2015/03/27 O episódio Charlie Hebdo: O regresso aos “cartoons de Maomé” Francisco Jorge Gonçalves 1 «Os cartoons não eram sobre Maomé. Eram sobre quem devia representar os muçulmanos. O que acho verdadeiramente ofensivo é que jornalistas e políticos vejam os fundamentalistas como os verdadeiros muçulmanos.» (Naser Khader, citado por Kenan Malik (2009), in From Fatwa to Jihad. The Rusdie Affair and its Legacy, London, Atlantic Books) Após o ataque terrorista ao semanário Charlie Hebdo, verificou-se uma enorme adesão, a nível global, na defesa do Estado de Direito e do Direito à Liberdade de Expressão. Todavia, alguns sempre foram dizendo, aqui e ali, apesar de condenarem o ataque terrorista, também afirmaram que estava em causa o respeito à religião islâmica. Pois bem, é justamente esta questão que deve ser analisada, partindo do episódio Charlie Hebdo, que afinal é uma repetição dos «Cartoons de Maomé», assente no pressuposto (errado) que retratar visualmente Maomé constitui uma ofensa ao Islão. A história começa assim: Kâre Bluitgen pertence à esquerda e defende a integração. Em 2005, escreveu um livro para crianças sobre o Islão intitulado «O Corão e a Vida do Profeta Maomé», pretendendo promover uma melhor compreensão da religião islâmica e, para o efeito, procurou alguém para ilustrar o livro. Ora, os três primeiros recusaram, com medo que pudessem ter o mesmo destino de Theo Van Gogh (realizador holandês morto por Bouyeri, líder da célula Hofstad): inclusivamente, o jornal «conotado com a esquerda», Politiken, retratou esta demanda frustrada. Em resposta, o «jornal conotado com a direita» Jylland Posten, solicitou a 40 cartoonistas da Dinamarca para retratar Maomé: 12 aceitaram o repto e assim foram publicados em setembro de 2005. Pois bem: uma semana após a sua publicação, sem ter havido qualquer tipo de polémica, os jornais contactaram uma série de imãs sobre o assunto. Ahmad Abu Laban, controverso por admirar Bin Laden (e chorar lágrimas secas sobre o 11 de setembro) e intitulando-se como representante dos crentes islâmicos moderados residentes na Dinamarca, tentou que o Primeiro-Ministro Dinamarquês pedisse desculpa, mas não obteve resposta. 1 Investigador do Radicalismo Islâmico. Autor do Livro: «O Islamismo Radical e o Combate às suas Ameaças: da Dawa à Jihad» (Diário de Bordo Editores, 2011), assim como mais de 20 artigos em publicações da especialidade. Página 1 de 2 JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt Todavia, em dezembro de 2005, na organização da conferência islâmica em Meca, um grupo de imãs radicais compilaram um dossier de 40 páginas, composto por fotografias cujo propósito visava uma estratégia de contrainformação. A fotografia mais sensacionalista pertencia afinal ao comediante francês Jacques Barrot, que competira num concurso gastronómico, enquanto usava um nariz de porco de borracha. Todavia, os imãs radicais identificaram essa fotografia como fazendo parte dos cartoons, com o propósito de instigar o ressentimento e a raiva. A armadilha resultou em cheio… O resto é história… O episódio trágico de Charlie Hebdo é uma reprise de eventos, no qual uma série de supostos conhecedores do Islão e de decisores políticos proferiram afirmações a roçar a boçalidade, alinhados com os Fundamentalistas Islâmicos, na difusão da sua versão do Islão, como sendo a única e credível. Mas será que retratar Maomé constitui uma ofensa ao Islão? E se vos dissermos que até ao século XVII, Maomé era retratado visualmente… e por muçulmanos? Em primeiro lugar, a descrição verbal de Maomé (e.g. nem alto, nem magro, cabelo preto) é usual em várias fontes (Ali Talib). Por outro lado, a representação da sua caligrafia (palavra Maomé), também é bastante frequente e aceite na religião Islâmica. A questão coloca-se em termos da representação visual de Maomé. Inicialmente, a representação humana em mesquitas e moedas foi usual na religião Islâmica, mas com a sua consolidação essa representação passou a não ser feita. Segundo uma interpretação do Islão, a suposta proibição da representação visual de Maomé visa evitar que aquele fosse objeto de adoração, colocando em causa o Princípio da Unidade de Deus «Tawhid»: Apenas e somente Alá deve ser objeto de adoração. Porém, isso não impediu a representação visual de Maomé (com o rosto coberto ou a descoberto) ao longo dos tempos...e por crentes islâmicos. Quem melhor para o afirmar do que Ali Widjan, uma mulher que professa a religião islâmica, académica reputada em História de Arte e pertencente à Família Real Jordana. Num ensaio escrito em 19992, a Académica demonstrou que a proibição na retratação visual de Maomé surgiu no século XVII apesar dos fundamentalistas islâmicos advogarem que a sua retratação sempre foi proibida pela religião islâmica. Razão tem a Professora Zeyno Baran, ao constatar que o pouco conhecimento do Islão e das suas realidades complexas leva a que os europeus sejam incapazes de discernir «(…) os moderados dos extremistas que se camuflam numa retórica (aparentemente) tolerante.» Afinal, o crente islâmico moderado, na verdadeira aceção da palavra, não impõe a sua interpretação do Islão a terceiros. 2 Ali Wijdan, «From the Literal to the Spiritual: The Development of Prophet Muhammad’s Portrayal from 13th Century Ilkhanid Miniatures to 17th Century Ottoman Art», EJOS, IV (2001) (= M. Kiel, N. Landman, & H. Theunissen (eds.), Proceedings of the 11th International Congress of Turkish Art, Utrecht, The Netherlands, August 23-28,1999), N.º 7, 1-24. Página 2 de 2