ecologia social - AYRTON BECALLE

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ECOLOGIA SOCIAL
TEXTOS E TRECHOS DE BOOKCHIN
+ ANEXOS
seleção canto libertário
www.cedap.assis.unesp.br/cantolibertario/textos/textos.html
compilação e diagramação juno
www.incandescencia.org
autoram
murray bookchin
j. m. carvalho ferreira
manuel portela
joão freire
mimmo pucciarelli
andré gorz
victor fucks
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ECOLOGIA E PENSAMENTO REVOLUCIONÁRIO
Condensado e adaptado de "Ecology and Revolutionary Thought".
Em "Post-Scarcity Anarchism"
Uma das características da Ecologia é a de não estar perfeitamente contida
no nome - cunhado por Haeckel, em 1866, para indicar a "investigação da
totalidade das relações do animal tanto com seu ambiente inorgânico como
orgânico". No entanto, concebida de maneira ampla, a Ecologia lida com o
equilíbrio da natureza. Visto que a natureza inclui o homem, esta ciência
trata da harmonização da natureza e do homem. Esta abordagem, mantida
em todas as suas implicações, conduz às áreas do pensamento social
anarquista. Em última análise, é impossível conseguir a harmonização do
homem com a natureza sem criar uma comunidade que viva em equilíbrio
permanente com o seu meio ambiente.
As questões com que a Ecologia lida são permanentes: não se pode ignorálas sem pôr em risco a sobrevivência do homem e do próprio planeta. No
entanto, hoje, a ação humana altera virtualmente todos os ciclos básicos da
natureza e ameaça solapar a estabilidade ambiental em todo o mundo.
As sociedades modernas, como as dos Estados Unidos e Europa,
organizam-se em torno de imensos cinturões urbanos, de uma agricultura
alta mente industrializada e controlando tudo, um inchado, burocratizado e
anônimo aparelho de estado. Se colocarmos todas as considerações de
ordem moral de lado e examinarmos a estrutura física desta sociedade, o
que nos impressionará são os incríveis problemas logísticos que ela deve
resolver: transporte, densidade, suprimentos, organização política e
econômica e outros. O peso qu tal tipo de sociedade urbanizada e
centralizada acarreta sobre qualquer área oriental é enorme.
A noção de que o homem deve dominar a natureza vem diretamente da
dominação do homem pelo homem. Esta tendência, antiga de séculos,
encontra seu mais exarcebado desenvolvimento no capitalismo moderno.
Assim como os homens, todos os aspectos da natureza são convertidos em
bens, um recurso para ser manufaturado e negociado desenfreadamente.
Do ponto de vista de Ecologia, o homem está hipersimplificando
perigosamente o seu ambiente. O processo de simplificação do ambiente,
levando ao aumento do seu caráter elementar - sintético sobre o natural,
inorgânico sobre o orgânico - tem tanto uma dimensão física quanto cultural.
A necessidade de manipular imensas populações urbanas, densamente
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concentradas, leva a um declínio nos padrões cívicos e sociais. Uma
concepção massificadora das relações humanas tende a se impôr sobre os
conceitos mais individualizados do passado.
A mesma simplificação ocorre na agricultura moderna. O cultivo deve permitir
um alto grau de mecanização - não para reduzir o trabalho estafante mas
para aumentar a produtividade e maximizar os investimentos. O crescimento
das plantas é controlado como em uma fábrica: preparo do solo, plantio e
colheitas manipulados em escala maciça, muitas vezes inadequados à
ecologia local. Grandes áreas são cultivadas com uma única espécie - uma
forma de agricultura que facilita não só a mecanização mas também a
infestação das pragas. Por fim, os agentes químicos são usados para
eliminar as pragas e doenças das plantas, maximizando a exploração do
solo.
Este processo de simplificação continua na divisão regional do trabalho. Os
complexos ecossistemas regionais de um continente são submersos pela
organização de nações inteiras em entidades economicamente
especializadas (fornecedoras de matéria-prima, zonas industriais, centros de
comércio).
O homem está desfazendo o trabalho orgânico da evolução. Substituindo as
relações ecológicas complexas, das quais todas as formas avançadas de
vida dependem, por relações mais elementares, o homem está restaurando a
biosfera a um estágio que só é capaz de manter formas simples de vida, e
incapaz de manter o próprio homem.
Até recentemente, as tentativas de resolver contradições criadas pela
urbanização, centralização, crescimento burocrático e estatização eram
vistas como contrárias ao progresso e até reacionárias. O anarquista era
olhado como um visionário cheio de nostalgia de uma aldeia camponesa ou
de uma comuna medieval. O desenvolvimento histórico, no entanto, tornou
virtualmente sem sentido todas as objeções ao pensamento anarquista nos
dias de hoje. Os conceitos anarquistas de uma comunidade equilibrada, de
uma democracia direta e interpessoal, de uma tecnologia humanística e de
uma sociedade descentralizada não são apenas desejáveis, eles constituem
agora as pré-condições para a sobrevivência humana. O processo de
desenvolvimento social tirou-os de uma dimensão ético-subjetiva para uma
dimensão objetiva.
A essência da mensagem reconstrutiva da Ecologia pode ser resumida na
palavra "diversidade". Na visão ecológica, o equilíbrio e a harmonia na
natureza, na sociedade e, por inferência, no comportamento, é alcançado
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não pela padronização mecânica, mas pelo seu oposto, a diferenciação
orgânica.
Vamos considerar o princípio ecológico da diversidade no que se ele aplica à
biologia e à agricultura. Alguns estudos demonstram claramente que a
estabilidade é urna função da variedade e da diversidade: se o ambiente é
simplificado e a variabilidade de espécies animais e vegetais diminui, as
flutuações nas populações tornam-se marcantes, tendem a se descontrolar e
a alcançar as proporções de uma peste.
O ambiente de um ecossistema é variado, complexo e dinâmico. As
condições especiais que permitem grandes populações de uma única
espécie são eventos raros. Conseguir, portanto, gerenciar adequadamente
os ecossistemas deve ser o nosso objetivo.
Manipular de tato o ecossistema pressupõe uma enorme descentralização da
agricultura. Onde for possível, a agricultura industrial deve ceder lugar à
agricultura doméstica. Sem abandonar os ganhos da agricultura em larga
escala e da mecanização, deve-se, contudo, cultivar a terra como se fosse
um jardim. A descentralização é importante tanto para o desenvolvimento da
agricultura quanto do agricultor. O motivo ecológico pressupõe a
familiaridade do agricultor com o terreno que cultiva. Ele deve desenvolver
sua sensibilidade para as possibilidades e necessidades do terreno, ao
mesmo tempo que se torna parte orgânica do meio agrícola. Dificilmente
poderemos alcançar este alto grau de sensibilidade e integração do agricultor
sem reduzir a agricultura ao nível do indivíduo, das grandes fazendas
industriais para as unidades de tamanho médio.
O mesmo raciocínio se aplica ao desenvolvimento racional dos recursos
energéticos. A Revolução Industrial aumentou a quantidade de energia
utilizada pelo homem, primeiro por um sistema único de energia (carvão) e
mais tarde por um duplo (carvão-petróleo, ambos poluentes). No entanto,
podemos aplicar os princípios ecológicos na solução do problema. Pode-se
tentar restabelecer os antigos modelos regionais de uso integrado de energia
baseado nos recursos locais usando um sofisticado sistema que combine a
energia fornecida pelo vento, a água e o sol.
Essas alternativas em separado não podem solucionar os problemas
ecológicos criados pelos combustíveis convencionais. Unidos, contudo, num
padrão orgânico de energia desenvolvido a partir das potencialidades da
região, elas podem satisfazer as necessidades de uma sociedade
descentralizada.
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Manter uma grande cidade requer imensas quantidades de carvão e
petróleo. No entanto, as fontes alternativas fornecem apenas pequenas
quantidades de energia para usá-las de modo efetivo, a megalópolis deve
ser descentralizada e dispersa. Um novo tipo de comunidade, adaptada às
características e recursos da região e com todas as amenidades da
civilização industrial, deve substituir os extensos cinturões urbanos atuais.
Resumindo a mensagem critica da Ecologia: a diminuição da variedade no
mundo natural retira a base de sua unidade e totalidade, destruindo as forças
responsáveis pelo equilíbrio e introduz uma retrogressão absoluta no
desenvolvimento do mundo natural, a qual pode resultar num ambiente
inadequado a formas avançadas de vida. Resumindo a mensagem
reconstrutiva: se desejamos avançar na unidade e estabilidade do mundo
natural, devemos conservar e promover a variedade.
Como aplicar estes conceitos à teoria social? Tendo-se em mente o princípio
da totalidade e do equilíbrio como produto da diversidade, a primeira coisa
que chama a atenção é que tanto ecólogo como anarquista colocam uma
ênfase muito grande sobre a espontaneidade. O ecólogo tende a rejeitar a
noção de "poder sobre a natureza". O anarquista, por sua vez, fala em
termos de espontaneidade social, dando liberdade a criatividade da pessoas.
Ambos, ao seu modo, vêm a autoridade como inibidora, como um limitante à
criatividade potencial dos meios social e natural.
Tanto o ecólogo como o anarquista vêem a diferenciação como uma medida
de progresso, para ambos uma unidade sempre maior é alcançada pelo
crescimento da diferenciação. Uma crescente totalidade é criada pela
diversificação e aprimoramento das partes.
Assim corno o ecólogo busca ampliar um ecossistema e promover a livre
interação entre as espécies, o anarquista busca ampliar as experiências
sociais e remover as restrições ao seu desenvolvimento. O anarquismo é
urna sociedade harmônica que expõe o homem aos estímulos tanto da vida
agrária como urbana, da atividade física e da mental, da sensualidade não
reprimida e da espiritualidade autodirigida, da espontaneidade e da autodisciplina etc. Hoje, esses objetivos são vistos como mutuamente
excludentes devido à própria lógica da sociedade atual -- a separação da
cidade e do campo, a especialização do trabalho, a atomização do homem.
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Uma comunidade anarquista deverá aproximar-se de um ecossistema bem
definido: será diversificada, equilibrada e harmônica. A procura da auto
suficiência levará a um uso mais inteligente e amoroso do meio-ambiente,
permitindo o contato dos indivíduos com uma vasta gama de estímulos
agrícolas e industriais. O engenheiro nãu estará separado do solo, nem o
pensador do arado ou o fazendeiro da indústria. A alternância de
responsabilidades cívicas e profissionais criará uma nova matriz para o
desenvolvimento individual e comunitário, evitando a hiperespecialização
profissional e vocacional que impediria a sociedade de alcançar seu objetivo
vital: a humanização da natureza pelo técnico e a naturalização da sociedade
pelo biólogo.
Nas comunidades ecológicas a vida social levará ao incremento da
diversidade humana e natural, unidas em harmônica totalidade. Haverá uma
colorida diferenciação dos grupos humanos e ecossistemas, cada um
desenvolvendo suas potencialidades únicas e expondo os membros das
comunidades
a
um
leque
de
estímulos
econômicos,
culturais
e
comportamentais. A mentalidade que hoje organiza as diferenças entre o
homem e outras formas de vida em esquemas hierárquicos e definições de
"superioridade" e "inferioridade", dará lugar a uma visão ecológica da
diversidade. As diferenças entre as pessoas não só serão respeitadas mas
estimuladas. As relações tradicionais que opõem sujeito e objeto serão
alteradas qualitativamente, o "outro" será concebido como parte individual do
todo que se aprimora pela complexidade. Este sentido de unidade refletirá a
harmonização dos interesses entre indivíduos e grupo, comunidade e
ambiente, humanidade e natureza.
Murray Bookchin
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A FILOSOFIA DA ECOLOGIA SOCIAL
Os ecologistas têm geralmente considerado a diversidade como fonte de
estabilidade ecológica, uma abordagem que, acrescentarei, era bastante
inovadora há cerca de vinte e cinco anos atrás. Experiências no domínio da
agricultura mostraram que o tratamento de monoculturas por pesticidas podia
facilmente atingir proporções alarmantes e parecia sugerir que, quanto mais
diversificadas fossem as culturas, mais a interacção entre espécies vegetais
e animais conduziria a resistência natural às pragas. Hoje, tanto esta noção
como o valor dos métodos de agricultura biológica, tornou-se lugar comum
no pensamento ecológico e ambiental dos nossos dias — uma opinião de
que o autor foi pioneiro com alguns poucos colegas, como Charles S. Elton.
Mas a noção que a evolução biótica — e social, como veremos — tem sido
marcada até há pouco pelo desenvolvimento de espécies e ecocomunidades
(ou "ecossistemas", para usar um termo muito pouco satisfatório) cada vez
mais complexas, levanta uma questão ainda mais difícil. A diversidade pode
ser encarada como fonte de maior estabilidade ecocomunitária, mas pode
também ser encarada em sentido mais profundo como fonte de liberdade
dentro da natureza, embora incipiente sempre em expansão, meio de fixar
objectivamente vários graus de escolha, de autodirecção e de participação
das formas de vida na sua própria evolução. Gostaria de propor como
hipótese que a evolução dos seres vivos não é um processo passivo, o
produto de conjunções de acaso entre alterações genéticas ocasionais e
"forças" ambientais "selectivas", que a "origem das espécies" não é o mero
resultado de influências externas que determinam a "aptidão" para
"sobreviver" duma forma de vida como resultado de factores ocasionais em
que a vida é meramente "objecto" dum processo "selectivo" indeterminável.
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Gostaria de ir além da noção muito popularizada de que a simbiose é tão
importante como a "luta", e sustentar que o aumento de diversidade na
biosfera abre cada vez mais novas vias evolutivas, na realidade sentidos
evolutivos alternativos em que as espécies desempenham um papel activo
na sua própria sobrevivência e mudança. Ainda que incipiente e rudimentar,
a escolha não está totalmente ausente na evolução biótica. Na verdade
aumenta à medida que os animais se tornam estrutural, fisiológica e,
sobretudo, neurologicamente mais complexos. A mente tem a sua própria
história evolutiva no mundo natural e, à medida que nas formas de vida
aumenta a capacidade neurológica para funcionar de maneira mais activa e
flexível, também a própria vida ajuda a criar novos sentidos evolutivos que
conduzem a maior consciência de si mesmo e maior actividade própria.
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UM MANIFESTO ECOLÓGICO
O Poder de Destruir - O Poder de Criar
O poder que esta sociedade tem para destruir atingiu uma escala sem
precedentes na história da humanidade - e este poder está a ser usado,
quase sistematicamente, para causar uma destruição insensata em todo o
mundo da vida natural e nas suas bases materiais.
Em quase todas as regiões, o ar está a ser viciado, as águas poluídas, o solo
está a ser levado pela água, a terra foi drenada e a vida natural destruída. As
áreas costeiras e mesmo as profundezas do mar não são imunes ao
alastramento da poluição. Com maior significância no fim de contas, os ciclos
biológicos básicos, tais como o ciclo do carbono e do nitrogênio, dos quais
todas as coisas vivas (incluindo os humanos) dependem para a manutenção
e renovação da vida, estão a ser alterados até um ponto irreversível.
A introdução arbitrária dos desperdícios radioativos, pesticidas de longa
atividade, resíduos de chumbo e milhares de produtos químicos tóxicos ou
potencialmente tóxicos na comida, água e ar; a expansão das cidades em
vastas cinturas urbanas com concentrações densas de populações
comparáveis em tamanho a nações inteiras; o aumento de ruído ambiente;
as pressões criadas pela congestão, pela aglomeração e manipulação das
massas; as imensas acumulações de lixo, refugo, dejetos e desperdícios
industriais; o congestionamento do trânsito nas auto-estradas e nas ruas
citadinas; a destruição pródiga de preciosos metais em bruto; a cicatrização
da terra feita pelos especuladores da propriedade, os barões das indústrias
mineira e da madeira, os burocratas da construção de auto-estradas. Todos
eles fizeram tais estragos numa simples geração, que excede os que foram
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feitos em milhares de anos pela habitação humana no seu planeta. Se
tivermos em mente este ritmo de destruição, é aterrador refletir acerca do
que acontecerá no futuro, à geração vindoura.
A essência da crise ecológica do nosso tempo é que esta sociedade - mais
do que qualquer outra no passado - está a desfazer literalmente o trabalho
da evolução orgânica. É um axioma dizer que a humanidade faz parte do
edifício da vida. É talvez mais importante, nesta fase tardia, sublinhar que a
humanidade depende perigosamente da complexidade e variedade da vida,
e que o bem-estar e a sobrevivência humanas assentam sobre uma longa
evolução
de
organismos
em
formas
crescentemente
complexas
e
interdependentes. O desenvolvimento da vida num tecido complexo, a
criação dos animais e plantas primordiais em formas altamente variadas, tem
sido a condiçãso prévia para a evolução e sobrevivência da própria
humanidade e para uma relação harmônica entre a humanidade e a
natureza.
Tecnologia e População
Uma vez que a geração passada tem testemunhado a expoliação do planeta,
que ultrapassa todos os estragos feitos pelas gerações primitivas, pouco
mais do que uma geração poderá restar antes que a destruição do meio
ambiente se torne irreversível. Por esta razão, devemos debruçar-nos sobre
as origens da crise ecológica com honestidade implacável. O tempo corre
precipitadamente e as décadas que restam do século XX podem bem ser a
última oportunidade que teremos para restaurar o equilíbrio entre a
humanidade e a natureza.
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Assentarão as origens da crise ecológica no desenvolvimento da tecnologia?
A tecnologia tem-se tornado um alvo fácil para aqueles que querem evitar
encarar as condições sociais profundamente marcadas por máquinas e
processos técnicos perigosos.
É tão conveniente esquecer que a tecnologia tem servido não só para
subverter o meio ambiente como também para o melhorar. A Revolução
Neolítica, a qual produziu o período mais harmonioso entre a natureza e a
humanidade pós-paleolítica, foi acima de tudo uma revolução tecnológica.
Foi este período que trouxe à humanidade as artes da agricultura,
tecelagem, cerâmica, da domesticação dos animais, a descoberta da roda e
muitos outros melhoramentos básicos. É verdade que existem técnicas e
atitudes tecnológicas que são inteiramente destruidoras do equilíbrio entre a
humanidade e a natureza. É responsabilidade nossa separar a promessa da
tecnologia - o potencial criativo - da capacidade da tecnologia para destruir.
Na verdade, não existe tal palavra como "tecnologia" que presida a todas as
condições e relações sociais. Existem sim, diferentes tecnologias e atitudes
para com a tecnologia, algumas das quais são indispensáveis para restaurar
o equilíbrio, e outras que têm contribuido profundamente para a sua
destruição. Do que a humanidade necessita não é rejeitar em grande escala
as tecnologias avançadas, mas sim peneira-las, necessita realmente de um
maior desenvolvimento da tecnologia a par com os princípios ecológicos, o
que contribuirá para uma nova harmonização da sociedade e do mundo
natural.
Será o crescimento da população, a origem da crise ecológica? Esta tese é a
mais inquietante, e de muitas maneiras a mais sinistra, a ser formulada pelos
movimentos ecológicos ativos nos E.U.A. Neste sentido, um efeito chamado
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"crescimento populacional" baralhado na base de estatísticas e projeções
superficiais, transforma-se numa causa. É dada assim supremacia a um
problema de proporções secundárias no momento presente, obscurecendo
as razões fundamentais da crise ecológica. De fato, se as atuais condições
econômicas, políticas e sociais prevalecerem, a humanidade irá com o tempo
superpovoar o planeta, e pelo puro peso dos números transformar-se-á num
flagelo no seu próprio
habitat global. Há qualquer coisa de obsceno, contudo, acerca do fato de que
a um efeito "crescimento populacional", é concedida supremacia na crise
ecológica por uma nação que tem pouco mais do que 7% da população
mundial mas que consome prodigamente mais de 50% dos recursos
mundiais, e que está atualmente ocupada no despovoamento de um povo do
Oriente, que tem vivido à séculos em equilíbrio apurado com o seu meio
ambiente.
Devemos fazer uma pausa para examinar o problema populacional tão
amplamente observado pelas raças brancas da América do Norte e da
Europa - raças que têm explorado arbitrariamente os povos da Ásia, África,
América Latina e do Pacífico Sul. Os explorados têm explorado
delicadamente os seus exploradores que, do que eles necessitam não são
dispositivos anticoncepcionais, nem "libertadores" armados, nem do Prof. R.
Ehrlich para resolverem os seus problemas populacionais; precisam antes,
de uma devolução justa dos imensos recursos que foram roubados das suas
terras, pela América do Norte e pela Europa. Equilibrar estas contas é mais
premente no momento, do que equilibrar as taxas de nascimentos e mortes.
Os povos da Ásia, África, América Latina e do Pacífico Sul podem justamente
apontar que os seus "conselheiros" Americanos têm mostrado ao mundo
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como expoliar um continente virgem em menos de um século e têm
acrescentado ao vocabulário da humanidade palavras como "esgotamento
precoce"
Isto é claro: quando grandes reservas de mão-de-obra foram necessárias
durante a Revolução Industrial dos princípios do século XIX para equipar as
fábricas e diminuir os salários, o crescimento populacional foi saudado
entusiasticamente
pela
nova burguesia
industrial.
E
o crescimento
populacional ocorreu apesar do fato que, devido ao pesado horário de
trabalho e às cidades altamente superpovoadas, a tuberculose, cólera e
outras doenças eram epidemicas na Europa e nos Estados Unidos. Se as
taxas de nascimento excederam as da morte nessa altura, não foi porque os
progressos feitos ao nível de cuidados médicos e sanitários tenham
produzido qualquer declínio dramático na mortalidade humana; antes, o
excesso de nascimentos em relação às mortes pode ser explicado pela
destruição das formas da família pré-industrial, instituições de vila, ajuda
mútua e padrões de vida estáveis e tradicionais, às mãos da "empresa"
capitalista. O declínio da moral social introduzido pelos horrores do sistema
fabril, o aviltamento das populações agrárias tradicionais transformadas em
proletários e moradores urbanos, brutalmente explorados, produziu uma
atitude concomitantemente responsável para com a família e a procriação. A
sexualidade tornou-se um refúgio de uma vida de trabalho duro, bem como o
consumo do gin barato; o novo proletariado gerou crianças (muitas das quais
nunca sobreviveram até a idade adulta), tão inconscientemente como foi
levado ao alcoolismo. É muito semelhante o caso ocorrido quando as vilas
Africanas, Asiáticas e Latino-Americanas foram sacrificadas ao santo altar do
imperialismo.
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Hoje a burguesia "vê" as coisas de uma forma diferente. Os anos dourados
da "livre empresa" e do "trabalho livre" declinam perante uma era de
monopólio,
cartéis,
economias
controladas
pelo
estado,
formas
institucionalizadas de mobilização operária (sindicatos), e de máquinas
automáticas
ou
cibernéticas.
Largas
reservas
de
mão-de-obra
desempregada não são já necessárias para ir ao encontro das necessidades
de expansão do capital, e os salários são em grande parte mais negociados
do que deixados à livre atuação do mercado de trabalho. Anteriormente
necessárias, as reservas de mão-de-obra inútil acabaram por tornar-se numa
ameaça à estabilidade de uma economia burguesa manipulada. A lógica
desta nova "perspectiva" encontrou a sua mais aterradora expressão no
fascismo alemão. Para os nazis, a Europa estava já "superpovoada" nos
anos trinta e o "problema populacional" foi "resolvido" nas câmaras de gás de
Auschwitz. A mesma lógica está implícita em muitos dos argumentos neoMalthusianos que se mascaram hoje como ecologia. Que não haja dúvida
quanto a esta conclusão.
Mais tarde ou mais cedo a proliferação descuidada de seres humanos terá
de ser detida, mas, ou o controle populacional terá de ser feito por meio de
"controles sociais" (métodos autoritários ou racistas e, no fim, ser um
genocídio sistemático), ou por uma sociedade libertária, ecologicamente
orientada (uma sociedade que desenvolva um novo equilíbrio com a
natureza fora da veneração pela vida). A sociedade moderna encontra-se
perante estas alternativas mutuamente restritas e deve fazer uma escolha
sem dissimulação. A ação ecológica é fundamentalmente ação social. Ou
vamos diretamente às origens sociais da atual crise ecológica, ou seremos
logrados por uma era de totalitarismo.
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Ecologia e Sociedade
A concepção básica de que a humanidade deve dominar e explorar a
natureza, provém da dominação e exploração do homem pelo homem. Na
verdade, esta concepção vem de tempos remotos em que o homem
começou a dominar e explorar as mulheres dentro da família patriarcal.
Desde essa altura os seres humanos foram olhados, cada vez mais, como
meros recursos, como objetos em vez de sujeitos. As hierarquias, classes,
sistemas de propriedade e instituições políticas que emergiram com o
domínio social foram transferidas conceitualmente para a relação entre a
humanidade e a natureza. Esta, também foi cada vez mais olhada como
mero recurso, um objeto, uma matéria bruta a ser explorada tão
implacavelmente como escravos num latifúndio. Esta "visão do mundo"
impregnou não só a cultura oficial da sociedade hierárquica; tornou-se na
maneira como os escravos, servos, trabalhadores da indústria e as mulheres
de todas as classes sociais se começaram a considerar a eles mesmos.
Contida na "ética do trabalho", na moralidade baseada na recusa e na
renúncia, num modo de comportamento baseado na sublimação dos desejos
eróticos e noutros aspectos mundanos (sejam eles Europeus ou Asiáticos),
os escravos, servos, trabalhadores e metade das mulheres da humanidade
foram ensinadas a vigiarem-se a si próprios, a talharem as suas próprias
cadeias, a fechar as portas das suas prisões.
Se a "visão do mundo" da sociedade hierárquica começa hoje a declinar é
especialmente porque a enorme produtividade da moderna tecnologia abriu
uma nova visão: a possibilidade de abundância material, um fim á escassez
de uma era de tempos livres (o chamado "lazer") com um mínimo de trabalho
duro. A nossa sociedade está a ser impregnada por uma tensão entre "o que
é" e "o que poderia ser", uma tensão exacerbada pela exploração e
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destruição irracional e desumana da terra e dos seus habitantes. O maior
obstáculo que dificulta a solução desta tensão é a extensão até à qual a
sociedade hierárquica ainda modela os novos pontos de vista e as nossas
ações. É mais fácil refugirmo-nos nas críticas à tecnologia e ao crescimento
populacional; tratar com um sistema social arcaico, destrutivo sobre as suas
próprias condições e dentro da sua própria estrutura. Quase desde o berço
temos sido socializados pela família, instituições religiosas, escolas e pelo
próprio trabalho, aceitando a hierarquia, renúncia e sistemas políticos, como
premissas sobre as quais todo o pensamento deve apoiar-se. Sem
esclarecer essas premissas, todas as discussões, sobre o equilíbrio
ecológico permanecerão meros paliativos e serão contraproducentes.
Em virtude da sua excepcional bagagem cultural, a sociedade moderna sociedade burguesa orientada para os lucros - tende a exacerbar o conflito
entre a humanidade e a natureza, de uma forma mais crítica do que as
sociedades pré-industriais do passado. Na sociedade burguesa, os humanos
não só se transformam em objetos mas também em mercadorias; em objetos
claramente destinados a serem vendidos no mercado. A competição entre os
seres humanos, como mercadorias, torna-se um fim em si, em conjunto com
a produção de artigos totalmente inúteis. A qualidade transformou-se em
quantidade, a cultura individual em cultura de massas, a comunicação
pessoal em comunicação de massas. O meio ambiente natural tornou-se
numa fábrica gigantesca e a cidade num imenso mercado: tudo, desde uma
floresta Redwood até ao corpo de uma mulher tem "um preço". É tudo
equacionado em dólares, seja uma catedral consagrada ou a honra
individual. A tecnologia deixa de ser uma extensão da tecnologia. A máquina
não amplia o poder do trabalhador; é o trabalhador que amplia o poder da
máquina e na verdade ele mesmo se torna numa simples parte da máquina.
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É assim tão surpreendente que esta sociedade exploradora, degradante e
quantificada oponha a humanidade a si própria e à natureza, numa escala
mais assombrosa do que qualquer outra no passado?
Sim, necessitamos mudar, mas mudar tão fundamentalmente e em tão
grande escala que mesmo os conceitos de revolução e liberdade devem ser
ampliados para além de todos os primitivos horizontes. Não é já suficiente
falar das novas técnicas para a conservação e promoção do ambiente
natural; devemos tratar a terra comunalmente, como uma coletividade
humana, sem aquelas peias da propriedade privada, que têm distorcido a
visão da vida e da natureza da humanidade, desde a rutura da sociedade
tribal. Devemos eliminar não só a hierarquia burguesa mas a hierarquia
como tal; não só a família patriarcal, mas também todas as formas de
domínio familiar e sexual; não só a classe burguesa e o sistema de
propriedade, mas sim todas as classes sociais e a propriedade. A
Humanidade deve tomar posse de si própria, individual e coletivamente, para
que todos os seres humanos obtenham o controle de suas vidas diárias. As
nossas
cidades
devem
ser
descentralizadas
em
comunidades
ou
ecocomunidades talhadas, fina e habilidosamente, para o aproveitamento da
capacidade dos ecossistemas nos quais elas estão localizadas. As nossas
tecnologias devem ser readaptadas e formuladas em ecotecnologias, fina e
inteligentemente adaptadas para usarem as fontes de energia local e os
materiais, com um mínimo ou sem poluição do ambiente. Necessitamos
recuperar um novo sentimento das nossas necessidades - necessidades que
fomentem uma vida saudável e que exprimam as nossas inclinações
individuais, não as "necessidades" ditadas pelos meios de comunicação.
Temos que restaurar a escala humana no nosso ambiente e nas nossas
relações pessoais, substituto medianeiro das relações pessoais diretas na
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gestão da sociedade. Finalmente, todas as formas de domínio - social ou
pessoal - devem ser banidas das nossas concepções, de nós próprios, dos
nossos
semelhantes e da natureza. A administração dos humanos deve
ser substituída pela administração das coisas. A revolução que pretendemos
deve envolver não só as instituições políticas e as relações econômicas, mas
também a consciência, o estilo de vida, os desejos eróticos e a nossa
interpretação do significado da vida.
O balanço aqui, é o espírito antiquado e os sistemas de domínio e repressão
que não só opuseram o homem ao homem, mas a humanidade à natureza.
O conflito entre estas é uma extensão do conflito entre o ser humano. A não
ser que o movimento ecológico envolva o problema do domínio em todos os
seus aspectos, ele não contribuirá em nada para a eliminação da origem das
causas da crise ecológica do nosso tempo. Se o movimento ecológico se
detém em simples reformas de controle da poluição e conservação, sem
tratar radicalmente da necessidade de ampliação de um conceito de
revolução, ele servirá meramente como uma válvula de segurança do
sistema existente da exploração humana e natural.
Objetivos
Sobre certos aspectos o movimento ecológico de hoje está a mover uma
ação tardia, contra a destruição desenfreada do ambiente. Noutros aspectos
os seus elementos mais conscientes estão envolvidos num movimento
criativo, pronto a revolucionar totalmente as relações sociais dos indivíduos
para com os outros e da humanidade para com a natureza.
Embora elas se interpenetrem intimamente, os dois esforços devem
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distinguir-se um do outro. Ecology Action East (Ação Ecológica Leste) apoia
qualquer esforço para a conservação do ambiente: preservar a água e o ar
puros; limitar o uso dos pesticidas e adubos químicos nos alimentos; reduzir
o trânsito de veículos nas ruas e auto-estradas; tornar as cidades mais
saudáveis fisicamente; impedir que os desperdícios radioativos penetram no
ambiente; proteger e aumentar as áreas desertas e os territórios para a vida
selvagem; e defender as espécies animais da depredação humana.
Mas a Ecology Action East não se ilude a si própria pensando que estas
ações tardias constituem uma solução para o conflito fundamental que existe
entre a atual ordem social e o mundo natural. Nem tão pouco que estas
ações tardias possam deter o ímpeto esmagador de destruição existente
nesta sociedade.
Esta ordem social joga conosco. Ela concede reformas a longo prazo, aos
poucos e dolorosamente inadequadas, a fim de desviar os nossos esforços e
atenção de atos destruidores ainda mais vastos. Em certo sentido, é-nos
oferecido um pedaço de terreno da floresta Redwood em troca das
Cascades. Visto numa maior perspectiva, esta tentativa para reduzir a
ecologia a uma relação de permuta não salva nada; é um modus operandi
barato de negociar a maior parte do planeta por umas quantas ilhas
desertas, por parques de bolso num mundo devastado de betão.
