UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA PATRICIA DE SOUSA ANDRADE O TRABALHO DE PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO MUSICAL DE DOIS DJS DE MÚSICA ELETRÔNICA DE CUIABÁ CUIABÁ-MT 2011 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA PATRICIA DE SOUSA ANDRADE O TRABALHO DE PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO MUSICAL DE DOIS DJS DE MÚSICA ELETRÔNICA DE CUIABÁ CUIABÁ-MT 2011 PATRICIA DE SOUSA ANDRADE O TRABALHO DE PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO MUSICAL DE DOIS DJS DE MÚSICA ELETRÔNICA DE CUIABÁ Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa Comunicação e Mediações Culturais. Orientadora: Profª Drª Cássia Virgínia Coelho de Souza Cuiabá-­‐MT 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Fonte A553t Andrade, Patricia de Sousa. O trabalho de produção e divulgação musical de dois Djs de música eletrônica de Cuiabá / Patricia de Sousa Andrade. – 2011. 108 f. ; 30 cm. Orientadora: Cássia Virginia Coelho de Souza. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2011. Inclui bibliografia. 1. Música eletrônica – Produção. 2. DJ – Produção musical. 3. Música eletrônica – Tecnologias. 4. DJ – Divulgação musical – Cuiabá. I. Título. CDU 789.9.07(817.2) Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Jordan Antonio de Souza - CRB1/2099 Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte DEDICATÒRIA Aos meus pais e amigos; Aos Djs Faraz e Gustavo Bongiolo. AGRADECIMENTOS Há momentos na vida em que é fundamental poder contar com o apoio de algumas pessoas. Para a realização dessa pesquisa pude contar com diversas pessoas, as quais presto, em poucas palavras meus mais sinceros agradecimentos À professora Cássia Virgínia, orientadora desse trabalho, pelo seu conhecimento, atenção, boa vontade e valiosas orientações. Aos Djs Gustavo Bongiolo e Faraz pelo interesse e participação na pesquisa, sem os quais não teria sido possível a realização desse estudo. Sobretudo, agradeço ao Dj Faraz pela sua grande contribuição, dedicação e paciência, me ajudando em muitos momentos a esclarecer dúvidas que surgiam a respeito desse universo musical. À Eliane Castilho pela amizade e companhia no decorrer das observações no clube, também por seus incentivos e apoio nos momentos mais difíceis. Aos professores da banca examinadora Yugi Gushiken e Simone Pereira de Sá pelas importantes e pontuais contribuições para o desenvolvimento dessa pesquisa. À todos os professores desse programa de pós- graduação por seus preciosos ensinamentos, aos colegas de mestrado pelos momentos de alegrias e angustias compartilhados nesses dois anos e ao colega Dyolen Emanuel pela breve passagem entre nós. Aos meus queridos pais Helena Maria e João Andrade pelo apoio, carinho e incentivo em todo o meu percurso profissional. E por fim à Capes por me conceder a bolsa de estudo permitindo que eu pudesse me dedicar a esta pesquisa. Compositores têm dito que, como ter ouvido para uma música que geralmente não apresenta nada aos seus ouvidos? Seus ouvidos estão emparedados com os sons de sua imaginação. Amanhã, com a música eletrônica em nossos ouvidos, ouviremos liberdade. John Cage RESUMO O estudo buscou compreender como dois importantes Djs de música eletrônica de Cuiabá, Mato Grosso, utilizam as tecnologias digitais em seu trabalho de produção e divulgação musical. Assim, algumas questões foram propostas visando a compreensão de aspectos referentes a formação, experiência e ao fazer musical dos Djs, sendo algumas destas: que conhecimentos musicais ou tecnológicos são necessários para formação e atuação como Dj? Que materiais ou tecnologias são utilizadas pelo Dj em seu fazer musical? Como eles divulgam ou comunicam seu trabalho aos ouvintes? Como os Djs buscam diferenciar o seu trabalho dos demais? A metodologia adotada foi a do Estudo de Caso, cujos instrumentos de coletas de dados utilizados foram as observações e entrevistas. Antes de adentrar a discussão a respeito do trabalho dos dois Djs, se fez um breve histórico discorrendo como as tecnologias ao longo do tempo reconfiguraram a atividade musical no pólo da produção, da circulação e consumo de música. Nesse percurso foram abordados dois momentos considerados marcos das mudanças que se processaram na atividade musical sendo estes: A produção e circulação da música com a gravação e equipamentos eletrônicos e, posteriormente com as tecnologias digitais. O trabalho tem como referencial teórico, principalmente, os estudos dos seguintes autores: Lévy (1999, 2007), Lemos (2008), Castells (2001), Santini (2005), Sá (2003, 2006), Morin (2006, 2009), Fritsch (2008) Arango, (2005), Rodrigues (2005), Fontanari (2003), Gushiken (2004), Iazzetta (1997, 2002), Araldi (2004), Baldelli (2004), Petiau (2001, 2004), Portau (2001), Canclini (2008), Barbero (2003). Palavras- chave: Tecnologias, produção e circulação musical, música eletrônica e o DJ ABSTRACT The study sought to understand how two important electronic music DJs from Cuiabá, Mato Grosso, use digital technologies in their work of production and distribution of music. Therefore, some issues were proposed aiming at understanding aspects related to the building up, experience and music making of the DJs, some of them are: what musical or technologic knowledge are needed for the building up and performance as a DJ? What materials or technologies are used by the DJ on his music making? How do they disclose or communicate their work to the listeners? How the DJs seek to differentiate their work from the others? The methodology adopted was the Case Study, and interviews and observations were the tools of data collection used. Before entering the discussion about the work of the two DJs, a brief history discussing on how technologies, over the time, have reconfigured the musical activity in the center of production, circulation and consumption of music, was made. Along the way, two moments considered milestones of the changes that occurred in the musical activity were addressed; and they were: The production and circulation of the music recorded in electronic equipment and, subsequently, with digital technologies. The work has as theoretical benchmark, mostly, studies of the following authors: Lévy (1999, 2007), Lemos (2008), Castells (2001), Santini (2005), Sá (2003, 2006), Morin (2006, 2009), Fritsch (2008) Arango, (2005), Rodrigues (2005), Fontanari (2003), Gushiken (2004), Iazzetta (1997, 2002), Araldi (2004), Baldelli (2004), Petiau (2001, 2004), Portau (2001), Canclini (2008), Barbero (2003). Key words: technologies, production and dissemination of music, electronic music and DJ SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10 1. CONSTRUINDO UM CAMINHO ENTRE “LUZES” E “VULTOS”...............................19 1.1 Coleta de Dados...............................................................................................................20 1.1.1 Os Contatos com os Djs participantes........................................................................20 1.1.2 Critérios de Seleção dos participantes.......................................................................21 1.1.3 Preparação para o campo..........................................................................................21 1.1.4 Observações e Entrevistas.........................................................................................22 1.2 O Material Coletado......................................................................................................26 1.2.1 Registro e Análise.......................................................................................................27 2. AS TECNOLOGIAS DIGITAIS: OS NOVOS MEIOS DE PRODUÇÃO MUSICAL......28 2.1 Produção de Música com as Tecnologias Eletrônicas.....................................................29 2.1.1 Os Primeiros Instrumentos Eletrônicos......................................................................31 2.1.2 Os sintetizadores.........................................................................................................32 2. 2 Produção de música na Cibercultura...............................................................................34 2.3 As Tecnologias e a Música Eletrônica.............................................................................38 2.3.1 Música eletrônica X Música eletroacústica................................................................38 2.3.2 Surgimento da música eletrônica de pista.................................................................40 2.3.3 Estilos produzidos pelos DJs de música eletrônica de pista.......................................44 2.3.4 Os novos músicos no universo da música eletrônica:o papel do DJ.........................48 3. A CIRCULAÇÃO E O CONSUMO DE MÚSICA NA CIBERCULTURA.......................53 3.1 Circulação da Música: da escrita à gravação....................................................................54 3.2 Circulação Musical na Cultura de Massa.........................................................................58 3.3 Circulação e consumo de Música na Cibercultura...........................................................61 3.3.1 O Nascimento da Cibercultura...................................................................................61 3.3.2 O Ciberespaço: Reconfigurando a Circulação e o Consumo de Música...................64 3.3.3 Redes de Compartilhamento Musical: O MP3 e Napster...........................................66 3.3.4 As Redes Sociais e Circulação de Informação............................................................68 4. ALÉM DE TOCAR O QUE VOCÊ FAZ?...........................................................................71 4. 