fábricas e oficinas", de Pedro Kropotkin, e um dos seus lemas 155 mais importantes é sintomático em relação a isto, "pensar globalmente, agir localmente". Apesar deste florescimento de movimentos, ousadias intelectuais e ativistas, o mundo não se tornou uma grande "aldeia–livre". Estas novas concepções, e as resgatadas, de movimentos e visões de mundo ainda estão sendo digeridas, e talvez o seu pleno potencial ainda seja embrionário e contraditório. Conflitos entre estes elementos não foram totalmente superados, e isto somente a prática social quotidiana poderá silenciosamente responder. Para assinalar a partir do campo da ação e reflexão anarquista pode ser exemplificada brevemente ao nível geral a polêmica surgida recentemente a respeito da Ecologia social e da Ecologia profunda. Tentar-se-á tratar deste tema como um todo. Com a popularização das "teses" políticas e ecológicas colocadas em pauta em todo mundo, mais fortemente a partir dos anos 60, nasceram duas vertentes neste debate de pensamento e ação radical que são a ecologia social, de influência nitidamente e diretamente anarquista, vide a obra de Murray Boockchin, anarquista norte–americano membro fundador do Instituto de Ecologia Social de Nova Iorque, e a chamada “Ecologia Profunda”, inicialmente sem ligações diretas com o anarquismo, inspirada na obra do filósofo norueguês Arne Naess e posteriormente adotada pela "ecoguerrilha", ou sabotagem ecológica, pela organização chamada Earth First!, "A Terra Primeiro!", fundada inicialmente nos EUA em 1979, pelo fuzileiro veterano da guerra do Vietnã, Dave Foreman, cujos princípios básicos da organização são: estrutura federalista e radicalmente descentralizada, não– 156 violência, ação direta e ecologia profunda. Entre estas duas vertentes existe uma certa animosidade mútua principalmente no campo teórico, já que a militância da EF! é mais forte e contem muitas individualidades e organizações ácratas. A EF! acusa os ecologistas sociais de excessivamente "antropocêntricos", preocupados apenas com a remediação dos problemas ecológicos, vendo apenas uma parte da vida, o homem, e não atentando para o todo do planeta, a Mãe Terra, categoria forte na EF!. Da parte dos Ecologistas sociais, aviso, nem todos de matriz anarquista já que a ecologia social se pretende enquanto uma das diversas subdivisões da ciência, acusam a Ecologia profunda de misantrópica, alienada das questões sociais e excessivamente "biocêntrica". Na linha de frente desta crítica está o próprio M. Boockchin. Como podem ver, está formada uma querela. Embora o próprio M. Boockchin no seu trabalho "Por uma ecologia social", reconheça a proximidade nos últimos tempos da EF! com a IWW, órgão sindical de orientação libertária, fato deveras inovador neste país onde o sindicalismo tem a tendência e tradição de ser corporativo e atrelado ao paradigma do credo industrial capitalista. Para complicar um pouquinho mais este quadro, há a posição de setores anarco–sindicalistas portugueses da FAI que acusam os signatários das teses do Boockchin de "neo–anarquistas" de direita, que abandonaram "a luta dos trabalhadores". Fazendo uma breve análise destas questões, no caso específico dos anarco–sindicalistas, existe um equívoco em relação a este assunto. Primeiro por que estes não consideram estas questões. As suas avaliações são realizadas em categorias cristalizadas, desconectadas com o real, feitas na maioria das vezes de forma apriorística, e não que os companheiros sejam obrigados a uma “concordância” inexorável e a se 157 tornarem PhDs em ecologia social, mas um pouquinho de sensibilidade e menos ortodoxias ajudariam bastante a sensibilizarem–se a novas e pertinentes questões. Talvez em Portugal seja um pouco como no Brasil. Em segundo, o anarco–sindicalismo ainda está atrelado ao paradigma da "luta econômica industrialista", sendo que é observado que esta tendência e as suas organizações não são mais um movimento preponderante, e nem representam mais uma alternativa concreta de transformação social. Sua preocupação primordial é promover a luta econômica industrial com tintas "anárquicas", mas estes hoje apenas sobrevivem em formas mumificadas e em discursos radicalmente ultrapassadas, convertendo–os assim em ortodoxos. Em relação à dicotomia Ecologia Profunda e Ecologia Social, a questão às vezes é meio espinhosa, mas mesmo assim há de se aprender muito com a prática e a teoria das duas vertentes. A