A Ecology Action East tem dois objetivos principais: um é incrementar no
movimento revolucionário, o conhecimento de que a consequência mais
urgente e destrutiva da nossa sociedade exploradora e alienante é a crise
ambiente, e que a verdadeira sociedade revolucionária deve ser construída
20
de acordo com preceitos ecológicos; o outro objetivo é provocar na mente de
milhões de Americanos que estão preocupados com a destruição do nosso
ambiente, uma tomada de consciência de que os princípios da ecologia,
levados até ao final lógico, exigem mudanças radicais na nossa sociedade e
no nosso modo de olhar o mundo.
A Ecology Action East fundamenta-se na revolução do estilo de vida que, no
máximo, pretende uma consciência aumentada de experiência e de liberdade
humanas. Nós pretendemos a libertação das mulheres, das ciranças, dos
homossexuais, dos povos negros e colonizados, dos trabalhadores de todas
as profissões, como parte da crescente luta social contra as tradições e
instituições que têm tão
destruidoramente modelado a atitude da
humanidade para com o mundo natural. Nós apoiamos comunidades
libertárias e lutas pela liberdade aonde quer que surjam; apoiamos também
qualquer esforço para promover o auto-desenvolvimento espontâneo dos
jovens; opomo-nos a qualquer esforço para reprimir a sexualidade humana e
negar à humanidade a experiência do erótico em todas as suas formas.
Unimos todos os esforços para fomentar um artifício feliz, na vida e no
trabalho: a promoção dos ofícios e da qualidade de produção; o
planejamento de novas ecocomunidades e ecotecnologias; o direito à
experiência, numa base diária da beleza do mundo natural, o parzer aberto,
espontâneo e sensual que os humanos podem oferecer uns aos outros, o
respeito crescente pelo mundo da vida.
Em resumo, nós temos esperanças numa revolução que produza
comunidades politicamente independentes cujas fronteiras e populações
sejam definidas por uma nova consciência ecológica; comunidades cujos
habitantes determinarão por si mesmos, dentro da estrutura desta nova
21
consciência, a natureza e o nível das suas tecnologias, as formas tomadas
pelas suas estruturas sociais, visões do mundo, estilos de vida, artes
expressivas e todos os outros aspectos das suas vidas diárias.
Mas nós não nos iludimos a nós mesmos de que este mundo orientado para
a vida possa ser desenvolvido, inteiramente ou mesmo parcialmente
conseguido, através de uma sociedade orientada para a morte. A sociedade
Americana como hoje está constituída, está penetrada de racismo e ergue-se
no topo do mundo inteiro não só como consumidora de sua riqueza e
recursos, mas como um obstáculo a todas as tentativas de autodeterminação no interior e no estrangeiro. Os seus objetivos inerentes são a
produção pela produção, a manutenção da hierarquia e do trabalho árduo à
escala mundial, manipulação das massas e controle por meio de instituições
políticas centralizadas. Este tipo de sociedade contrapõe-se inalteravelmente
a um mundo orientado para a vida. Se o movimento ecológico não tira estas
conclusões dos seus esforços para conservar o ambiente natural, então a
conservação torna-se um mero obscurantismo. Se o movimento ecológico
não dirige os seus esforços principais para uma revolução em todos os
aspectos da vida - social bem como natural - então o movimento tornar-se-á
gradualmente numa válvula de segurança para a ordem estabelecida. A
nossa esperança está em que os grupos como nós, brotarão através do país,
organizados como nós próprios numa base humanista e libertária,
empenhada na ação conjunta e com um espírito de cooperação baseado no
apoio mútuo. É também esperança nossa que eles tentem fomentar uma
nova atitude ecológica, não só para com a natureza mas também para com
os humanos: uma concepção de relações espontâneas variegadas dentro e
entre grupos, dentro da sociedade e entre os indivíduos.
22
Nós esperamos que os grupos ecológicos evitarão todos os apelos aos
"chefes de governo" e às instituições estatais nacionais e internacionais, os
verdadeiros corpos criminosos e políticos que têm contribuído materialmente
para a crise ecológica do nosso tempo. Cremos que os apelos devem ser
feitos ao povo e à sua capacidade para a ação direta, que lhe possa permitir
tomar o controle das suas próprias vidas e destinos. Porque só desta
maneira pode emergir a sociedade sem hierarquia e domínio, a sociedade na
qual cada indivíduo é o dono ou a dona da sua própria sorte.
As grandes cisões que dividiram os humanos dos humanos, a humanidade
da natureza, o indivíduo da sociedade, a cidade do campo, a atividade
mental da física, a razão da emoção e geração de geração devem ser agora
ultrapassadas. O cumprimento da luta antiquada pela sobrevivência e
segurança material num mundo de escassez foi uma vez olhado como a
condição prévia para a liberdade e para uma vida inteiramente humana. Para
viver nós tivemos que sobreviver. Como Brecht disse: "Primeiro a
alimentação e depois a moralidade".
A situação começou agora a modificar-se. A crise ecológica do nosso tempo,
crescentemente, inverteu esta máxima tradicional. Hoje, se nós temos que
sobreviver, devemos começar por viver. As nossas soluções devem ser
proporcionais ao nível do problema, ou então a natureza vingar-se-á,
terrivelmente, da humanidade.
23
PARA UM NOVO MUNICIPALISMO
Dada a crescente centralização do estado e a depressão de todas as formas
sociais, o problema do desenvolvimento de formas populares de organização
social tornou-se a responsabilidade histórica de um movimento anarquista
importante. O mito do "estado mínimo" proposto pelos neo-marxistas, pelos
descentralizadores da "Nova Era" e pelos "libertários" de direita - por bem
intencionadas que sejam as suas noções - é, em última instância, uma
justificação do estado enquanto tal. Dentro do conceito da crise presente,
qualquer estado mínimo torna-se uma ideologia ingénua para o único tipo de
estado que é possível numa sociedade cibernética de grandes empresas - de
fato, um estado máximo. Faz parte da própria dialética da presente situação
que qualquer estado não possa ser mais "mínimo" , tal como uma bomba de
hidrogênio não se pode transformar num instrumento pacífico. Discutir o
"tamanho" de um estado - as suas dimensões, grau de controle e funções reflete a mesma sabedoria que é inerente ás discussões sobre o tamanho da
arma que só pode levar ao extermínio da sociedade e da biosfera. O grau
das discussões acerca do estado focando os seus objetivos e autoridade
permanece num nível de discurso que é tão racional como as discussões
sobre o nosso arsenal nuclear conterá armas para destruir o mundo, cinco,
dez ou cinquenta vezes. Uma vez chega, quer para os arsenais nucleares,
quer para o estado.
Se uma oposição descentralizadora ao estado, à arregimentação e
militarização da sociedade americana quer ser de fato significativa, o termo
"descentralização" deve então adquirir forma, estrutura, substância e
coerência. Expressões como "escala humana" e "holism" tornam-se clichés
enfraquecidos quando não são compreendidas em termos da sua plena
lógica revolucionária, isto é, como reconstrução revolucionária de todas as
24
relações e instituições sociais; A criação de uma economia inteiramente
nova, baseada não só na "democracia no local de trabalho" mas na
esteticização das capacidades produtivas humanas; a abolição da hierarquia
e dominação em todas as esferas da vida pessoal e social; a reintegração de
todas as comunidades sociais e naturais num ecossistema comum. Esta
projeto implica um corte total com a sociedade de mercado, as tecnologias
dominantes, o estatismo, as sensibilidades patricêntricas e prometaicas para
com os humanos e a natureza, que foram absorvidas e realçadas pela
sociedade burguesa. Cada falso passo nesta direção, é uma falta grosseira
em relação ao projeto e à sua essência. Ele admitiria inevitavelmente uma
traição
total,
um
apoio
ideológico
à
centralização
disfarçada
em
"descentralização". Ou o projeto é levado à prática até aos seus mais
radicais fins, ou ele entrará em conflito consigo próprio e com os seus
objetivos originais.
Qual é o lugar autêntico deste projeto? Não é certamente o local de trabalho
atual - a fábrica e o escritório- o qual tem que ser, ele próprio, reconstruído
fundamentalmente, partindo do atual campo (hierárquico e tecnologicamente
obsoleto) de mobilização da mão de obra, para um mundo criativo que se
combine ricamente com a esfera pública e que transcenda o mero conflito de
interesses econômicos. Neste sentido, o sindicalismo e o comunismo
conselhista, ao perpetuarem o mito do local de trabalho como esfera
revolucionária, tornam-se numa forma tosca de marxismo sem as suas
manifestas características autoritárias. Tão pouco pede a localização deste
projeto situar-se na comunidade isolada ou na cooperativa, a despeito das
suas inestimáveis qualidades como escola para aprendizagem dos
conhecimentos e resolução dos problemas de ação direta, autogestão e
interação social. Nenhuma cooperativa de alimentação substituirá jamais as
25
grandes cadeias de produtos alimentares como o Pão de Açucar, e nenhuma
fazenda de agricultura biológica substituirá os negociantes agrícolas sem que
haja mudanças fundamentais na sociedade em geral. Como núcleos numa
sociedade de mercado invasora, elas mal podem esperar enfrentar
significativamente uma economia sólida e politizada, baseada em ótimos
recuros materiais e, se necessário, na coerção física. Elas podem ser focos
de resistência indispensáveis para enfrentar os novos desafios com que hoje
se confronta uma oposição revolucionária. Mas a noção proudhoniana de
que elas seriam o manancial material de uma nova sociedade que iria
gradualmente substituir a velha é totalmente mítica - ou pior, obscurantista.
Daí a sutil corrupção da visão do Stanford Research Institute de uma dupla
sociedade: uma, pequena e auto-complacente, que viverá pelo cânones da
"simplicidade voluntária"; a outra, sólida e esmagadora em números, que
viverá pelas necessidades engendradas pela produção de massa e por uma
sociedade de massa. Em última análise, esta imagem serve para desviar
qualquer conflito que a esfera pessoal, com o argumento da confrontação
com os media massificados que esmagam o espírito de resistência da
grande maioria da sociedade.
A resistência e a recolonização da sociedade devem surgir da lógica de um
conflito baseado claramente entre a sociedade e o estado centralizado, e não
de esforços singulares que estão incorporados em esforços comunitários e
pessoais. Todas as revoluçòes têm sido isso mesmo: um conflito entre a
sociedade e o estado. E, tal como atualmente o estado centralizado significa
o estado nacional, também a sociedade de hoje está a ser cada vez mais
representada pela comunidade local - o distrito, a freguesia e o município. A
exigência de um "controle local" deixou de significar paroquialismo e
insularidade, com a estreiteza de visão que despertou os receios de Marx.
26
No terreno gerado pelo crescimento de uma economia centralizada e
cartelizada, o grito para a descoberta da comunidade, da autonomia, de uma
relativa auto-suficiência, auto-confiança e democracia direta, tornou-se o
último reduto de resistência social e crescente autoridade do estado. O
esmagador acento que os media têm posto na autonomia local e no
municipalismo militante como refúgios para um paroquialismo de classe
média - muitas vezes com restrições exclusivamente racistas e econômicas esconde a latente ofensiva radical que pode dar uma nova vitalidade às
aldeias, subúrbios e cidades, contra o estado nacional. Ainda que
escolhamos termos como "socialismo" e "anarquismo" para marcar o
contraste com as conotações paroquiais de termos como "municipalismo",
convém não esquecer que mesmo "socialismo" e "anarquismo" têm o seu
lado negativo, se realçarmos os aspectos autoritários do primeiro e o
falhanço crónico do último para se consolidar organizacionalmente na maior
parte dos países do mundo. A verdade é, finalmente, uma linha muito fina
que pode facilmente serpentear ao longo do seu curso. Neste aspecto, não
existem regras, dogmas e tradições que substituam a consciência.
Deste modo, o município pode facilmente tornar-se o ponto de partida para
uma constelação de instituições sociais largamente assentes na democracia
direta, verdadeiramente popular e à escala humana, que, pela sua própria
lógica, se encontrem em oposição aguda às crescentemente invasoras
instituições políticas. Isto deve ser claro: o potencial de um radicalismo
libertário é inerente ao municipalismo. Este constitui a base para relações
sociais diretas, democracia frontal e a intervenção pessoal do indivíduo, para
que as freguesias, comunidades e cooperativas convirjam na formação de
uma nova esfera pública. Liberto das suas próprias instituições políticas, tais
como a sua estrutura presidencial, a burocracia civil e o seu monopólio
27
organizado da violência, ele conserva ainda os seus elementos históricos
para a reconstrução (e ulterior superação) da polis, da comuna livre
medieval, do sistema de assembleia da Nova Inglaterra, das seções
parisienses, da estrutura descentralizada cantonal e da Comuna de Paris.
De certeza que, em si, o município é tão inutil como força social como o são
a fazenda comunitária e a cooperativa. Além disso, desde que ele preserve
as instituições políticas do estado, permanece não só como uma entidade
social ineficaz, mas também um estado em miniatura. Mas a partir do
momento em que os municípios se federam para formar uma nova rede
social; que interpretem o controle local com o significado de assembleias
populares livres; que a auto-confiança signifique a coletivização dos
recursos; e que, finalmente, a coordenação administrativa dos seus
interesses comuns seja feita por delegados - não por "representantes" - que
são livremente escolhidos e mandatados pelas suas assembleias, sujeitos a
rotação, revogáveis e as suas atividades severamente limitadas à
administração das políticas sempre decididas nas assembleias populares - a
partir deste momento os municípios deixam de ser instituições políticas ou
estatais em qualquer sentido do termo. A confederação destes municípios uma comuna de comunas - é o único movimento social anarquista de ampla
base que pode ser visionado hoje, aquele que poderá lançar um movimento
verdadeiramente popular que produzirá a abolição do estado. É o único
movimento que pode responder às crescentes exigências de todos os
setores dominados da sociedade para dar poder e propôr pragmaticamente a
reconstrução de uma sociedade comunista libertária nos termos viscerais da
nossa problemática social atual - a recuperação de uma personalidade
poderosa, de uma esfera pública autêntica e de um conceito ativo e
participatório de cidadania.
28
O anarquismo inspirou desde há várias gerações a visão de uma
confederação de municipalidades, em parte desde os escritos de Proudhon,
e mais notavelmente na obra de Kropotkine. Tragicamente, os teóricos
anarquistas do passado foram demasiado sensíveis às armadilhas políticas
dos municípios do seu tempo para darem a necessária atenção à anatomia
social da municipalidade que jaz por debaixo da sua aparente fachada
estatal.
Historicamente, o próprio município foi sempre um campo de batalha entre a
sociedade e o estado. De fato, ele antecede historicamente o estado e tem
permanecido sempre em conflito com ele. Tem sido um campo de batalha
porque o estado, até data relativamente recente, nunca reclamou por inteiro
o município, devido à sua vida socialmente rica - famílias, corporações, a
igreja, as freguesias, as sociedades locais, os bairros e as assembleias
populares. Estas estruturas ricas de núcleos, apesar das suas divisões
internas, têm sido espantosamente impenetráveis à institucionalização
política. Ironicamente, a tensão entre sociedade e estado a nível municipal
nunca atingiu a situação grave de hoje porque as forças internas da cidade e
dos subúrbios possuiam os meios materiais, culturais e espirituais para
resistir às tendências invasoras das forças políticas. A vida municipal ricamente texturada por redes familiares, compromissos locais, organizações
profissionais, sociedades populares e até estabelecimentos de convívio,
como cafés - proporcionava um refúgio humano contra as forças burocráticas
e homogeneizadoras do aparelho estatal. Hoje, o estado, particularmente o
da forma de economia de mercado, ameaça destruir este refúgio e o
municipalismo tornou-se o terreno mais significativo da luta contra o estado
num terreno não-político. O próprio conceito de cidadania, e não só o de
29
autonomia cívica, está em jogo neste conflito.
É neste momento crucial para qualquer movimento anarquista que procure
ser socialmente relevante perante a natureza única da crise americana,
reconhecer o significado e a importância do terreno cívico - para explorar,
desenvolver e ajudar a reconstruir o seu fundamento social. A política urbana
não está predestinada a tornar-se política de estado. Para um anarquista,
tornar-se Ministro da Saúde ou Ministro da Justiça num governo republicano
é imperdoável. Mas para um anarquista, ajudar a organizar uma assembleia
de freguesia, a avnçar a sua consciência numa linha libertária, apresentar
reivindicações sobre a revogabilidade e a rotatividade dos delegados
escolhidos pela assembleia, fazer distinções claras entre formulações de
políticas e coordenação administrativa, recusar o burocratismo civil em todas
as suas formas, educar a comunidade para o coletivismo e a ajuda mútua e,
finalmente, encorajar relações confederais entre assembleias populares e
municipalidade e entre municipalidades, em desafio aberto ao estado
nacional - este programa constitui uma "política" anarquista que, na sua
lógica própria, contém a negação da política. Para os anarquistas,
candidatar-se às eleições... sim, usemos a palavra abertamente - tendo em
vista a reformulação das cartas cívicas das cidades e vilas americanas na
linha deste programa, não é diferente, em princípio, do que candidatar-se
nos sindicatos e locais de trabalho com vista a criar estruturas anarcosindicalistas. A diferença de situações não é sobre o ponto dos anarquistas
se candidatarem a "eleições" ou se envolverem na política. A diferença real
está em se o terreno do seu "elitoralismo" e da sua "política" se situa na
esfera estatal ou na esfera social. O argumento sindicalista tradicional de que
é perfeitamente válido os libertários apresentarem-se às eleições no local de
trabalho e nos sindicatos, assenta no pressuposto duvidoso de que este
30
terreno está fora do aparelho de estado e permanece uma arena
revolucionária. Perante a crescente interrogação posta pelas realidades, eles
mantêm a afirmação de que o local de trabalho e os sindicatos, como
organizações de classe, não são nem instituições burguesas nem estatais.
Encerrar a discussão sobre estas propostas com o argumento de que as
atividades cívicas são uma capitulação perante a política burguesa é ignorar
realidades muito fortes sobre a própria esfera cívica - ou, para usar termos
mais tradicionalmente anarquistas, sobre a esfera comunitária. Como
resultado disto, aparências como "eleições", "deputados", e "coordenação"
são tirados do contexto no qual ganham todo o sentido e conteúdo. Tornamse termos autônomos e flutuantes que determinam uma política sem
discernimento nem a matéria da realidade.
Isto deve ser muito claro: nos Estados Unidos, as fábricas são virtualmente
mudas, enquanto que as cidades, particularmente os ghetos e os subúrbios
não estão. Hoje, os trabalhadores americanos podem ser atingidos mais
rápida e receptivamente como vizinhos e cidadãos do que como
trabalhadores assalariados das fábricas - uma situação que envolve
consequências muito graves numa discussão sobre a classe operária
americana. Se os grupos anarquistas dos Estados Unidos - apoiando-se nas
suas tradições do século XIX, no seu ligeiro anti-estatismo e no seu
economicismo - ignorarem o conflito histórico entre as periferias sociais
chamadas vilas, freguesias e cidades, por um lado, e o estado, por outro,
eles ganharão as suas bandeiras negras, não como bandeiras de protesto,
mas como mortalhas. A demarcação entre estatismo e anarquismo deve ser
sempre clara, mas também o deve ser a demarcação entre sociedade e
estado, ou então não conheceremos nunca o tempo em que a batalha terá
lugar. Na crise histórica com que nos confrontamos, que a própria vida
31
pública ameaça fazer desaparecer, a recriação de uma esfera pública - à
escala humana, diretamente democrática, e composta de cidadãos ativos - é
talvez a responsabilidade mais premente do nosso tempo. Porque sem essa
esfera pública, que deve ter tangibilidade cívica e substância se quiser ser
mais do que simples metáfora, as prórpias condições e substância para o
protesto teriam desaparecido.
Postscriptum
O último número de Comment terminava com uma discussão sobre o "novo
municipalismo"como projeto focal do anarquismo para os anos futuros.
Parece apropriada uma discussão sobre o tema "anarquismo: passado e
presente", tratando, embora levemente, os problemas que este projeto
levanta e a filosofia libertária que lhe serve de base.
Existem dois campos que o anarquismo reclamou historicamente para a sua
intervenção: o local de trabalho e a comunidade. Tanto na oficina artesanal
como na povoação, na fábrica como no concelho, a teoria anarquista sugere,
quando não afirma explicitamente, que ambos estes campos são mais
sociais do que estatais. O local de trabalho, particularmente a fábrica
industrial, encontrou a sua apoteose nos sindicatos anarco-sindicalistas e
nos diversos movimentos para a "democracia no local de trabalho". Se este
campo pode olhar-se hoje como "necessariamente" ou "potencialmente"
revolucionário, é uma questão em aberto que requer uma discussão aparte e
é agora assunto de largo debate, quer nos meios marxistas, quer nos meios
anarquistas. Que lideres anarco-sindicalistas possam ter ocupado altos
cargos estatais não é argumento que invalide a interpretação sindicalista das
32
idéias anarquistas, tal como o não é o fato de que os mutualistas e
possibilistas do século XIX - que privilegiaram a atividade municipal - possam
ter sido atraídos para a política parlamentar.
Será que o que é realmente importante é o significado por nós atribuído ao
novo municipalismo? os anarquistas tradicionais tinham da vida municipal a
visão de um parlamentarismo local, cujos fins últimos estavam na plítica
eleitoral. Será assim? Também se poderá argumentar que o sindicalismo, de
qualquer tipo, envolve uma adaptação à hierarquia industrial e à
racionalização, e conduz em última instância, a uma política de sindicatos
burocratizados - um argumento que tem mais história atrás de si, do que a
atividade municipal. Nós devemos ser muito honestos connosco mesmos,
neste período crucial da história. Se um movimento anarquista nos Estados
Unidos não se torna uma coligação livre de indivíduos, comunidades,
cooperativas e grupos de afinidade - vitais como são a própria natureza e
integridade de um tal movimento - ele não poderá implantar-se numa larga
base de desenvolvimento social. E tal desenvolvimento compreende a
esmagadora realidade de que a grande maioria dos americanos vive numa
ou noutra forma de fixação urbana. Convém realçar que, se um novo
municipalismo apenas significar uma política liberal, social-democrática ou
mesmo "radical", confinada à melhoria dos serviços para os pobres, idosos e
desprotegidos, então ele será um remendo do reformismo paroquial que,
finalmente, fornecerá uam maquilhagem ao sistema, em vez de o desafiar.
Mas se um novo municipalismo for guiado por um programa radicalmente
diferente, ele pode tornar-se numa visão revolucionária praticável e muito
necessária
que
engloba
respostas
ecológicas,
feministas,
étnicas,
homossexuais e cívicas libertárias - com o carater fundamental de serem
respostas cívicas, ou, mais precisamente, comunitárias.
33
Os requisitos minimamente indispensáveis para a realização desta visão são:
1- a formação de um movimento anarquista de elevado comprometimento e
altamente consciente. Sem o desenvolvimento desse movimento, antes de
tudo, o municipalismo degenerará inevitavelmente em reformismo e
parlamentarismo; 2- o encorajamento e desnvolvimento de assembleias
populares em áreas urbanas e concelhos; 3- e só então, poderia esta visão
ser corporizada num movimento consciente largamente apoiado, uma
Confederação de Municípios, que interligasse aquelas assembleias com
comunidades urbanas mais vastas e, por fim, entre municipalidades que
contestassem o estado e o governo nacionais, consciente e radicalmente. As
suas reivinvicações: a reformulação das cartas cívicas de todas as cidades e
vilas, para eleger (com direito a revogação e com rotatividade) os deputados
concelhios a partir das assembleias populares, encarregando-os de funções
mais administrativas do que políticas. Estas novas cartas, estando em franca
contradição com a "Constituição" Federal, dariam às municipalidades o
direito de municipalizar a indústria, os solos e o comércio; de determinar as
suas necessidades sociais e de satisfazê-las; e finalmente de suplantar as
instituições nacionais
do estado
pelas
instituições confederais das
comunidades locais.
É nesta base que um novo anarquismo americano se pode e deve
fundamentar para adquirir a relevância, a influência e o potencial
revolucionário capaz de enfrentar a crise que se lhe deparará. Não perceber
que o anarquismo pode orientar a maré de um ódio popular irresistível (não
se pode descrevê-lo de outra maneira) contra a centralização, burocratização
e interferência governamental em todos os aspetos da vida; não perceber
este fato determinante, seria uma incrível miopia e condenaria o anarquismo
34
ao destino de uma mera tendência periférica na orla de uma monumental
tempestade social.
Em 19 de Abril de 1871, a Comuna de Paris proclamou no seu Programa
Oficial ao Povo de França: "Exigimos a total autonomia da Comuna,
extensiva a todo o território de França, assegurando a cada um a plenitude
dos seus direitos, e a todos os franceses a livre expressão das suas
faculdades como homem, como cidadão e como trabalhador". Sabendo que
estas proclamações foram feitas há um século, podemos pedir menos do que
isto?
35
MUNICIPALISMO LIBERTÁRIO
Local de trabalho e comunidade são os pólos em que se tem centrado, ao
longo da história, a teoria e pratica social radical. Com o aparecimento do
Estado-Nação e da revolução industrial, a economia adquiriu proeminência
sobre a comunidade, não só na ideologia capitalista como também nas
várias modalidades de socialismo libertário e
autoritário surgidas no século passado. Esta mudança de tônica do pólo ético
para o econômico foi de enorme alcance, conferindo aos diversos
socialismos
inquietantes
atributos
burgueses.
Tal
evolução
foi
particularmente
nítida no conceito marxista de emancipação humana através do domínio da
natureza, projeto que implicando o domínio do homem pelo homem,
justificava o aparecimento da sociedade de classes como condição prévia
dessa emancipação.
Infelizmente, a ala libertaria do socialismo não propôs com a necessária
coerência, o primado da moral sobre o econômico, provavelmente em razão
do nascimento do sistema de fábrica ( lugar clássico da exploração
capitalista) e do proletariado industrial como agente de uma nova sociedade.
O próprio sindicalismo revolucionário, apesar de todo o seu fervor moral,
concebeu a organização social sindicalista pós-revolucionária nos moldes da
sociedade industrial, o que testemunha bem a mudança de tônica do
comunitarismo para o industrialismo, dos valores comunitários para os da
fábrica. Obras que gozaram de prestigio quase sagrado no meio sindicalista
36
revolucionário, como “O organismo econômico da revolução” de Santillan,
exaltam o significado da fábrica e do posto de trabalho, para não falar já do
papel messiânico do proletariado. Todavia, o local de trabalho ( a fábrica na
sociedade industrial) foi, ao longo da história, não só lugar de exploração,
mas de subordinação hierárquica. Não serviu para “disciplinar”, “unir” e
“organizar” o proletariado para mudança revolucionária mas, pelo contrario,
para acostumar à obediência. O proletariado, como qualquer setor oprimido
da sociedade, liberta-se abandonando os hábitos industriais e participando
ativamente na vida comunitária.
Da Tribo à cidade
O município é espaço econômico e espaço humano de transformação do
grupo quase tribal em corpo político de cidadãos. A política – gestão da
cidade (polis) – tem sido desvirtuada em governo do estado tal como a
palavra polis tem sido impropriamente traduzida por estado. Esta degradação
da cidade em estado repugna aos antiautoritários, dado que o estado é
instrumento das classes dominantes, monopólio institucionalizado da
violência necessária para assegurar o domínio e a exploração do homem
pelo homem. O estado desenvolveu-se lentamente a partir de base mais
ampla de relações hierárquicas até se converter no Estado-Nação e, mais
modernamente, no estado totalitário. Por outro lado, a família, o local de
trabalho, as associações, as relações interpessoais e, de modo geral, a
esfera privada da vida, são fenômenos especificamente sociais, distintos do
âmbito estatal. O social e o estatal misturam-se; os despotismos arcaicos
não foram senão ampliação da estrutura familiar patriarcal e, na atualidade, a
absorção do social pelo estado totalitário nada mais é que o alargamento da
burocracia a esferas não meramente administrativas. Esta mistura do social
37
e do estatal apenas prova que os modos de organização social não existem
em formas puras. A “pureza” é termo que só pode ser introduzido no
pensamento social a expensas da realidade concreta. A História na
apresenta a categoria política como forma pura,m assim como não oferece
qualquer exemplo de relações sociais não hierárquicas (acima do nível do
bando ou aldeia) ou de instituições estatais puras (até época recente). O
aparecimento da cidade abre espaço a uma humanidade universal distinta da
tribo agro-pastoril, a um civismo inovador distinto da comunidade fechada na
tradição e que exprime na gestão da polis por um corpo de cidadãos livres.
Aproximações a uma política não estatal encontram-se na democracia
ateniense, no town meetings da Nova Inglaterra ou nas assembléias de
seção da comuna de Paris de 1793,. Experiências por vezes duradouras, por
vezes efêmeras, que embora inquinada por traços opressivos característicos
das relações sociais do seu tempo, permitem conceber um modelo político
não parlamentar (burocrático e centralizado), mas cívico.
A Cidade e a Urbe
A era moderna caracteriza-se pela urbanização, degradação do conceito de
cidade (civitas, corpo político de cidadãos livres) em urbe (conjunto de
edifícios, praças, isto é, o fato físico da cidade). Os dois conceitos foram
distintos em Roma até a época imperial e é elucidativo que a sua confusão
corresponda ao declínio da cidadania. Os Gracos tinham procurado
transformar a urbe em cidade, dar primazia ao cidadão, ao político sobre o
econômico. Fracassaram e, sob o império, a urbe devorou a cidade. A
distinção entre os conceitos de cidade e urbe encontra-se em outros países
como a França, onde Rousseau já assinalava que “as casas fazem o
aglomerado urbano (ville) mas só os cidadãos fazem a cidade (cité)”. Vistos
como simples eleitores ou contribuintes – quase um eufemismo para súditos
38
– os habitantes da urbe tornam-se abstrações, meras criaturas do estado.
Um povo cuja única função política é eleger deputados não é, de fato povo,
mas “massa”. A politica entendida como categoria distinta do estatal, implica
a reencarnação das massas num sistema articulado de assembléias, a
constituição de um corpo político atuando num espaço de livre expressão, de
racionalidade comum e de decisão radicalmente democrática. Sem
autogestão nas esferas econômicas, ética e política, não será possível
transformar os homens de objetos
passivos à sujeitos ativos. O espaço cívico (bairro, cidade) é o berço em que
o homem se civiliza e civilizar é sinônimo de politizar, de transformar a
“massa”em corpo político deliberativo, racional e ético. Formando e fazendo
funcionar tais assembléias, os cidadãos formam-se a si mesmos, porque a
política nada é se não for educativa e não promover a formação do caráter.
O município não é apenas o local onde se vive, a casa, serviços de higiene e
salubridade, de previdência, emprego e cultura. A passagem da tribo à
cidade representa uma transformação radical da sociedade primitiva ( de
caça e colheita)à sociedade agrícola e desta à de manufatura,. A revolução
urbana não foi menos profunda que a revolução agrícola ou que a industrial.
Município e democracia direta
Ao exaltar a atividade legislativa e executiva por delegados na comuna de
Paris de 1871, Marx prestou um péssimo serviço ao pensamento social
radical. Já Rousseau afirmava que o poder popular não pode se delegado
sem ser destruído. Ou há assembléia popular dotada de plenos poderes ou o
poder pertence ao estado. A delegação deturpou a comuna de Paris de 1871,
39
os sovietes e, mais geralmente, os sistemas republicanos em nível municipal
e nacional. A expressão democracia representativa é, em si mesma,
contraditória. O povo, ao delegar em órgãos que o excluem da discussão e
decisão e definem o âmbito das funções administrativas, lança as bases do
poder estatal. A supremacia da assembléia sobre os órgãos administrativos é
a única garantia da supremacia do cidadão sobre o
estado, crucial numa sociedade como a nossa, repletos de peritos que a
extrema especialização e complexidade torna indispensáveis. A supremacia
da assembléia é particularmente importante no período de transição de uma
sociedade
administrativamente
centralizada
para
uma
sociedade
descentralizada. A democracia libertária só é concebível se assembléias
populares, em todos os níveis, mantiverem sob a maior vigilância e
escrupuloso
controle
os
seus
órgãos
federais
ou
confederais
de
coordenação.isto não suscita problemas importantes do ponto de vista
estrutural. Desde tempos remotos que as comunidades utilizam peritos e
administradores sem perda da sua liberdade. A destruição das comunidades
teve em geral origem estatal e não administrativa. Corporações sacerdotais e
chefes serviram –se da ideologia e da ingenuidade publica, mais que da
força, para reduzir primeiro e depois eliminar o poder popular.