1 A Cena Eletrônica em Cuiabá.........................................................................................72 4.2 Aprendendo a ser Dj: a formação.....................................................................................75 4.2.1 Conhecimentos Necessários para o Dj.......................................................................78 4.3 Atuando como Dj: Experiência........................................................................................81 4.3.1 Iniciando a carreira....................................................................................................81 4.3.2 Produção/Agenciamento da carreira do Dj................................................................82 4.3.3 Relações com outros Djs e o Público..........................................................................84 4. 4 O Fazer musical dos Djs..................................................................................................85 4.4.1. Tecnologias e Materiais utilizados pelos Djs............................................................88 4.4.2 As Técnicas dos Djs....................................................................................................90 4.4.3 Estilos, Seleção de Repertório e a produção de assinatura.......................................92 4. 5 Sobre As Observações do trabalho dos Djs....................................................................95 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................98 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................102 APÊNDICE ............................................................................................................................108 INTRODUÇÃO Em nenhum outro momento a evolução das ciências e das tecnologias foi tão rápida e com tantas consequências diretas sobre a vida cotidiana como no decorrer do século XX. A segunda revolução1, que surgiu com o conhecimento e uso da eletricidade, trouxe consigo o telégrafo sem fio, o cinema, o automóvel, o transatlântico, entre outros “objetos fetiches” da burguesia triunfante (WARNIER, 2000). Seguindo o percurso, da metade do século XX ao início do século XXI, a sociedade presenciou outra “onda” de mudanças sociais, econômicas, culturais devido ao surgimentos das tecnologias digitais, o que alguns autores chamam de “terceira revolução”, a qual ainda esta em pleno desenvolvimento. Diante desse cenário, a tecnologia, como ressalta Domigues (1997) tem invadido todos os campos da atividade humana: a religião, a indústria, a ciência, educação, entre outros campos. No entanto, mais que “invadir”, pois o termo parece sugerir que as tecnologias são objetos de outro mundo, a tecnologia, no pensamento de Lévy (1999) e Lemos (2008) faz parte e é produto de uma sociedade e de uma cultura, já que a origem da técnica acompanha a própria origem do homem. Lemos (2008, p. 28) lembra que “o homem é um ser técnico por definição” e que o fenômeno técnico resulta da relação entre o ser e o seu meio natural (a matéria inerte largada ao acaso na natureza), e, portanto, só adquire sentido e significação nessa relação com a vida social. Lévy (1999) corrobora com esse pensamento ao afirma que É impossível separar o humano de seu ambiente material, assim como dos signos e das imagens por meio dos quais ele atribui sentido à vida e ao mundo. Da mesma forma, não podemos separar o mundo material – e menos ainda sua parte artificial - das idéias por meio dos quais os objetos técnicos são concebidos e utilizados, nem dos humanos que os inventam, produzem e utilizam (LÉVY, 1999, p. 22). Partindo disso, ainda que o todo esse desenvolvimento tecnológico tenha possibilitado que a sociedade contemporânea se configurasse de forma imprevisível em diversos aspectos, a sociedade não é passiva a toda inovação tecnológica (LEMOS, 2008). Nesse sentido, discorre Lévy (1999) que as tecnologias da informação e comunicação não apenas condicionaram a sociedade, mas, abriram algumas possibilidades ou opções culturais e sociais 1 A primeira revolução, na visão de Warnier (2000), remete ao período de 1830, quando houve uma reorganização da exploração dos recursos como vapor, carvão, ferro. Enquanto que à “terceira revolução” o autor se refere à da informática. 11 que sem as tecnologias jamais poderiam ser pensadas. No campo da comunicação, por exemplo, em âmbito mundial, ampliou-se as possibilidades de as pessoas ao redor do planeta, sem saírem de suas casas, se comunicarem e interagirem rapidamente e independentemente do lugar geográfico e da coincidência do tempo, graças ao nascimento de um novo espaço de interação e difusão cultural, denominado de ciberespaço. Num sentido mais específico, essas inovações tecnológicas ampliaram não apenas as formas de os indivíduos interagirem e comunicarem nesse novo espaço, como também as possibilidades de produção e circulação de música, reconfigurando essas atividades de um modo nunca antes pensado. Graças à facilitação do acesso aos diversos softwares de gravação e manipulação sonora, um número maior de usuários sem uma formação musical tradicional2 precisa apenas de um pouco de conhecimento tecnológico, curiosidade e criatividade para fazer suas próprias gravações. Santini (2005) ressalta que as tecnologias digitais trouxeram possibilidades inéditas, no sentido em que tanto o processo de produção quanto o de consumo musical, acontecem cada vez mais independentes do mercado fonográfico, pois, cada vez mais músicos e bandas passam a produzir em seus próprios estúdios particulares. É importante lembrar, entretanto, que desde o início do século XX tecnologias como o gramofone e outros equipamentos que surgiram mais adiante, gravadores e microfones, por exemplo, já trouxeram condições inéditas para o fazer musical. Estes primeiros equipamentos inauguraram um processo de ruptura com a forma tradicional de criação, execução e apreciação musical que dependia até então da notação e do instrumentista-intérprete para que o ouvinte tivesse acesso à determinada obra. Essas inovações tecnológicas, segundo Santini (2005) citando Said (1992), ampliaram as possibilidades de produção e reprodução da música, que até determinado momento dependia de um conhecimento técnico específico de teoria e técnica instrumental para as elaborações e interpretações musicais. Na década de 30 do século XX, compositores já utilizavam os primeiros equipamentos eletrônicos para comporem as suas obras, as quais eram designadas de música concreta. Porém, a utilização dessas tecnologias ainda eram restritas aos compositores e músicos do meio acadêmico. A partir de meados da década de 60 começou a haver uma propagação e exploração desses recursos no universo mais popular da música, com o surgimento dos sintetizadores. Mas foi, sobretudo, nos anos 70 e 80, com a popularização das tecnologias digitais - com o advento do sampler e do computador pessoal – que a atividade de produção 2 Trata-se aqui da formação musical adquirida em conservatórios, escolas de música ou aulas particulares, em que o estudo musical tem como foco a performance de um instrumento e do conhecimento da teoria musical tradicional. 