princípio, deve-se observar e esclarecer que no caso da Ecologia social esta não consiste numa organização e sim em uma elaboração teórica e proposta, como tantas outras teses anarquistas: o apoio mútuo, a desobediência civil, a ação direta, a autogestão etc. Nos EUA esta prática habita duas esferas: a acadêmica, como uma espécie sui generis de transdiciplinaridade, e o ponto programático, idéia-força, tese e princípio dos grupos organizados anarquistas. Porém existem grandes polêmica sobre os limites desta última esfera por parte de outros ecólogos sociais. No caso da Ecologia Profunda, esta pode ser considerada como um conjunto de princípios éticos sobre toda forma de vida no planeta, seja humana ou não-humana, como são trabalhadas as categorias de discurso por parte dos ecólogos profundos. Como foi dito antes, a principal organização política que 158 adota esta teoria é a já referida EF!, mas também há a incorporação de pequenos grupos pacifistas e de direitos e liberação animal. A EF! advoga uma profunda transformação nas estruturas econômicas, políticas e das mentalidades. As suas "ações diretas" de eco-sabotagem são contra os agentes diretos da poluição e depredação da natureza. O alvo principal é o grande capital das megacorporações transnacionais e também nacionais. Tem se observado que nos últimos anos, nas fileiras da EF!, tem crescido bastante o número de militantes de orientação anarquista. Visto isso, pode-se interpretar que as posições de luta pela melhoria da qualidade de vida das comunidades humanas com uma conseqüente transformação "profunda" da sociedade a pressupostos de defesa de quaisquer formas de vida e seus ecossistemas não são contraditórios e nem oponentes. A dicotomia entre antropocentrismo e biocentrismo é falsa. Mas ocorre um fato além da vaidade e briga por espaço político. Acontece realmente que adeptos da Ecologia profunda, eventualmente, e alguns setores, têm a tendência há um certo "fundamentalismo biológico preservacionista", e talvez isto seja reflexo das proposições do próprio Foreman. Mas o seu empenho ativista, dedicação e base ética bem constituída na esfera da condução filosófica do ativismo, são invejáveis, mesmo se estes ainda engatinharem na clareza de sua análise social para a "comunidade humana". Enquanto que com a ecologia social, esta tem claras e objetivas propostas em relação ao social, mas apenas principia-se em uma visão mais holística com outros elementos vitais ao ser humano e à vida. Prendem-se a vícios do passado que também atrapalham com que esta visão se amplie. 159 Estas teses e proposições ideológicas, metodológicas, filosóficas, científicas, práticas e éticas devidamente criticizadas são possivelmente intercambiáveis aqui no Brasil. Jamais devemos ser certos de nossas certezas em demais pois isto atrofia a prática, esteriliza a reflexão e dogmatiza o espírito, mas mesmo assim nas condições tropicais brasileiras talvez seja possível florescer uma "Ecologia social de visão profunda" como uma linha de interpretação do mundo e linha de ação. O nosso patrimônio biológico, multicultural, humano e social podem contribuir muito para com a nossa própria sociedade e por que não com o próprio planeta. Esta temática e este tipo de proposta com certeza enfrentaram (e enfrentam) resistências infundadas ou talvez preconceituosas. Dado que os anarquistas brasileiros, muitos, mas não todos, sofrem de uma estranha doença "da auto-afirmação", depois de anos de inação e autoenclausuramento em conventos culturalistas, agora que estes estão começando a despertar para a ação nas gerações mais recentes sofrem desta estranha patologia, que é repetir retoricamente um anarco-comunismo datado combinado aos vícios da visão anarco-sindicalista com práticas de análise em “dogmatismos principistas” da esquerda tradicional. Mas esta crítica está associada apenas aos reprodutores da “velha escola” e “culturalistas de classe média” por que já existe uma nova geração composta de elementos sinceros e tolerantes que estão trabalhando para alavancar as lutas sociais vitais para a nossa sociedade. Pois é nítido, empiricamente comprovado, que o paradigma cartesianomecanicista, “industrialista” e utilitarista-econômico hoje, com o processo de globalização, porá em cheque a humanidade e quaisquer formas de vida ameaçando severamente a Mãe Terra. 