O Estado Contra a Cidade
O estado nunca absorveu, no passado, a totalidade da vida social. Fato que
Kropotkin assinalou implicitamente em O apoio mutuo, ao descrever a rica e
complexa vida cívica das comunidades medievais. A cidade foi a principal
força de oposição aos estados imperiais e nacionais, da antiguidade aos
nossos dias. Augusto e seus sucessores fizeram
40
da supressão da autonomia municipal a chave da administração imperial
romana e o mesmo fizeram os monarcas absolutos da época da reforma.
“Abater os muros da cidade” foi uma constante da política de Luis XIII e de
Richelieu, política que ressurge em 1793-94, com a progressiva e implacável
restrição dos poderes da Comuna pelo Comitê de Salvação Publica
robespierrista. A “revolução urbana”, enquanto poder alternativo, isto é,
desafio potencial ao poder central, foi uma obsessão do estado ao longo da
história. Esta tensão subsiste ainda, como o demonstram os conflitos entre o
estado e as municipalidades na Inglaterra e América. Quando a urbanização
tiver anulado a vida da cidade a ponto de sta não ter mais identidade, cultura
e espaço associativos próprios, as bases para uma democracia terão
desaparecido e a questão das formas revolucionárias será mero jogo de
sombras. Qualquer perspectiva radical em moldes libertários perderá
significado. Por outro lado, é ingênuo supor que assembléias
populares (de aldeia, de bairro, de cidade) possam alcançar o nível de uma
vida publica libertária sem a existência de um movimento libertário
consciente, bem organizado e com programa claro. E este não poderá surgir
sem a contribuição de uma intelectualidade radical, vibrante de vida
comunitária, como a intelectualidade francesa do Iluminismo, com a sua
tradicional presença ns cafés e bairros de Paris. Intelectualidade bem diversa
da que
povoa academias e outras instituições culturais da sociedade ocidental. Se
os anarquistas não reforçarem esse extrato de pensadores em declínio, com
vida publica vivaz, em comunicação ativa com o ambiente social, terão de
enfrentar o risco de uma transformação das idéias em dogmas e de si
41
próprios em herdeiros presunçosos das grandes personalidades vivas do
passado.
As Classes Sociais em Reformulação
Pode-se jogar com palavras como município, comunidade, assembléia e
democracia direta, negligenciando diferenças de classes, étnicas e de sexo,
que fizeram de termos como povo abstrações insignificantes. As assembléias
de secção parisienses de 1793 não só estavam em oposição à comuna e à
convenção mais burguesas, como eram, internamente campo de batalha
entre assalariados e proprietário, democratas e realistas, radicais e
moderados. Reduzir esta conflitualidade a meros interesses econômicos é
tão incorreto como ignorar diferenças de classe e falar de fraternidade,
liberdade e igualdade como se estas fossem meras expressões retóricas,
esquecendo sua dimensão populista e utópica. Tanto se escreveu já sobre os
conflitos econômicos nas revoluções inglesa, americana e francesa, que os
historiadores futuros fariam melhor serviço se revelassem o medo burguês
da revolução o seu conservadorismo inato e sua tendência para o
compromisso com a ordem instituída.
Mais útil ainda seria revelar como as classes oprimidas da era revolucionária
empurraram as revoluções “burguesas” para fora das balizas estabelecidas
pela burguesia, para espaços de democracia a que esta sempre se
acomodou com dificuldade e suspeição. Os vários “direitos” então
alcançados foram-no apesar da burguesia e não graças a ela; graças sim
aos agricultores americanos de 1770 e aos sans-culottes parisienses de
1790. E o futuro destes direitos torna-se cada vez mais incerto.
42
A recente evolução tecnológica, social e cultural e seu desenvolvimento
futuro poderá alterar a tradicional estrutura de classes criada pela revolução
industrial e permitir que, da redefinição do interesse geral daí resultante,
possa emergir novamente a palavra Povo no vocabulário radical. Não como
abstração obscurantista, mas como expressão extratos desenraizados,
fluídos e tecnologicamente deslocados, não integrados numa sociedade
cibernética e automatizada. A estas camadas desprezadas pela tecnologia
poderão juntar-se os idosos e os jovens, para que o futuro se apresenta
incerto por difícil definição do seu papel na economia e na cultura. Estas
camadas já não se enquadram na elegante e simplista divisão de classes
correspondente ao trabalho assalariado e ao capital.
O povo pode voltar, ainda, como referência ao interesse geral que se criou
em torno de mobilizações publicas sobre temática ecológica, comunitária,
moral, de igualdade de sexos ou cultural. Seria insensato subvalorizar o
papel crucial destes problemas ideológicos, aparentemente marginais. Há 50
anos, já Borkenau fazia notar que a história do ultimo século mostrava que o
proletariado podia enamorar-se mais do nacionalismo que do socialismo e
ser mais facilmente conduzido pelo interesse patriótico que pelo de classe.
Note-se também que a ideologia como o cristianismo e o islamismo ainda
hoje mantém frente a ideologia sociais progressistas, nomeadamente
ecológicas, feministas, étnicas, morais e contraculturais em que navegam
elementos pacifistas e de cariz anárquico que
aguardam ser integrados numa perspectiva coerente. Estão a desenvolverse à nossa volta novos movimentos sociais que ultrapassam as tradicionais
fronteiras de classe. Deste fermento pode nascer um interesse geral mais
43
amplo pela sua finalidade, novidade e criatividade que os interesses
economicamente orientados do passado.
A Comunidade e a fábrica
O “1984” Orwelliano traduz-se hoje pela megalópole de um estado muito
centralizado e de uma sociedade profundamente institucionalizada. É nossa
obrigação tentar opor a esta evolução social estatizante a ação
política municipal. A revolução tradus-se sempre pelo aparecimento de um
poder alternativo – sindicato, soviete, comuna – orientado contra o estado. O
exato atento da história mostra que a fábrica, produto da racionalização
burguesa, deixou de ser o local da revolução. Os operários mais
revolucionários (espanhóis, russos, franceses e
italianos) pertenceram sobretudo a estratos em transição, estratos agrários
tradicionalmente em decomposição submetidos ao impacto corrosivo de uma
cultura industrial. A luta operaria de hoje, que reflete os últimos sobressaltos
de uma economia em extinção, é sobretudo defensiva, visando conservar um
sistema industrial que esta sendo substituído por uma tecnologia de capital
intensivo e cada vez mais cibernética. A fábrica deixou de ser o reino da
liberdade (de fato foi sempre o reino da necessidade, da sobrevivência). Ao
seu nascimento opuseram-se os setores artesanais, agrícolas e, em geral,o
mundo comunitário. Obcecados pela idéia de socialismo cientifico e pela
ingênua concepção de Marx e Engels, segundo a qual a fábrica servia para
disciplinar, unir e organizar o proletariado, muitos radicais ignoraram o seu
papel autoritário e hierarquizaste. A abolição da fábrica e sua substituição por
uma ecotécnica (caracterizada por trabalho criativo e aparelhos cibernéticos
44
projetados para responder às necessidades humanas) é auspiciosa na
perspectiva do socialismo libertário.
A revolução urbana desempenhou um papel bem diferente do da fábrica.
Criou a idéia de uma humanidade universal e da sua socialização segundo
linhas racionais e éticas. Removeu as limitações ao seu desenvolvimento
decorrentes dos vínculos do parentesco e do peso sufocante do costume. A
dissolução do município representaria grave regressão social, pela
destruição da vida civil e do corpo de cidadãos que confere sentido ao
conceito de política.
Para Um Municipalismo libertário
O anarquismo sempre sublinhou a necessidade de uma regeneração moral e
de uma contracultura (no melhor sentido do termo), antagônica da cultura
dominante. Daí a importância a.ética, a coerência entre meios e fins e à
defesa dos direitos humanos e cívicos contra qualquer forma de opressão e
em qualquer aspecto da vida. A idéia de contra-instituíção é mais
problemática. Vale a pena relembrar que no anarquismo houve sempre a par
das tendências individualista e sindicalista, uma tendência comunalista. Esta
ultima com forte orientação municipalista, como se depreende das obras de
Proudhon e Kropotikin.
Todas as tendências radicais sofrem de certa dose de inércia intelectual, a
libertária não menos que a socialista autoritária. A segurança da tradição
pode ser suficientemente reconfortante para bloquear qualquer possibilidade
inovadora. O anarquismo tem estado obcecado pelo
problema do
parlamentarismo e do estatismo, preocupação historicamente justificada mas
45
que pode conduzir a uma mentalidade de estado de sítio, de cariz dogmático.
O municipalismo libertário pode ser o ultimo reduto de um socialismo
orientado para instituições populares descentralizadas. É curioso que muitos
anarquistas que se entusiasma com qualquer chácara coletivizada no
contexto de uma economia burguesa encare com desgosto uma ação política
municipal que comporte qualquer tipo de eleições, mesmo se estruturadas
em assembléias de bairro e com mandatos revogáveis, radicalmente
democráticos. Se anarquista viessem a integrar conselhos comunais, nada
obrigaria a que sua politica se orientasse para um modelo parlamentar,
sobretudo se confinada ao âmbito local, em oposição consciente ao estado e
visando a legitimação de formas avançadas de democracia direta. A cidade e
o estado não se identificam. As suas origens são diversas e os seus papeis
históricos diferentes. O fato de o estado permear hoje todos os aspectos da
vida, da família à fábrica, do sindicato à cidade, não significa que se deva
abandonar toda e qualquer forma de relação humana.
Os fantasmas que devemos temer são os do dogmatismo e do imobilismo
ritualístico.estes representam para a autoridade sucesso mais completo que
o obtido através da coação, pois significariam que o seu controle está
próximo de bloquear a capacidade de pensar livre e criticamente e de resistir
com as idéias, mesmo quando a capacidade de agir se encontra bloqueada
pelos acontecimentos.
Murray Bookchin
Viva a Anarquia!!
46
47
POR QUE ECOLOGIA SOCIAL?
É hoje impossível considerar pouco importantes, marginais ou "burgueses"
os problemas ecológicos. O aumento da temperatura do planeta em virtude
do teor crescente de anidrido carbônico na atmosfera, a descoberta de
enormes buracos na camada de ozônio - atribuíveis ao uso exagerado de
clorofluorcarbonetos - que permitem a passagem das radiações ultravioletas,
a poluição maciça dos oceanos, do ar, da água potável e dos alimentos, a
extensa deflorestação causada pelas chuvas ácidas e pelo abate
incontrolado, a disseminação de material radioativo ao longo de toda a
cadeia alimentar... tudo isto conferiu à ecologia uma importância que não
tinha no passado. A sociedade atual está a danificar o planeta a níveis que
superam a sua capacidade de auto-depuração. Avizinhamo-nos do momento
em que a Terra não terá condições de manter a espécie humana nem as
complexas formas de vida não humana, que se desenvolveram ao longo de
milhões de anos de evolução orgânica.
Face a este cenário catastrófico há o risco, a julgar pelas tendências em
curso na América do Norte e nalguns países da Europa ocidental, de se
tentar curar os sintomas em vez das causas e de pessoas ecologicamente
empenhadas procurarem soluções cosméticas em vez de respostas
duradouras. O crescimento dos movimentos "verdes" um pouco por todo o
mundo - inclusive no Terceiro Mundo- testemunha a existência de novo
impulso para combater corretamente o desastre ecológico. Mas torna-se
cada vez mais evidente que se necessita de bastante mais que de um
"impulso". Por importante que seja deter a construção de centrais nucleares,
de auto-estradas, de grandes aglomerações urbanas ou reduzir a utilização
de produtos químicos na agricultura e na indústria alimentar, é necessário
darmo-nos conta que as forças que conduzem a sociedade para a destruição
48
planetária têm as suas raízes na economia mercantil do "cresce ou morres",
num modo de produção que tem de expandir-se enquanto sistema
concorrencial. O que está em causa não é a simples questão de
"moralidade", de "psicologia" ou de "cobiça". Neste mundo competitivo em
que cada um se acha reduzido a ser comprador ou vendedor e em que cada
empresa se deve expandir para sobreviver, o crescimento limitado é
inevitável.
Adquiriu
a
inexorabilidade
duma
lei
física,
funcionando
independentemente de intenções individuais, de propensões psicológicas ou
de considerações éticas.
Hecatombes de Quarenta Milhões de Bizontes
Atribuir toda a culpa dos nossos problemas ecológicos à tecnologia ou à
"mentalidade tecnológica" e ao crescimento demográfico (para citar dois dos
argumentos que mais freqüentemente emergem na mídia) é como castigar a
porta que nos trancou ou o cimento em que caímos e nos machucamos. A
tecnologia - mesmo a má como os reatores nucleares- amplifica problemas
existentes, não os cria. O crescimento populacional é um problema relativo,
se efetivamente o é. Não é possível dizer com segurança quantas pessoas
poderiam viver decentemente no planeta sem produzir transtornos
ecológicos. Os Estados Unidos, na última metade do século XIX, chacinaram
quarenta milhões de bisontes, exterminaram espécies como o pombo
correio, cujos bandos obscureciam o céu, destruiram vastas áreas de floresta
original e entregaram à erosão ótima terra cultivável, de superfície
comparável à de um grande país europeu... e todo este dano foi levado a
cabo com uma população de menos de cem milhões de habitantes e uma
tecnologia atrasada,
pelos padrões atuais. Em suma, Havia outros fatores em jogo além da
49
tecnologia e da pressão demográfica quando este drama se desenrolou. A
praga que afligiu o continente americano era mais devastadora que uma
praga de gafanhotos. Era uma ordem social que se deve chamar sem
cerimônias pelo nome que tinha e tem: capitalismo, na sua versão privada a
Ocidente e na sua forma burocrática a Oriente. Eufemismos como
"sociedade tecnológica" ou "sociedade industrial", termos muito difundidos na
literatura ecológica contemporânea, tendem a mascarar com expressões
metafóricas a brutal realidade duma economia baseada na competição e não
nas necessidades dos seres humanos e da vida não humana. Assim a
tecnologia e a indústria são representadas como os protagonistas perversos
deste drama, em vez do mercado e da ilimitada acumulação de capital,
sistema de "crescimento" que por fim devorará toda a biosfera se para tanto
se lhe consentir sobrevivência suficiente.
Sem Hierarquia e Sem Classes
Aos enormes problemas criados por esta ordem social devem juntar-se os
criados por uma mentalidade que começou a desenvolver-se muito antes do
nascimento do capitalismo e que este absorveu completamente. Refiro-me à
mentalidade estruturada em torno de hierarquia e do domínio, em que o
domínio do homem sobre o homem originou o conceito do domínio sobre a
natureza como destino e necessidade da humanidade. É reconfortante que
se haja insinuado no pensamento ecológico a idéia de que esta concepção
do destino humano é perniciosa. Contudo, não se compreendeu claramente
como surgiu, persiste e como pode ser eliminada esta concepção. E se se
quer achar remédio para o cataclismo ecológico, deve procurar-se a origem
da hierarquia e do domínio. O fato da hierarquia sob todas as formas
-domínio do jovem pelo velho, da mulher pelo homem, do homem pelo
homem na forma de subordinação de classe, de casta, de etnia ou de
50
qualquer outra estratificação da sociedade - não haver sido identificada como
tendo âmbito mais amplo que o mero domínio de classe, tem sido uma das
carências cruciais do pensamento radical. Nenhuma libertação será
completa, nenhuma tentativa de criar harmonia entre os seres humanos e
entre a humanidade e a natureza poderá ter êxito se não forem erradicadas
todas as hierarquias e não apenas a de classe, todas as formas de domínio e
não apenas a exploração econômica.
Estas idéias constituem o núcleo essencial da minha concepção de ecologia
social e do meu livro A Ecologia da Liberdade. Sublinho cuidadosamente o
uso que faço do termo "social", quando me ocupo de questões ecológicas,
para introduzir outro conceito fundamental: nenhum dos principais problemas
ecológicos que hoje defrontamos se pode resolver sem profunda mutação
social. Esta é uma idéia cujas implicações não foram ainda plenamente
assimiladas pelo movimento ecológico. Levada ás suas conclusões lógicas
significa que se não pode transformar a sociedade presente aos poucos, com
pequenas alterações. Quando muito estas pequenas mudanças são entraves
que apenas reduzem a velocidade louca a que se está a destruir a biosfera.
Devemos certamente ganhar o máximo tempo possível nesta corrida contra
o biocídio e fazer todo o possível para a deter. Não obstante o biocídio
prosseguirá, a menos que as pessoas se convençam da necessidade duma
mudança radical e da de se organizarem para esse efeito. Deve aceitar-se a
substituição da sociedade capitalista atual pelo que denomino "sociedade
ecológica", isto é, por uma sociedade que implique as mutações sociais
indispensáveis para eliminar os abusos ecológicos.
É imprescindível refletir e debater profundamente sobre a natureza de tal
"sociedade ecológica". Algumas conclusões são quase óbvias. Uma
51
sociedade ecológica deve ser não-hierárquica e sem classes, deve eliminar
mesmo o conceito de domínio da natureza. A este propósito têm de se
retomar os fundamentos do eco-anarquismo de Kropotkin e dos grandes
ideais iluministas da razão, liberdade e força emancipadora da instrução,
defendidos por Malatesta e Berneri. Melhor, os ideais humanistas que
guiaram os pensadores anarquistas do passado devem ser recuperados na
globalidade e transformados num humanismo ecológico que incarne nova
racionalidade, nova ciência e nova tecnologia.
O motivo pelo qual sublinhei os ideais iluministas libertários não é redutível
aos meus gostos e predileções ideológicas. Trata-se realmente de ideais que
não podem dispensar atenta consideração de qualquer indivíduo empenhado
ecologicamente. Oferecem-se, hoje em todo o mundo, alternativas
inquietantes ao movimento ecológico. Por um lado vai-se difundindo,
sobretudo na América do Norte, mas também na Europa, uma espécie de
doença espiritual, uma atitude contra iluminista que, em nome do "regresso à
natureza", evoca racionalismos atávicos, misticismos e religiosidade de
índole "pagã". Culto de "divindades femininas", "tradições paleolíticas" (ou
"neolíticas", consoante os gostos), rituais "ecológicos" (espécie de ecologia
vodu da administração Reagan) vão tomando forma deste e do outro lado do
Atlântico em nome duma nova "espiritualidade". Este revivalismo do
primitivismo não é fenômeno inócuo: frequentemente está imbuído de um
neo-malthusianismo pérfido que se propõe, no essencial, deixar morrer de
fome os pobres, vítimas principais da carestia do Terceiro Mundo, com a
finalidade de "reduzir a população". A Natureza, diz-se, deve ser deixada livre
para "seguir o seu curso". A fome e a carestia não são causadas, diz-se,
pelos negócios agrários, pelo saque levado a cabo pelas grandes empresas,
pelas rivalidades imperialistas, pelas guerras civis nacionalistas, mas têm a
52
sua origem na superpopulação. Deste modo o problema econômico é
completamente esvaziado de conteúdo social e reduzido à interação mítica
das forças naturais, freqüentemente com forte carga racista de pendor
fascistizante. Por outro lado está em construção o mito tecnocrático segundo
o qual a ciência e a engenharia resolveriam todos os males ecológicos.
Como nas utopias de H. G. Wells procura-se fazer acreditar na necessidade
duma nova elite para planificar a solução da crise ecológica. Fantasias deste
tipo estão implícitas na concepção da terra como "astronave" (segundo a
grotesca metáfora de Buckiminister Fuller), que pode ser manipulada pela
engenharia genética, nuclear eletrônica e política (para dar um nome
altissonante à burocracia). Fala-se da necessidade de maior centralização do
Estado, desembocando na formação de "mega-Estados", em paralelo
arrepiante com as empresas multinacionais. E como a mitologia se tornou
popular entre os eco-místicos, promotores dum primitivismo em versão
ecológica, o sistema tecnoburocrático logrou grande popularidade entre os
"eco-tecnocratas", criadores dum futurismo em versão ecológica. Nos dois
casos o ideal libertário do iluminismo - valorização da liberdade, da instrução,
da autonomia individual – são negados pela pretensão de nos impedir a
quatro patas para um "passado" obscuro, mistificado e sinistro, ou de nos
catapultar como míssil para um "futuro" radioso, igualmente mistificante e
sinistro.
O Que É a Natureza
A ecologia social, tal como a concebo, não é mensagem primitivista
tecnocrática. Tenta definir o lugar da humanidade "na" natureza - posição
singular, extraordinária - sem cair num mundo de cavernícolas antitecnológicos, nem levantar voo do planeta com fantasiosas astronaves e
estações orbitais de fição científica. A humanidade faz parte da natureza,
53
embora difira profundamente da vida não humana pela sua capacidade de
pensar conceitualmente e de comunicar simbólicamente. A natureza, por sua
vez, não é simplesmente cena panorâmica a olhar passivamente através da
janela, é a evolução na sua totalidade, tal como o indivíduo é a sua própria
biografia e não a simples edição de dados numéricos que exprimem o seu
peso, altura, talvez "inteligência" e assim por diante. Os seres humanos não
são unicamente uma entre muitas formas de vida, forma especializada para
ocupar um dos muitos nichos ecológicos no mundo natural. São seres que,
pelo
menos
potencialmente,
podem
tornar
auto-consciente
e,
por
conseguinte, auto-dirigida a evolução biótica. Com isto não quero dizer que a
humanidade chegue a ter conhecimento suficiente da complexidade do
mundo natural para poder ser o tomoneiro da sua evolução, dirigindo-a à sua
vontade. As minhas reflexões sobre a espontaneidade sugeram prudência
nas intervenções sobre o mundo natural, (sustentam que se requer) grande
cautela nas modificações a empreender. Mas, como disse em "Pensar
Ecologicamente", o que verdadeiramente nos faz únicos é podermos intervir
na natureza com um grau de auto-consciência e flexibilidade desconhecido
nas outras espécies. Que a intervenção seja criadora ou destrutiva é
problema que devemos enfrentar em toda a reflexão sobre a nossa interação
com a natureza. Se as potencialidades humanas de auto-direção consciente
da natureza são enormes devemos contudo recordar que somos hoje ainda
menos que humanos.
A nossa espécie é uma espécie dividida - dividida antagonisticamente por
idade, carácter, classe, rendimento, etnia, etc. - e não uma espécie unida.
Falar de "humanidade" em termos zoológicos, como fazem atualmente tantos
ecologistas - inclusivamente tratar as pessoas como espécie e não como
seres sociais que vivem em complexas criações institucionais – é
54
ingenuamente absurdo. Uma humanidade iluminada, reunida para se dar
conta das suas plenas potencialidades numa sociedade ecologicamente
harmoniosa, é apenas uma esperança e não apenas uma realidade, um
"dever ser" e não um "ser". Enquanto não tivermos criado uma sociedade
ecológica, a capacidade de nos matarmos uns aos outros e de devastar o
planeta fará de nós - como efetivamente faz - uma espécie menos evoluída
do que as outras. Não conseguir ver que atingir a humanidade plena é
problema social que depende de mutações institucionais e culturais
fundamentais é reduzir a ecologia radical à zoologia e tornar quimérica
qualquer tentativa de realizar uma sociedade ecológica.
Vínculos Comunitários
Como é possível conseguir as transformações sociais de grande alcance que
preconizo? Não creio que possam vir do aparelho de Estado, quer dizer, num
sistema parlamentar de substituição dum partido por outro (por altamente
inspirado que este último possa parecer durante o seu período heróico de
formação). A minha experiência com o movimento verde alemão demonstroume (partindo do princípio que teria necessidade dessa demonstração) que o
parlamentarismo é moralmente nocivo no melhor dos casos e totalmente
corrupto na pior das hipóteses. A representação dos verdes no Bundestag
confirmou, nestes últimos tempos, os meus piores temores: a sua maioria
"realista" é favorável à participação da Alemanha Ocidental na NATO e apoia
uma forma de "eco-capitalismo" (contradição nos termos) incompatível com
qualquer abordagem ecológica radical.
Além disso o parlamentarismo mina invariavelmente a participação popular
55
na política, no significado que há muitos séculos lhe é atribuído. Para os
antigos atenienses política significava a gestão da polis, isto é, da cidade,
diretamente pelos cidadãos reunidos em assembléia e não através de
burocratas ou de representantes eleitos. É verdade que somente os homens
eram cidadãos e que, além das mulheres, estrangeiros e escravos eram
igualmente excluídos. É ainda verdade que os cidadãos ricos dispunham de
recursos materiais e gozavam de privilégios recusados aos cidadãos pobres.
Mas é também verdade que a antiga cidade mediterrânea não havia ainda
alcançado, há dois mil e tantos anos, o seu pleno desenvolvimento, a "sua
verdade" como diria Hegel. A liberdade do cidadão participar na vida política
não dependia da tecnologia mas do trabalho: dos escravos, das mulheres e
do seu próprio. Aristóteles não via qualquer dificuldade em admitir que
quando os teares tecessem sozinhos os gregos não necessitariam de
escravos, nem - acrescento eu - de explorar o trabalho alheio para dispôr de
tempo livre para si mesmos. Hoje as máquinas fazem o que Aristóteles dizia
e muito mais. Podemos finalmente fruir o tempo livre necessário para nos
desenvolvermos e participar amplamente na vida pública sem precisarmos
de pôr em perigo o mundo natural nem explorar o trabalho alheio. A ecologia
radical não pode ser indiferente ás relações sociais e econômicas. O
delicado equilíbrio entre o uso da tecnologia com fins libertadores e o seu
uso com fins destrutivos para o planeta é matéria de apreciação social, mas
tal apreciação é grandemente ofuscada quando ecologias sui generis
denunciam a tecnologia como mal irrecuperável ou a exaltam como virtude
indiscutível.
Curiosamente,
místicos
e
tecnocratas
têm
importante
característica em comum: nem uns nem outros examinam a fundo os
problemas nem seguem a lógica para além das premissas mais elementares
e simplistas.
56
Uma nova política deveria, quanto a mim, implicar a criação duma esfera
pública "de base" extremamente participativa, a nível da cidade, do campo,
das aldeias e bairros. Decerto o capitalismo provocou destruição tanto dos
vínculos comunitários como do mundo natural. Em ambos os casos
encontramo-nos face a simplificação das relações humanas e não humanas,
à sua redução a formas interativas e comunitárias elementares. Mas onde
existam ainda laços comunitários e onde - mesmo nas grandes cidades possam nascer interesses comuns, esses devem ser cultivados e
desenvolvidos. Estudei este tipo de política comunal (repito: entendo política
no sentido helenico, não no seu significado atual que denomino
"estatalidade") no meu livro "O Progresso da Urbanização e o Declínio da
Cidadania". Por difícil que pareça, na Europa (e em menor grau, creio, nos
Estados Unidos) acredito na possibilidade duma confederação de municípios
livres como contra-poder de base à centralização crescente do poder por
parte do Estado-nação. Quero fazer notar que, neste campo, a política
ecológica é em muitos casos não apenas possível mas também coerente
com a ecologia concebida como estudo da comunidade, quer humana quer
não humana. Uma sociedade ecológica pressupõe formas participativas de
base, comunitárias, que tal política se propõe realizar no futuro. A ecologia
não é nada se se não ocupar do modo como interatuam as formas de vida
para construir e se desenvolverem como comunidades.
57
ANARQUISMO E ECOLOGIA
O anarquismo não se limita apenas a idéia de criar comunas independentes.
E, se me detive a examinar esta possibilidade, foi apenas para demostrar
que, longe de ser um ideal remoto, a sociedade anarquista tornou-se um prérequisito para a prática dos princípios ecológicos. Sintetizando a mensagem
crucial da ecologia, diremos que, ao reduzir a variedade no mundo natural,
estaremos aviltando sua unidade e integridade, destruindo as forças que
contribuem para a harmonia natural e para o equilíbrio duradouro e, o que é
ainda
mais
importante,
estaremos
provocando
um
retrocesso
no
desenvolvimento do mundo natural. Retrocesso que poderá eventualmente,
impedir o aparecimento de outras formas mais avançadas de vida.
Sintetizando a mensagem reformadora da ecologia, poderíamos afirmar
que, se desejamos promover a unidade e estabilidade do mundo natural,
tornando-o mais harmonioso, precisamos estimular e preservar a variedade.
Mas estimular a variedade pela variedade seria um vazio. Na natureza, ela
surge espontaneamente.
As possibilidades de sobrevivência de uma nova espécie são testadas
pelos rigores do clima, pela sua habilidade em enfrentar seu inimigos, pela
sua capacidade de estabelecer e ampliar o espaço que ocupa no meio
ambiente. Entretanto, qualquer espécie que consegue aumentar seu território
estará, ao mesmo tempo, ampliando a situação ecológica como um todo.
Citando A. Gutkind, ela estará "ampliando o meio ambiente tanto para si
própria quanto para qualquer outra espécie com a qual mantenha um relação
equilibrada".
58
Como aplicar este conceito a teoria social? Creio que para muitos leitores
bastaria dizer que, na medida que o homem é parte da natureza, a
ampliação do meio ambiente natural implicaria um maior desenvolvimento
social. Mas a resposta para essa pergunta é bem mais profunda do que
poderiam supor ecológicos e libertários. Permintam-me retornar mais um vez
a idéia ecológica que afirma ser a diversidade uma consequência da
integridade e do equilíbrio. Tendo em mente essa idéia, o primeiro passo
para encontrar a resposta seria a leitura de um trecho da Filosofia do
anarquismo de Herbert Read, onde, ao apresentar seus "critérios de
progresso", ele observa que o progresso pode ser mediado pelo grau de
diferenciação existente na sociedade. Se o indivíduo é apenas uma unidade
da massa coletiva, sua vida será limitada, monótona e mecânica. Mas, se ele
for uma unidade independente, poderá estar sujeito a acidentes ou azares da
sorte, mas ao menos terá a chance de crescer e expressar-se. Poderá
desenvolver-se - no único sentido real do termo - na consciência de sua
própria força, vitalidade e alegria.
Embora não tenha encontrado seguidores, as idéias de Read nos
fornecem um importante ponto de partida. O que primeiro nos chama a
atenção é o fato de que, tanto ecologista como anarquista ressaltam a
importancia da espontaneidade.
Na medida em que é mais que um simples técnico, o ecologista tem um
tendência a desprezar o conceito de "domínio sobre a natureza" preferindo
falar em "conduzir" uma situação ecológica, em gerir um ecossistema, em
vez de recría-lo. O anarquista, por sua vez, fala em espontaneidade social,
em libertar o potencial da sociedade e da humanidade, em dar rédeas soltas
a criatividade humana. Ambos vêem na autoridade uma força inibidora, um
59
peso que limita o pontencial criativo de uma situação natural ou social.
Assim como o ecologista procura ampliar o alcance de um ecossistema e
estimular a livre ação recíproca entre as espécie, o anarquista busca ampliar
o alcance da experiência social e remover os obstáculos que possam impedir
seu desenvolvimento. O anarquismo não é apenas uma sociedade sem
governo, mas uma sociedade harmoniosa que procura expor o homem a
todos os estímulos da vida urbana e rural, da atividade física e mental, da
sensualidade não reprimida e da espiritualidade, da solidariedade ao grupo e
do desenvolvimento individual. Na sociedade esquizóide em que vivemos,
tais objetivos não só são considerados irreconciliáveis, como diametralmente
opostos.
Uma sociedade anaquista deveria ser descentralizada, não apenas para
que tivesse condições de criar bases duradouras que garantissem o
estabelecimento de relações harmoniosas entre o homem e a natureza, mas
para que fosse possível dar uma nova dimensão ao relacionamente
harmônico entre os próprios homens. Há uma necessidade evidente de
reduzir as dimensões das comunidades humanas - em parte para solucionar
os problemas da poluição e em parte para que pudéssemos criar verdadeiras
comunidades. Num certo sentido, seria necessário humanizar a humanidade.
O uso de aparelhos eletrônicos, tais como telefones, telégrafos, rádios e
televisão, como forma de intermedia a relação entre as pessoas, deveria ser
reduzido ao mínimo necessário.