11 12 musical toma novos rumos, passando a ser não mais específica de compositores e músicos com formação musical tradicional. Nesse contexto, propriamente, na década de 80 surgiu a figura do Dj produtor3 no cenário musical que utilizando amplamente os recursos das tecnologias, tanto eletrônica quanto, posteriormente, as digitais, contribuiu para que emergissem novas estéticas musicais, como exemplo, a música eletrônica de pista na esfera da música pop. O termo música eletrônica de pista nessa pesquisa se refere à música produzida pelos Djs (Disc Jóqueis)4 com o intuito de ser tocada e, principalmente, dançada nas raves5 e clubs6. O termo apareceu pela primeira vez na década de 50, e nesse período foi usado para designar “a realização musical a partir de dispositivos de síntese sonora (os sintetizadores)” (RODRIGUES, 2005, p. 54). Contudo, desde a década de 80 vem sendo empregado para se referir também ao estilo musical dançante produzido por Djs. É importante lembrar ainda que alguns autores como Arango (2005) e Rodrigues (2005) referem-se também à musica produzida pelo Kraftwerk e outros grupos como sendo eletrônica, por isso, adota-se o termo “música eletrônica de pista” já utilizado por Arango (2005) para distinguir esta vertente da música eletrônica acadêmica que mais tarde, juntamente com a música concreta passaria a ser designado de eletroacústica ou acusmástica. O gênero eletrônico de pista emergiu propriamente, entre a década de 80 e 90 com as vertentes Techno (Detroit) e House (Chicago), sendo que posteriormente, surgem o Drum’n bass e o Trance. Estes são os pilares desse gênero, que se desdobram ainda em diversos estilos: Deep House, Electro House, Tech house. Esta cultura da música eletrônica tem raízes na música dançante da década de 70, conhecida como Disco Music, mas se consolidou na cena rave inglesa, no final da década de 80, “especialmente nas festas do verão inglês de 1988, conhecido como summer of love” (SÁ, 2006a, p. 2 ). O gênero se difere da vertente da música eletrônica acadêmica apresentando algumas características próprias. Conforme Sá (2003, p. 9) esta é explorada em termos de timbres, texturas, espacialidade, ritmo e repetição, sendo “pensada como track e não como song”. No entanto, entende-se que a diferença se dá principalmente pelo ritmo e pela repetição. Segundo 3 Este trabalha em estúdio caseiro e dentro da lógica do “do it yourself”(SÁ, 2006a, p.3. grifo da autora). De acordo com Sá (2006a), remete-se ao profissional responsável por tocar boa música gravada para uma audiência – seja no rádio, num salão de dança ou mais recentemente na televisão. 5 Raves são festas comumente realizadas distante das áreas urbanas. Esse modelo de festa firmou-se na GrãBretanha na década de 80, atraindo milhares de jovens para áreas descampadas no interior do país ou galpões e estações abandonados, o que, segundo Sá (2006a), deu à rave uma conotação contracultural. 6 Os Clubs são lugares pequenos cuja lotação dificilmente ultrapassa o de 500 pessoas. Na linguagem mais popular seriam as casas noturnas (FONTANARI, 2003). 4 12 13 Kosmicki citado por Petiau (2004, p. 76) ela é baseada sobre um princípio de repetição, o qual não “rege apenas a pulsação, mas também todas as outras pistas sonoras”.7 Nesse universo a figura do Dj é essencial. Ele é, em muitos casos, o artista/intérprete e também o próprio produtor/compositor da sua música. O Dj é responsável tanto por levar essa música ao ouvinte - e cada vez que faz isso esta nunca será ouvida da mesma maneira, já que a cada seleção musical novos elementos sonoros são adicionados e modificados - quanto por criar o ambiente propício para a dança, ou seja, a “vibe”. As principais atividades ou práticas musicais, do Dj podem ser divididas em “mixagem”, ou discotecagem como é designada por muitos autores e Djs, produção e, embora não muito mencionada, pode-se incluir também a remixagem. A mixagem se refere ao trabalho de “montagem”8 ou “colagem” realizado na pista de dança, com a intenção de fazerem “os corpos se movimentarem” (BALDELLI, 2004). A Produção aqui se trata da composição, ou melhor, o momento em que se cria sem se preocupar com um público específico, tendo como único objetivo produzir algo novo, ao contrário da mixagem, que envolve uma maior interação entre Dj e público. Contudo, o trabalho de produção não está totalmente desvinculado da discotecagem, uma vez que uma produção realizada pelo Dj tem como finalidade a de ser tocada na pista. A diferença consiste em seu processo criativo, cujo trabalho não é totalmente influenciado pelo público ou pelo local onde poderia ser tocada. Nesse sentido, é um trabalho mais “‘livre’ de ‘interferências externas’, onde o que conta mesmo é uma boa idéia e habilidade para criar e manusear equipamentos e programas de computador para áudio” (BALDELLI, 2004, p. 3). A remixagem, consiste em transpor uma música, geralmente de outro gênero musical, para dentro de uma base rítmica eletrônica, por exemplo, um tema de filme ser transformado em um Tecno. Segundo Petiau (2001c, p.78) “esta prática nos remete diretamente àquela da montagem [ou colagem], pois, como esta, aquela pode ser realizada segundo várias modalidades, que vão da citação à reapropriação completa”.9 O cerne do trabalho do Dj, dentro ou fora da pista, pode-se dizer que é a apropriação reciclada, usando um termo de Shusterman (1998), ou sampling10. De acordo com Shusterman, sampling consiste em uma apropriação artística feita pela “seleção e combinação 7 “Elle est basée sur un principe de répétition. Ce principe ne régit pas en effet la seule pulsation, mais aussi toutes les autres pistes sonores”. 8 Montagem é a tradução do termo em francês “assemblage” usado por Petiau (2001c). 9 Cette pratique “nous renvoie directement à celle de l’échantillonnage car, comme elle, elle peut être effectuée selon plusieurs modalités, qui vont de la citation à la réappropriation complete”. 10 Sampling (ou colagem) é o ato de tomar amostras de gravações e reutilizá-las, usando um sampler (DUARTE, 2010). 13 14 de parte de faixas já gravadas a fim de produzir uma nova música” (SHUSTERMAN, 1998, p. 145). Em outras palavras, se pode entender que o Dj trabalha com temas para construir sua versão11. Partindo dessas considerações, se entende a importância e complexidade do papel do Dj nesse universo, que não deve ser confundido com a de mero selecionador de discos ou animador de festas. Uma vez que ele atua desde a produção/criação até a recepção pelo público, percebe-se, portanto, que ele assume papel importante na vida musical de um segmento da juventude em uma sociedade. Dessa forma, acredita-se que para tal o Dj deve possuir competências12 que vão muito além da manipulação das tecnologias. Neste caminho algumas questões precisam ser colocadas para que se adentre na investigação. Quais conhecimentos musicais e/ou tecnológicos permeiam o fazer musical de Djs? Que meios e materiais são utilizados no seu fazer musical? Que papéis esses sujeitos desempenham nesse universo da música eletrônica? De que forma comunicam o seu trabalho ao ouvinte desse estilo musical? Para poder aprofundar o estudo sobre a produção e divulgação dos trabalhos dos Djs foi necessário delimitar o campo de observação fazendo um estudo de caso com dois Djs que fazem parte da cena eletrônica de Cuiabá. Gustavo Bongiolo e Rodrigo Farinha (Faraz) foram os Djs escolhidos por serem dois nomes importantes da música eletrônica na capital de Mato Grosso e pela possibilidade de estar observando a atuação dos mesmos. Assim, foram realizadas observações do trabalho dos Djs envolvidos nos clubs onde costumam tocar, bem como, apreciações musicais dos mesmos através de links disponibilizados pelos próprios Djs e pelo club Garage via e-mail. Também foram realizadas entrevistas semi-estruturadas tendo como base um roteiro que foi organizado em três blocos de perguntas que abordam a formação, a experiência e a produção musical. Percebe-se num contexto de rápida mutação que os saberes se renovam a todo o momento. Mencionando a velocidade com que as novas tecnologias têm sido incorporadas na sociedade, Lévy (2007, p. 24) afirma que é no “universo dos saberes e do savoir-faire que a aceleração é mais acentuada e as configurações mais móveis”. Sobretudo, a renovação de conhecimento fica evidente no trabalho dos dois Djs, pois, como eles mesmos afirmaram durante as entrevistas realizadas no decorrer desta pesquisa, devem estar sempre atentos ao 11 Tema é uma idéia musical existente e registrada na composição. Versão seria a nova forma que essa ideia toma após ser reutilizada ou, usando o termo de Shusterman (1998), reciclada. 12 Lévy (1999, p. 178) entende por competências tanto o savoirs-faire e os conhecimentos teóricos quanto habilidades comportamentais (saber ser). 