160 A militância libertária para este princípio de terceiro milênio além de não transigir com os seus princípios vitais incorporados nas lutas populares, deve ter uma atuação prática dentro de uma visão multidimensional, ou seja, signatária de novos paradigmas Holísticos e transdiciplinares filosóficoscientíficos como também otimisadores de outras tradições, saberes; o intuitivo com o racional conjugado com os saberes populares e comunitários, e também dos saberes milenares dos povos ancestrais “originários”, africanos, indígenas e etc. Pois urge cada vez mais o rompimento com as metafísicas mistificadoras religiosas tanto quanto com os vícios e males do materialismo. Deixemos isto para o marxismo. Neste tempo de demanda por transformações politico–sociais, é contatado que novas formas de conhecimento como a ecologia, que por acaso significa o “estudo da casa”, ou seja ambiente, universo, requer o trabalho sóciocultural da consciência ambiental irmanado com a questão econômica. Economia significa administração da casa, do ambiente. Para continuarmos a viver e não meramente sobreviver como humanos devemos entender e lutar por quem vai “administrar”, respeitar ou arrumar a casa. Nós todos ou uma casta genocida? Tanto se fala entre os anarquistas brasileiros e outros ativistas populares na defesa de uma concepção de acordo com a cultura popular brasileira e latino-americana e se faz tão pouco para implementá-la. O paradigma Holístico é uma janela que se abre para esta questão. Afinal de contas o termo libertário hoje é um conceito muito amplo. Ele não é 161 mais de nenhuma forma monopólio dos anarquistas, devemos ter consciência disto, pois dentro dos próprios princípios dos “autonomistas” europeus, por exemplo, admite-se que em outras culturas, de outros continentes surjam formas diversas de “libertários”. Os “Resistentes”, “Magonistas” e “Zapatistas” podem enquadrar-se neste caso, ou seja, sermos globais, internacionalistas, sem esquecermos de quem somos ou dos nossos rituais culturais comunitários. O que se entende por "libertários" são aqueles que lutam e ao mesmo tempo têm como princípio a liberdade. Isto dado não apenas numa forma idealizada e abstrata, metafísica, e sim com práticas concretas como, ação direta, descentralização, democracia direta horizontalizada, fóruns coletivos públicos de deliberação e federalismo. Dentro destes princípios existe hoje uma grande multiplicidade de correntes e movimentos sociais adeptos tais como os autonomistas, movimento Zapatista no México, movimento Okupas na Espanha, movimentos ecológicos, ação global dos povos, movimentos indígenas etc. Somente dialogando apoiando, agindo conjuntamente e incentivando estas iniciativas contra o verdadeiro adversário da humanidade que é o capitalismo “globalitarista” promotor de guerras, genocídios e ecocídios, somente através de alianças em “rede” e horizontalizadas que as pessoas poderão resistir “globalmente.” Desconstruindo quaisquer formas de obscurantismos, mentalidades confortantes e acomodadas mal-disfarçadas de principismo, poderá se construir uma democratização econômica com a descentralização produtiva, com gestão comunitária em rede gerando empregos saudáveis e para todos em oposição às concentrações da produção industrial que é hierárquica, sexista, anti-humana e poluidora. Características típicas da economia 162 capitalista. Pode-se afirmar que a vida na terra seja humana e não-humana, seja comunitária e que os ecossistemas estão além do que nossas arbitrárias medidas de valores supõem. Para esclarecer melhor o que foi discutido neste ensaio é recomendada a leitura de obras dos autores clássicos tais como Petr Kropotkin, os irmãos Reclus e de autores recentes como Felix Guatarri, Cornelius Castoriadis, Fritjof Capra, Michel Foucault, Arne Naess, Murray Boockchin, Lewis Munford e Pierre Clastres. Concluindo, para se trabalhar de forma concreta a consciência ambiental e ecológica, de nossa casa que é o mundo, com um processo de aprofundamento da tomada de consciência social é pertinente se trabalhar na educação popular incluindo na sua área temática e didática a educação ambiental. E esta Educação popular pode apoiar-se no seguinte tripé temático: pedagogia libertária, estudo e aplicação da ecologia social mesclada à ecologia profunda e práticas técnicas para a melhoria direta da comunidade feita em regime de mutirão. A pedagogia libertária é a educação na vida e a ecologia é a ética na ciência conjugando um “modo de vida” voltado para a vida. 163 viva a revolução social! 164