As comunidade menores teriam uma economia equilibrada e vigorosa, em
parte para que pudessem utilizar devidamente as matérias-primas e as
60
energias locais, e em parte para ampliar os estímulos agrícolas e industrias.
O membro da comunidade que tiver inclinação para engenharia, deveria ser
encorajado a mergulhar suas mãos na terra, o intelectual a usar seu
músculos, o fazendeiro a conhecer o funcionamento da fábrica. Separa o
engenheiro da terra, o pensador da espada, o fazendeiro da fábrica, gera um
grau de superespecialização, onde os especialistas assumem um perigoso
controle da sociedade.
Uma comunidade auto-suficiente, que dependesse do meio ambiente
para sua subsistência, passaria a sentir um novo respeito pelas interrelações orgânicas que garantem sua sobrevivência. Creio que longe de
resultar em provincianismo, essa relativa auto-suficiencia criaria uma nova
matriz para o desenvolvimento do indivíduo e da comuna - uma integração
com a natureza que revitalizaria a comunidade.
Se algum dia tivermos conseguido ter na prática uma verdadeira
comunidade ecológica, ela produzirá um sensível desenvolvimento na
diversidade natural, formando um todo harmônico e equilibrado. E,
estendendo-se pelas comunidades, regiões e continentes, veremos surgir
diferentes territórios humanos e diferente ecossistemas, cada um deles
desenvolvendo suas próprias potencialidades e expondo seus membros a
uma grande variedade de estímulos econômicos, culturais e de conduta. As
diferenças que existem entre indivíduos serão respeitadas como elementos
que enriquecem a unidade da experiência e do fenômeno. Libertos de uma
rotina monótona e repressiva, das inseguranças e opressões, da carga de
um trabalho demasiado penoso e das falsas necessidades, dos obstáculos
impostos pela autoridade e das compulsões irracionais, os indivíduos
estarão, pela primeira vez na história, numa posição que lhes permitirá
61
realizar seu potencial como membros da comunidade humana e do mundo
natural.
(em: O Anarquismo Pós-Escassez, 1974)
62
ANEXOS
63
David Watson
Além de Bookchin: Prefácio para uma Ecologia Social do Futuro:
Detroit, EUA. Black&Red/Autonomedia, 1996
Resenha de Manuel Portela
Este livro de David Watson faz uma análise e uma crítica do conjunto da obra
do
pensador
norte-americano
Murray
Bookchin,
um
dos
principais
teorizadores do movimento da ecologia social. Bookchin, que começou a
publicar no início dos anos 70, tentou ligar a teoria do movimento ecologista,
a teoria marxista e a crítica anarquista da tecnologia e da civilização. Além de
diversos artigos, entre as obras de Bookchin que são minuciosamente
escrutinadas nesta análise contam-se: Toward an Ecological Society (1980),
The Ecology of Freedom (1982), The Modern Crisis (1986), The Rise of
Urbanization and the Decline of Citizenship (1987), Remaking Society:
Pathways to a Green Future (1990), Which Way for the Ecology Movement?
(1994) e The Philosophy of Social Ecology (1995). Watson, por seu lado,
além de colaborador e editor da revista de Detroit Fifth Estate, é também
autor de How Deep Is Deep Ecology? (1989).
A ecologia social tem como programa construir uma representação capaz de
transcender as dicotomias ser humano/natureza, numa visão holística da
actividade social humana enquanto elemento da esfera ecológica. Uma tal
teoria implica uma profunda crítica da organização social do trabalho, do
desenvolvimento urbano e da coisificação da natureza, que resultaram do
desenvolvimento tecnológico, da ideologia do progresso e da glorificação da
civilização.
64
Segundo David Watson, a ecologia social de Bookchin, no entanto, fica muito
aquém das suas intenções. Ao mesmo tempo que identifica exaustiva e
claramente muitas limitações e contradições na obra de Bookchin, Watson é
particularmente demolidor em relação ao autoritarismo de Bookchin, que se
tem furtado ao confronto com outras versões da ecologia social dentro dos
movimentos ecologista e anarquista norte-americanos. Esta obra tem
portanto um carácter eminentemente polémico, mas está longe de se esgotar
aí.
A sua estrutura é definida, em boa parte, por uma série de conceitos que
Watson vai expor e criticar na formulação bookchiniana: razão, civilização,
técnica, progresso, natureza, espiritualidade, cidade e primitivo. Watson
mostra, nomeadamente, até que ponto a ecologia social de Bookchin está
prisioneira da racionalidade tecnocrática e da ideologia do progresso, não
apenas nos conceitos muito restritos de razão e de civilização, ou através de
uma confiança contraditória na tecnologia, mas também por via de uma
conceptualização logocêntrica da natureza e da espiritualidade. Há também
um capítulo dedicado à injustificada profissão de fé de Bookchin nas virtudes
do municipalismo democrático norte-americano, em face da organização das
cidades contemporâneas e da natureza burocrática da política. Nos dois
últimos capítulos, dedicados à representação das culturas ditas primitivas,
Watson contesta as análises economicistas das duas últimas décadas,
considerando que as teorias revisionistas da antropologia pós-moderna
acabam por re-mistificar as culturas primitivas.
Uma das grandes qualidades desta obra está em fazer plena justiça ao seu
título, tornando-se uma excelente introdução para quem, como eu,
desconhecia quase por completo a ecologia social norte-americana. Em vez
65
de oferecer uma doutrina panfletária, auto-satisfeita com as suas próprias
análises e palavras de ordem, Watson optou por inspeccionar atentamente o
vocabulário crítico de um dos seus expoentes e mostrar como a ecologia
radical de Bookchin se encontra ainda ideologicamente dependente das
categorias que quer contestar, o que compromete muitas das suas intuições
mais valiosas.
David Watson conseguiu assim uma relativa descolonização dos conceitos
da ecologia social de Bookchin, revelando as insuficiências da sua linguagem
erigida em sistema e abrindo caminho para outras ecologias sociais. A
técnica de fazer falar de outro modo as inúmeras citações de Bookchin tem,
de resto, um elucidativo paralelo visual: cada capítulo é introduzido por uma
gravura dos Caprichos de Francisco Goya, através da qual a interpelação
céptica de David Watson comenta o dogmatismo de Murray Bookchin. A
argumentação polémica do livro abre-se por isso inteiramente para o leitor,
que ganha uma viva consciência dos problemas de uma conceptualização
ecológica da razão, da natureza e da sociedade.
66
J. M. Carvalho Ferreira
ECOLOGIA SOCIAL E DESENVOLVIMENTO
É indubitável que em pleno apogeu do progresso e da razão, a
complexidade da mudança sócio-cultural, política e económica mergulhou
todas as sociedades numa crise profunda que tende inclusive a pôr em
causa a sobrevivência da espécie humana.
Estamos, portanto, num período histórico de paradoxos estruturados pela
sofisticação
e
o
desenvolvimento
gigantesco
das
capacidades
e
possibilidades científicas e tecnológicas. Entre as várias manifestações em
que se corporiza essa realidade, emerge a atividade econômica com um
desenvolvimento ininterrupto das funções de produção e de consumo de
bens e serviço. Paradoxalmente, no entanto, a riqueza produzida não se
traduz numa distribuição e apropriação equitativa pelos diferentes indivíduos,
grupos e classes sociais que constituem as diferentes sociedades. Por outro
lado, a relação do homem com a natureza tende a agravar-se no sentido de
um desequilíbrio irreversível, destruindo progressivamente a harmonia
ecossistémica que subsistia há vários milénios.
Hoje, face à gravidade dos problemas existentes, para além de perceber os
sintomas dessa crise, interessa-nos explicitar os factores e as condições que
se revelam mais emblemáticos para o devir da natureza e da humanidade.
Assim, quando nos debruçamos na análise do sistema social global,
deparamos, quase sempre, com uma situação sócio-cultural que põe em
risco as hipóteses de interacção social que fundamentam os processos de
sociabilidade e de socialização dos indivíduos à escala planetária. Para tal
basta olharmos para os níveis de pobreza e de desemprego, de
marginalidade e de miséria social, pressão demográfica, fome e guerra que
67
persistem à escala mundial. Simultaneamente, quando observamos as
modalidades de intervenção e de transformação do homem nas suas
relações com a natureza e o ambiente em geral, questionamos até que ponto
ainda nos é possível sobreviver no planeta Terra.
Cientistas e políticos são pródigos em interpretações que indiciam que
caminhamos para o abismo, caso nos mantenhamos com o mesmo modelo
de desenvolvimento económico e social (ROBIN, 1977). Essas hipóteses são
de tal modo negativas que, face à impotência das soluções racionaisinstrumentais da sociedade capitalista para inverter essa evolução, revela-se
cada vez mais banal a função utilitária das alternativas ecologistas até há
pouco tempo consideradas utópicas pelo mercado e o poder normativo
vigente. Tendo presente essa realidade, mais do que enumerar e pretender
superar
as contradições existentes através
das
múltiplas soluções
terapêuticas normativas que pretendem superar os efeitos da crise social e
humana e da natureza, sem se preocuparem de extinguirem as causas da
mesma, torna-se imperioso e urgente analisar o modelo de desenvolvimento
económico, social, cultural e político que está na origem do dilema histórico
em que nos encontramos.
Infelizmente, nos dias que correm, as análises científicas tendem a reflectir
os desígnios ideológicos da racionalidade instrumental do capitalismo e a
servirem como um produto circunscrito aos sucessos conjunturais da moda
intelectual e espectáculo informativo dos "mass media". Acresce a esse
facto, revestirem-se ainda de uma pseudo-neutralidade científica identificada
com as necessidades intrínsecas da sociedade, esquecendo-se que foram
objecto de uma institucionalização, cuja legitimidade foi outorgada em função
dos interesses das classes dominantes e do Estado. Os paradigmas
68
científicos mais representativos são, neste domínio, o exemplo mais acabado
desse tipo de posição.
É muito fácil chegar a essa conclusão. Verifique-se a "objectividade" e a
"neutralidade" dos milhares de artigos e livros escritos sobre os temas
sublinhados e tenha-se presente, a esse respeito, os milhares de análises
que se realizaram sobre a natureza e a história dos países denominados
"socialistas". Numa outra perspectiva, observe-se o sentido meta-histórico de
uma evolução unilinear pretensamente harmoniosa que se pretende dar ao
modelo de sociedade capitalista, enquanto processo histórico distintivo do
desenvolvimento sócio-cultural, económico e político das sociedades. Contra
esta hegemonia totalitária, persistem um conjunto de autores que se revelam
excepções marginais às regras científicas predominantes. Por opções éticas,
morais e científicas têm analisado, de forma radical, esse modelo de
desenvolvimento, demonstrando as suas contradições e limites históricos.
Não obstante saber do peso dessas posições hegemónicas e contradições
paradigmáticas, perante os desafios que se nos apresentam, mais do nunca,
torna-se imperioso compreender e explicitar as características e tendências
do modelo de desenvolvimento que está na origem da crise que
atravessamos.
Quase sempre, em situações históricas semelhantes, quando assistimos a
este tipo de fenómenos, os sintomas críticos do modelo de desenvolvimento
capitalista, tendem a ser resolvidos pela via da reforma ou de uma hipotética
revolução. Ambas coexistem num processo de interdependência e
complementaridade, estimulando e estruturando soluções de ultrapassagem
69
da crise social, humana e ecológica. Tendo presente os sucessivos
insucessos das reformas e revoluções já realizadas, assunção, os cenários
de mudança ou de transformação radical da sociedade capitalista que
possamos deduzir, revestem-se de contingências e ensinamentos históricos
que não podemos descurar. Numa óptica estrita de sobrevivência histórica e
de intervenção social pautada pela coerência e a eficácia, nada mais nos
resta do que evoluir no sentido da construção de uma outra sociedade. Esta
terá que ser ser dinamizada com base em transformações económicas,
sociais, políticas e culturais de características radicais. Na emergência deste
quadro revolucionário, a ecologia social assente nos princípios e práticas do
anarquismo, tantas vezes esquecida e adulterada como um modelo utópico,
revela-se, hoje, com virtualidades inesgotáveis.
A ecologia social aparece, assim, como uma hipótese histórica de superação
das incongruências funcionais do atual modelo de desenvolvimento que
subsiste à escala planetária. Nesse sentido, ela introduz novas perspectivas
de equilíbrio ecossistémico entre as diferentes espécies animais e vegetais
e, sobretudo, entre o homem e a natureza. Finalmente, pela sua essência
anarquista, ela aparece como uma potencialidade real de construirmos um
novo mundo, o que nos indicia desenvolvermos uma ética e uma filosofia
apoiada em princípios humanistas e fraternais em relação à sociedade e à
natureza.
1. Características da crise do sistema social global no limiar do século XXI
A generalidade das análises que se debruçam sobre a atual crise da
evolução das sociedades contemporâneas sublinham, com especial
70
significado, os problemas relacionados com a explosão demográfica, a
destruição do ambiente, a guerra, o desemprego, a marginalidade social, a
fome e a pobreza.
Se pensarmos na pertinência desses diferentes flagelos no contexto
estrutural e institucional das atuais sociedades, verifica-se que todos eles
estão em estreita sintonia, quer nas causas que estão na sua origem, quer
nos seus efeitos perversos. Todos esses fenómenos resultam de uma lógica
competitiva e concorrencial, na qual os objectivos do lucro e da exploração
estão sempre presentes. Em termos de uma racionalidade pautada por fins e
meios, todos eles estão submetidos a um sistema de eficácia e eficiência
capitalista. Na maneira como estão articulados entre si, cada um deles
desenvolve-se num sentido interdependente e complementar. Os resultados
lógicos da interacção que resulta desse sistema complexo são visíveis
através da produção e consumo de bens e serviços, na transformação e
esgotamento dos recursos naturais e num crescendo populacional inaudito. A
outra versão dessa interacção produzida pelos diferentes componentes do
sistema social global observa-se através da explosão dos fenómenos
migratórios, da pobreza, da segregação e marginalidade social provenientes
da catástrofe ambiental, da guerra, do desemprego e da fome à escala
universal (PNUD, 1994).
As projeções da população mundial para o ano de 2050 apontam para cerca
de 10.000 milhões de pessoas no planeta Terra. Entre as várias
consequências, importa referir as suas incidências geográficas e ambientais.
O continente africano, que conta atualmente com 12% da população
mundial, no ano de 2050 passará a deter 27% da referida população. Em
comparação, para o mesmo ano de 2050, a Ásia manter-se-á ligeiramente
71
acima dos 50% da população total, enquanto que a América Latina passará
dos 9% actuais para 10% da população total no ano de 2050 e a população
total dos países considerados desenvolvidos tenderá a decrescer dos 23%
actuais para 13% (FNUAP, 1992).
Sem descrever as profundas implicações que resultam da pressão
demográfica em termos ambientais, económicos, políticos, sociais e
culturais, importa, para já, pensar em alguns dos seus aspectos mais
significativos. Segundo as projeções do Relatório sobre a População Mundial
de 1992 elaborado pelas Nações Unidas, a manter-se essa evolução
demográfica, persiste a necessidade de aumentar em 56% a área de terreno
cultivável que os países "considerados em desenvolvimento" actualmente
dispõem: isto é, só para as necessidades de terrenos não agrícolas ter-se-á
que recorrer a 4,5 milhões de quilómetros quadrados de "habitat" da fauna
selvagem considerados para fins agrícolas. Dito de outro modo, cada pessoa
nos países em desenvolvimento terá possivelmente à sua disposição 11% de
1 (um) hectare de terra cultivável.
A destruição do ambiente é visível a diferentes níveis. Para essa averiguação
basta olharmos para o grau de destruição dos recursos renováveis até agora
considerados "ilimitados": água, terra, espécies vegetais e animais. A erosão
dos solos, a desertificação das zonas semi-áridas, a salinização das áreas
irrigadas e a poluição dos rios e dos mares são disso uma prova irrefutável
(SACHS, 1980). Acresce a essa realidade ambiental negativa, a poluição
atmosférica e hídrica, o sobre-aquecimento da terra, a destruição progressiva
da camada do ozono, a destruição das florestas e de milhares de outras
espécies vegetais e animais (WEINER, 1991).
72
O esgotamento e a erosão dos recursos naturais considerados "renováveis",
como é o caso da água e dos solos aráveis, são previsíveis nessas
projecções e sobretudo apontam para uma eventual catástrofe ecológica. Em
presença de um crescente agravamento da poluição atmosférica e hídrica,
da destruição progressiva da camada do ozono, do sobre-aquecimento
global do planeta Terra, das calamidades naturais que estão ocorrer nos
países mais industrializados e urbanizados, etc..., essas tendências
negativas desenvolvem-se, cada vez mais, com maior acuidade.
Não se pode analisar a destruição do ambiente em função exclusiva da
erosão e esgotamento dos recursos naturais. A lógica racional da sociedade
capitalista assente numa economia de produção e consumo de bens e
serviços efémeros, e a guerra que emerge em inúmeros países, estão a
contribuir enormemente para essa situação. O número de refugiados
internacionais é neste aspecto muito elucidativo. Para fugir à guerra ou à
miséria provocada por cataclismos naturais de uma economia depradadora,
percebe-se, de certa maneira, porque dos 2,8 milhões de refugiados em
1976, passou-se para 17,3 milhões em 1990. Com o agravamento da crise
económica e a proliferação dos conflitos bélicos à escala regional, o número
de refugiados tende a aumentar assustadoramente. Se juntarmos a esta
realidade o número de emigrantes clandestinos, depreende-se de como a
África, a América Latina, a Ásia e a África estão a tornar-se um laboratório
experimental migratório para outras regiões geográficas. Vivendo em
condições infra-humanas, sujeitam-se a emigrar para os países vizinhos, ou
em última análise para os EUA e a Europa ocidental, de modo a evitarem o
genocídio provocado pela guerra e a fome. Se tivermos, ainda, em linha de
conta a desintegração social e económica que subsiste nos países do leste
europeu que tinham enveredado pelo "socialismo real", os problemas das
73
migrações clandestinas assumem proporções alarmantes no continente
europeu. Acresce que os fenómenos migratórios resultam também da miséria
existencial que abunda numa parte significativa desses países. O número de
pobres que era de 944 milhões em 1970, segundo o relatório das Nações
Unidas já mencionado, subiu para 1.156 milhões em 1985 e na perspectiva
de outras fontes recentes esse número não pára de aumentar (PNUD,1994).
Em termos da sua situação geográfica, 273 milhões vivem na África, 204
milhões na América Latina e 737 milhões na Ásia.
É notória a intenção dos referidos relatórios em demonstrarem as incidências
negativas da pobreza nos países em desenvolvimento. Ora este panorama
não é muito brilhante nos países "considerados desenvolvidos". Segundo
estimativas recentes (Diário de Notícias, 1992), havia 53 milhões de pobres
na CEE numa população de 340 milhões, enquanto que nos EUA, para uma
população de 245 milhões, existiam 31,5 milhões de pobres. Este tipo de
pobreza embora possa ser considerado diferente daquela que ocorre nos
países em desenvolvimento, na medida em que podem usufruir de
educação, saúde, da segurança social e habitação num limiar de
sobrevivência mínima, ela revela-se fundamentalmente uma chaga social
que não pára de crescer e de se identificar com as causas e os efeitos
perversos do funcionamento normativo dos países capitalistas desenvolvidos
(PNUD, 1994).
Torna-se claro, cada vez mais, que a crise actual da sociedade capitalista e
do seu modelo de desenvolvimento não afeta exclusivamente os países em
vias de desenvolvimento. O desemprego e a marginalidade social, a
violência, a droga, o crime, a guerra, a xenofobia, o racismo e o etnocídio,
assim como a segregação social, também fazem parte do mundo "civilizado"
74
do ocidente.
Numa perspectiva sociológica, todos esses fenómenos resultam de um
conjunto de fatores cuja evolução tende a agravar a crise do modelo de
desenvolvimento da sociedade capitalista. Sem querer dar-lhes uma base
determinista, entre os mais importantes, sublinhe-se: a pressão demográfica;
a urbanização e burocratização das relações sociais e dos processos de
socialização dos indivíduos e grupos sociais; pobreza e desigualdade social;
nacionalismos e integrismos religiosos; anomia e desintegração social.
As manifestações sócio-culturais da pressão demográfica não se coadunam
com os pressupostos analíticos das teses malthusianas e darwinistas. A
espécie humana vê-se constrangida a lutar pela sobrevivência, utilizando
formas relacionais de tipo coletivo e individual alienantes. É uma luta
traduzida por uma racionalidade espaço-temporal mercantil, regulada, em
parte, por processos migratórios conflitantes, fomentadores de uma
segregação ecológica e social.
Porém, com base nas virtualidades explicativas dessas teses, nem a função
estruturante
da
racionalidade
económica,
nem
as
virtualidades
do
determinismo biológico da natureza humana têm impedido que o crescimento
da população mundial evolua de modo caótico e as excrecências
comportamentais
das
elites
governamentais
sejam
irracionalmente
competitivas.
Em contextos estruturantes da pobreza e da miséria e em situações
contingenciais ambientais adversas, é natural que as taxas de fecundidade e
75
de natalidade aumentem de forma desproporcionada. Na Europa Ocidental e
nos EUA passa-se um fenómeno inverso: as taxas de fecundidade e da
natalidade tendem para a estacionaridade. Esta realidade aponta para a
importante função da diversidade dos valores sócio-culturais, quase sempre
identificados com comportamentos humanos estandardizados no domínio da
procriação e reprodução da sua espécie.
Num outro plano, importa referir que os princípios e práticas do mimetismo
polarizado no sistema capitalista à escala universal tem gerado processos de
êxodo rural e
de
urbanização
desequilibrados.
O
desenvolvimento
discrepante dos sectores agrícola, industrial e terciário, para além de gerar
uma desigualdade social, económica, política e cultural de características
negativas, transformou os aglomerados urbanos num antro de miséria e de
marginalidade social. Destruindo-se as relações sociais comunitárias,
diminuindo-se as bases de coesão social, desintegrando-se os laços de
solidariedade social, criam-se as condições que fomentam um acréscimo
gigantesco das taxas de fecundidade e de natalidade. Como consequência, a
pressão demográfica nos grandes aglomerados urbanos desenvolve-se em
termos de uma dimensão, heterogeneidade e densidade populacionais que
conduzem à desintegração e à anomia social.
Uma das outras vertentes da pressão demográfica e do processo de
industrialização e urbanização das sociedades expressa-se em tipologias de
ordenamento do território e na utilização do solo de forma caótica e
desordenada. A distribuição e organização espacial das zonas de residência
e de trabalho, assim como das infraestruturas e equipamentos coletivos, não
se coadunam com uma organização social harmoniosa e, por outro lado,
transforma a cidade num amontoado caótico de cimento, vidro e ferro, na
76
qual se torna impossível viver.
O processo de urbanização das sociedades, ao mesmo tempo que induz à
transformação da matéria orgânica em matéria inorgânica (ou seja, através
da transformação dos elementos naturais em elementos de construção do
"habitat", fábricas, hipermercados estradas, infraestruturas e equipamentos
colectivos, etc.), traduz-se, por outro lado, numa organização social
perpassada por uma crise de identidade e de representatividade social. O
isolamento dos indivíduos e dos grupos no contexto da complexidade
organizacional dos grandes aglomerados urbanos assume proporções
inauditas. As relações sociais não se fazem numa base directa em situações
de co-presença física e visibilidade relacional, o que impossibilita a
construção social de diálogos baseados na fraternidade e na solidariedade.
Os indivíduo e os grupos, estando sós e sendo dependentes de um poder
dominante que lhes escapa, entram num processo de desintegração social.
Pode-se
compreender
esses
fenómenos
se
tivermos
presente
as
dificuldades de uma interacção social positiva e funcional em contextos
urbanos que atingiram uma grande dimensão, níveis de densidade e de
heterogeneidade populacionais altíssimas. Desse contexto, depreende-se as
contingências e os constrangimentos provindos do exercício burocrático da
representatividade formal para suprir as exigências funcionais de uma
sociedade, cada vez mais, complexa e sofisticada. A anomia e a
desintegração social são passíveis de observar tendo presente o peso da
burocratização e da centralização dos processos de regulação social.
A outra versão moderna da desintegração social e da anomia subsistem ao
77
nível das perdas de referência e de identidade social. Esta realidade é não
só perceptível no âmbito da especificidade das relações sociais corporizadas
na superficialidade e transitoriedade relacional nos contextos urbanos, mas
também ao nível da destruição progressiva das relações sociais baseadas no
interconhecimento e nos processos de aprendizagem social e de aculturação
que só podem ser dinamizados pelos pequenos grupos e as comunidades
locais (CHOMBART DE LAUWE, 1982).
Na ausência desses requisitos de organização social, formaram-se,
entretanto,
estruturas
burocráticas
gigantescas
que
decidem
anacronicamente do governo e da gestão das cidades. Simultaneamente, a
longiquidade espaço-temporal que persiste entre a sociedade global e os
indivíduos, entre o Estado, instituições, organizações, os grupos e indivíduos,
leva a que o sistema de representatividade formal de natureza burocrática e
centralista não permita uma socialização e sociabilidade positivas dos
indivíduos e dos grupos, razão pela qual os fenómenos de desintegração
social e de marginalidade social crescem em exponencial e certas
instituições e cientistas sociais reivindiquem uma maior participação dos
indivíduos nos mecanismos processuais de integração social (PNUD, 1993).
Desde que não haja uma participação e decisão dos indivíduos e grupos
sobre a governação das cidades, persiste um alheamento generalizado dos
mesmos sobre todas as contingências negativas que daí resultam. As
relações de identidade entre o que é do foro individual e colectivo não existe.
A interação entre os diferentes elementos humanos que constituem o
sistema urbano revela-se difícil de realizar, o que condiciona enormemente
as relações de interdependência e de complementaridade relacionadas com
as tarefas e funções do seu funcionamento global.
78
Um outro fator da crise do modelo de desenvolvimento capitalista emerge do
desemprego. Este, como todo o trabalho baseado num vínculo contratual
precário, exprime o estádio normativo de regulação das necessidades do
mercado de trabalho capitalista à escala da economia global. Corresponde,
estruturalmente, aos ditames do crescimento e progresso económico e está
articulado deterministicamente às vicissitudes da revolução tecnológica em
curso,
com
especial
incidência
na
informática,
micro-electrónica,
biotecnologia, telemática, robótica, indústria espacial, etc. Estes factores
desintegram o sistema de relações sócio-profissionais e das relações
industriais que perdurava há vários decénios, por via das restruturações
sistemáticas realizadas no âmbito das qualificações e divisão social do
trabalho do trabalho e, por outro lado, desenvolvem-se novos saberes
técnicos e humanos nos sectores terciário e industrial à escala universal, em
detrimento progressivo dos saberes e práticas relacionadas com a actividade
dos sector primário. No fundo, as bases estruturais e institucionais, do que foi
denominada a segunda revolução industrial, estão a desintegrar-se, dando
origem à formação de um mercado de trabalho segmentado numa regulação
sustentada por trabalhadores desqualificados, qualificados, desempregados
ou com vínculo contratual precário.
Em parte, enquanto consequência lógica do mundo dos desempregados que
pululam nos grandes aglomerados urbanos, a marginalidade e a segregação
social são também a expressão genuína da competição e da concorrência
desenfreada que decorrem de uma regulação social apoiada num
crescimento económico desenfreado. Esta racionalidade económica levada
ao extremo tem custos irreversíveis. Quem não consegue posicionar-se no
mercado do trabalho em situação privilegiada de concorrência ou de
79
vantagem competitiva, facilmente soçobrará na pobreza ou na exclusão
social. Quem não consegue adaptar-se aos padrões competitivos das
funções de produção e de consumo mercantil identificado com a lógica
normativa de capitalização humana, ver-se-á impossibilitado de apropriar-se
do conjunto de necessidades que lhe permitem sobreviver, o que geralmente
se traduz a evoluir para formas de existência pautadas pela marginalidade
social e, logicamente, a ser objecto de exclusão e segregação social
(PASSET, 1979).
Não podemos, porém, confinar os problemas da marginalidade e da
segregação social ao determinismo económico da sociedade capitalista.
Ambas as realidades são também o produto de modelos sócio-culturais e
políticos predominantes que se estruturam através de um processo social
fundamentado na inclusão e de exclusão de grupos sociais diferenciados e
contrastantes.
A alteridade sócio-cultural não é passível de socializar com base em
identidades
comunitárias
diferenciadas.
No
período
histórico
que
atravessamos, em que a interacção social no sistema social global se
objetiva com base nas capacidades de competição e de segregação social,
quando
as
comunidades
nacionais,
regionais
e
étnicas
se
vêem
incapacitadas de subsistir, utilizam as outras como bode expiatório das suas
situações negativas. A "guerra contra o outro" assume uma preponderância
capital na manutenção do poder por parte das classes dominantes e, por
outro lado, alimenta a coesão e a identidade das comunidades nacionais que
tendem a desintegrar-se socialmente. Nestas condições, apercebemo-nos
como certas elites que lideram os nacionalismos e os integrismos religiosos
socializam e controlam ideológica e politicamente os fenómenos da
80
marginalidade e da segregação social existentes nos seus países.
Os problemas da pobreza e da desigualdade social demonstram, de forma
inequívoca, a tragédia existencial humana actual (PNUD, 1994). Sem cair na
averiguação fácil da existência de "sub-espécies humanas" estratificadas por
níveis de vida abaixo do mínimo de subsistência vital, torna-se, no entanto,
pacífica a afirmação de que a grande maioria dos 4.000 milhões de seres
humanos dos países em vias de desenvolvimento estão submergidos pela
fome, a pobreza e a exclusão social. Em contrapartida, grande parte dos
1.000 milhões que existem nos países desenvolvidos são constrangidos a
levar uma vida quotidiana baseada na ostentação, produção e consumo de
bens e serviços efémeros.
Tendo em atenção os milhões de seres humanos que pululam no pântano do
genocídio, da miséria e da pobreza gerada nos grandes aglomerados
urbanos da África, da Ásia e da América Latina, há também que não
esquecer a outra versão da miséria e da pobreza urbana existente no
"eldorado" dos países do mundo capitalista considerado desenvolvido. Estes
últimos, muito embora demonstrem que têm "estatísticas positivas, com
indicadores sociais sobre o saneamento básico, políticas assistenciais nos
domínios da educação, saúde e segurança social estatais para a maioria da
população, estão, no entanto, mergulhados no asfalto do desemprego, da
indiferença e da exclusão social.
Um outro fenómeno crítico da modernidade do desenvolvimento capitalista à
escala mundial é visível na emergência dos movimentos sociais e guerras
regionais estruturados pelo nacionalismos e integrismos religiosos actuais. O
81
etnocídio, o racismo e a xenofobia são outras manifestações articuladas com
uma realidade socioeconómica, política e cultural que evolui no mesmo
sentido racional-instrumental capitalista.
Como primeira abordagem desses fenómenos, dir-se-ia que todos eles têm
causas lógicas comuns, se pensarmos nas consequências geradas pelo
desmembramento do "socialismo real" nos países do leste europeu e,
sobretudo, olharmos para o desemprego que afectam todos os estratos
sócio-profissionais clássicos na Europa Ocidental. Importa, por outro lado,
pensar as próprias consequências da fome e da pobreza que atravessam
certas regiões na África, América Latina e Ásia e as suas correlações com os
surtos migratórios e a segregação social existente entre as diferentes
identidades étnicas e nacionais.
A explicação mais plausível das suas causas não deve, não obstante, servir
para omitir a função negativa que assumem esses fenómenos. O
nacionalismo, o integrismo religioso, o racismo e a xenofobia, na medida em
que se apoiam em modelos sociais tendentes a estruturar-se numa
perspectiva unidimensional e segregacional negam, com facilidade, a
alteridade sócio-cultural, política, económica e religiosa a identidade dos
outros povos, etnias e comunidades que compõem as múltiplas sociedades
humanas do planeta Terra. As práticas humanas de cooperação e da
solidariedade inter-étnicas e inter-comunitárias dos povos e nações são
destruídas. Em alternativa, persiste a lógica de uma guerra imperialista
confinada a interesses económicos e políticos geo-estratégicos, mas
simultaneamente fundamentada no extermínio das diferenças sócio-culturais
que as outras comunidades étnicas personificam.