14 15 cenário em que atuam, já que sempre surgem novos programas de produção que podem facilitar o seu trabalho, bem como novos estilos e tendências musicais. O termo conhecimento abordado aqui é entendido no sentido não de mero acúmulo de informações, mas, segundo Morin (2008) enquanto “organização”, o qual deve estar relacionado com as informações e inserido no contexto delas. Como afirma o autor, Todo conhecimento constitui, ao mesmo tempo, uma tradução e uma reconstrução, a partir de sinais, signos, símbolos, sob a forma de representações, idéias, teorias, discursos. A organização dos conhecimentos (…) comporta operações de ligação (conjunção, inclusão, implicação) e de separação (diferenciação, oposição, seleção, exclusão). O processo é circular, passando da separação à ligação, da ligação a separação, e, além disso, da análise à síntese, da síntese à análise. Ou seja: o conhecimento comporta, ao mesmo tempo, separação e ligação, análise e síntese (MORIN, 2008, p. 24). A pesquisa se justifica pela necessidade de suscitar reflexões a respeito das práticas musicais que emergem fora do âmbito acadêmico, rompendo assim com preconceitos que pairam sobre a música eletrônica de pista. Este gênero desde o seu surgimento tem sido frequentemente associado às raves e clubs, no entanto, deve ser considerado também que essa música, como destaca Petiau (2001a, p. 6), embora esteja longe de desaparecer do contexto festivo, cada vez mais, vem se libertando desse ambiente, podendo ser ouvida também nos canais hi-fi, nas estações de rádio e de televisão. Além disso, algumas posturas críticas ao considerarem esta música como excessivamente tecnológica e repetitiva e até mesmo não musical, não levam em consideração que toda música está intrinsecamente relacionada com as tecnologias de seu tempo, ou como afirma Hanocourt (1989), a arte, no caso específico aqui a música, é um espelho de seu tempo. Partindo disso julga-se importante investigar como as tecnologias e as práticas musicais se imbricam no processo de produção e difusão da música no trabalho dos dois Djs. O interesse em pesquisar sobre a música eletrônica surgiu durante uma palestra ministrada pelo Dj Faraz (ou Rodrigo Farinha) no seminário de pesquisa, realizado pelo grupo “Música e Educação” em novembro de 2009. Na ocasião, o Dj que participava do evento abordou o seu trabalho de pesquisar músicas de vários gêneros no intuito de explorá-las em suas produções. A palestra despertou a atenção desta pesquisadora em conhecer mais sobre esse universo e o trabalho do referido Dj, e, a partir desse momento, começou-se a busca de leituras em livros e dissertações que tratassem do assunto surgindo um novo horizonte para a pesquisa de mestrado. 15 16 A revisão de literatura compreende tanto autores da área de comunicação, tais como Lemos, (2008), Recuero (2009), Santini, 2005; Yúdice, 2007, Castro (2008; 2009), Sá (2003; 2006a; 2006b; 2009), como de outras áreas. Para abordar as novas tecnologias, a produção e difusão musical e suas implicações na sociedade são utilizadas as discussões trazidas por autores como Lemos (2008) e Lévy (1999; 2007) em que debatem como as tecnologias foram apropriadas pelos indivíduos e defendem que estas não devem ser vistas nem como maléficas para a sociedade, nem como a sua salvação. Para os autores as tecnologias devem ser entendidas num contexto de profunda mutação dos setores de produção, seja ele industrial ou cultural. São reportados, também, autores como Morin (2009) que aborda a questão da mudança cultural que se processa na sociedade com a entrada dos meios de comunicação de massa. Da área de música a pesquisa serve-se de autores que tratam da música eletrônica, entre os quais destacam-se Rodrigues (2005) e Fritsch (2008), ou de assuntos relacionados, como Arango (2005), Araldi (2004), Gohn (2002) e Carvalho (1999). Estes autores que discorrem sobre a relação da música e as tecnologias, ou seja, como no decorrer do tempo as tecnologias foram incorporadas na atividade musical, contribuindo para o surgimento de novas “poéticas musicais” (RODRIGUES, 2005). A partir da revisão sobre a música eletrônica, pode-se perceber que muitos estudos sobre o gênero têm sido realizados no Brasil, e mesmo no exterior, no entanto, estes têm se focado no contexto social das festas raves, abordando os elementos que constituem a cultura club (FONTANARI, 2003; CALADO, 2006). Entende-se a importância desses estudos para o conhecimento científico sobre a temática, no entanto, como ressaltado anteriormente, deve se levar em conta que essa música, vem se libertando cada vez mais desse ambiente, portanto e não deve ser entendida como sinônimo de festa (PETIAU, 2001a). Ressalta-se que não se pretende abordar aqui o contexto festivo da música eletrônica, visto que há uma amplitude de estudos a esse respeito, mas, principalmente, porque entende-se que o trabalho profissional do Dj, ainda que compreenda em grande parte a performance nas pistas de dança, é também constituído por atividades igualmente importantes, com as quais se relaciona e interage com seus públicos, que, antecedem ou fundamentam esse momento constituindo-se em formas específicas de desenvolver comunicação. Alguns estudos se debruçam sobre a questão estética da música eletrônica e a produção de um nova postura de escuta (ARANGO, 2005; RODRIGUES, 2005). Já a respeito do papel do Dj, têm se destacado esses sujeitos como “xamãs” que levam os ouvintes a outro “plano espiritual” por meio da música (FERREIRA, 2006). E também ao contrário dessas visões holísticas em torno do papel do Dj, diversos artigos e dissertações abordam a questão 16 17 da produção musical no circuito mercadológico e das novas tecnologias digitais (SÁ, 2003; 2006a; 2006b; 2009 e CASTRO, 2008). O trabalho está constituído de 4 capítulos. O primeiro capitulo, sob o titulo “Construindo uma caminho entre luzes e vultos”13 discorre sobre a metodologia adotada. Como mencionado trata-se de um estudo de caso tendo como referencial da metodologia da ciência autores como Chizzotti (2010) e Gaio, Carvalho e Simões (2008). Neste capítulo são descritos como foram realizados os primeiros contatos com s Djs e critérios de escolhas dos participantes, assim como as observações e entrevistas com os dois profissionais da música eletrônica de pista em Cuiabá. O segundo, sob o titulo “As tecnologias digitais: os novos meios de produção musical” discorre como ao longo do tempo estas sempre estiveram profundamente relacionadas com essa atividade. O capitulo aborda esse processo de incorporação das tecnologias, desde a produção musical com os recursos eletrônicos até as tecnologias digitais. Em um segundo momento adentra a discussão a respeito da música eletrônica, trazendo um breve histórico de seu surgimento e aborda ainda sobre o papel do Dj nesse contexto. No terceiro capitulo intitulado “A circulação e consumo musical na cibercultura” descreve-se a como as formas de circulação da música acompanharam o desenvolvimento tecnológico. Assim, procurou-se abordar as alterações nas formas de acesso à música desde a introdução da escrita e gravação, mas focando principalmente na disseminação musical a partir das tecnologias digitais, com o advento dos formatos de arquivos digitais e da internet. A separação dos capítulos nas categorias “produção” e “circulação e consumo musical” é uma questão mais didática para organização da discussões. Historicamente elas estão profundamente relacionadas uma à outra, visto que na produção musical, especialmente a partir da gravação e da consolidação da indústria fonográfica, houve uma preocupação cada vez maior com a difusão e consumo da música. Desse modo, se perceberá ao ler esse estudo que os assuntos dos dois capítulos se entrelaçam, consequentemente, havendo retomadas de discussões realizadas no segundo capítulo. O quarto capitulo, sob o titulo “O trabalho de dois Djs de Música eletrônica de Cuiabá” apresenta os estudos de casos, com análise das observações e entrevistas com os Djs, sendo confrontados com a bibliografia pertinente. Neste, no primeiro momento, é abordado a cena eletrônica em Cuiabá e em seguida adentra a discussão das questões propostas para a pesquisa. Os eixos condutores do capitulo são a formação, a experiência e o fazer musical. 13 Os termos fazem uma analogia a forma como as pessoas se enxergam na pista de dança. 17 18 A pesquisa, sem pretender apontar conclusões sobre o assunto, apresenta, contudo, resultados, sendo muitos deles consonantes com outros estudos realizados. Os resultados se referem à como os Dj se apropriam e exploram as tecnologias digitais tanto no processo de produção quanto de divulgação de seu trabalho ao público. Nesse contexto, as tecnologias digitais, principalmente, facilitaram ou mesmo reconfiguraram algumas técnicas e práticas já utilizadas pelos Djs. 18 19 1. CONTRUINDO UM CAMINHO ENTRE LUZES E VULTOS Em busca de uma caminho metodológico que permitisse delinear a presente pesquisa, houve momentos em que “as luzes” se ascendiam, e se podia enxergar o percurso, contudo, em outros instantes, as mesmas luzes se apagavam e só se via “vultos”, idéias não mais tão claras e pensamentos confusos. Dessa forma, entre “luzes e vultos” este estudo se firmou, se apoiando na abordagem de pesquisa qualitativa, por esta envolver uma interpretação complexa dos fenômenos humanos e sociais (GAIO, CARVALHO & SIMÕES, 2008), e, assim, se preocupar com os diferentes significados que ações e eventos adquirem para as pessoas em dado contexto, visando o investigador capturar as perspectivas e as percepções dos participantes junto com a sua própria interpretação dos fatos (BRESLER, 2007). A pesquisa qualitativa hoje, como ressalta Chizzotti (2010, p. 28), adota “multimétodos” de investigação para o estudo de um fenômeno situado no local em que ocorre. O autor afirma que Diferentes orientações filosóficas e tendências epistemológicas inscrevem-se sob o abrigo qualitativo, advogando os mais variados métodos de pesquisa, como entrevista, observação participante, história de vida, testemunho, análise do discurso, estudo de caso e qualificam a pesquisa como pesquisa clinica, pesquisa participativa, etnografia, pesquisa participante, pesquisaação, teoria fundamentada (Grounded theory) estudos culturais, etc (CHIZZOTTI, 2010, p. 29). Ao delimitar o presente estudo nas formas de produção e difusão musical dos Djs de música eletrônica de Cuiabá, foi necessário estabelecer um trabalho mais focado e específico, que pudesse gerar dados e promover interpretações mais específicas. Desse modo, com base na literatura específica da metodologia de pesquisa e devido à algumas particularidades que poderiam ser encontradas nos trabalhos dos Djs participantes da pesquisa, entendeu-se que o método mais apropriado seria o estudo de caso. Segundo Chizzotti (2010) esta é uma estratégia de pesquisa bastante comum em diversas áreas como a da clínica psicológica, da educação, jornalística, mas, afirma o autor mencionando Yin (2001), que vem crescendo em outros campos das atividades econômicas e sociais. Chizzotti (2010) explica que o caso permite que se reúna informações sobre determinado evento, fato ou fenômeno social contemporâneo complexo, que se situa em um contexto específico. 19 20 Os estudos de caso visam explorar, deste modo, um caso singular situado na vida real contemporânea, bem delimitado e contextuado em tempo e lugar para realizar uma busca circunstanciada de informações sobre um caso especifico. O caso pode ser único e singular ou abranger uma coleção de casos, especificados por um aspecto ocorrente nos diversos casos individuais, como por exemplo, o estudo de particularidades ocorrentes em diversos casos individualizados (CHIZZOTTI, 2010, 136). A decisão de realizar a pesquisa com dois Djs de música eletrônica que desenvolvem seu trabalho em Cuiabá parte do entendimento de que este estudo específico permitiria conhecer as particularidades de cada um, possibilitando um maior aprofundamento e entendimento do papel dos envolvidos no processo de propagação da música eletrônica na capital mato-grossense. Ao adotar esse método para a presente pesquisa não se pretende fazer generalizações, o que não impede, contudo, que se possam fazer analogias com outros casos similares. Como se pode observar no caso específico do trabalho dos Djs, muitos aspectos da atividade dos sujeitos participantes desse estudo são comuns ao papel desempenhado por outros Djs no contexto mais geral da música eletrônica. Nesse sentido, Chizzotti discorre que, embora, esse tipo de estudo não vise generalizações, um caso, no entanto, pode “revelar realidades universais”, já que, como afirma o autor, nenhum caso é um “fato isolado” ou “independente das relações sociais onde ocorre” (CHIZZOTTI, 2010, p. 138). 1.1 Coleta de Dados 1.1.1 Os Contatos com os Djs participantes O primeiro contato com um dos participantes aconteceu em 2009 durante o 1º seminário de pesquisa, realizado pelo Grupo de Pesquisa “Música e Educação” na Universidade Federal de Mato Grosso. Na ocasião, o Dj Rodrigo Farinha (Faraz) participou da mesa redonda “A pesquisa no Cotidiano do Profissional de Música” na qual discorreu sobre seu trabalho de pesquisa com músicas de diversos gêneros buscando novas sonoridades. Esse fato foi bastante relevante para a decisão e direcionamento desse estudo. Após a palestra, foi estabelecido o primeiro contato com o Dj para o possível desenvolvimento da pesquisa e o mesmo se mostrou interessado em colaborar. No entanto, após um período de leituras sobre o assunto, o contato mais efetivo foi feito somente em maio de 2010 por meio de mensagem no Orkut para o agendamento de uma entrevista, para o que o Dj respondeu prontamente. A 20 21 partir daí os demais contatos com o Dj Faraz foram sendo realizados por telefone e também por mensagens no site. O contato com o Dj Gustavo Bongiolo também foi estabelecido primeiramente por meio do Orkut e posteriormente por e-mail. O Dj também se mostrou bastante solicito em conceder a entrevista, respondendo rapidamente a mensagem. O contato com os Djs foi significativo para que se delineasse melhor o presente estudo na escolha dos participantes. 1.1.2 Critérios de Seleção dos participantes Durante o período de observações nas comunidades virtuais do Orkut, fez-se o levantamento de alguns nomes importantes na cena eletrônica de Cuiabá, contudo, nem todos os Djs disponibilizavam os seus contatos no site. Assim, um dos primeiros critérios para a escolha dos participantes foi a possibilidade de estabelecer contato com o Dj. No caso do Dj Faraz, o contato já tinha sido previamente realizado durante o evento mencionado anteriormente, mas além disso, constatou-se que este Dj também é um dos mais atuantes no cenário musical mato-grossense. Desse modo, considerou-se também a relevância do seu trabalho na música eletrônica da Capital. Este também foi o critério estabelecido para a escolha do segundo participante, o Dj Gustavo Bongiolo, ainda levando em consideração a disponibilidade de tempo dos mesmos em estarem concedendo as entrevistas e as possibilidades de observação dos seus trabalhos nos lugares onde costumam tocar. 1.1.3 Preparação para o campo Num primeiro momento, devido a pouca vivência que se tinha com a música e nenhum conhecimento da cena eletrônica em Cuiabá, julgou-se necessário realizar uma busca por informações recorrendo-se assim à internet, especialmente, aos sites de relacionamentos e as comunidades virtuais. Desse modo, foram realizadas observações não-participantes em algumas comunidades virtuais do site Orkut14, sendo estas: Música Eletrônica Cuiabá, comunidades pessoais de Djs, comunidade Garage Club Cuiabá (oficial)15. A partir das 14 Site de rede social que alcançou grande popularidade entre os brasileiros. O sistema foi criado por Orkut Buyukkokten, enquanto era aluno da Universidade de Stanford funcionário do Google (Cf. RECUERO, 2009, p.116). 15 Comunidade DJ Gustavo Bongiolo http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=3367876 Comunidade DJ Rodrigo Farinha http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=5653179 Música eletrônica Cuiabá http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=102137 Comunidade Grage Club (oficial) http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=44482448 21 22 observações nessas comunidades foi possível fazer um breve levantamento de alguns nomes de Djs reconhecidos na cena eletrônica da Capital, bem como, lugares de referência que priorizam a execução de música eletrônica. Pode-se ainda ouvir alguns Sets de Djs postados para que os participantes, ou não, da comunidade pudessem acessá-los, uma vez que a privacidade de conteúdo dessas comunidades está aberta também para não-membros. A escolha por buscar as informações do Orkut deveu-se ao fato de este se constituir num dos mais utilizados na categoria de redes sociais e pela pesquisadora na época já possuir uma inscrição no site. Além da coleta de informações no Orkut, o site Youtube16 também foi utilizado para um prévio conhecimento das diversas vertentes da música eletrônica de pista como o Trance, House, Drum’n and bass e Techno, e suas sub-divisões17 . Neste foram realizadas várias audições com intuito de se familiarizar com esse gênero musical e identificar algumas características básicas das diversas vertentes, ou estilos como designam os Djs, que este engloba. Apesar de causarem bastante confusão para os não “iniciados” na música eletrônica, foi possível identificar, ainda que superficialmente, algumas de suas características. No entanto, é importante considerar que não faz parte da metodologia dessa pesquisa analisar estas vertentes da música eletrônica, ainda que se tenha dedicado um tópico no capitulo II para descrevê-los e explicá-los. O objetivo pretendido com tais audições era o de se entender mais sobre a linguagem musical nesse universo dos Djs antes de realização da pesquisa de campo propriamente. Realizada essa etapa de “familiarização” com o gênero, a pesquisa de campo foi iniciada a partir de 12 junho de 2010, quando foi realizada a primeira observação no Club Garage. No decorrer desse processo os instrumentos principais adotados para a coletas dos dados foram as entrevistas e observações. 1.1.4 Observações e Entrevistas Segundo Chizzotti (2010) o Estudo de Caso envolve uma coleta sistemática de informações 16 O Youtube foi criado em fevereiro de 2005 por Steve Chen e Chad Hurley com o objetivo de que as pessoas compartilhassem seus vídeos de viagem. Hoje também é um dos sites mais populares, em que pode ser encontrados diversos tipos de vídeos. 