82
2. Características do modelo de desenvolvimento que funciona como
paradigma dominante
Genericamente, o conceito de desenvolvimento, situado nos parâmetros da
lógica do progresso e da razão, consubstancia-se na melhoria progressiva e
equilibrada do homem em termos de "bem-estar" económico, social, cultural
e político. Esta visão apoia-se na quantificação e comparação de um
conjunto de indicadores qualitativos específicos, considerados os mais
representativos para um dado período histórico do desenvolvimento. Assim,
quando se comparam o nível de desenvolvimento entre países, tem-se
presente os índices que especificam o produto nacional bruto, o produto
interno bruto, o rendimento "per capita", taxas de alfabetização, taxas de
mortalidade e natalidade, número de telefones e automóveis por habitante,
número de hospitais e médicos por habitante, etc...
O desenvolvimento, nestas circunstâncias, avalia-se em função de um "bemestar" instrumentalizado pela quantidade de bens e serviços que uma dada
sociedade pode usufruir. O conceito de "países desenvolvidos" e "países
subdesenvolvidos" ou ainda de "países em desenvolvimento" é concebido
em função dessa visão analítica.
Esta concepção histórica da evolução das sociedades traduz-se num modelo
de desenvolvimento que procura explicar o passado, em função do presente
e o devir harmónico da sociedade capitalista. As variáveis que estruturam o
modelo de desenvolvimento capitalista expressam a eliminação progressiva
da dependência do homem em relação ao poder divino no sentido da sua
transformação em uma entidade antropocêntrica. A base materialista da
83
produção de bens e serviços de características capitalistas provoca
progressivamente a separação do sagrado e do profano, ao mesmo tempo
que estrutura a independência e a autonomia dos indivíduos na esfera do
mercado e a sua adesão ideológica às normas e valores sócio-culturais
identificados com uma racionalidade económica baseada na maximização do
lucro.
O processo interactivo do progresso e da razão materializou-se também na
formação do "Welfare State" e no Estado-providência. Estes, conjugados
com acção da racionalidade económica mercantil aumentou os índices de
produção e consumo de saúde, educação e habitação, como inclusivé,
sancionaram as inovações e mudanças operadas no campo do trabalho, da
tecnologia e da ciência. Essas funções permitem que haja simultaneamente
um crescendo progressivo de produção e consumo de bens e serviços
múltiplos. Deste modo, o modelo de desenvolvimento do capitalismo satisfaz,
como sistema paradigmático, as necessidades básicas dos indivíduos e
grupos que compõem as sociedades actuais. Para tal basta que haja uma
repartição de rendimentos propiciadora de um consumo de um conjunto de
necessidades básicas padronizadas num conjunto típico de bens e serviços
circunscritos à alimentação, habitação, saúde, educação e transportes.
Esgotando-se esse patamar de necessidades padronizadas, o modelo de
desenvolvimento capitalista alarga e aprofunda a sua matriz do progresso e
da razão. Novas necessidades básicas são criadas e não admira que hoje se
corporizem no lazer, turismo, actividades lúdicas, jogos de guerra, espaços
livres, ambiente despoluído, etc... (PASSET, 1979).
Averiguando, no entanto, a realidade política, cultural, económica e social
que sustenta e reproduz esse modelo de desenvolvimento, deparamos com
84
grandes contradições e antagonismos.
Em primeiro lugar, assiste-se à desintegração das virtualidades positivas do
homem antropocêntrico capitalista. Este para além de ser um objecto
produtor e consumidor de bens e serviços, transformou-se basicamente
numa entidade depredadora e destruidora de si próprio e da natureza. Esta
contradição não somente alienou o homem das suas funções criativas
cruciais nos domínios da actividade política, cultural e social, mas sobretudo
transformou-o numa função competitiva e concorrencial de todos os outros
que com ele interagem às escalas local, regional, nacional e transnacional.
Em segundo lugar, as relações sociais capitalistas baseiam-se em funções
hierarquizadas, onde tarefas e funções, assim como o poder e a autoridade
obedecem a uma lógica de dominação. Indivíduos e grupos com tarefas,
funções, poder e autoridade sustentadas pela dominação e a exploração do
homem pelo homem, fomentam uma desigualdade social corporizada em
privilégios, rendimentos, propriedade, exercício do poder e apropriação de
riqueza diferenciada, etc... Essa exploração e dominação observa-se
fundamentalmente nas relações sócio-organizacionais entre empresários,
gestores e assalariados subalternos, na relações entre homem e mulher, nas
relações entre estratos sócio-profissionais, entre o Estado, indivíduos e
grupos que compõem a sociedade civil, etc..., e, quando nos situamos numa
escala geográfica universal, entre etnias, o Estado-Nação e instituições
transnacionais.
Em terceiro lugar, o sistema democrático representativo capitalista não
funciona em exclusiva sintonia com as virtualidades do mercado e da
85
liberdade humanas. A racionalidade
sociobiológica do ser
humano
"capitalista" e os predicados de regulação do mercado tão queridos de
Darwin e Malthus, como dos liberais modernos, não funcionam plenamente.
Por tais motivos, para suprir as insuficiências da integração e controlo social
subjacentes à dinâmica social das sociedades actuais, o Estado, indivíduos e
grupos recorrem a formas violentas e irracionais a fim de manterem o "status
quo".
Nestes termos, observamos que as relações sociais nos planos institucional
e organizacional são perpassadas por tipologias de exercício de poder
baseadas na dominação, na qual a participação, a decisão e a concepção
das actividades económica, política, cultural e social são arbitrariamente
assumidas e partilhadas, sem que se nos apercebamos do carácter
prescritivo e funcional das regras e normas que determinam o exercício da
autoridade hierárquica formal.
O exemplo do Estado, de instituições e organizações com vocações
repressivas, quando exercem as suas funções de socialização, são bem
patentes na forma insuficiente e arbitrária como controlam, integram e
sancionam todas as transgressões e potenciais desvios normativos
desenvolvidos pelos indivíduos e grupos em relação à ordem social vigente.
Finalmente, a expansão universal do capitalismo tornou-o mais complexo e
sofisticado. Como sistema social, as suas diferentes componentes quando
estão
em
interacção,
nem
sempre
funcionam
como
função
de
complementaridade e interdependência, de forma a construir sínteses
positivas. A sua expansão geográfica revela-se demasiado abstracta e
86
formal.
A longiquidade espaço-temporal embora seja mediatizada por uma interação
social personificada pelas novas tecnologias e poder comunicacional dos
"mass media", não tem evitado a artificialidade e a contradição nas relações
sociais entre as diferentes partes que constituem a sociedade global. Por
outro lado, as características competitivas do "homo economicus" atingiu um
grande paroxismo. A sobrevivência da espécie humana persiste, mas à custa
de uma socialização muito difícil. Os exemplos são elucidativos. Incapazes
de se inserirem nos grupos, colectividades e sociedade, os indivíduos
evoluem para múltiplas formas de morte e de desintegração social:
desemprego, guerra, pobreza, violência, crime, droga, prostituição, etc.
Desde que o desenvolvimento capitalista erigiu o homem em entidade
antropocêntrica, o progresso e a razão associados à racionalidade
económica assumiram-se como função de espoliação e de transformação da
natureza de forma abrupta e irreversível (WEINER, 1991). O capitalismo ao
transformar o homem em objecto de produção e de consumo de
mercadorias, transformou a natureza num espaço vital de parasitismo, na
qual os recursos naturais tornaram-se uma fonte inesgotável dos desígnios
de uma sociedade insaciável.
Como consequência, o homem deixou progressivamente os últimos laços de
identidade que ainda mantinha com a natureza. Em vez de adaptar-se, reagir
e regular as leis da natureza numa perspectiva de equilíbrio ecossistémico,
transforma e destrói a unidade da diversidade criativa e dialógica dos
diferentes seres que compõem o universo. Em função dos parâmetros
87
determinísticos do modelo de desenvolvimento capitalista, a natureza em
geral e todas as espécies vegetais e animais, em particular, são
constrangidos a evoluir dentro dos parâmetros totalitários da racionalidade
económica capitalista. Esta tem um objectivo central: transformação da
matéria orgânica em matéria inorgânica, produzir, distribuir e consumir
mercadorias.
O que hoje os políticos, cientistas, profetas e ideólogos da salvação do
impossível denominam de "mau ambiente", decorre da sua visão apocalíptica
e reformista. Facilmente chegam à conclusão de que se caminha para uma
catástrofe ecológica, caso a sociedade não consiga inverter os efeitos da
crise ambiental polarizada à volta do efeito estufa, da degradação da camada
do ozono, da extinção da biodiversidade e do esgotamento e poluição dos
recursos naturais (ROYAL, 1992). Está-se perante uma visão em que a
degradação do ambiente é algo que pode ser objecto de reparação,
regulação e controlo,
bastando para tal reconstituir
os equilíbrios
ecossistémicos que, entretanto, foram destruídos.
Em presença de tais terapêuticas, tantas vezes testadas e frustradas, o
mínimo que delas se pode depreender é a sua inoperância, já que após
sucessivas aplicações, tudo isso não consegue evitar a mesma tendência
suicidária.
Mais do que encontrar nos sintomas da crise ecológica uma forma airosa
ideológica de omitir as causas que estão na origem da destruição do planeta
Terra, torna-se necessário inferir que os problemas do ambiente não
decorrem de causas exteriores à sociedade capitalista e que, desse modo,
88
há que situar toda a análise na lógica normativa do desenvolvimento do
capitalismo e, mais concretamente, na sua esfera de actividade económica
mercantil (PASSET, 1992).
Objectiva e subjectivamente, o que importa referir radica no sentido da
transposição mecânica que o capitalismo pratica, ao transformar a natureza
num objecto de dominação e de hierarquização idêntico à ordem social que
estrutura os processos de socialização e de regulação das relações sociais
da
sociedade
capitalista
(BOOKCHIN,
1989).
A
dominação
e
a
hierarquização relacional que a espécie humana mantém com a natureza é
modelada e projectada pelas exigências e contigências de uma a
racionalidade mercantil concorrencial e competitiva. Recursos humanos e
naturais fazem parte de uma lógica indissociável, em que meios e fins, se
integram na consecução dos mesmos objectivos (SACHS, 1986). Não
admira, portanto, que a ordem social capitalista transposta para o campo das
relações do homem com a natureza resultem em transformações e
configurações espaciais e físicas enquadradas numa determinada utilização
do solo e do ordenamento do território e que estes, por sua vez,
desenvolvam a crise ambiental e a destruição progressiva dos recursos
naturais ainda disponíveis (PELT, 1991).
Esta evolução tem, no entanto, custos, limites físicos e sociais. A natureza
não
pode
ser
modelada
impunemente
através
de
uma
entidade
antropocêntrica orientada pelos objectivos imperativos do progresso e da
razão que estão identificados com a racionalidade económica capitalista.
Mantendo-se
a
irreversibilidade
deste
modelo
de
desenvolvimento,
assistiremos inevitavelmente a um crescendo progressivo da deterioração
ambiental a todos os níveis.
89
Não se pode, porém, racionar como se não persistissem interdependências e
complementaridades entre os fenómenos ambientais e os que relevam da
realidade sócio-organizacional. Nesse aspecto, assim como somos capazes
de observar os efeitos negativos que relevam da ordem social sobre a
natureza, interessa, por outro lado, também perceber as incidências que a
própria destruição do ambiente tem sobre o modelo sócio-organizacional
vigente.
A utilização e a apropriação do solo e as suas articulações com o
ordenamento do território, assim como a poluição hídrica e atmosférica,
como já referimos, estão bem patentes no processo de urbanização das
sociedades.
As configurações sociais e físicas da urbanização traduzem-se num aumento
da competitividade e da concorrência interpessoais e intergrupais, dando azo
à construção de tipologias de interacção social padronizadas em formas
específicas de apropriação e utilização do espaço vital que é imprescindível
à vida quotidiana dos indivíduos e colectividades. Essa interacção social
torna-se propícia à construção de territórios segregacionais que se
identificam com a capacidade competitiva dos grupos e indivíduos e que, por
sua vez, permitem a dinamização de uma acção individual colectiva
orientada pela força constrangedora da sua representatividades social no
contexto da sociedade global.
Por outro lado, a complexidade organizacional resultante das configurações
físicas e sociais que emergem da regulação do mercado e do Estado
90
constrange os sistemas de decisão e de controlo da sociedade civil a
evoluirem para uma crescente burocratização e centralização. As relações
entre os diferentes poderes instituídos, os indivíduos, as comunidades locais
e
regionais,
as
sociedades
nacionais
e
transnacionais
revelam-se
progressivamente conflituais. O paradoxo é no mínimo contraproducente. É
no mínimo contraditório que um sistema global, cada vez mais hegemónico e
totalitário, crie instituições supra-nacionais, viva vicissitudes de crise
ambiental de natureza universal e, na ocorrência, não consiga legitimar de
forma idónea e funcional o seu sistema político.
Finalmente, a regulação e controlo das complementaridades e das
interdependências físicas e sociais que subsistem à escala universal
revelam-se difíceis de realizar pela entidade Estado-Nação. Em presença da
destruição do ambiente gerado pela lógica do desenvolvimento capitalista, o
Estado-Nação, enquanto entidade fiscalizadora dos recursos naturais e, por
outro lado, gestor e planificador das políticas económicas, revela-se
impotente perante a acção estruturante das economias subterrâneas de
âmbito nacional e transnacional.
Este aspecto revela-nos que o Estado-Nação e as comunidades nacionais,
regionais e locais não têm capacidade política e económica suficiente para
adaptarem o ambiente à sua identidade sócio-cultural e fronteiras
específicas, conseguindo um controlo eficiente na utilização e ordenamento
dos seus espaços físico e social. No momento histórico actual verifica-se que
a regulação do ambiente não é passível de gerir dentro dos limites das
fronteiras territoriais, institucionais e administrativas do Estado-Nação
clássico. Este último não é funcional e idóneo, não tem legitimidade nem
poder suficiente para inverter o processo de destruição da natureza.
91
Depreende-se, por outro lado, que o Estado circunscrito ao espaço nacional
tem extrema dificuldade em controlar atempadamente as variáveis sócioculturais, económicas e políticas em que se apoia o actual desenvolvimento
capitalista, de forma a poder inverter os factores relacionais humanos que
originam a destruição do ambiente. Nesta assunção, a atomização da acção
social das comunidades locais, regionais e nacionais só é explicável pela
crescente subalternização e dependência hierárquica que mantêm em
relação Estado supra-nacional emergente. O indivíduo, por outro lado, ao ser
transformado num puro objecto de produção e consumo de mercadorias com
simbologia e proveniência universal, revela-se, cada vez mais, uma entidade
amorfa e alienada, o que o leva a comportar-se como uma entidade anómica
desprovida de sentido, de participação e decisão em todos os níveis
espaciais em que se encontra inserido.
Em presença desta nova configuração mundial estabelecida entre um Estado
totalitário e o crescente amorfismo da capacidade das comunidades
nacionais, regionais e locais, não é de admirar que as grandes organizações
supra-nacionais assumam a liderança dos processos de transformação,
controlo e regulação do sistema social global, a fim de inverter o colapso
apocalíptico da natureza e a destruição do ambiente provocado pelo
desenvolvimento capitalista. O exemplo dos últimos relatórios do Banco
Mundial e a Eco-92 do Brasil, organizado sob os auspícios da ONU, é bem a
demonstração da impossibilidade e fragilidade da acção do Estado, das
instituições, organizações e indivíduos que se inserem nessas escalas sócioespaciais.
3. Potencialidades de uma ecologia social anarquista face à crise do modelo
92
de desenvolvimento capitalista
Como verificámos nos capítulos precedentes, uma parte substancial dos
cientistas que abordam as relações do homem com o ambiente, omitem o
carácter indissolúvel dessa relação no quadro de categorias conceptuais
sistémicas. Assim, tanto encontramos análises que vão no sentido de uma
naturalização absoluta e conservadora do homem, referenciando este como
uma entidade exclusivamente biológica e natural, perdendo-se dessa forma a
sua essência criativa sócio-cultural que se manifesta na capacidade e
possibilidade de construir modelos de organização social diferentes daqueles
que são próprios às outras espécies animais e vegetais. (MALTHUS, s/d).
Num
sentido
oposto,
encontramos
análises
que
estipulam
deterministicamente a autonomia da espécie humana em relação ao seu
ambiente, transformando-a numa espécie de sociologismo orgânico que se
explica de forma específica e autónoma, sem para tal sujeitar-se às
contingências da interacção e interdependência com o meio ambiente
(DURKHEIM, 1975)
É facto que não podemos prescindir de analisar a contribuição de alguns
autores que ultrapassaram esta visão dicotómica das articulações e
integrações dos espaços social e físico. Desde a década de 1920 que um
grupo de investigadores da universidade de Chicago observou e analisou a
influência do ambiente sobre os comportamentos humanos, referenciando as
formas e conteúdos das configurações espaciais físicas e sociais que
decorriam de uma matriz social diversificada corporizada na acção colectiva
das múltiplas comunidades e etnias, com identidades sócio-culturais e
capacidades concorrenciais e segregacionais específicas. Robert Park,
Ernest Burgess, Louis Wirth e outros puderam, desse modo, enveredar por
93
uma abordagem sociológica que permitia percepcionar e explicar o homem e
a natureza numa perspectiva ecológica e humana (PARK, BURGESS,
McKENZIE, 1967).
Na continuidade desta linha de pensamento científico, hoje, persiste uma
abordagem mais sistematizada e enquadrada na crise ecológica da
sociedade capitalista ao ponto de alguns investigadores contemporâneos, a
partir da década de 1970, desenvolverem um conjunto de postulados
teóricos conducentes à criação de uma disciplina denominada Sociologia
Ambiental e, inclusivé, com intenções de a transformarem num novo
paradigma ecológico (CATTON e DUNLAP, 1980).
Estes trabalhos científicos têm indiscutivelmente um grande mérito. Face à
crise interpretativa e explicativa dos múltiplos fenómenos relacionados com
ambiente, eles tentam averiguar, de forma pertinente, os efeitos perversos
mais representativos que emergem da actual crise ecológica do modelo de
desenvolvimento capitalista. As suas análises pecam, no entanto, por uma
série de limitações e contradições. Circunscrever os problemas da crise
ecológica a uma racionalidade populacional e humana, de forma alguma
pode-nos permitir culpabilizar e responsabilizar a espécie humana, os grupos
e os indivíduos como um todo identitário e homogéneo na sua condiçãofunção de depredadora do equilíbrio ecossistémico. A acção colectiva e
individual não pode ser analisada fora do tipo de sociedade em que elas se
inscrevem. A ordem social capitalista, com as suas estruturas e modelos
institucionalizados de cultura normativa, só legitima relações sociais
hierárquicas e de dominação que se identificam com as funções de produção
e de consumo de bens e serviços e, logicamente, com o consequente
agravamento da crise ambiental.
94
Por estas razões, essas análises são redutoras. Nestas circunstâncias,
torna-se impossível omitir as causas sócio-culturais, políticas e económicas
que corporizam o modelo de desenvolvimento capitalista e, logicamente, a
sua função estruturante na modelação das estruturas sociais hierarquizadas
e de dominação que se traduzem num conjunto de regras e normas
tipificadas por comportamentos humanos que, em última instância,
determinam os seus padrões de interacção com a natureza. O ambiente é o
resultado desse processo interactivo.
Partindo desta perspectiva, observa-se que as contradições e antagonismos
subsistentes residem no modelo de produção e de consumo de bens e
serviços que acompanha a evolução da racionalidade económica capitalista.
Esta é perpassada pela concorrência e competição mercantil e regulada
socialmente por estruturas e relações sociais pautadas pela opressão e
exploração do homem pelo homem. A personificação dessa realidade é
averiguável pela condição-função de classes sociais, estratos sociais, etnias
e castas hierarquizadas e estratificadas por escalas de rendimento, prestígio
social, poder e posse de riqueza, como também pelas relações sociais de
âmbito mais geral personificadas por uma condição/função de nível etário
(velho/jovem), sexual (homem/mulher), e social (empregado/desempregado),
etc ...
Como não se pode percepcionar a crise do ambiente e da sociedade
exclusivamente a partir de uma visão ecológica naturalista, também não nos
parece possível fazer o mesmo através de análises centradas num
sociologismo com os seus efeitos perversos e disfuncionais.
95
Em relação ao pensamento de outros autores procura-se associar a crise do
ambiente e da sociedade a partir das características estruturantes da
revolução tecnológica em curso e a natureza da pressão demográfica
(FNUAP, 1992). Segundo estes, para superar a actual crise social e
ecológica, bastaria reestruturar as tecnologias e adaptá-las ao meio
ambiente de modo a torná-las menos depredadoras dos recursos naturais e
menos poluidoras da biosfera. Se possível, elas deveriam não causar tantas
mortes através das diversas guerras regionais e locais e, inclusivé, deveriam
adaptar-se a funções circunscritas à saúde e educação e, sobretudo,
fortalecer e aperfeiçoar a sua utilização sistemática em métodos científicos
anti-concepcionais, de forma a inverterem e/ou estacionarem o surto de
crescimento demográfico, miséria e a fome que ocorre na generalidade dos
países do hemisfério Sul.
Esta hipótese científico-tecnicista que pretende superar as excrecências
populacionais mais significativas da crise do modelo de desenvolvimento da
sociedade capitalista à escala mundial é, muitas vezes, confrontada outras
que têm menor representatividade social: a naturalista-conservadora e a ecotecnocrática. A primeira procura solucionar a crise do modelo de
desenvolvimento capitalista, com um retorno às configurações sóciohistóricas do passado, tentando fazer tábua rasa da historicidade dos
construídos sociais que foram estruturados por uma matriz sócio-cultural
secular. A segunda procura transformar o homem antropocêntrico numa
categoria divina semelhante ao poder das máquinas e dos deuses.
Estamos, neste caso, a pensar o "homem" como uma realidade omnipotente
e omnisciente, com capacidades e possibilidades ilimitadas de inovação e de
96
mudança em todos os aspectos da vida social e humana. Os defensores da
sociobiologia dão-nos algumas pistas nos campos da engenharia genética e
social (BOOKCHIN, 1990).
Todas essas perspectivas são redutoras e enfermam de um conjunto de
contradições.
A
visão
naturalista-conservadora,
que
é
actualmente
personificada pela maioria dos grupos ecologistas, esquece que o homem
enquanto entidade auto-consciente e auto-reflexiva evolui num processo
histórico, da qual é impossível dissociar o presente do passado e do futuro.
Todo esse processo é um elo com laços contínuos e descontínuos. Nesta
dimensão, só pode ser analisado e interpretado como um fenómeno
estruturado por factores de natureza reversível e irreversível.
A visão eco-tecnocrática pensa que é possível re-equacionar a relação do
homem com a natureza através de uma função ilimitada do poderio dos
meios técnicos e científicos, atribuindo-se um poder diabólico à espécie
humana, como se esta pudesse assumir um domínio absoluto e arbitrário
sobre si, sobre as outras espécies e própria natureza (PASSET, 1979). Nesta
perspectiva,
personificado
poderíamos
por
uma
até
pensar
espécie
num
humana
"admirável
mundo
novo"
modelada
geneticamente,
adquirindo, posteriormente, ela mesmo uma capacidade e possibilidade de
criar e modelar a natureza à sua imagem e semelhança.
Face ao actual cenário da crise do modelo de desenvolvimento capitalista
não se vislumbra que o pragmatismo conjuntural das políticas económicas
dos estados, nem a racionalidade económica do mercado capitalista, possam
inverter ou superar essa realidade. Por outro lado, manifestamente, todos os
97
modelos analíticos, que se identificam científica e ideologicamente com o
paradigma explicativo dominante, não conseguem interpretar de forma
eficiente e coerente a crise que atravessamos, de forma a que se possa
eventualmente verificar remediar algumas das contradições e antagonismos
da sociedade capitalista.
Tendo presente o legado histórico do pensamento e da acção social
emancipalista, em face dos problemas que estamos a presenciar à escala
mundial, surge-nos um dilema ambiental e social de proporções gravíssimas.
Neste contexto, a ecologia social de características anarquistas tem um
conjunto de virtualidades que urge referenciar e potenciar nas nossas
sociedades.
Mais do que inverter a lógica de evolução do sistema social global, importa,
desde já, referir que a espécie humana é, acima de tudo, uma entidade que
evolui através de um processo histórico pautado pela estruturação de uma
auto-consciência progressiva e que, em função das suas capacidades e
possibilidades ontológicas, adopta modelos de auto-governação e de autoorganização que a pode racionalmente diferenciar das outras espécies
vegetais e animais. É nesta especificidade estrutural ontológica que
podemos compreender, em grande parte, a sua evolução gregária no sentido
da construção da sociedade, passando de modelos sociais simples para
modelos sociais complexos. Os pressupostos da socialização e da
sociabilidade humana, nessa assunção, só foram possíveis de concretizar na
medida em que o ser humano conseguiu articular-se com a natureza de uma
forma dialógica.
98
Com base nestes princípios básicos, facilmente chegamos à conclusão que
as relações do homem com a natureza não são deduzíveis de meras
reacções adaptativas contingenciais impostas pelo poder inerente à
natureza. A relação do homem com a natureza, neste sentido, não pode
apoiar-se numa visão restritiva circunscrita às necessidades da sua
sobrevivência material. Enquanto elemento da natureza que interage com
milhões de seres vegetais e animais, o homem só pode partilhar e viver
nessa mesma natureza como parte de um todo indissolúvel ecossistémico.
Assim sendo, esse imperativo crucial só é passível de realizar através da
transformação do homem numa entidade auto-consciente e humanizada,
com a capacidade virtual e real de construir um modelo sócio-organizacional
identificado com a sua essência humanista e emancipalista, alicerçada em
relações sociais pautados pela fraternidade e a solidariedade.
Nesta perspectiva, torna-se impossível pensar a ecologia sem alargar a sua
dimensão fenomenal ao quadro epistemológico e metodológico da sociedade
global em que persistimos. Na estrita medida em que as relações do homem
com a natureza são mediatizadas por relações de tipo reflexivo e
organizacional, a ecologia, em última instância, é e só pode ser de natureza
social.
Integrando-me no princípio tantas vezes já demonstrado de que é possível
racionar e agir de uma maneira radicalmente diferente a que estamos
habituados, a tragédia da crise social e ecológica que vivemos é passível de
ser superada. Neste sentido, para tornar operacional o conceito de ecologia
social, enquanto fenómeno de auto-consciência, de auto-governação e de
auto-organização do ser humano, somos constrangidos à admissibilidade da
exigência de uma transformação radical da sociedade em que persistimos
99
(KROPOTKINE,1906; BOOKCHIN,1976). Essa transformação radical da
sociedade capitalista à escala universal implica a desestruturação da
organização social, política, cultural e económica baseada em relações
sociais hierarquizadas e na dominação. Ela passará, ainda, por uma
redefinição radical do homem em relação à natureza, o que implica a criação
e a dinamização de novos padrões de interacção social, tipificados por
comportamentos humanos conducentes à manutenção e regulação de um
novo equilíbrio ecossistémico assente na biodiversidade das diferentes
espécies animais e vegetais (BOOKCHIN, 1976).
De maneira a dar forma e conteúdo a essa exigência de transformação
radical da sociedade capitalista e, por conseguinte, do seu modelo de
desenvolvimento, o projecto de sociedade de ecologia social anarquista deve
apoiar-se essencialmente na criação de eco-comunidades às escalas local,
regional, nacional e transnacional. A integração e a articulação dessas
realidades singulares estruturar-se-ão num sistema global de relações
sociais fraternas e solidárias através de uma rede orgânica coordenada e
regulada por laços federativos e confederais à escala universal. É uma
alternativa de sociedade que supera os antagonismos e contradições da
exploração e opressão capitalista, mas que também supera as causas e os
efeitos perversos de um conjunto de factores: centralização, burocratização,
concentração e complexidade organizacional e social; inexistência de
participação e de decisão dos indivíduos e grupos nas colectividades e
sociedade; desintegração e anomia social.
O quadro epistemológico e metodológico da ecologia social tem as suas
raízes históricas nos princípios e práticas do anarquismo. Essa plausibilidade
é pacífica de demonstrar através dos indícios de certas experiências
100
históricas já realizadas (Comuna de Paris- 1871, Revolução Russa-19171921, Guerra Civil em Espanha-1936-1939, etc...) como, ainda, é
personificada pelas obras de alguns autores anarquistas mais emblemáticos:
Proudhon, Bakunine, Kroptokine, Malatesta e, modernamente, Murray
Bookchin. Hoje, a ecologia social baseada nos princípios e práticas
anarquistas, que tem sido analisada e dinamizada desde o século XIX,
revela-se reforçada nas suas potencialidades históricas, nos domínios
científico e social, a partir de várias dimensões.
Em primeiro lugar, a dicotomia que subsiste entre a cidade e o campo
chegou ao extremo de um paroxismo sem fim. As cidades, enquanto
construídos sociais gigantescos, transformaram-se progressivamente em
objectos
de
desintegração
e
segregação
social,
de
violência,
de
marginalidade social e alienação. Por outro lado, revelam-se um mundo de
miséria e de promiscuidade física e social, onde pessoas, objectos, resíduos
sólidos, líquidos e gasosos se confundem e atrofiam num labirinto que
caminha inexoravelmente para uma catástrofe ecológica (MUMFORD, 1982).
Perante
o
seu
gigantismo,
complexidade
sócio-organizacional
e
irreversibilidade destruidora dos aglomerados urbanos, os habitantes que
neles vivem, estando desprovidos do exercício de uma cidadania plena, não
participam, não concebem, nem planeiam, nem decidem sobre o governo e a
gestão das suas cidades.
Para a ecologia social anarquista impõe-se criar as condições sócioorganizacionais que possibilitem extinguir progressivamente os atuais
aglomerados urbanos, de forma a tornar compatíveis as articulações e
regulações da organização dos espaços físico e social e, por conseguinte,
viabilizar as hipóteses de construção de um equilíbrio harmonioso entre o
101
homem e a natureza e permitir o restabelecimento da biodiversidade
ecossistémica.
As
cidades
devem
configurar-se
em
comunidades
populacionais geríveis no sentido da sua auto-governação e autoorganização. Quer em relação aos equipamentos colectivos, quer no tocante
a infra-estruturas, produção e distribuição de bens e serviços, etc..., sem
exceção, devem ser objecto de uma auto-regulação confinada à soberania
do agregado populacional urbano. Todos os aspectos económicos, sócioculturais e políticos estão integrados nesse processo de modo harmonioso,
estando os habitantes, das respectivas comunidades urbanas, dotados de
uma ação social inteligível e construtiva. Acima de tudo, ela é soberana em
todos os aspectos relacionados com a decisão e a participação nas múltiplas
funções e tarefas que estão envolvidas na cidadania urbana.
Essas comunidades urbanas não podem atingir uma dimensão populacional
que ponha em causa a soberania dos seus habitantes. Os princípios e as
práticas da democracia directa, implicam que as relações sociais sejam
visíveis e directas e os pressupostos relacionais de toda a organização social
não se coadunam com funções e tarefas assentes na hierarquia de uma
hipotética autoridade formal. O poder de decisão sobre toda a governação e
gestão das cidades está nas mãos dos habitantes da cidade. Indivíduos e
grupos interagem no sentido da sua liberdade específica, tendo sempre
presente que existe a liberdade dos outros e que as próprias comunidades
urbanas livres são a sua síntese genuína. As relações sociais informais
atravessam
todo
o
tecido
social
urbano,
submetendo
as
funções
coordenação e regulação de tipo formal a uma reversibilidade e rotatividade
sistemática.
Neste aspecto, certas virtualidades intrínsecas do campo que ainda
102
perduram, pode-nos servir de exemplo. Para tal, basta observá-lo como
espaço potencial de recursos naturais e, por outro, como modelo hipotético
de organização social estruturado por relações e interacções sociais
baseadas no interconhecimento, na concepção, decisão e participação das
pessoas no quadro da sua vida quotidiana e comunitária. Isso, no entanto,
não obsta a que a actual realidade sócio-organizacional, económica e política
do espaço rural tenha também que sofrer uma transformação radical.
Com virtualidades específicas próprias, o espaço rural deve ser concebido e
construído num sentido sócio-organizacional autónomo e equilibrado.