17 Além das vertentes principais mencionadas, a música eletrônica conta com subdivisões como Tech-house, Hard Tecno, Deep House, Eletrohouse, Minimal, Breakbeat, Psycodelic Trance, etc. 22 23 sobre uma pessoa, aspectos da vida de um indivíduo, de ações de membro de um grupo, aspectos de um evento, de uma organização, empresa ou comunidade. Recorre, para isso, a múltiplas fontes de coleta de informações, como documentos , cartas, relatórios, entrevistas, história de vida, observação participante, pesquisa de campo, recursos audiovisuais (CHIZZOTTI, 2010, p. 140). No que concerne à técnica de observação, esta tem como propósito auxiliar o pesquisador a “identificar e obter provas a respeito de objetivos sobre os quais os indivíduos não têm consciência, mas que orientam seu comportamento” (MARCONI; LAKATOS, 2002, p. 79). Nesta técnica, “são explicitadas as atitudes comportamentais do grupo investigado permitindo a evidência dos dados que podem ser suprimidos em outras técnicas de pesquisa” (GAIO; CARVALHO; SIMÕES, 2008, p. 161.). As observações nos espaços de atuação dos Djs foram realizadas de forma nãoparticipante. Conforme Gaio, Carvalho e Simões (2008, p. 164) nessa técnica “o pesquisador toma contato com a comunidade, grupo ou realidade estudada, mas não se integra a ela, ou seja, aparece como um elemento que ‘vê de fora’”. O objetivos dessas observações em loco é o de conhecer, vivenciando com “ouvidos e olhos” o campo musical em que atuam os dos DJs da pesquisa. De fato, a impressão de alguém que “vê de fora” foi principalmente sentida na primeira observação. Esta foi realizada em 12 de Junho de 2010 na festa Afrodite que aconteceu no Club Garage. A festa costuma acontecer uma vez por ano e é conhecida pelos participantes se vestirem a caráter sendo que os homens vão fantasiados de “cafetões”, usando correntes, pulseiras, chapéus, óculos, capas, e as mulheres vão como melindrosas com vestidos, colares, penas, meias-arrastão. Na ocasião da observação, não entendeu-se que todos os participantes da festa deveriam estar totalmente “vestidos a caráter”. E isso causou o primeiro impacto sentido ao chegar ao Club, pois a falta de uma fantasia causou muito constrangimento para esta pesquisadora. Vocês vieram para a festa? Perguntou o segurança olhando a minha amiga e eu. Mas, com essa roupa? Não estão vestidas a caráter! Chegamos por volta das 22h45 no local e ficamos aguardando até que abrissem os portões de entrada. Começaram a chegar os homens e mulheres e nós ficamos meio deslocadas porque não pensávamos que seria obrigatório aquela caracterização. Apesar de estarmos nos sentindo como “peixes fora d`água” nos mantivemos firmes no propósito de entrar e observar a festa. Perto da 00hs começaram a liberar a entrada (Caderno de Campo, 12/06/2010). 23 24 O primeiro contato com o ambiente foi de “estranhamento” por parte da pesquisadora como dos “nativos”, pois notou-se que a presença de alguém que “não falava a sua língua” despertou certa curiosidade dos participantes da festa. Nessa primeira observação o objetivo era conhecer o Club, que é referenciado pelos Djs como o principal local de Cuiabá voltado ao gênero musical eletrônico. O Dj que tocava na festa não é participante da pesquisa, mas foi um dos nomes observados no site Orkut. O público principal nesse dia era constituído por jovens na faixa etária entre 18 aos 25 anos, alguns poucos participantes da festa ultrapassavam essa idade, tendo por volta de 30 anos e 50 anos. O ambiente estava bem decorado seguindo a data comemorativa (dia dos namorados), tendo muitos balões em forma de coração pendurados no teto. O Club Garage possui um espaço amplo, moderno e com tecnologias de iluminação e acústica de última geração. Ainda que a pesquisadora não fosse exatamente uma “expert” em tecnologias pode-se notar a sofisticação do lugar e os recursos tecnológicos “de ponta”, usando um termo do Dj Faraz, empregados para criar o ambiente. Aliás, algo que chamou também bastante a atenção foi “o jogo de luz” localizado na parede atrás da cabine do Dj e Vj e no teto, que consistem em diversos “cubos” em alto relevos, os quais ascendiam, apagavam, e adquiriam diversas cores sempre sincronizado com a execução musical dos Djs e a atmosfera da pista. O Club está divido em um bar, que fica centralizado no espaço, em torno estão colocados sofás, constituindo uma espécie de lounge18, mais a frente do bar encontra-se a pista de dança, o espaço do Dj e Vj19 e dos dois lados da pista, localizam os camarotes. Nos fundos, mais um pequeno ponto de venda de bebida. Embora, se tenha frequentado poucas vezes outros clubes, notou-se alguns diferenciais desse local, como exemplo, o tamanho da pista e demais espaços entre o bar e o lounge, que são bem amplos não havendo a necessidade de as pessoas se “espremerem” para circular pelo ambiente. Outro detalhe observado se refere ao sistema de refrigeração do lugar que parece ter sido projetado para não deixar o público ficar parado, pois, em poucos minutos em que se tenta não dançar ou se movimentar de alguma maneira se tem a impressão, literalmente, de “estar no Pólo Norte”. No decorrer das observações ficou evidente a preocupação com os mínimos detalhes do Club, que, como relatou o Dj Gustavo Bongiolo (25/08/2010), levou meses apenas para ser projetado, pois, se buscou pesquisar “o que de melhor existia” para a construção desse espaço. 18 O termo lounge em português significa passar o tempo ociosamente (Dicionário Michaelis, 2001, p. 206). No caso aqui entende-se como um lugar para descanso. 19 No Garage notou-se que o Vj é o responsável pela execução de vídeos os quais acompanham a trilha musical do Dj. 24 25 As observações aconteceram no Club Garage, porém, este ficou estabelecido como o principal local de observação das performances dos Djs, bem como, para realização das entrevistas, após dado início ao trabalho de campo, levando em consideração, principalmente, o fato de os Djs atuarem nesse espaço. As observações aconteceram aleatoriamente e paralelas ao processo de redação da pesquisa, de acordo com a data em que os Djs se apresentavam. Como meta para o trabalho de campo foram previstas de duas a três observações das apresentações de cada Dj, contudo, em virtude da movimentação da agenda de um dos participantes da pesquisa, bem como, de outros imprevistos que se ocorreram no decorrer da investigação, foi possível realizar quatro observações em loco. O trabalho do Dj Faraz foi acompanhado por duas vezes, sendo que as duas aconteceram no Club Garage, já o segundo participante foi observado apenas uma de suas apresentações também neste Club. Acredita-se no entanto, que mesmo em número menor de observação do trabalho de um dos pesquisados, isso não impediu realização de uma análise para os limites desta investigação, ajudando a evidenciar e a elucidar muitas das informações coletadas durante as entrevistas. Durante todas observações, por exemplo, foi possível notar como cada Dj interagia com o público na pista de dança fazendo esta “ferver” em determinados momentos. Além das observações, outra fonte muito constante e usual na coleta dos dados, conforme Chizzotti (2010) tem sido a entrevista nas suas diferentes modalidades, ou seja, a estruturada, semi-estruturada ou aberta. Nesse estudo optou-se pela entrevista semiestruturada, já que esta Pode ser comparada a uma conversa sem uma ordem rigidamente estabelecida para as perguntas, porém complementada por perguntas especificas ou questões-guia. Nesse tipo de opção, em geral, o pesquisador está interessado em compreender o significado atribuído pelos sujeitos as situações que fazem parte de seu cotidiano (GAIO; CARVALHO; SIMÕES, 2008, p. 165). Desse modo, entende-se que, com a escolha pela entrevista semi-estruturada com os Djs, seria possível obter outras informações, que inicialmente passassem despercebidas pela investigadora, ou mesmo propiciassem o surgimento de novas questões, as quais poderiam complementar e enriquecer a discussão do trabalho. Optou-se, então, na entrevista pelas perguntas de características “abertas”, pois, sem pretender direcionar as respostas dos sujeitos buscou-se, sobretudo, conhecer “os aspectos relevantes, a partir do ponto de vista do entrevistado” (FREIRE & CAVAZOTTI, 2007, p. 33). Assim, mais do que uma simples técnica, a entrevista, “[...] envolve um processo muito complexo, de relações imbricadas, de 25 26 expectativas humanas cruzadas e diferenciadas, entre aquele que conta e quem se dispõe a ouvir” (ROVAI; EVANGELISTA, 2010, p. 5). As entrevistas foram previamente agendadas e confirmadas por telefone ou e-mail com os dois Djs. Elas aconteceram nos dias 28 de julho de 2010 com o Dj Faraz e 25 de agosto 2010 com Dj Gustavo Bongiolo e foram também realizadas no Club Garage por sugestão dos próprios entrevistados. No momento inicial da entrevista foi explicado do que se trata a pesquisa. Foi elaborado um roteiro com três blocos de perguntas organizadas em formação, experiência e o fazer musical dos Djs. Ao longo das entrevistas, pode ser percebido o interesse dos Djs em explanar sobre o seu trabalho sendo possível acrescentar outras perguntas pertinentes ao assunto. Durante a redação do trabalho foi percebida a necessidade de esclarecimentos de determinados pontos abordados, bem como, novos questionamentos, então, uma segunda etapa de entrevista foi realizada em 11 de janeiro de 2011 com o Dj Faraz e em 03 de fevereiro de 2011 com o Dj Gustavo Bongiolo, realizada por email. Nesta etapa as perguntas foram focadas no trabalho de cada Dj. 1.2 O Material Coletado 1.2.1 Registro e Análise As observações foram registradas em um caderno de campo. As entrevistas foram gravadas em um aparelho MP3 e, posteriormente, foram transcritas separadamente em documentos no formato do Office Word (2008). As observações no clube foram anotadas e registradas por meio de câmera fotográfica. Em virtude de limitações dos equipamentos algumas fotos se perderam, então, recorreu-se ao Dj Faraz o qual cedeu algumas fotos tiradas pelo Club do dia da apresentação observada. Também foram salvos em computador pessoal alguns arquivos de imagens de Flyers (folder de divulgação de eventos) enviados por e-mails pelo Club Garage ou postados na comunidades desse clube, bem como, e-mails com informações adicionais como arquivos musicais e de vídeos enviados pelo Dj Faraz. Além disso, eventuais dúvidas que surgiam durante a redação foram sanadas por telefone ou por e-mail com os Djs. Um exemplo disso, foi a situação em que se necessitou de um melhor esclarecimento sobre os ritmos Drum`n bass e o Breakbeat, ao qual o Dj Faraz atendeu prontamente inclusive exemplificando a diferença entre os estilos. 