Enquanto contexto particular inserido numa realidade sócio-organizacional
global só pode subsistir numa base de complementaridade e de
interdependência com o espaço urbano. As comunidades rurais não podem
ser o prolongamento lógico da estruturação unidimensional imposta pela
urbanização capitalista. Na medida em que as comunidades rurais tem
menor complexidade sócio-organizacional, só nesse capítulo se pode
diferenciar das comunidades urbanas. A auto-suficiência económica, sóciocultural e política traduzir-se-á inevitavelmente numa realidade semelhante
àquelas que se desenvolvem nos contextos considerados urbanos.
Em segundo lugar, a oposição que subsiste entre o Estado e as diferentes
comunidades urbanas e rurais deriva de um sistema hierárquico centralizado
e burocratizado. São relações de coordenação e de controlo dos indivíduos e
das
colectividades
legitimadas
pelo
uso
da
função
repressiva
da
jurisprudência e da coação física das instituições militar e policial.
Simultaneamente, a própria manutenção do Estado implica que o mesmo
exerça uma espoliação sistemática dos recursos humanos naturais,
financeiros e humanos que pertencem, em geral, à sociedade civil, às
103
comunidades locais e regionais e, particularmente, aos indivíduos.
O Estado, para além disso, transformou-se num aparelho burocratizado e
totalitário através das suas funções de representatividade social e de
autoridade formal, no exercício tutelar das actividades políticas, sócioculturais e económicas. Esse facto, levou-o a distanciar-se e a oprimir a
sociedade civil que "legitimamente" dirige e representa. Tornou-se inútil e
disfuncional, mas simultaneamente demasiado perigoso, na medida em que
mantém nas suas mãos poderes discricionários absolutos que resultam na
utilização massiva de meios tecnológicos e militares sofisticados. As guerras
fomentadas pelos estados levam à destruição irracional de recursos
humanos e naturais. Elas atingem proporções inauditas, ao ponto de
revelarem-se catastróficas para a sobrevivência da própria humanidade.
Tudo isso é explicável, segundo aqueles que defendem a perpetuação do
Estado, porque os indivíduos e as respectivas comunidades não são
capazes de se auto-organizarem e auto-governarem. No sentido da
perspectiva de Hobbes, o homem transformar-se-ia em lobo do próprio
homem. Na ocorrência, os indivíduos e os grupos criaram e desenvolveram o
Estado.
É no mínimo uma posição que não se coaduna com a realidade. Hoje, os
fenómenos de desintegração e marginalidade social são genuinamente
efeitos perversos de causas que residem na função e acção do Estado.
Olhe-se para o exemplo da droga e da violência que perpassam as
sociedades actuais. A polícia, os tribunais, os serviços de saúde e educação
actuam no sentido de eliminarem e controlarem esses "flagelos" da
104
sociedade. No mínimo são medidas aberrantes para um Estado e uma
sociedade que funciona nos parâmetros da lógica da racionalidade mercantil.
Se a droga e o crime são objectos de compra e venda deduzida da liberdade
dos indivíduos no espaço do mercado. Se os mesmos estão em consonância
estreita com a racionalidade dos meios e dos fins para se obterem lucros,
não se compreende porque é que o Estado e as suas instituições são
chamados a intervir nesse processo.
No fundo, a função e a acção do Estado confina-se a controlar e a reprimir
indivíduos e grupos que não pensam, não decidem, nem reflectem sobre as
suas vidas em termos autónomos e livres. O que o Estado controla e reprime
são indivíduos e grupos amputados de uma motivação assente em princípios
e práticas fundamentados na liberdade, fraternidade e na solidariedade. No
sentido amplo, a plausibilidade da erradicação hipotética da droga e do
crime, passa previamente pela destruição das suas causas: o Estado.
Em oposição a essa realidade estatal, as comunidades e colectividades de
âmbito local e regional têm capacidades e possibilidades de autoorganização e de auto-governação superiores ao Estado. São entidades
capazes de reflectir e organizar os recursos naturais e os recursos humanos
com maior facilidade (CASTORIADIS, 1990).
Com relações sociais baseadas no interconhecimento e uma identidade com
o meio ambiente, torna-se possível produzir, distribuir e consumir bens e
serviços em termos harmoniosos. Todas as relações internas e externas
dinamizadas pelas diferentes colectividades devem ser pautadas com base
na reciprocidade e igualdade, extinguindo-se as razões da trocas baseadas
105
no lucro, na opressão e exploração do homem pelo homem. Nesta assunção,
pode-se prescindir do Estado e de outras instituições, na estrita medida que
à escala espacial local, regional, nacional e transnacional, os indivíduos,
grupos e colectividades diferenciadas assumiam uma soberania plena numa
federação universal de povos e etnias.
Em terceiro lugar, os modelos de produção e de consumo centrados nos
sectores industrial e terciário tendem a destruir progressivamente as
virtualidades reais do sector agrícola e, simultaneamente, desenvolvem
assustadoramente a destruição do meio ambiente e, naturalmente, a
desintegração do tecido social através da marginalidade social e do
desemprego.
Nunca é
demais referir
que
as causas dessa evolução
radicam
essencialmente no modelo de desenvolvimento capitalista apoiado numa
racionalidade económica que se alimenta de uma competição e de uma
concorrência mercantil desenfreada. Esta lógica normativa só pode manterse com a produção e o consumo gigantesco de bens e serviços.
No entanto, o crescendo progressivo desse processo chegou a um
paroxismo tal que o homem, enquanto entidade produtora e consumidora de
objectos, destruiu milhares de espécies, esgotou os recursos naturais,
transformou a matéria orgânica em matéria inorgânica de forma absurda e
está, simultaneamente, a auto-destruir-se como ser humano. O risco é,
portanto, duplo. Destrói-se a Terra e os seres que nela vivem e desintegramse as estruturas sociais que compõem as sociedades. O retorno a um
equilíbrio entre os sectores agrícola, industrial e terciário implica que os
106
modelos de produção e de consumo deixem de estar orientados e
submetidos aos imperativos do lucro, da concorrência e da competição entre
os seres humanos (GORZ, 1991). O mercado e o Estado funcionam como
entidades externas dos interesses e motivações dos indivíduos e grupos que
compõem a sociedade capitalista. São eles que decidem, em última
instância, como se produz, consome e distribui a riqueza. Ou seja, quem
trabalha, quem não trabalha. Quem é rico ou pobre. Quem detém poder ou
não.
Para os indivíduos e grupos que vivem nas actuais sociedades, torna-se
imperioso extinguir as funções e as estruturas de socialização e de
sociabilidade dos indivíduos e grupos, cuja proveniência decorre da
racionalidade económica capitalista e do Estado. A autogestão da produção,
da distribuição e o consumo de bens e serviços, estritamente identificada
com as necessidades soberanas dos indivíduos e colectividades inseridas
nos diferentes espaços locais e regionais à escala universal, revela-se,
nestas condições, cada vez mais, pertinente. A participação e a decisão dos
indivíduos e grupos em todo o processo autogestionário desenvolve-se
harmoniosamente. A democracia directa impõe-se como modelo relacional
básico, dando lugar a que todos os indivíduos e grupos tenham uma
participação e decisão efectiva em todos os aspectos do funcionamento
interno e externo das colectividades em que estão inseridos. A autogestão
torna-se uma função pacífica de socializar entre todos os membros das
diferentes colectividades, na medida em que a sua essência intrínseca apela
à criatividade, à espontaneidade, à liberdade e responsabilidade de todos os
indivíduos. Por outro lado, a autogestão de características anarquistas induz
a que persista uma identidade real entre o produtor, o consumidor e o
homem trabalhador.
107
Como consequência lógica dessas hipóteses, haverá que olhar para a
natureza como a mãe de tudo aquilo que se produz e consome. A
depredação do ambiente e apropriação e utilização de bens e serviços como
objectos efémeros, como inclusivé o desperdício e o lixo que resultam das
diferentes actividades humanas terão que ser totalmente reestruturados, ou
substancialmente extintos, de forma a reencontrar o equilíbrio entre o homem
e a natureza. O ordenamento do território e a utilização do solo, os
equipamentos colectivos e as infra-estruturas, tecnologias, etc, serão sempre
expressão de um modelo de produção e de consumo que se orienta e traduz
em práticas humanas pautadas pela solidariedade e o apoio mútuo, onde
coexistem a liberdade individual e social, mas onde também a criatividade e
a responsabilidade estarão sempre presente.
Finalmente, a organização social, económica, política e cultural identificada
com os parâmetros da ecologia social anarquista terá que generalizar-se à
escala universal e estruturar-se organicamente em termos autogestionários e
federativos. Qualquer hipótese de emergência organizacional centralista ou
burocrática, neste contexto, não se afigura plausível, na medida que a força
estruturante das múltiplas colectividades, grupos e indivíduos federados nas
diferentes escalas espaciais assumem uma soberania plena. A motivação e a
identificação entre o homem e a natureza, neste âmbito, assume-se a uma
escala universal. Bens e serviços, recursos naturais, florestas, rios, mares,
etc..., fazem parte de um todo indissolúvel, que não pertence a uma
colectividade específica, mas a um legado indelével da natureza e da
comunidade universal.
Mais de qualquer outra razão e mais além de qualquer pressuposto realista
108
da sociedade capitalista, é na sua essência universal e emancipação
humana que o anarquismo se fundamenta. Assim sendo, há espaço
interventivo de construção social sustentado pela auto-organização dos
indivíduos e dos grupos, com uma interacção social suficientemente capaz
de apoiar-se no interconhecimento e na democracia directa e dinamizar, por
essa via, uma auto-consciência e um auto-governo corporizados em acções
individuais e colectivas identitárias nas múltiplas colectividades que
compõem a sociedade global.
As diferentes colectividades, grupos e indivíduos localizadas aos níveis
espaciais local, regional, nacional e transnacional, opor-se-ão ao centralismo
burocrático e repressivo do Estado-Nação e do imperialismo das entidades
estatais supra-nacionais. Elas têm virtualidades que podem-se tornar reais.
Através dos indivíduos, grupos e movimentos sociais podem-se difundir
práticas, teorias, manifestações, etc..., que decorrem de um projecto de
sociedade anarquista. Mais do que nunca, as hipóteses de auto-organização
e auto-reflexão no sentido da libertação da espécie humana impõem-se.
Na medida em que toda a acção individual e colectiva inserida nos espaços
locais, regionais, nacionais e transnacionais são progressivamente mais
interdependentes e complementares, a construção de sínteses no âmbito do
espaço mundial revela-se fulcral. Essa virtualidade, tantas vezes considerada
utópica, pode tornar-se real. Hoje, podermos pensar e praticar a anarquia
como algo natural e do domínio do possível. É pacífico começarmos a
construirmos um movimento social suficientemente forte de forma a darmos
início à extinção da sociedade em que persistimos. Para isso, basta aprender
com o passado, olhar para o presente e lutar pela construção de uma
sociedade futura baseada nos princípios e práticas da democracia directa,
109
fraternidade, igualdade, solidariedade e liberdade.
110
João Freire
CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE ECOLOGIA SOCIAL E SUAS
PERSPECTIVAS POLÍTICAS
Realizou-se em Lisboa nos dias 26, 27 e 28 de Agosto de 1998 um encontro
internacional subordinado à temática que figura no título deste texto: a
ecologia social, as perspectivas políticas que esta teoria pode abrir e a
conceptualização
de
um
municipalismo
marcado
pelos
valores
do
libertarismo e pelas referências ideológicas do anarquismo.
A iniciativa desta conferência partiu dos libertários de Montreal e do Instituto
de Ecologia Social de Plainfield, no Estado norte-americano do Vermont,
onde ensina Murray Bookchin, tendo sido apoiada em Lisboa por um grupo
informal de pessoas que puderam contar com uma base logística no centro
de pesquisa Socius, do Instituto Superior de Economia e Gestão da
Universidade Técnica de Lisboa. Na realidade, para dar o devido
reconhecimento às contribuições de cada um, deve confessar-se que o
sucesso desta realização caberá, na sua maior parte aos esforços de Dimitri
Roussopoulos, no plano americano e internacional, e de Carvalho Ferreira,
no plano da organização em Lisboa. De resto, no próximo ano, a conferência
prolongar-se-á com um outro encontro internacional em Vermont, que deverá
desenvolver e aprofundar as ideias e perspectivas entreabertas em Lisboa.
Nos meses e semanas que antecederam o evento, assistiu-se em alguns
meios do militantismo anarquista a uma incompreensível campanha de
imprensa para condenar politicamente a iniciativa. Tal atitude partiu dos
anarquistas espanhóis da CNT e da FAI, contou em Lisboa com o olho e a
mão do grupo "Acção Directa" e utilizou os sempre desagradáveis e
111
condenáveis métodos de caluniar pessoas, de fazer especulação afectiva e
da veiculação de algumas inverdades.
É natural que aqueles anarquistas que continuam a defender, contra ventos e
marés, os princípios do anti-estatismo, do sindicalismo de de acção directa e
da revolução insurrecionalista como pontos de doutrina absolutamente
indiscutíveis se manifestem contra uma orientação ecologista libertária que
se baseia mais no interclassismo, numa gestão alternativa territorialista e não
desdenha a acção eleitoral no plano comunal ou municipal. É natural,
embora fosse mais interessante e saudável que se dispuzessem a discutir
racionalmente os vários temas e argumentos em causa. Mas já causa
desgosto constatar como, numa época em que o anarquismo militante não
tem qualquer peso nem reconhecimento social, em nenhum país ou região
do mundo, existem militantes aferrados ao papel de sacerdotes guardiães
duma ortodoxia cuja principal missão consiste precisamente em combater os
ténues ensaios de discussão e experimentação de alternativas que possam
remediar tal estado de coisas e descobrir modos de actualizar e melhorar a
postura desta filosofia política nas sociedades existentes nos finais do Século
XX, tão diferentes já daquelas em que Proudhon e Bakunin viveram e para
as quais congeminaram respostas progressistas e emancipadoras.
Tirando estes àpartes, a conferência revelou alguns motivos de interesse,
mas também dificuldades e fragilidades que não seria bom esconder. Com
efeito, por um lado, uma certa síndrome de pecado, desvio ou cisão pairou
sobre parte dos debates, revelando que se tratava, antes do mais, de um
conclave de anarquistas que estavam ensaiando terrenos de alguma
infracção ideológica. Neste aspecto, ficaram frustrados aqueles que haviam
tomado a iniciativa pelo seu valor facial, isto é, que esperavam da ecologia
112
social mais, ou outra coisa, do que uma variação nova sobre velhos temas
anárquicos.
No primeiro dia, os trabalhos começaram com as boas vindas de Carvalho
Ferreira aos cerca de sessenta participantes presentes, a que se seguiu uma
longa intervenção de Janet Biehl sobre o tema do encontro: "The Politics of
Social Ecology: Libertarian Municipalism". Tratou-se duma exposição dos
pontos essenciais da filosofia política desenvolvida há mais de vinte anos por
Murray Bookchin, através da palavra e do texto de uma (aparentemente) sua
fiel discípula e próxima colaboradora. Chaia Heller (também de Vermont,
USA), Roger Jacobs (de Hasselt, Bélgica), Eirik Eigland (de Porsgunn,
Noruega), Dimitri Roussopoulos e Maria Magos Jorge compuzeram o painel
que, ainda nessa manhã, discutiu um ou outro aspecto particular do
pensamento de Bookchin. E da parte da tarde, novas comunicações
apresentadas por Chaia Heller e pelo canadiano do Quebeque Marcel
Sevigny prolongaram este tipo de reflexão. Na realidade, durante todo este
primeiro dia da conferência, foram efectivamente as ideias de Bookchin que
estiveram postas a debate, questionadas sobretudo pelas teses do
anarquismo mais tradicional, como por exemplo a questão da defesa das
situações de influência social hipoteticamente alcançadas, perante o contraataque das forças e dos interesses sociais adversos. No final da jornada,
pôde ver-se um vídeo contendo uma entrevista com Murray Bookchin,
impossibilitado de deslocar-se à Europa por motivos de saúde.
No segundo dia, os trabalhos decorreram basicamente em três workshops
temáticos. No grande auditório – onde se dispunha de um sistema de
tradução simultânea inglês-espanhol-português – o tema era "Problemas
sociais e movimentos sociais urbanos". Na parte da manhã aí apresentaram
113
comunicações o australiano Hamish Alcorn, o espanhol Garcia Rey, e os
portugueses José Tavares e José Luís Félix. Garcia falou sobre a
necessidade de uma perspectiva territorial nos projectos de emancipação
social, sobre a importância dos cenários urbano-territoriais na crise dos
sistemas actuais e sobre a importância dos movimentos sociais em torno de
práticas de resistência aos processos de mundialização e de imposição dum
pensamento único simultâneo ao desenvolvimento de iniciativas de
autogestão territorial. Tavares apresentou uma comunicação sobre "O
trabalho e a sua ultrapassagem" e Félix interveio sobre "Processos de autoorganização em meio urbano", enfatizando as possibilidades existentes para
formas de participação, mau grado o clima existente adverso à criatividade e
à iniciativa solidária.
Na parte da tarde, prosseguiram os debates nesta secção com uma
comunicação do sociólogo espanhol Miguel Martinez sobre "A invenção
estratégica: auto-planeamento popular e autogestão ecológica urbana", onde
o autor apontou os limites do chamado planeamento estratégico no
urbanismo, evidenciando as dimensões não planificáveis, para propor outras
categorias adequadas como a de "invenção estratégica" na qual a acção
precede ou é simultânea à reflexão. A esta se seguiu a comunicação dos
turcos Sureya Evren e Rahmi Ogdul e, por fim, a de Carvalho Ferreira sobre
"Tendências da marginalidade social e dos movimentos sociais no contexto
urbano". Na secção "Cultura e vida social no Século XIX: o local e o global",
da parte da manhã, puderam escutar-se as seguintes comunicações: de
António Cândido Franco, acerca do despovoamento e desertificação do Sul
de Portugal, enfocada na problemática das relações entre o mundo urbano e
rural; do uruguaio Alberto Villareal; de Carlos Sousa, presidente da Câmara
Municipal de Palmela, sobre a participação popular na gestão municipal; do
114
advogado Alfredo Gaspar, sobre o modo como os municípios estão
integrados na ordem jurídica constitucional, concluindo que a tutela
administrativa dos mesmos não é compatível com o conceito de
municipalismo libertário; e do sociólogo António Pedro Dores sobre "As
prisões e a acção cívica", questionando as actuais políticas prisionais (em
relação à droga e à imigração clandestina, por exemplo) que, mesmo se
marcadas
por
preocupações
humanistas,
podem
legitimar
práticas
estigmatizantes e descuidadas com os direitos humanos, preocupando-se
com este "lado fechado" da vida colectiva urbana.
À tarde, a discussão do tema foi prosseguida pelo americano Bob Spivey, por
Mário Rui Pinto, com uma exposição sobre as diferenças entre o contexto
onde emergiu o "velho anarquismo" e aquele em que hoje nos encontramos,
que apela à invenção de um "novo anarquismo", por Mimmo Pucciarelli, que
igualmente acentuou as diferenças entre os velhos e os novos anarquistas,
mas sobretudo no plano das suas respectivas inserções sociais; pelo
canadiano anglófono Frank Harrison, que apresentou uma comunicação
sobre os grandes pontos de contacto existentes entre os pensamentos de
Kropotkin e de Bookchin, tais como o papel do território e da comunidade e
os conceitos de evolução/re-volução; e, por último, por Ilídio Santos, com
uma intervenção sobre "Socialização, conformidade, desvio", na qual foram
postas em destaque as actuais "culturas psicotizantes" e a "função hipnótica
e narcótica das máquinas de imagens".
"Marx, como Bookchin tem reiterado desde o seu estimulante Escuta
Marxista!, aceitou a estrutura produtiva, baseada em preceitos hierárquicos.
Consequentemente, a sua solução política assentava na hierarquia; e
quando os marxistas se apoderaram finalmente do poder político (em
115
sociedades onde Marx nunca sonhara que tal poderia acontecer) procuraram
simplesmente reproduzir a estrutura do capitalismo num sistema de
propriedade estatal. O resultado, como vimos nas duas últimas décadas, foi
uma devastação do ambiente ainda mais excessiva e horrível do que a do
capitalismo no Ocidente."
Frank Harrison
in Bookchin e Kropotkin: alguns temas intelectuais e organizativos comuns
Na secção "A economia das pequenas e das grandes cidades" foram
apresentadas e discutidas quatro comunicações: os noruegueses Eiglad e
Legard expuseram os fundamentos do municipalismo libertário, num registo
sobretudo político e ideológico; em seguida o espanhol Carlos Ramos
interveio sobre "O municipalismo libertário, alternativa ao municipalismo
capitalista" enfatizando o quadro político democrático existente em países
como a Espanha actual, a rica experiência de vinte anos de "associações de
vizinhos", a necessidade de "tradução" dos orçamentos municipais para os
tornar compre-ensíveis para o cidadão comum, as possibilidades existentes
de oposição – através da mobilização popular – à gestão capitalista dos
municípios (tanto os geridos por partidos de direita como por partidos de
esquerda), o conceito de movimento social municipal e, por último, a
necessidade de estruturar formas de participação política municipal mais
avançadas, estáveis e eficazes, embora sempre assentes em redes de
associações populares de base, de natureza diversa mas onde a
participação directa dos cidadãos seja uma realidade; o americano Dan
Chordokoff relatou a experiência de mobilização popular dum bairro pobre de
Nova Iorque com cerca de 30.000 habitantes, desde os anos 70, assente na
colaboração estabelecida entre uma centena de associações populares de
116
base influenciadas por diversos grupos e ideologias políticas, mas que foram
capazes de estruturar uma economia local a partir da inventariação de
recursos e necessidades – de alojamentos, creches, escolas, clínicas e
centros de saúde, emprego, marginalidade, etc. – e da mobilização das
pessoas comuns, embora tal experiência tivesse, no entender do autor,
demonstrado duas insuficiências importantes da acção desenvolvida, a
saber, a dependência local da "grande economia" (a que determina os
preços das casas ou o desemprego, por exemplo), e a incapacidade em
apresentar alternativas políticas credíveis na altura das eleições para os
órgãos do poder municipal; por último, o escossês Mike Small falou sobre o
caso histórico do urbanista Patrick Geddes e da acção desenvolvida em
Edimburgo nos finais do século passado tentando conjugar iniciativas
populares de habitação, educação e trabalho, e articulando as identidades de
base geográfica como os "regionalismos" às práticas políticas e cívicas da
democracia directa, que estão na base do moderno pensamento da ecologia
social.
Este segundo dia encerrou com uma sessão plenária na qual os
coordenadores dos diferentes seminários apresentaram sínteses das
comunicações e dos debates havidos.
No dia 28 os trabalhos decorreram de novo em plenário permanente (com o
inestimável benefício da tradução simultânea). A parte da manhã foi
consagrada à apresentação de relatórios das situações e experiências locais
de ecologia social relativos a dezasseis cidades: Amsterdão, Brisbane
(Austrália), Burlington e Plainfield (no Vermont, USA), Lyon, Montevideo,
Salónica, Montreal, Madrid, Málaga, Valência, Porsgunn (na Noruega),
Grafenau (na Alemanha), Antuérpia, Istambul e Edimburgo.
117
"O ideal tecnológico-racional, que guia a evolução brutal da nossa
sociedade, cria um divórcio, cada vez mais pronunciado, entre uma vida
profissional impessoal, submetida unicamente ao critério da eficácia, e uma
vida emotiva extremamente restrita quanto à sua extensão e empobrecida
quanto à sua intensidade. A maior parte dos nossos contemporâneos vive na
fascinação de um optimismo tecnológico falso e de um pseudo-racionalismo
insensato que servem de justificação e de disfarce para as angústias – bem
reais desta vez – no que respeita à incerteza em relação ao futuro."
Ilídio dos Santos
in Socialização, conformidade e desvio
À tarde, foram discutidos mais em particular dois temas cuja importância
havia ressaltado dos relatos feitos das várias experiências locais: as relações
entre as organizações populares de bairro ou vizinhança e as estruturas
oficiais do poder municipal; e as experiências, mais ou menos frustradas, de
candidaturas a eleições municipais por listas ou movimentos ecologistas,
alternativos e libertários.
Carvalho Ferreira e Dan Chordokoff encerraram os trabalhos da conferência,
que, como se disse, irá ter continuação no Verão de 1999 em Vermont e para
a preparação da qual foram designadas várias pessoas que compõem agora
a respectiva comissão organizadora internacional.
A Batalha - VI Série, Ano XXIV, Julho – Agosto, 1998. #170
118
Mimmo Pucciarelli
QUE PRÁTICA LIBERTÁRIA NA CIDADE DOS NOSSOS DIAS?
Entre 26 e 28 de Agosto realizou-se em Lisboa uma conferência
internacional sobre a ecologia social e as suas perspectivas políticas, o
municipalismo libertário. Este conferência foi organizada por uma comissão
constituída por várias pessoas activas no movimento libertário internacional,
apoiadas por centros de estudos libertários (como o de Milão ou a Fundação
Salvador Ségui, de Madrid), por casas editoras, como a Black Rose Books
(gostaria de precisar que se trata de uma das mais antigas e activas editoras
libertárias actuais, com sede em Montréal) e a Trotzem verlag / Scharwz
faden, da Alemanha, o Instituto de Ecologia Social, de Vermont, o Instituto
por uma Eco-sociedade, de Montréal, ou o colectivo Los Arenalejos, de
Espanha. O SOCIUS, centro de investigação em sociologia económica e das
organizações, dirigido por José Maria Carvalho Ferreira, encarregou-se de
forma admirável da organização prática destes três dias, enfim, a conferência
teve ainda o apoio do departamento de Sociologia do Instituto Superior de
Ciências do Trabalho e da Empresa, de Lisboa, entre outras instituições
locais.
Cerca de cento e trinta pessoas vieram assistir a estas jornadas.
Deslocaram-se de vários países europeus (Alemanha, Espanha, Portugal,
França, Holanda, Bélgica, Noruega, Escócia), da Turquia, da América Latina,
dos Estados Unidos e do Canadá. Alguns representavam grupos locais ou
organizações nacionais (por exemplo, da CGT espanhola estiveram
presentes cerca de uma vintena de militantes), mas tantos outros aí
estiveram a título individual.
119
A ideia desta conferência, segundo o que pude entender da leitura do
manifesto publicado por vários jornais libertários e ecologistas, era reflectir
sobre a questão da ecologia social e sobre aquela que parece ser a sua
implicação prática e política mais provável, o municipalismo libertário.
Entendo que com esta conferência se quis, por um lado, prestar homenagem
à obra de Murray Bookchin, inspirador destes dois conceitos que ajudaram
os libertários, a nível internacional, a enfrentar a problemática ecologista nos
anos 70 e 80; por outro lado, quis-se igualmente procurar levar mais longe a
reflexão sobre este tema, levando em conta o livro que Janet Biehl publicou
recentemente e que retoma a ideia do municipalismo libertário de Bookchin,
ampliando-o e estruturando-o a partir do conhecimento de algumas
experiências que várias pessoas e grupos têm levado à prática, deste e
daquele lado, desde há uma vintena de anos. Para dizer a verdade, tive a
impressão de que se alguns dos organizadores do encontro tiveram, antes
do mais, a ideia de reunir um grande número de libertários, a nível
internacional, para uma reflexão conjunta, outros houve que desejavam que
no final da conferência se tivesse podido estabelecer os fundamentos de
uma rede dedicada ao municipalismo libertário, afinal criar uma organização
específica.
Durante os três dias do encontro, nas belas instalações do Instituto Superior
de Economia e Gestão, em Lisboa, e graças à tradução simultânea a
funcionar numa das salas, foi possível assistir a debates, se não ricos pelo
menos bastante prometedores. Com efeito, à parte a diferença que já referi
nos propósitos dos membros da organização, diferença que se tornou
perceptível também nas intervenções de alguns dos participantes, deve
dizer-se que o conjunto de pessoas que interveio exprimiu uma mesma
120
preocupação no que concerne ao que podemos considerar a preocupação
quanto a uma intervenção política libertária na cidade. Se alguns o fizeram a
partir de um ponto de vista "ideológico", outros trouxeram-nos exemplos
concretos que nos mostraram a actualidade desta questão, e mesmo, de
certa maneira, a urgência de a enfrentar, para responder ao mesmo tempo a
uma necessidade do movimento e àqueles e aquelas que querem participar
na via política, nos assuntos de uma outra cidade, ou se preferem, de um
modo alternativo.
No final da conferência, como lá diria Agustin Garcia Calvo, "estávamos
todos um pouco mais ignorantes", pois se as nossas intenções nos
mostraram que, por um lado, no movimento libertário somos capazes de
enfrentar cada vez mais serenamente assuntos da delicadeza de uma
intervenção política na cidade, como seja a própria participação em eleições
locais, por outro lado constatamos que ainda não temos do nosso lado a
resolução ou, se preferirem, todas as respostas práticas e teóricas a
questões como estas. É certo que na assistência estavam, por exemplo,
jovens companheiros aparentemente muito activos na sua cidade ou região e
que não tinham dúvidas quanto à eficácia do "municipalismo libertário e das
suas últimas consequências, ou seja, a revolução social", mas havia também
quem, como eu próprio, procura desde há muito questionar os conceitos
desse anarquismo clássico de que nos servimos ainda para apreender a
realidade do ano 2000.
Na verdade, desde que li as obras de Bookchin, e que com o Atelier de
Création Libertaire contribuímos para o seu conhecimento em França,
sempre pensei que a ecologia social e o municipalismo libertário poderiam
121
ser um dos meios para avançar nas nossas reflexões e nas nossas práticas.
No entanto, nesta última conferência a que assisti, voltei a assinalar "uma
lenta evolução" do pensamento libertário face ao que foram os propósitos
definidos já há uma quinzena de anos nos nossos meios militantes "puros e
duros", e pude também constatar que nos faz falta, absolutamente, um
trabalho de reactualização dos conceitos como revolução, antiestatismo,
antiparlamentarismo, luta de classes, movimento de massas, anarcosindicalismo, comunismo libertário ou a própria anarquia... Mas atenção, não
se trata de retomar aqui o velho discurso sobre o tema mítico que opunha
ideologicamente os "revolucionários" e os "reformistas", mas de confrontar as
nossas práticas quotidianas com as nossas ideias, e de construir à sua volta
um corpus que não atire para um beco tudo o que se passou no mundo nos
últimos trinta anos.
Enfim, e para lá de todas as críticas que sempre é possível fazer neste tipo
de iniciativas (por exemplo, a pouca representação daqueles grupos que têm
uma real prática local, ou a pouca presença de países como a Itália, a
Inglaterra ou os países do Leste europeu, para não falar já de África ou da
Ásia, ou ainda esta ânsia de avançar para uma estruturação formal de um
movimento, sem levar em conta o que é que ele podia representar a um nível
real, e os debates internos que continuam a sofrer de personalismo e por
vezes de dogmatismo...), pareceu-me ter sido uma iniciativa bem
conseguida.
De facto, depois de três dias de debate e de algumas questões importantes
levantadas por parte da assembleia (como por exemplo a defesa armada de
uma hipotética municipalidade libertária atacada pelos seus inimigos...), os
122
participantes acordaram numa nova reunião, a realizar como previsto em
Vermont, nos Estados Unidos, para uma segunda conferência durante o
próximo verão de 1999. Até lá, irão promover a leitura do livro de Janet Biehl
sobre o municipalismo libertário (de que existe uma edição alemã, uma
espanhola e a francesa publicada pela Eco-sociedade em Montréal,
enquanto se prevê a sua próxima tradução em Grego e em Italiano), em
debates, conferências locais e, se possível, encontros que permitam
continuar o debate sobre estas questões, por exemplo a criação de grupos
de reflexão da hoc... o que acabou por ser a razão da minha participação
pessoal nesta conferência.
123
André Gorz
A IDEOLOGIA SOCIAL DO CARRO A MOTOR
O que tem de pior nos carros é serem como castelos ou mansões à beira do
mar: bens luxuosos inventados para o prazer exclusivo de uma minoria muito
rica, os quais em concepção e natureza nunca foram direcionados para o
povo. Ao contrário do aspirador de pó, do rádio, ou da bicicleta, que retêm
seu valor de uso quando todos possuem um, o carro, como uma mansão à
beira do mar, é somente desejável e útil a partir do momento que as massas
não têm um. Por isso, tanto em concepção quanto na sua finalidade original
o carro é um bem de luxo. E a essência do luxo é a de que ele não pode ser
democratizado. Se todos puderem ter o luxo, ninguém obtém as vantagens
dele. Do contrário, todos logram, enganam e frustram os demais, e é logrado,
enganado e frustrado por sua vez.