26 27 Quanto a textualização no capítulo destinado a abordar o trabalho dos Djs, buscou-se construir uma narrativa clara e transmitir a atmosfera das entrevistas. Em diversos momentos, optou-se por inserir os relatos e declarações dos participantes tal como foram ditos, assim, em muitas das citações não foram suprimidas certas expressões como “né”, “aí”, “pô”. Nesses casos, as citações diretas foram transcritas literalmente, pois, como sugerem as autoras Rovai e Evangelista (2010, p.6) a transcrição literal é tida por diversos autores como “a forma mais fidedigna de registrar o que foi dito pelo entrevistado”. Entendeu-se que a transcrição literal possibilitaria que os Djs ocupassem o papel não de informantes, mas sim, de “narradores” de sua experiência. Com relação aos procedimentos éticos, todas a entrevistas após serem transcritas foram enviadas via email para que os Djs apreciassem os seus relatos, solicitando aos mesmos que acrescentassem alguma informação ou sugerissem mudanças, caso julgassem necessário. Apenas o Dj Faraz fez um esclarecimento de uma informação que não tinha ficado clara na entrevista. Para o uso das informações coletadas nas entrevistas foi elaborado um documento escrita, no qual foi explicitado que elas seriam utilizadas apenas para fins científico. Os dois Djs autorizaram sem receio o uso das informações coletadas assim como a identificação dos seus nomes artísticos utilizados. Percebeu-se que o fato de terem seus nomes citados em um estudo acadêmico seria uma forma de mostrar o seu trabalho fora do âmbito da cena eletrônica ou, como expressou o Dj Faraz em uma das conversas informais, um meio de contribuir com a música eletrônica em Cuiabá. 27 28 2. AS TECNOLOGIAS DIGITAIS: OS NOVOS MEIOS DE PRODUÇÃO MUSICAL No percurso da história da humanidade sempre houve uma íntima relação entre a tecnologia e música, considerando a invenção de todo e qualquer instrumento musical como uma forma de tecnologia que, no sentido proposto por Iazzetta (1997, p. 1), remete às “ferramentas (conceituais ou materiais) utilizadas na realização de uma determinada tarefa”. No entanto, é especialmente a partir dos séculos XIX e XX que a relação entre tecnologia e música se intensifica. E isso aconteceu devido a fatores como o aumento do conhecimento sobre aspectos do som, o acesso à energia elétrica de baixo custo e a utilização das tecnologias eletrônica e digital na geração sonora artificial segundo Iazzeta (1997). A relação entre música e tecnologia, ainda, desperta questões, tais como se determinadas tecnologias no universo sonoro teriam surgido para atender às necessidades estéticas da música, ou, ao contrário, se novas vertentes estéticas acompanharam o desenvolvimento da tecnologia. Citando como exemplo a música eletroacústica, Zuben (2004) afirma que no século XX novas estéticas musicais foram criadas com o desenvolvimento das tecnologias de gravação sonora. Entretanto, em outros momentos da história da música ocidental, o aperfeiçoamento de antigos instrumentos parece ter atendido às necessidades estéticas de épocas. O autor exemplifica com as flautas orquestrais, antes de madeira, que passaram a ser feitas com metal, os instrumentos de cordas da família do violino, que tiveram modificações nos formatos dos arcos e nas cordas que eram fabricadas com tripas e passaram a ser utilizados materiais como naylon e metal, e, ainda, a criação de novos instrumentos como a família do saxofone e saxhorns e o piano (pianoforte). Nestes casos a tecnologia parece atender a uma necessidade estética da música do romantismo do século XIX, na qual compositores passaram a explorar uma maior gama de expressões e sonoridades, que por sua vez exigiam maior volume de som dos instrumentos. Remetendo ao pensamento de Lévy (1999) as técnicas teriam, assim, não determinado, mas condicionado a sociedade. Do mesmo modo, neste trabalho prefere-se abordar as tecnologias não como determinantes e sim condicionantes, assim, entende-se que estas ao longo do tempo abriram novas possibilidades também para experiências estéticas na produção musical. Ao se discutir essa relação entre a música e as tecnologias, aqui, se remete aos novos meios de produção provenientes, principalmente, dos conhecimentos adquiridos após o 28 29 entendimento e controle da eletricidade. Contudo, não se defende neste estudo, ao abordar como as tecnologias foram apropriadas e exploradas no processo de produção da música, um idéia de progresso ou evolução no campo musical, mas apenas, demonstrar o início de uma sucessão de profundas mudanças nunca antes pensadas nessa atividade. 2.1 Produção de Música com as Tecnologias Eletrônicas Por volta de 1875 surgiram duas importantes invenções que provocariam uma mudança radical na relação do homem com o som: o fonógrafo, inventado por Tomas A. Edison, por possibilitar que o som fosse gravado e utilizado na ausência do músico (cantor ou instrumentista) ou orquestra que o tinha produzido, e o telefone, invento de Alexander Grahan Bell, por transformar o som em vibrações elétricas podendo ser transportadas por fios e convertidas em som novamente (FRITSCH, 2008) A invenção do fonógrafo em 1887 - posteriormente o gramofone20 - foi o ponto de partida para a tecnologia de gravação. Esse invento inicialmente tratava de um aparelho de armazenar o som, a sua finalidade primeira seria o registro material de conversas gravadas ao telefone. De acordo com Santini (2005, p. 29) funcionaria como “uma espécie de secretaria eletrônica de hoje”. No entanto, Devido à sua grande capacidade de gravação e reprodução de som, o fonógrafo, um meio fonomecânico, e mais tarde o gramofone, este elétrico, passaram a serem utilizados na gravação e reprodução de música. Em alguns anos, os ouvintes passaram a poder escutar música, pela primeira vez, sem que esta estivesse sendo executada naquele momento (SANTINI, 2005, p. 30). A importância dos primeiros sistemas de gravação foi tamanha que tornou possível captar com precisão as performances ímpares de alguns artistas, e, além disso, tornaram mais acessíveis ao público as qualidades emocionais da música ao vivo. O sucesso da gravação inicialmente residia em poder captar as sonoridades de uma apresentação ao vivo e, posteriormente, escutá-la em casa. De acordo com Santini, essa era a aposta do negócio fonográfico, pois acreditava-se que o deslumbramento do público se dava em virtude da “verossimilhança da música gravada com aquela da performance ao vivo”(SANTINI, 2005, p. 20 O fonógrafo inventado por Tomas Edison, segundo Gohn (2002), usava em seu processo folhas de estanho sobre um cilíndro como o meio no qual sulcos eram cortados por uma agulha. Já o gramofone, criado em 1888 o pelo alemão Émile Berliner registrava o som em discos metálicos. 29 30 31). O prazer de ouvir música parecia estar relacionado exatamente à sensação de participação em uma apresentação musical. Segundo Lévy (1999) A gravação torna-se responsável, a sua maneira, pelo arquivamento e pela preservação histórica de músicas que haviam permanecido na esfera da tradição oral (etnografia musical). Enfim alguns gêneros musicais, como o jazz ou o rock, só existem hoje devido a uma verdadeira “tradição de gravação” (LÉVY, 1999, p. 140. Grifo do autor). No entanto, apesar de serem amplamente referenciados como tecnologias de difusão sonora, os sistemas de gravação, mais que servirem para o registro e preservação de performances ao vivo, passaram, também, a serem amplamente explorados por compositores das vanguardas da música contemporânea no processo de criação e produção de novas estéticas na música, especialmente, com o surgimento de microfones, gravadores e a fita magnética. Com esses dispositivos os compositores puderam registrar diversos sons, por exemplo, sons do ambiente e posteriormente transformá-los e editá-los por meio de cortes e colagens de fita magnética. Essa técnica denominada de bricolagem21 foi muito utilizada na vertente contemporânea denominada música concreta22. Nesse contexto, já se inauguraria uma forma inédita de concepção musical, a qual não estaria mais exclusivamente apoiada na escrita, como acontecia até o século XIX, em que toda música era concebida para que um intérprete a executasse posteriormente. Paralelo às novas possibilidades de circulação musical, empreendeu-se a tarefa de produção sonora a partir da criação de instrumentos musicais fornecidos com a propriedade da eletricidade. Até então, conforme Iazzetta (1997), todo som utilizado na música decorria de um mesmo tipo de processo mecânico. Assim, apesar de os diversos instrumentos musicais possuírem diferentes formas, baseavam-se em um mesmo princípio de produção sonora, ou seja, eram gerados pela vibração de algum material elástico que produzia ondas que se propagavam pelo ar chegando ao ouvinte, como exemplo, as cordas de um violão ou a palheta de um oboé. Tal como ressalta Iazzetta o surgimento das novas tecnologias advindas da eletricidade abriram a possibilidade da geração de sons sem a utilização de instrumentos mecânicos. 