Isto é de muitíssimo conhecimento comum no caso das mansões à beira
mar. Nenhum político ousou ainda reivindicar que democratizar o direito às
férias significasse uma mansão com praia particular para cada família. Todos
compreendem que se cada uma entre 13 ou 14 milhões de famílias
devessem usar somente 10 metros da costa, tomaria-se 140.000km de praia
para que todos tivessem sua parte! Para dar a todos sua parte teria-se que
cortar as praias em tiras pequenas - ou espremer tão fortemente as mansões
- que seu valor de uso seria nulo e sua vantagem sobre um complexo
hoteleiro desapareceria. De fato, a democratização do acesso às praias
aponta a somente uma solução: a solução coletivista. E esta solução está
necessariamente em guerra com o luxo da praia particular, que é um
privilégio que uma minoria pequena toma como seu direito às custas de
todos.
124
Agora, por que aquilo que é perfeitamente óbvio no caso das praias não é
geralmente visto da mesma forma no caso do transporte? Como a casa de
praia, um carro também não ocupa espaço escasso? Não priva os outros
que usam as estradas (pedestres, ciclistas, motoristas de ônibus, etal.)? Não
perde seu valor de uso quando todos usam os seus próprios? No entanto há
uma abundância de políticos que insistem que cada família tem o direito ao
menos a um carro e que é até encargo do "governo" tornar possível que
todos possam estacionar convenientemente, dirijam facilmente na cidade, e
possam viajar no feriado ao mesmo tempo que todos outros, indo a 70 mph
nas estradas, às estações de férias.
A monstruosidade deste absurdo demagógico é imediatamente aparente, no
entanto, mesmo a esquerda não desdém de recorrer a ela. Por que o carro é
tratado como uma vaca sagrada? Por que, ao contrário de outros bens
"privados", ele não é reconhecido como um luxo anti-social? A resposta deve
ser procurada nos dois aspectos seguintes da atividade de dirigir:
A massificação do automóvel efetua um triunfo absoluto do ideologia
burguesa no nível da vida diária. Dá e sustenta em todos a ilusão de que
cada indivíduo pode procurar o seu próprio benefício às custas de todos os
demais. Leva ao egoísmo cruel e agressivo do motorista que em todos os
momentos está figurativamente matando os "outros", que aparecem
meramente como obstáculos físicos à sua velocidade. Este egoísmo
competidor e agressivo marca a chegada do comportamento universal
burguês, e tem existido desde que dirigir tornou-se lugar comum. ("você
nunca terá o socialismo com aquele tipo de pessoas", um amigo alemão
ocidental me disse, triste ao ver o espetáculo do tráfego de Paris).
125
O automóvel é o exemplo paradoxal de um objeto luxuoso que tem sido
desvalorizado por sua própria propagação. Mas esta desvalorização prática
não foi seguida ainda por uma desvalorização ideológica. O mito do prazer e
benefício do carro persiste, embora se o transporte de massa fosse
difundido, sua dominação seria golpeada. A persistência deste mito é
explicado facilmente. A propagação do carro particular deslocou o transporte
de massa e alterou o planejamento da cidade e da habitação de tal maneira
que transfere ao carro o exercício de funções que sua própria propagação
tornou necessárias. Uma revolução ideológica ("cultural ") seria necessária
para quebrar este círculo. Obviamente não se deve esperar isto da classe
dirigente (direita ou esquerda).
Permita-nos olhar mais de perto agora estes dois pontos.
Quando o carro foi inventado, ele o foi para prover poucos dos muito ricos
com um privilégio completamente sem precedentes: viajar muito mais
rapidamente do que todos os demais. Ninguém até então tinha sonhado com
isso. A velocidade de todas as carroças era essencialmente a mesma, fosse
você rico ou pobre. As carruagens dos ricos não eram mais velozes do que
as carroças dos camponeses, e trens carregavam todos na mesma
velocidade (não possuíam velocidades diferentes até eles começarem a
competir com o automóvel e o avião). Assim, até a virada do século, a elite
não viajava em uma velocidade diferente do povo. O carro a motor iria mudar
tudo isto. Pela primeira vez as diferenças de classe foram estendidas à
velocidade e aos meios de transporte.
Este meio de transporte no início parecia inacessível às massas - ele era
126
muito diferente dos meios de transporte comuns. Não havia nenhuma
comparação entre o carro a motor e os outros: o bonde, o trem, a bicicleta,
ou a carroça. Seres excepcionais saíam em veículos com auto-propulsão
que pesavam pelo menos uma tonelada e cujos órgãos mecânicos
extremamente complicados eram tão misteriosos quanto escondidos das
vistas. Um aspecto importante do mito do automóvel é que pela primeira vez
as pessoas andavam em veículos particulares cujos mecanismos de
funcionamento
eram
completamente
desconhecidos
deles,
e
cuja
manutenção e alimentação tiveram que confiar a especialistas. Aqui está o
paradoxo do automóvel: parece conferir aos seus proprietários liberdade
ilimitada, permitindo que viajem quando e a onde quiserem em uma
velocidade igual ou maior que a do trem. Mas de fato, esta aparência de
independência tem por debaixo uma dependência radical. Ao contrário do
cavaleiro, do carroceiro, ou do ciclista, o motorista iria depender para suprir
combustível, assim como para o menor tipo de reparo, dos negociantes e
dos especialistas em motores, lubrificação e ignição, e da possibilidade de
troca das peças. Ao contrário de todos os proprietários anteriores de meios
de locomoção, o relacionamento do motorista com seu veículo viria a ser
aquele do usuário e consumidor - e não do proprietário e do mestre. Este
veículo, em outras palavras, obrigaria o proprietário a consumir e usar uma
gama de serviços comerciais e produtos industriais que somente poderiam
ser fornecidos por um terceiro. A independência aparente do proprietário do
automóvel apenas escondia a dependência radical real.
Os magnatas do petróleo foram os primeiros a perceber o ganho que poderia
ser extraído da distribuição em escala do carro a motor. Se as pessoas
pudessem ser induzidas a viajar em carros, eles poderiam vender o
combustível necessário para movê-los. Pela primeira vez na história, as
127
pessoas tornar-se-iam dependentes de uma fonte comercial de energia para
sua locomoção. Haveriam tantos clientes para a indústria de petróleo quanto
houvessem motoristas - e uma vez que haveriam tantos motoristas quanto
houvessem famílias, a população inteira se transformaria em cliente dos
comerciantes de petróleo. O sonho de todo capitalista estava a ponto de se
realizar. Todos iriam depender para suas necessidades diárias de um produto
que uma única indústria possuía em monopólio.
Tudo que se deveria fazer era deixar a população dirigir carros. Pouca
persuasão seria necessária. Seria suficiente baixar o preço do carro usando
a produção em massa e a linha de montagem. As pessoas atropelariam
umas as outras para comprá-lo. Correriam sem perceber que estavam sendo
conduzidas pelo nariz. O que, de fato, a indústria do automóvel lhes
ofereceu? Apenas isto: "de agora em diante, como a nobreza e a burguesia,
você também terá o privilégio de dirigir tão rápido quanto qualquer um. Em
uma sociedade de carro a motor o privilégio da elite é tornado disponível a
você".
As pessoas se apressaram para comprar carros até que, quando a classe
trabalhadora começou a os comprar também, os motoristas perceberam que
haviam sido enganados. Tinha sido prometido a eles um privilégio de
burgueses, tinham entrado em débito para adquiri-lo, e agora viam que
qualquer um poderia também obter um. Qual é o gosto de um privilégio se
todos puderem o ter? É um jogo de tolo. Pior, ele coloca todos em posição
antagônica contra todos. A paralisação geral é criada por um engarrafamento
geral. Quando todos reivindicam o direito de dirigir na velocidade privilegiada
da burguesia, tudo pára, e a velocidade do tráfego da cidade cai
vertiginosamente - em Boston como em Paris, Roma, ou Londres - abaixo
128
daquele da carroça; no horário do rush a velocidade média nas estradas
abertas cai abaixo da velocidade de uma bicicleta.
Nada ajuda. Todas as soluções foram tentadas. Todas elas terminam
piorando as coisas. Não importa se elas aumentam o número de vias
expressas, túneis, elevados, estradas de 16 pistas e estradas com pedágio
na cidade, o resultado é sempre o mesmo. Quanto mais estradas a serviço,
mais os carros as obstruem, e o tráfego da cidade torna-se mais
paralisantemente congestionado. Enquanto houverem cidades, o problema
permanecerá sem solução. Não importa quão larga e rápida uma
superhighway seja, a velocidade na qual os veículos podem sair dela para
entrar na cidade não pode ser maior do que a velocidade média nas ruas da
cidade. Enquanto a velocidade média em Paris é 10 a 20 kmh, dependendo
da hora, ninguém poderá sair delas em torno e na capital a mais do que 10 a
20 kmh.
O mesmo é verdadeiro para todas as cidades. É impossível dirigir a mais do
que uma média de 20kmh na embaraçada rede de ruas, de avenidas, e de
bulevares que caracterizam as cidades tradicionais. A introdução de veículos
mais rápidos inevitavelmente atrapalha o tráfego da cidade, causando
gargalos - e por fim uma paralisação completa.
Se o carro deve prevalecer, há ainda uma solução: livre-se das cidades. Isto
é, enfileire-os por centenas de milhas ao longo de enormes estradas,
fazendo delas subúrbios de estradas. Isto é o que está sendo feito nos
Estados Unidos. Ivan Illich mostra a conseqüência deste modo: "O
americano típico devota mais de 1500 horas no ano (que são 30 horas por
129
semana, ou 4 horas por dia, incluindo domingos) a seu carro. Isto inclui o
tempo gasto atrás do volante, andando e parado, as horas de trabalho para
pagar por ele e para pagar pelo combustível, pneus, pedágios, seguro,
bilhetes e taxas. Deste modo ele toma deste americano 1500 horas para
andar 6000 milhas (no curso de um ano). Três milhas e meia custam-lhe uma
hora. Nos países que não têm uma indústria do transporte, as pessoas
viajam exatamente nesta velocidade a pé, com a vantagem que podem ir
onde quiserem e de não estarem restritas às estradas de asfalto".
É verdade, Illich aponta, que em países não-industrializados a viagem usa
somente 3 a 8% do tempo livre da pessoa (que é aproximadamente duas a
seis horas na semana). Assim uma pessoa a pé anda tantas milhas em uma
hora gasta em viagem quanto uma pessoa em um carro, mas devota 5 a 10
vezes menos tempo na viagem. Moral: Quanto mais difundidos veículos
rápidos estão dentro de uma sociedade, mais tempo - a partir de um
determinado ponto - as pessoas gastarão e perderão viajando. Isto é um fato
matemático.
A razão? Nós acabamos de vê-la: As cidades foram divididas em infinitos
subúrbios de estrada, porque esta era a única maneira de evitar o
congestionamento em centros residenciais. Mas o lado oculto desta solução
é óbvio: finalmente as pessoas não podem se deslocar convenientemente
porque estão distantes de tudo. Para construir espaço para os carros, as
distâncias foram aumentadas. As pessoas vivem longe de seu trabalho,
longe da escola, longe do supermercado - que requer então um segundo
carro para que as compras possam ser feitas e para as crianças irem à
escola. Passeios? Fora da questão. Amigos? Há os vizinhos... e só. Na
análise final, o carro desperdiça mais tempo do que economiza e cria mais
130
distâncias do que supera. Naturalmente, você pode ir ao trabalho a 60 mph,
mas isto porque você vive a 30 milhas de seu trabalho e está disposto a dar
meia hora às últimas 6 milhas. Somando tudo: "uma boa parte do trabalho
diário é gasto para pagar pela viagem necessária para ir ao trabalho". (Ivan
Illich).
Talvez você esteja dizendo, "mas ao menos desta maneira você pode
escapar do inferno da cidade após o fim do dia de trabalho". Lá nós estamos,
agora nós sabemos: "a cidade", a grande cidade que por gerações foi
considerada uma maravilha, o único lugar que vale a pena viver, é
considerada agora um "inferno". Todos querem escapar dela para viver no
campo. Por que esta reversão? Por uma única razão. O carro fez a cidade
grande inabitável. A fez fedorenta, barulhenta, sufocante, empoeirada,
congestionada, tão congestionada que ninguém quer sair mais de tardinha.
Assim, uma vez que os carros mataram a cidade, nós necessitamos carros
mais rápidos para fugir em superestradas para os subúrbios que estão ainda
mais distantes. Que argumento circular impecável: dê-nos mais carros de
modo que nós possamos escapar da destruição causada pelos carros.
De um artigo luxuoso e uma marca de privilégio, o carro transformou-se
assim numa necessidade vital. Você tem que ter um para escapar do inferno
urbano dos carros. A indústria capitalista ganhou assim o jogo: o supérfluo
tornou-se necessário. Não há mais a necessidade de persuadir as pessoas
de quererem um carro; sua necessidade é um fato da vida. É verdadeiro que
alguém possa ter suas dúvidas ao prestar atenção à fuga motorizada ao
longo das estradas do êxodo. Entre 8 e 9:30 da manhã., entre 5:30 e 7 da
tarde, e em fins de semana por cinco ou seis horas as rotas de fuga se
prolongam nas procissões de para-choque-à-para-choque que vão (no
131
máximo) à velocidade de um ciclista e em uma nuvem densa de emanações
da gasolina. O que sobra das vantagens do carro? O que é deixado quando,
inevitavelmente, a velocidade superior nas estradas é limitada exatamente
pela velocidade do carro mais lento?
Nítido suficiente. Após ter matado a cidade, o carro está matando o carro.
Prometendo a todos poderem andar mais rapidamente, a indústria do
automóvel termina com o resultado previsível de que todos tem que andar
tão lentamente quanto o mais lento, em uma velocidade determinada pelas
leis simples da dinâmica dos fluidos. Pior: sendo inventado para permitir que
seu proprietário vá a onde deseja, na velocidade e tempo que deseja, o carro
transforma-se, de todos os veículos, no mais servil, perigoso, não
dependente e incômodo. Mesmo se você deixa uma extravagante
quantidade de tempo, você nunca sabe quando os gargalos o deixarão
chegar lá. Você está limitado à estrada tão inexoravelmente quanto o trem a
seus trilhos. Não mais do que o viajante de trem, pode você parar em um
impulso, e como o trem você deve ir em uma velocidade decidida por outra
pessoa. Concluindo, o carro não tem nenhuma das vantagens do trem e
possui todas as suas desvantagens, mais algumas próprias: vibração,
espaço apertado, o perigo dos acidentes, o esforço necessário para dirigi-lo.
No entanto, você pode dizer, as pessoas não tomam trem. Claro! Como
poderiam? Você já tentou alguma vez ir de Boston a New York de trem? Ou
de Ivry a Treport? Ou de Garches a Fountainebleau? Ou de Colombes a
l'Isle-Adam? Você tentou em um sábado ou domingo de verão? Bem, então
tente e boa sorte! Você observará que o capitalismo do automóvel pensou
em tudo. Tão logo o carro matou o carro, ele fez com que as alternativas
desaparecessem, tornando compulsório, deste modo, o carro. Assim,
132
primeiramente o estado capitalista permitiu que as conexões de trilho entre
as cidades e o campo circunvizinho se deteriorassem, e então acabou com
elas. As únicas que foram poupadas foram as conexões inter-municipais de
alta velocidade que competem com as linhas aéreas para uma clientela de
burgueses. Há um progresso para você!
A verdade é que ninguém tem realmente qualquer escolha. Você não é livre
para ter um carro ou não porque o mundo dos bairros é projetado em função
do carro - e, cada vez mais, é assim o mundo da cidade. É por isso que a
solução revolucionária ideal, que é afastar o carro em proveito da bicicleta,
do ônibus, e do bonde, não é sequer mais aplicável nas cidades grandes
como Los Angeles, Detroit, Houston, Trappes, ou Bruxelas, que são
construídas por e para o automóvel. Estas cidades estilhaçadas são
formadas por alinhadas ruas vazias possuindo desenvolvimentos idênticos; e
sua paisagem urbana (um deserto) diz, "estas ruas são feitas para se dirigir
tão rapidamente quanto possível do trabalho para casa e vice-versa. Você
anda através daqui, você não vive aqui. No fim do dia de trabalho todos
devem permanecer em casa, e qualquer um encontrado na rua depois do
anoitecer deve ser considerado suspeito de ‘fazer o mal’". Em algumas
cidades americanas o ato de dar uma volta nas ruas à noite é vista como
suspeita de crime.
Então estamos fritos? Não, mas a alternativa ao carro terá que ser
abrangente. Para que as pessoas possam abandonar seus carros, não será
suficiente lhes oferecer um transporte de massa mais confortável. Terão que
poder dispensar o transporte por se sentirem em casa nos seus bairros, nas
suas comunidades, nas suas cidades de tamanho humano, e por sentirem
prazer em andar do trabalho para casa a pé, ou se preciso for, de bicicleta.
133
Nenhum meio de transporte e fuga veloz jamais compensará a vexação de
viver em uma cidade inabitável na qual ninguém se sente em casa, ou a
irritação de somente ir à cidade para trabalhar ou, por outro lado, de estar
sozinho e dormir.
"As pessoas", escreve Illich, "quebrarão as correntes do domínio do
transporte quando voltarem a amar, como se fosse seu próprio território, seu
próprio ritmo particular, e temer ficar demasiado distante dele". Mas a fim de
amar "o seu território" ele deve antes de mais nada ser habitável, e não
congestionável. O bairro ou a comunidade devem novamente transformar-se
em um microcosmo esculpido por e para todas as atividades humanas, onde
as pessoas possam trabalhar, viver, relaxar, aprender, se comunicar, e
discutir sobre ela, e no qual elas controlem conjuntamente como o lugar de
sua vida em comum. Quando alguém lhe perguntou como as pessoas
gastariam seu tempo após a revolução, quando o desperdício capitalista
tivesse sido eliminado, Marcuse respondeu, "nós traremos à baixo as
grandes cidades e construiremos novas. Isso manter-nos-á ocupados por
enquanto".
Estas novas cidades poderiam ser federações de comunidades (ou de
bairros) cercadas por cinturões verdes nos quais cidadãos - e em especial
crianças em idade escolar - passariam diversas horas da semana cultivando
os alimentos frescos de que necessitam. Para se locomoverem todos os dias
poderiam usar todos os tipos do transporte adaptados a uma cidade de
tamanho médio: bicicletas, bondes ou bondes elétricos municipais, táxis
elétricos sem motoristas. Para longas viagens no país, assim como para
convidados, uma quantidade de automóveis comunais estaria disponível em
garagens do bairro. O carro não seria mais uma necessidade. Tudo teria
134
mudado: o mundo, a vida, as pessoas. E isto não virá por si só.
Entretanto, o que deve ser feito para se chegar lá? Sobretudo, nunca faça do
transporte um assunto em si mesmo. Conecte-o sempre ao problema da
cidade, da divisão social do trabalho, e à maneira que isto compartimentaliza
as muitas dimensões da vida. Um lugar para o trabalho, outro para "viver",
um terceiro para as compras, um quarto para aprender, um quinto para
entretenimento. A maneira que nosso espaço é arranjado dá continuidade à
desintegração das pessoas que começa com a divisão de trabalho na
fábrica. Corta uma pessoa em fatias, corta nosso tempo, nossa vida, em
fatias separadas de modo que em cada uma você seja um consumidor
passivo a mercê dos comerciantes, de modo que nunca lhe ocorra que o
trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das necessidades,
e a vida pessoal podem e deveriam ser uma e mesma coisa: uma vida
unificada, sustentada pelo tecido social da comunidade.
Le Sauvage, Setembro-Outubro de 1973
135
Victor Fucks
ECOLOGIA ALTERNATIVA: APRENDENDO COM OS ÍNDIOS TUPI
GUARANI
O Nível de sofisticação e desenvolvimento tecnológico alcançado pelas
civilizações ocidentais contemporâneas constitui algo admirável e de grandes
proporções. O controle de várias forcas e fenômenos naturais, a ênfase no
individualismo, o culto quase ritualístico ao estimulo de "progressos,"
quantificações analíticas e resultados práticos, nos afetam em todos os
sentidos, surpreendendo até Bacon, o criador desta filosofia. O impacto de
diversas "maravilhas tecnológicas " indubitavelmente se faz sentir em nosso
dia a dia. Essa ideologia acoplada ao sistema capitalista, cria uma constante
geração e acumulo de riquezas, distribuição desigual de diversos recursos,
dominação, exploração, superpopulação, poluição e "subprodutos." Como
resultado outros , tais "maravilhas " perdem sua aura especial e passam a
nos ameaçar, tornando-se "monstros" dos quais temos dificuldade de
escapar. Estas ameaças não se restringem apenas à civilização Ocidental que as criou - mas se estendem a outros povos, em outras regiões,
eventualmente ameaçando a própria sobrevivência da vida, na terra.
Praticamente tudo o que fazemos, nossas opções e até mesmo criações
estão ligadas a essa complexa estrutura, independente de nossas intenções.
Este texto, por exemplo, está sendo escrito em um computador que por si só
sintetiza parte do processo tecnológico. Este, por sua vez, se relaciona às
técnicas de impressão, diagramação e distribuição da revista Utopia que,
eventualmente, chega às mãos dos prezados leitores e, assim, por diante. As
fábricas de computadores, acessórios etc. se relacionam em um complexo
sistema econômico; do qual também fazemos parte. Deste sistema surgem
diversos produtos que utilizamos em nossas vidas mas, ao mesmo tempo,
136
geram-se problemas diversos como poluição e eventuais explorações
capitalistas. Assim sendo, nos vemos em uma situação paradoxal, pois, se
de um lado, apreciamos grande parte dos implementos tecnológicos, frutos
de nossa civilização, por outro, nos achamos presos a esta maquina"
deliciosa " e "terrível" ao mesmo tempo. Como usufruir dos diversos
implementos tecnológicos sendo que nos tornemos vítimas de um sistema
perverso e nocivo? As alternativas demandam modelos ainda mais
complexos pois não seria desejável e suficiente abandonarmos nosso
conforto e prazeres cosmopolitanos –ou não -, para irmos viver
isoladamente, em regiões remotas ou entre sociedades que não interagem
com o sistema ocidental. Movimentos sociais independentes que encararam
este problema lograram apenas sucesso limitado, como no caso das
fazendas socialistas Kibutz em Israel e as comunidades e atividades ligadas
ao movimento da contra-cultura, nos Estados Unidos (Zicklin 1983). O
isolamento também se torna praticamente impossível, pois o impacto
ocidental se faz sentir, nas regiões mais remotas do planeta, como por
exemplo, entre tribos Amazônicas, Africanas e Asiáticas, mesmo antes
destas sociedades estabelecerem contato direto com a nossa sociedade. Um
exemplo dessa questão refere-se ao uso de objetos metálicos e outros
produtos industrializados por comunidades indígenas isoladas na Amazônia.
Quando certos grupos indígenas foram "oficialmente" contatados pela
FUNAI, vários indivíduos já dispunham de facas, sandálias de plástico e
tecidos diversos. Estes foram adquiridos por contatos intermediários, ou
abandonados por garimpeiros e viajantes.
A posição "ecológica" sugerida por Bookchin merece maiores considerações,
uma vez que nos fornece um modelo teórico e não simplista. Neste modelo,
o conceito de ecologia social propicia uma forma balanceada de relação
137
entre todas as espécies biológicas e diversos fenômenos naturais e, ao
mesmo tempo, considera a viabilidade de implementação deste processo de
equilíbrio ecológico, através do uso de tecnologia. A visão de Bookchin
envolve fatores e processos adicionais que consideram a complexidade dos
fenômenos sociais e naturais em suas formas globais (holísticas) e
interrelacionadas. Uma das virtudes do modelo de Bookchin é a
consideração de fatores não diretamente ligados a imediata sobrevivência
biológica de cada indivíduo, ou à visão utilitária e funcionalista de cada
atividade humana, pois afinal fazemos mais do que simplesmente procurar
alimentos e buscar proteções a fenômenos naturais. Bookchin refere-se às
"sensibilidades preliterais " características de certas sociedades tribais. Os
esparcos dados antropológicos contribuem pouco para engrandecer a
argumentação do autor, dando a impressão de uma visão utópica e
romantizada destas sociedades. Ou seja, faltam dados para demonstrar a
transição das "sensibilidades preliterais" para as "sociedades orgânicas, com
intensa solidariedade interna e com a natureza" (Bookchin 1982:44). As
idéias de Bookchin poderiam adquirir maior relevância se pudessem ser
testadas ou investigadas em contextos sociais específicos, para terem um
profundo impacto em nosso "modus vivendi". Neste artigo procuro continuar
o diálogo proposto por Bookchin, com exemplos específicos de uma
sociedade tribal.
A seguir, tentarei abordar uma alternativa não tão utópica, pois vem sendo
utilizada, com relativo sucesso e há séculos por comunidades indígenas
amazônicas e, em particular, entre os Índios Tupi Guarani (Fuks 1989, Hill
1984, Kracke 1981 ). Este modelo de interação social e ecológico, longe de
ser simplista, envolve interações diversas, em níveis diferentes e, ao mesmo
tempo, preserva a individualidade de cada membro da sociedade. Nele a
138
importância de bens materiais se torna irrelevante e secundária às artes e às
emoções. Com isso, deixa de existir a noção ocidental de acúmulo de bens
ou capital, que por sua vez, gera um ciclo hierárquico, com diversas relações
desiguais. Evidências etnográficas ajudam a identificar este sistema entre as
tribos Waiapi. Para os indivíduos dessa sociedade não há importância
material e acúmulo de bens. A irrelevância da noção de acúmulo de bens
pode ser evidenciada pelo fato dos Waiapi contarem apenas até 4. Tudo
além de 4 cai na categoria genérica e distante chamada "iro ironte" que seria
traduzível por nossa noção de "muitos".
Através dos meios de expressão artística, cada indivíduo aprende a conviver
harmonicamente em grupo e com a natureza, mas mantendo sua
individualidade a níveis dificilmente alcançáveis, no ocidente. Nestes
contextos artísticos e de caráter festivo, cada indivíduo pode encontrar-se em
situações nas quais cada um se relaciona entre si e com outras espécies de
animais, insetos e peixes (Fuks 1989). Ao invés de perpetuar a visão
ocidental de "dominação da natureza e desafios ao Cosmos," que por si só
reflete a dominação da humanidade pela humanidade, o modelo TupiGuarani procura incorporar diversos conhecimentos sociais e naturais, de
forma interativa. Neste, todos os indivíduos se relacionam entre si e com
outras espécies. É importante frizar que estas relações mantêm um equilíbrio
dinâmico no qual todos estão no mesmo plano, tanto no meio social quanto
entre os Waiapi e outras espécies. Em diversos contextos, percebe-se a
visão cíclica de complementariedade biológica, onde certas espécies
protegem outras e geram produtos necessários para a sobrevivênica humana
e de outras espécies. No ecossistema da aldeia onde se relacionam diversos
indivíduos, de idéias, sexos e idades diferentes, existe também uma certa
harmonia com o solo que lhes proporciona os alimentos e outros bens, com
139
os rios e florestas, e com as diversas espécies que neles habitam.
Há vários anos, venho pesquisando uma pequena sociedade tribal no Amapá
que emprega um sistema social compatível com as prioridades e dilemas
individuais e sociais, mantém uma estreita relação com a natureza, estimula
prazeres e diversas emoções. Trata-se da comunidade Indígena Waiapi, que
pertence ao grupo lingüístico Tupi-Guarani. Os Waiapi vivem entre Brasil e a
Guiana Francesa, sendo que meus estudos se concentram nas comunidades
do Amapá que totalizam pouco mais de 300 habitantes. Estes, por sua vez,
se dividem em diversas aldeias independentes e distantes várias horas ou
dias entre si. O modelo social Waiapi possui ainda espaço para maiores
subdivisões, com casas construídas em várias localidades e freqüentes
migrações. A importância da fissão social se estende a outras comunidades
Tupi-Guarani, como é o caso dos Índios Arawete (Viveiros de Castro, 1986).
Este modelo não apenas cria as condições necessárias para contornar
possíveis conflitos mas funciona, também, como forma de administração
agro-florestal, ou seja, os recursos naturais de uma determinada região
podem manter indefinidamente um determinado grupo de indivíduos. Em
casos de explosão populacional estes recursos passam a ser utilizados ao
extremo, causando sua exaustão e, freqüentemente, profundas mudanças no
ecossistema. Especialmente na Amazônia, que se caracteriza por solos
inadequados à agricultura de larga escala, a necessidade de se utilizar
modelos que preservam a diversidade biológica e evitam a extinção de
espécies, apontam cada vez mais para as soluções e técnicas desenvolvidas
por sociedades tribais da região. Um certo equilíbrio populacional e
demográfico, em uma determinada região, pode ser alcançado sem que seja
necessário explorar o meio ambiente ao extremo, como demonstram os
índios Waiapi.
140
Além do aspecto relativo a conhecimentos gerais da natureza amazônica, os
Waiapi são encorajados a criar novas formas de expressão para serem
compartilhadas, durante as festas coletivas. Esta expressão artística
freqüentemente possui a função de ensinar à comunidade em geral aspectos
do comportamento de certas espécies e de fenômenos naturais, gerando
benefícios e, ao mesmo tempo, estimulando a liberdade artística e
expressiva de cada membro da sociedade. Complementando a relação com
o domínio natural, as festas coletivas dos Waiapi possuem, também, a
possibilidade de acessar ou aumentar o conhecimento do domínio
sobrenatural. Note-se que estes conhecimentos embasados em tradições
orais e transmitidos de geração em geração permanecem flexíveis, podendo
incorporar também os espíritos dos ancestrais Waiapi, novas espécies de
peixes, insetos e animais, mudanças no seu comportamento e suas relações
com os Waiapi. Como no meio natural e social, o meio espiritual também
permanece flexível e ágil o suficiente para incorporar modificações das mais
diversas.
Como veremos a seguir, os diversos mecanismos sociais, ecológicos e
emocionais se relacionam e fazem parte de um complexo que cria um certo
"ethos" dos Waiapi (Bateson 1980). Para podermos entender como estas três
dimensões (social, ecológica e emocional) se relacionam, é importante que
observemos aspectos gerais da sociedade Waiapi, suas estruturas, conceitos
e mecanismos diversos.
A estrutura social dos Waiapi basicamente envolve famílias nucleares,
grupos locais, liderança descentralizada e relações concretas e subjetivas
entre si, com espíritos diversos e com outras espécies de animais, peixes e
141
insetos. Como foi dito, anteriormente, os Waiapi vivem em grupos locais
identificados por conexões com uma certa região e relações diretas com um
líder. Este, por sua vez, não assume a posição hierárquica que o termo
significa em nossa sociedade, e refere-se principalmente ao fato de esse
"líder" ser uma pessoa de conhecimento. Na sociedade Waiapi, só existem
especializações para os líderes das aldeias, os shamas e os "organizadores
de festas," sendo que todas estas posições possuem caráter transitório e
negam qualquer forma de hierarquia ou possível dominação. Esta sutil
separação de classes relaciona se mais a um processo de socialização de
conhecimento. Como enfatizam os Waiapi, os alunos de cada festa serão os
professores das futuras gerações.
O líder de uma aldeia, segundo os Waiapi, é aquele que "achou um lugar" e
que, por meio de relações familiares e demonstração da validade de seu
conhecimento, pode atrair um grupo de famílias nucleares para uma certa
região. O conhecimento do líder refere-se, principalmente, a fatores
ecológicos que propiciam a escolha de solos adequados à agricultura, à falta
de formigas e a outras espécies prejudiciais ao cultivo, bem como a fartura
na caça, pesca e uso de demais recursos naturais (Fuks 1989). Este líder é,
também, aquele que possui um vasto repertório de canções utilizadas nas
festas coletivas (Fuks 1988). Estas canções não apenas representam mas
freqüentemente descrevem características e propriedades ligadas às
espécies honradas em cada festa. É importante frisar que a liderança Waiapi
possui caráter passageiro e que, nas festas coletivas, todos os indivíduos
são encorajados a serem "líderes" em performances diferentes. Desta forma,
o conceito de liderança passa a ser diluído entre todos os membros da
sociedade, o que eventualmente estimula níveis igualitários e desencoraja
hierarquizações. Com isso, e com a ausência de posições dominadoras, a
142
sociedade Waiapi cria um modelo neutro e interno que, por sua vez, será
refletido na visão não antropocêntrica dos Waiapi e suas relações com outras
espécies. Em nível de comunidade, o líder nunca ordena nada a ninguém
mas, através de uma retórica sofisticada, pode ou não persuadir certos
indivíduos a fazerem o que ele deseja. Este aspecto de liderança é
genenlizável entre comunidades Tupi Guarani (Kracke 1978, 1981, Viveiros
de Castro, 1986). Crianças podem recusar pedidos de favores feitos por
adultos, bem como homens e mulheres de idades diferentes nunca são
forçadas a aceitarem ou fazerem nada para ninguém. Tais "favores" são
feitos por livre e espontânea vontade, estimulados apenas pelo uso de
técnicas de sedução e persuasão oral.
Ducante as festas coletivas, esta liderança flexível se torna ainda mais
aparente, com o resultado gradual de uma performance simultânea de
diversos instrumentos musicais e vozes, levando a uma "cacofonia" ou
polissincronia multisensorial envolvendo música, dança, caxiri (cerveja de
mandioca), pintura corporal, etc. (Fuks 1988, 1989). Nesta estética, que
funciona paralelamente a outros sistemas, cada indivíduo pode tocar ou
cantar o que bem entender, seguindo apenas a estrutura básica de cada
festa. Tais festas coletivas podem envolver um grande número de
participantes, podendo até serem estendidas a outras aldeias. Em uma
ocasião quatro aldeias organizaram um grande evento em reverência ao
peixe paku açu. Em alguns casos, porém, apenas um pequeno número de
participantes realizam festas coletivas, com o mínimo registrado envolvendo
apenas três participantes. A importância destas festas e da música ,em geral,
torna-se aparente quando observamos que elas constituem a atividade à
qual os Waiapi dedicam a maior parte de seu tempo (Fuks 1989). Mesmo a
agricultura somada às outras atividades de subsistência totalizam um
143
número menor de horas. Alem de nos surpreendermos como os Waiapi
podem se dar a esse luxo, ficamos perplexos, ao tentarmos entender como e
por que as festas coletivas adquirem tamanha importância.
Uma razão para tanto refere-se a uma certa consciência ecológica (se
usarmos nossos termos) refletida nestes eventos e aliada à possibilidade de
expressar e sentir diversas emoções. Estes conhecimentos ecológicos e a
expressão de emoções adquirem, também, um caráter didático, ilustrando-os
às futuras gerações. A importância das formas de expressão orais em
sociedade "preliteradas" não deve ser subestimada. Portanto as festas dos
Waiapi adquirem uma certa função de ensino, em uma atmosfera prazeirosa
que, freqüentemente chega ao êxtase. Estes aspectos (sociais, ecológicos
emocionais) e suas interações ficam mais claros se observarmos detalhes da
festa do mangengan, uma dentre as várias comemorações Waiapi.
A abelha mangangan aparece em grande número, no início da estação das
chuvas, época que indica transformações marcantes na floresta amazônica,
o início do plantio e atividades agrícolas subsequentes. A relação entre o
complexo natural e ecológico com o modelo de organização social dos
Waiapi e dos mangangan, é refletida nesta festa. Isto ocorre, após os
participantes terem chamado os "mangangan", através de danças e canções
alternadas com os sons das flautas chamadas "mangangan ra'anga ". O
termo rá´anga indica uma certa imitação auditiva e multissensorial das
espécies representadas. Para cada festa coletiva, os Waiapi fazem novos
instrumentos musicais que, por sua vez, pertencem à classe também
chamada ra'anga. As flautas da festa do mangangan são chamadas
mangangan ra'anga, e as da festa do jaguar (onça) jawarun ra'anga. Com a
chegada dos mangangan, os participantes se transformam neste "outro" e
144
passam a agir de acordo com as características próprias, no caso, o
mangangan. Uma dessas características é representada pela picada de
"abelhas " que assume uma relação metonimica, pois um cinto de palha com
formigas é colocado em volta dos participantes e dos membros da audiência.
Outra modificação no comportamento regular Waiapi (humano), passando
para o comportamento dos mangangan (inseto), é indicada pela forma com
que a cerveja de mandioca é servida aos participantes. Convém frisar que
todas as festas coletivas dos Waiapi são marcadas, também, pelo consumo
de cerveja de mandioca ou caxiri. As festas são avaliadas pela quantidade e
qualidade da cerveja. Nestas, emerge sempre a pessoa do "caxiri jara" ou
dono da cerveja caxiri. São suas esposas que preparam e servem o caxiri,
durante as festas, seguindo uma ética elaborada e organizada no preparar e
servir, de acordo com o conhecimento de cada participante sobre o tema
(como por exemplo o mangangan) de cada festa (Fuks 1989). Após a
transformação em mangangan, os Waiapi adquirem uma "licença artística "
e, teatralmente, passam a beber o caxiri direto de um pilão e de forma
aleatória. Assim sendo, as abelhas vivem, cantam, dançam e bebem caxiri,
de maneira diferente dos Waiapi, mas os Waiapi se mostram dispostos a
aprenderem algo com os mangangan, e fazem isso, usando todos os
sentidos. Se não bastasse o efeito catártico das festas coletivas, cada
participante pode reinterpretar o "cenário natural" e agir, de forma não usual.
Estas formas não Waiapi, podem então ser testadas por indivíduos ou pela
comunidade e, dependendo de sua validade pratica, podem vir a ser
incorporadas à sociedade Waiapi, já que esta propicia espaço para
constantes modificações.
Uma lição exposta na festa do mangangan se relaciona ao fato de as
145
abelhas serem atraídas pelo cheiro e beleza visual de certas flores, que
passam a ser abundantes na época das chuvas. Desta forma, em uma seção
da performance, os participantes dançam com um buquê de flores. A seguir,
as mulheres ou parceiras de cada participante recolhem estes buquê.
Segundo os Waiapi, isso é a ´forma utilizada pelos mangangan que após
recolherem o néctar das flores, levam-no a sua "casa", passando-o para
suas
famílias
e
amigos.'
Neste
caso,
observamos
a
visão
não
antropocêntrica dos Waiapi, que observam o comportamento das abelhas e
suas relações complementares com as flores. O efeito da polinização
simultâneo à extração do néctar das flores pelas abelhas, é representado
através da música, dança e representações visuais, olfativas e táteis. Tudo
isso ocorre em uma atmosfera festiva, com muitas gargalhadas, reflexões e
comentários sobre as "coisas de mangangan" que somados a um efeito
quase anestésico da música, dança e caxirí gera um contexto marcado por
fortes emoções. Ao mesmo tempo, festas como a do mangangan, ilustram
como um grande ecossistema composto de diversos fatores se relaciona a
um complexo "drama social". Neste modelo o homem não é apenas um
simples ator, mas interage em termos de igualdade com outras espécies.
Esta mesma atitude se reflete na forma não hierarquizada de organização
social dos Waiapi. O poder quando emerge e permanece por muito tempo é
ridicularizado e passa a ser repudiado (Clastres 1979, Fuks 1991). Isto
acontece na realidade com a temível é venerável onça (também honrada, na
festa do jawarun).
Segundo os Waiapi, a onça representa o pajé em sua eterna liminalidade
entre os domínios humanos e espirituais. Tanto a onça quanto o pajé
possuem poderes supernaturais que os distinguem dos outros. Tais poderes
podem ser utilizados para o bem ou o mal dos Waiapi e de outras espécies
146
de animais, peixes e insetos.
Assim sendo, as festas coletivas dos Waiapi se encaixam com outras
instituições liberalizantes que, ao mesmo tempo, criam uma forma autosuficiente e descentralizada de organização social, semelhante à "ecologia
da liberdade" sugerida por Bookchin (1982). Esta autosuficiência, aliada à
ênfase na criatividade artística, estimula a individualidade entre os Waiapi,
mas considerando sempre o equilíbrio social na aldeia, o equilíbrio em
relação a outras culturas e sociedades, o equilíbrio com outras espécies e
espíritos, criando um super "multiecosistema global". Volto a frisar a
complexidade deste sistema que, de maneira sutil, preza a interdependência
e complementariedade de fatores sociais, emocionais e ecológicos. Neste
complexo ecossistema, os Waiapi apenas contribuem com uma pequena
parte sem se sobressaírem aos demais, ajudando-se uns aos outros.
CONCLUSÕES
As diferenças entre nossa sociedade industrial e a sociedade tribal dos
Waiapi são evidentes e transplantar um modelo de um contexto para outro
tende a ser impraticável. Mas, se observarmos nossas aspirações e
necessidades básicas (incluindo não apenas nossa sobrevivência em termos
de alimentação, moradia, desejos sexuais e outros) passamos a observar um
número de semelhanças com os Waiapi. É importante frisar que a sociedade
Waiapi não vive em um paraíso idealizado pela visão romântica criada sobre
certas sociedades tribais. Os Waiapi freqüentemente se vêem forcados a
enfrentar crises e catástrofes sociais e ecológicas.
147
De maneira análoga ao nosso conhecimento prático das condições
climáticas, meteorológicas e geológicas, incapaz de prever com exatidão e
evitar enchentes, terremotos e furacões, o conhecimento Waiapi também é
vítima de erros e de elementos indeterminados. A suscetibilidade a doenças
diversas e a capacidade parcial de curá-las ou controlá-las é outra
semelhança entre a nossa sociedade e a dos Waiapi.
Apesar das semelhanças e diferenças entre nossa sociedade e a dos Waiapi,
algumas sugestões de formas alternativas de controle ecológico, social e
emocional podem ser inferidas. Creio que várias destas sugestões são
perfeitamente compatíveis com nossos modelos e nos permitem encarar
certos problemas sociais, econômicos, e ambientais, bem como as crises de
razão, economia e ciência apontadas por Theodore Adorno, Karl Marx e Max
Webern. Estas sugestões focalizam-se em idéias Waiapi que se assemelham
ao modelo da ecologia social proposto por Bookchin e se ajustam as nossas
necessidades e aspirações:
1. Manter um equilíbrio com aqueles que fazem parte de nosso "milieu" e
com os quais interagimos regularmente, e com o meio ambiente em geral.
De certa forma, vivemos nestas condições buscando tais equilíbrios, mas
nos concentramos em nossos pequenos e isolados microcosmos. No modelo
Waiapi, não apenas nossas relações com familiares e amigos mais próximos
se mostram necessárias mas em um amplo contexto socio-ecológico. Neste
modelo homeostático relativo existe espaço, também, para possíveis
conflitos, suas resoluções, separações e eventuais interações. A relação
refletida na consciência ecológica mais ampla pode ser esclarecida se
observarmos a relação metafórica que mantemos com animais de estimação.
O mesmo afeto e falta de exploração que demonstramos com nossos
148
animais de estimação podem ser estendidos a outras espécies das quais
usufruímos os subprodutos. Com moderação, podemos continuar a utilizar
estes benefícios sem impor, subjugar, explorar e dominar "outros", humanos
ou não.
2. Interação: Combinar os três elementos básicos do ethos Waiapi igualdade social, consciência ecológica e liberdade emocional - constitui algo
que podemos aprender. Segundo a abrangente "Ecologia Social" de
Bookchin, existe uma certa compatibilidade entre possíveis igualdades
sociais e consciências ecológicas, unidas pela falta de exploração e
dominação, seja ela intra ou extra humana. Como vimos antes, no modelo
Waiapi, isto também ocorre, mas para manter a sociedade em sua vitalidade
plena é necessário um certo "tempero" a ser compartilhado por todos. Este
"tempero" emerge justamente das emoções expressadas nos contextos
artísticos, e levando junto um corpo de conhecimento que, por sua vez,
reenfatiza as relações sociais igualitárias e as diversas formas de interação
com o meio ambiente e com outras espécies. Esta visão não antropocêntrica,
até nas sensações daquilo que consideramos marcadamente humano
(emoções), mais uma vez afirma a falta de hierarquia na sociedade Waiapi,
tanto internamente quanto em relação às outras espécies. Esta visão
interativa poderia ser aplicada à nossa sociedade, de maneira análoga a uma
grande orquestra, sem maestro e tocando uma grande sinfonia composta (de
maneira não dogmática) ou improvisada por todos. Nesta grande orquestra,
para que se faça música em conjunto, é necessário passar por processos e
experiências semelhantes à afinação dos instrumentos musicais. Cada um
se coloca à disposição, para ceder um pouco, até que se encontrem em um
denominador
comum,
para então poderem
expressar
sua
arte e,
eventualmente chegarem a um estado de equilíbrio ou "communitas". Assim
149
sendo, aplicando o modelo Waiapi, poderíamos tocar outras músicas com os
temas que enfatizam a "harmonia" ou interação entre as consciências sociais
e ecológicas e os "temperos" emocionais.
Minha intenção, neste artigo, foi mostrar a viabilidade de um modelo social
utilizado por uma pequena sociedade tribal Amazônica. Através de forças
socioculturais, pode-se criar uma sociedade que mantém um equilíbrio entre
seus membros e em relação a outras espécies e ao meio ambiente. Nesse
modelo interativo todos possuem liberdade para fazerem o que quiserem,
mantendo suas individualidades e, ao mesmo tempo, considerando as
formas de interação com "outros". Assim sendo, a expressão de emoções
assume posição essencial no modus vivendi", e se relaciona com o
conhecimento social e ecológico. Assim sendo, podemos aprender a ser
índio e refletir sobre as idéias Waiapi, com resultados benéficos para todos.
Referências
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Chadler Pub. Co.
Bookchin, Murny. 1982 The Ecology of Freedom: An Eminent Social Thinker's
Provocative Vision of a Free Society in Harmony with Nature.
Clastres, Helen 1978 Terra sem Mal: O Profetismo Tupi-Guanni. São Paulo:
editora Brasiliense. Original in French published in 1975.
Clastres, Pierre 1978 A Sociedade Contra o Estado. Rio de Janeiro:
150
Francisco Alves Editora. Original in French published in 1974.
Fuks, Victor 1988 Music, Dance and Beer Drinking. In Latin Americxn Music
Review Fall/Winter Vol. 9, No. 2:150-186.
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the Waiapi Indians of Brazil. Bloomington, Indiana. Unpublished PhD
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1991 "Postmodern Musical Episcemology: The Power and Knowledge of Tupi
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151
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Weber, Max. 1948 The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism,
translated by Talcott,. Parsons. London: Allen & Unwin.
Zicklin,
Gilbert.
1983
Counter
Cultural
Perspective. Waport, Conn.: Grecnwood Press.
152
Communes:
A
Sociological
Coletivo Domingos Passos
Ecologia Social é Pelegagem!?
A Ecologia Social é pelegagem ou a Pedagogia Libertária é mera retórica,
para um falar e agir intelectualmente "confortante"?
Todas as idéias novas e constatação de fatos quando concebidos ou
descobertos, a princípio, sempre são recebidos com a "desconfiança" do
preconceito e a sua decorrente animosidade e desvalorização. Isto para
apresentar uma forma mais amena de contrariedade.
Vide o que ocorreu com "livres–pensadores" como Copérnico, Giordano
Bruno e Galileu Galilei na assim chamada idade média. Homens que podem
representar o advento da série de questionamentos em diversos setores do
saber e na visão de mundo que desembocou no "Renascimento" cultural e a
redescoberta do próprio Ocidente.
No caso de Copérnico foi uma profunda e radical mudança de paradigma,
chamada de revolução Copernicana, que consistiu na teoria de que a terra
move-se em torno do sol e não o inverso, que era postulado dogmaticamente
pela igreja.
Consiste
na oposição
do
geocentrismo da igreja
ao
heliocentrismo de Copérnico, pela qual a detentora do monopólio ideológico
perdia, e perdeu, muito de sua influência e poder.
Em seguida, com o "Renascimento", como autoproclamado pelos estetas da
época, surgiram novos paradigmas como o antropocentrismo, que colaborou
153
para a desconstrução do teocentrismo até este momento dominante neste
processo de transformações do Ocidente.
Decorreu em seguida o mercantilismo, a reforma protestante e o
racionalismo cartesiano, de base "mecanicista" e etc. sendo que este último
erigiu–se como uma "nova moral religiosa da modernidade" e sua
conseqüência direta foi uma visão extremamente utilitarista do mundo,
subordinando–o à sua lógica "analógica", "analítica" e "digital", antes da
cibernética, com os seus: racional ou irracional, certo ou errado, lucrativo ou
não.
Este tipo de visão tem como prioridade secionar, atomizar o conhecimento e
a sua experiência. Ele vê as partes de uma árvore ao invés da árvore, ou de
um bosque. "Adestra" a visão do homem em relação ao mundo e à
"natureza", das coisas a uma determinada lógica. Este paradigma gera um
"conforto", uma "conformidade" do pensamento no que ele poderia inspirar
de reflexões mais instigantes, obscuras e ansiosas, pois as grandes
questões não-eleitas como utilitárias ou importantes, e a própria reflexão
sobre esses valores, são deixadas de lado. É um "conforto" que gera
"conformismo" intelectual e pensamento estático. Ela divide, escrutina,
separa, seciona o conhecimento e conquista o imaginário social diminuindo o
poder de intervenção e elaboração simbólica de outros saberes como as
culturas e tradições ancestrais em relação à natureza, sua ética e visão do
mundo e para com o mundo.
Estamos numa época de profundos conflitos, gerados pela "globalização".
Também dentro desta conjuntura há o florescimento, e o resgate de outras
154
visões de mundo, ou o surgimento de outras. Podemos afirmar que estamos
caminhando, se não houver nenhum "acidente", para uma provável nova
"revolução Copernicana". Mas deixemos este ponto para mais adiante.
Falemos agora das polêmicas surgidas dentro do "movimento libertário" a
partir destas novas conjunturas.
Com a derrocada dos regimes do capitalismo estatal, como ex–URSS e leste
europeu, ou seja, o fim da "guerra fria", com o mundo todo se tornando um
imenso burgo lamacento, onde espaços antes ocupados no imaginário
social, e antes de tudo nos movimentos sociais, em que esquerda fetichizava
o operário industrial urbano e colonizava com o seu programa outros setores,
tais como camponeses, favelados e contestações de fundo étnico, dando–
lhes uma dinâmica monolítica e unidimensional, e com a falência deste
projeto, novos movimentos e alternativas começaram a surgir ocupando
estes espaços, dentro de uma enorme multiplicidade. Estes movimentos são
de todos os tipos e aspectos. Muitos são meras reivindicações como
princípios
em
si
mesmos,
como
o
movimento
dos
consumidores
"conscientes". Outros de perfil que poderíamos chamar "não rigidamente" de
"libertários". E muitos outros fundamentalistas, como os religiosos,
nacionalistas e "Nazis".
Dos anos 60, séc. XX, até a atualidade, popularizou–se a revalorização das
teses e práticas "libertárias anarquistas", o surgimento e valorização de
movimentos étnicos, indígena e negro por exemplo, de gênero e anti–
patriarcais, gays, lésbicas e mulheres, e a verdadeira "febre"” que é o
"movimento ecológico internacional", sendo isto, em muito, herdeiro de um
arcabouço teórico de origem anarquista, tendo como exemplo evidente a
obra "Campos, fábricas e oficinas", de Pedro Kropotkin, e um dos seus lemas
155
mais importantes é sintomático em relação a isto, "pensar globalmente, agir
localmente".
Apesar
deste
florescimento
de
movimentos,
ousadias
intelectuais e ativistas, o mundo não se tornou uma grande "aldeia–livre".
Estas novas concepções, e as resgatadas, de movimentos e visões de
mundo ainda estão sendo digeridas, e talvez o seu pleno potencial ainda seja
embrionário e contraditório. Conflitos entre estes elementos não foram
totalmente superados, e isto somente a prática social quotidiana poderá
silenciosamente responder.
Para assinalar a partir do campo da ação e reflexão anarquista pode ser
exemplificada brevemente ao nível geral a polêmica surgida recentemente a
respeito da Ecologia social e da Ecologia profunda. Tentar-se-á tratar deste
tema como um todo.
Com a popularização das "teses" políticas e ecológicas colocadas em pauta
em todo mundo, mais fortemente a partir dos anos 60, nasceram duas
vertentes neste debate de pensamento e ação radical que são a ecologia
social, de influência nitidamente e diretamente anarquista, vide a obra de
Murray Boockchin, anarquista norte–americano membro fundador do Instituto
de Ecologia Social de Nova Iorque, e a chamada “Ecologia Profunda”,
inicialmente sem ligações diretas com o anarquismo, inspirada na obra do
filósofo norueguês Arne Naess e posteriormente adotada pela "ecoguerrilha", ou sabotagem ecológica, pela organização chamada Earth First!,
"A Terra Primeiro!", fundada inicialmente nos EUA em 1979, pelo fuzileiro
veterano da guerra do Vietnã, Dave Foreman, cujos princípios básicos da
organização são: estrutura federalista e radicalmente descentralizada, não–
156
violência, ação direta e ecologia profunda.
Entre
estas
duas
vertentes
existe
uma
certa
animosidade
mútua
principalmente no campo teórico, já que a militância da EF! é mais forte e
contem muitas individualidades e organizações ácratas. A EF! acusa os
ecologistas sociais de excessivamente "antropocêntricos", preocupados
apenas com a remediação dos problemas ecológicos, vendo apenas uma
parte da vida, o homem, e não atentando para o todo do planeta, a Mãe
Terra, categoria forte na EF!. Da parte dos Ecologistas sociais, aviso, nem
todos de matriz anarquista já que a ecologia social se pretende enquanto
uma das diversas subdivisões da ciência, acusam a Ecologia profunda de
misantrópica, alienada das questões sociais e excessivamente "biocêntrica".
Na linha de frente desta crítica está o próprio M. Boockchin. Como podem
ver, está formada uma querela. Embora o próprio M. Boockchin no seu
trabalho "Por uma ecologia social", reconheça a proximidade nos últimos
tempos da EF! com a IWW, órgão sindical de orientação libertária, fato
deveras inovador neste país onde o sindicalismo tem a tendência e tradição
de ser corporativo e atrelado ao paradigma do credo industrial capitalista.
Para complicar um pouquinho mais este quadro, há a posição de setores
anarco–sindicalistas portugueses da FAI que acusam os signatários das
teses do Boockchin de "neo–anarquistas" de direita, que abandonaram "a
luta dos trabalhadores". Fazendo uma breve análise destas questões, no
caso específico dos anarco–sindicalistas, existe um equívoco em relação a
este assunto. Primeiro por que estes não consideram estas questões. As
suas avaliações são realizadas em categorias cristalizadas, desconectadas
com o real, feitas na maioria das vezes de forma apriorística, e não que os
companheiros sejam obrigados a uma “concordância” inexorável e a se
157
tornarem PhDs em ecologia social, mas um pouquinho de sensibilidade e
menos ortodoxias ajudariam bastante a sensibilizarem–se a novas e
pertinentes questões. Talvez em Portugal seja um pouco como no Brasil. Em
segundo, o anarco–sindicalismo ainda está atrelado ao paradigma da "luta
econômica industrialista", sendo que é observado que esta tendência e as
suas organizações não são mais um movimento preponderante, e nem
representam mais uma alternativa concreta de transformação social. Sua
preocupação primordial é promover a luta econômica industrial com tintas
"anárquicas", mas estes hoje apenas sobrevivem em formas mumificadas e
em discursos radicalmente ultrapassadas, convertendo–os assim em
ortodoxos.
Em relação à dicotomia Ecologia Profunda e Ecologia Social, a questão às
vezes é meio espinhosa, mas mesmo assim há de se aprender muito com a
prática e a teoria das duas vertentes. A princípio, deve-se observar e
esclarecer que no caso da Ecologia social esta não consiste numa
organização e sim em uma elaboração teórica e proposta, como tantas
outras teses anarquistas: o apoio mútuo, a desobediência civil, a ação direta,
a autogestão etc. Nos EUA esta prática habita duas esferas: a acadêmica,
como uma espécie sui generis de transdiciplinaridade, e o ponto
programático,
idéia-força,
tese e princípio
dos
grupos organizados
anarquistas. Porém existem grandes polêmica sobre os limites desta última
esfera por parte de outros ecólogos sociais.
No caso da Ecologia Profunda, esta pode ser considerada como um conjunto
de princípios éticos sobre toda forma de vida no planeta, seja humana ou
não-humana, como são trabalhadas as categorias de discurso por parte dos
ecólogos profundos. Como foi dito antes, a principal organização política que
158
adota esta teoria é a já referida EF!, mas também há a incorporação de
pequenos grupos pacifistas e de direitos e liberação animal.
A EF! advoga uma profunda transformação nas estruturas econômicas,
políticas e das mentalidades. As suas "ações diretas" de eco-sabotagem são
contra os agentes diretos da poluição e depredação da natureza. O alvo
principal é o grande capital das megacorporações transnacionais e também
nacionais. Tem se observado que nos últimos anos, nas fileiras da EF!, tem
crescido bastante o número de militantes de orientação anarquista.
Visto isso, pode-se interpretar que as posições de luta pela melhoria da
qualidade de vida das comunidades humanas com uma conseqüente
transformação "profunda" da sociedade a pressupostos de defesa de
quaisquer formas de vida e seus ecossistemas não são contraditórios e nem
oponentes. A dicotomia entre antropocentrismo e biocentrismo é falsa. Mas
ocorre um fato além da vaidade e briga por espaço político. Acontece
realmente que adeptos da Ecologia profunda, eventualmente, e alguns
setores, têm a tendência há um certo "fundamentalismo biológico
preservacionista", e talvez isto seja reflexo das proposições do próprio
Foreman. Mas o seu empenho ativista, dedicação e base ética bem
constituída na esfera da condução filosófica do ativismo, são invejáveis,
mesmo se estes ainda engatinharem na clareza de sua análise social para a
"comunidade humana". Enquanto que com a ecologia social, esta tem claras
e objetivas propostas em relação ao social, mas apenas principia-se em uma
visão mais holística com outros elementos vitais ao ser humano e à vida.
Prendem-se a vícios do passado que também atrapalham com que esta
visão se amplie.
159
Estas teses e proposições ideológicas, metodológicas, filosóficas, científicas,
práticas e éticas devidamente criticizadas são possivelmente intercambiáveis
aqui no Brasil. Jamais devemos ser certos de nossas certezas em demais
pois isto atrofia a prática, esteriliza a reflexão e dogmatiza o espírito, mas
mesmo assim nas condições tropicais brasileiras talvez seja possível
florescer uma "Ecologia social de visão profunda" como uma linha de
interpretação do mundo e linha de ação. O nosso patrimônio biológico,
multicultural, humano e social podem contribuir muito para com a nossa
própria sociedade e por que não com o próprio planeta. Esta temática e este
tipo de proposta com certeza enfrentaram (e enfrentam) resistências
infundadas ou talvez preconceituosas.
Dado que os anarquistas brasileiros, muitos, mas não todos, sofrem de uma
estranha doença "da auto-afirmação", depois de anos de inação e autoenclausuramento em conventos culturalistas, agora que estes estão
começando a despertar para a ação nas gerações mais recentes sofrem
desta estranha patologia, que é repetir retoricamente um anarco-comunismo
datado combinado aos vícios da visão anarco-sindicalista com práticas de
análise em “dogmatismos principistas” da esquerda tradicional. Mas esta
crítica está associada apenas aos reprodutores da “velha escola” e
“culturalistas de classe média” por que já existe uma nova geração composta
de elementos sinceros e tolerantes que estão trabalhando para alavancar as
lutas sociais vitais para a nossa sociedade.
Pois é nítido, empiricamente comprovado, que o paradigma cartesianomecanicista, “industrialista” e utilitarista-econômico hoje, com o processo de
globalização, porá em cheque a humanidade e quaisquer formas de vida
ameaçando severamente a Mãe Terra.
160
A militância libertária para este princípio de terceiro milênio além de não
transigir com os seus princípios vitais incorporados nas lutas populares, deve
ter uma atuação prática dentro de uma visão multidimensional, ou seja,
signatária de novos paradigmas Holísticos e transdiciplinares filosóficoscientíficos como também otimisadores de outras tradições, saberes; o
intuitivo com o racional conjugado com os saberes populares e comunitários,
e também dos saberes milenares dos povos ancestrais “originários”,
africanos, indígenas e etc. Pois urge cada vez mais o rompimento com as
metafísicas mistificadoras religiosas tanto quanto com os vícios e males do
materialismo. Deixemos isto para o marxismo.
Neste tempo de demanda por transformações politico–sociais, é contatado
que novas formas de conhecimento como a ecologia, que por acaso significa
o “estudo da casa”, ou seja ambiente, universo, requer o trabalho sóciocultural da consciência ambiental irmanado com a questão econômica.
Economia significa administração da casa, do ambiente. Para continuarmos
a viver e não meramente sobreviver como humanos devemos entender e
lutar por quem vai “administrar”, respeitar ou arrumar a casa. Nós todos ou
uma casta genocida?
Tanto se fala entre os anarquistas brasileiros e outros ativistas populares na
defesa de uma concepção de acordo com a cultura popular brasileira e
latino-americana e se faz tão pouco para implementá-la. O paradigma
Holístico é uma janela que se abre para esta questão.
Afinal de contas o termo libertário hoje é um conceito muito amplo. Ele não é
161
mais de nenhuma forma monopólio dos anarquistas, devemos ter
consciência disto, pois dentro dos próprios princípios dos “autonomistas”
europeus, por exemplo, admite-se que em outras culturas, de outros
continentes surjam formas diversas de “libertários”. Os “Resistentes”,
“Magonistas” e “Zapatistas” podem enquadrar-se neste caso, ou seja,
sermos globais, internacionalistas, sem esquecermos de quem somos ou dos
nossos rituais culturais comunitários.
O que se entende por "libertários" são aqueles que lutam e ao mesmo tempo
têm como princípio a liberdade. Isto dado não apenas numa forma idealizada
e abstrata, metafísica, e sim com práticas concretas como, ação direta,
descentralização,
democracia
direta
horizontalizada,
fóruns
coletivos
públicos de deliberação e federalismo. Dentro destes princípios existe hoje
uma grande multiplicidade de correntes e movimentos sociais adeptos tais
como os autonomistas, movimento Zapatista no México, movimento Okupas
na Espanha, movimentos ecológicos, ação global dos povos, movimentos
indígenas etc. Somente dialogando apoiando, agindo conjuntamente e
incentivando estas iniciativas contra o verdadeiro adversário da humanidade
que é o capitalismo “globalitarista” promotor de guerras, genocídios e
ecocídios, somente através de alianças em “rede” e horizontalizadas que as
pessoas poderão resistir “globalmente.”
Desconstruindo
quaisquer
formas
de
obscurantismos,
mentalidades
confortantes e acomodadas mal-disfarçadas de principismo, poderá se
construir uma democratização econômica com a descentralização produtiva,
com gestão comunitária em rede gerando empregos saudáveis e para todos
em oposição às concentrações da produção industrial que é hierárquica,
sexista, anti-humana e poluidora. Características típicas da economia
162
capitalista.
Pode-se afirmar que a vida na terra seja humana e não-humana, seja
comunitária e que os ecossistemas estão além do que nossas arbitrárias
medidas de valores supõem.
Para esclarecer melhor o que foi discutido neste ensaio é recomendada a
leitura de obras dos autores clássicos tais como Petr Kropotkin, os irmãos
Reclus e de autores recentes como Felix Guatarri, Cornelius Castoriadis,
Fritjof Capra, Michel Foucault, Arne Naess, Murray Boockchin, Lewis Munford
e Pierre Clastres.
Concluindo, para se trabalhar de forma concreta a consciência ambiental e
ecológica, de nossa casa que é o mundo, com um processo de
aprofundamento da tomada de consciência social é pertinente se trabalhar
na educação popular incluindo na sua área temática e didática a educação
ambiental. E esta Educação popular pode apoiar-se no seguinte tripé
temático: pedagogia libertária, estudo e aplicação da ecologia social
mesclada à ecologia profunda e práticas técnicas para a melhoria direta da
comunidade feita em regime de mutirão.
A pedagogia libertária é a educação na vida e a ecologia é a ética na ciência
conjugando um “modo de vida” voltado para a vida.
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viva a revolução social!
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