21 Do francês bricolage. Refere-se a uma atividade na qual se relaciona elementos preexistentes, mas heterogêneos, objetos que, uma vez reunidos, ofereçam algum sentido. Em resumo, se trabalha com o que se encontra montando, colando, grudando, ajustando (RODRIGUES, 2005). 22 Após segunda Guerra, de acordo com Rodrigues (2005), compositores franceses começaram a experimentar possibilidades expressivas colando amostragens sonoras de todas as naturezas, estas eram capitadas por microfones, justapostas, combinadas e editadas num processo de composição que foi denominado como “Musique Concrète”. 30 31 2.1.1 Os Primeiros Instrumentos Eletrônicos Como um dos primeiros instrumentos elétricos, Fritsch (2008) destaca ter sido o Thelarmonium, também chamado de Dynamophone, construído por Thaddeus Cahil, em 1906. Este foi uma espécie de pré-sintetizador, de grandes proporções, que Produzia diferentes freqüências de áudio que eram controlados por um teclado com sensibilidade ao toque. O sinal produzido pelos geradores era convertido em som e amplificado acusticamente por corneta, pois naquela época não existiam amplificadores. Os sinais elétricos eram transportados por linha telefônica para outros locais, que podiam ouvir, a distância, a execução musical (FRITSCH, 2008, p. 25). Desse modo, o Thelarmonium, conforme Arango (2005) pode ser considerado um instrumento híbrido, pois ainda que tenha sido o primeiro desenho de um artefato gerador de sons eletrônicos, o equipamento foi destinado à difusão musical, sendo o propósito do seu inventor transmitir os sons do Thelarmonium através do telefone. Ainda na primeira metade do século XX, outros instrumentos como o Ondes Martenot e Trautronium e o Theremin, foram utilizados na produção musical antes do surgimento dos sintetizadores. O Ondes Martenot foi inventado por Maurice Martenot na França, em 1928. O autor do invento foi apoiado pelo conservatório de Paris, mantendo a produção de Ondes no decorrer dos anos 1960. Este instrumento foi utilizado por diversos compositores, entre os quais Olivier Messiaen, Edgar Varèse, Maurice Jarre e Pierre Boulez e também em filmes de ficção científica e terror no cinema e televisão na década de 50. O Trautonium, criado pelo engenheiro Friederich Trautwein, teve uma versão comercial fabricada pela Telefunken entre 1932 e 1935 e foi utilizado por compositores como Paul Hindemith que compôs o Concertino para Trautonium e orquestra, em 1930 (ARANGO, 2005; FRISTCH, 2008) Contudo, entre estes instrumentos, o Theremim parece ter sido o de maior sucesso na época até o advento do primeiro sintetizador. Este foi criado pelo físico e músico russo Lev Sergeivich Termen (Léon Theremin) em 1920. Em 1927 foi patenteado e comercializado nos Estados Unidos em parceria com a RCA Victor. Conforme Fritsch (2008), Robert Moog, antes de desenvolver o primeiro sintetizador construiu vários modelos de theremins entre 1950 e 60. O Theremim foi incluído pela primeira vez em peças orquestrais em 1931 pelo compositor russo Dmitri Shostackovitch na trilha sonora do filme Odna. Em 1950, o seu som eletrônico foi também utilizado na produção de efeitos sonoros e melodias em trilhas sonoras 31 32 de filmes, como exemplo, O dia em que a terra parou. Além disso, alguns virtuoses desse instrumento ajudaram a divulgar o Theremim e colaborar para o seu reconhecimento e utilização em repertórios de música erudita dentre os quais destacam-se Clara Rockmore e Lydia Kavina segundo Fritsch (2008). Apesar de muito divulgado durante os anos 30 o Theremim, ficou, contudo, esquecido durante um certo tempo e recuperado apenas em 1954 por Robert Moog. Por volta de 1960 o instrumento foi empregado também na música pop, sendo utilizado, por exemplo, segundo Fritsch (2008), por Brian Wilson do grupo Beach Boys na gravação de The good vibrations (1966) e pelo guitarrista Jimmi Page do Led Zeppelin, que realizou shows tocando o instrumento na música Whole Lotta Love. Para Fritsch (2008) esse é um dos instrumentos mais extraordinários na perfomance musical, já que para executá-lo não é necessário o contato físico bastando aproximar as mãos de suas antenas, mas também difícil, pois, exige um ótimo senso de afinação e audição por parte do executante. Ainda hoje, o Theremin desperta o interesse de músicos contemporâneos, que o utilizam para a execução de música eletroacústica e experimental. Também é possível encontrar diversos vídeos de performances de música, tanto erudita quanto pop23, do instrumento em sites como o Youtube. Hoje, um dos principais fabricantes de theremins é a Moog music. 2.1.2 Os Sintetizadores A invenção do sintetizador, na metade do século XX, abriria um espectro maior de possibilidades aos envolvidos no processo de produção musical. Este, juntamente com os gravadores inauguram um novo período para a composição. Na música eletrônica, em que se utiliza exclusivamente os sons gerados pelos osciladores dos sintetizadores, por exemplo, é possível ao próprio músico em estúdio compor, interpretar e, ainda, ser a própria audiência de suas músicas gravadas conforme Fritsch (2008). O sintetizador se mostrou um instrumento versátil na produção musical, pois, além de imitar instrumentos existentes, o Moog – um dos primeiros sintetizadores comercializados também realizava sons que nenhum outro instrumento acústico podia produzir. Ele anunciava, 23 Conforme Shuker (1999) a expressão música pop desafia uma definição exata e direta, e “há controvérsias quanto aos critérios para classificação ‘popular’, assim como sua aplicação a determinados estilos e gêneros musicais”. De acordo com o autor “culturalmente, toda música pop é uma mistura de tradições, estilos e influências musicais. É também um produto com um significado ideológico atribuído por seu público”. Mas, seguindo a prática convencional acadêmica, em seu trabalho considera como “música popular” os principais gêneros produzidos comercialmente e lançados no mercado (SHUKER, 1999, p. 9). 32 33 “uma sonoridade futurista e cheio de novos timbres, nunca antes ouvidos” (FRITSCH, 2008, p. 61). Robert Moog24 citado por Fritsch, explica que Os sintetizadores são diferentes de outros instrumentos, eles não tem um único timbre como o violão ou a bateria, que o ouvinte pode identificar em uma audição. O sintetizador pode soar mais baixo ou mais alto, ou não ter afinação. Ele pode produzir um som percussivo ou com sustentação, opaco ou brilhante, magro ou gordo, liso ou áspero, familiar ou estranho. Ele pode evocar imagens de uma orquestra sinfônica, um sol nascente, uma nuvem de insetos e muito mais. O sintetizador possibilita que o músico construa sons eficientemente e intuitivamente, tornando-se uma extensão da imaginação do músico (MOOG apud FRITSCH, 2008, p. 130). O sintetizador Moog modular foi lançado no mercado por volta de 1964. Primeiramente, ele foi utilizado por compositores de universidades e conservatórios de música. Entretanto, inicialmente a música feita por sintetizadores enfrentou certa resistência, como assinala Fritsch (2008), não apenas pela maioria das pessoas que pensava que esta era uma pesquisa de vanguarda a qual tinha pouca relação com os valores musicais tradicionais, como também por parte dos músicos do período que chegavam a acreditar que “o meio eletrônico e os sintetizadores não tinham lugar na produção de música de alta qualidade” (FRITSCH, 2008, p. 60). No entanto, em meados da década de 60, alguns músicos pioneiros começaram a discordar dessa visão e apostaram nos recursos do equipamento, assim, o sintetizador invadiu também o mundo da música pop. Diversos álbuns utilizando os recursos dos sintetizadores Moog foram lançados nesse período: Jean Jacques Perrey e Gershon Kinsley, de Nova York lançaram o LP The in sound from way out; Wendy Carlos (na época Walter Carlos) lançou o Switched-on Bach, com obras de Bach realizadas exclusivamente com sintetizadores, sendo este um dos álbuns clássicos mais vendidos em todos os tempos. Também o trio Emerson, Lake e Palmer utilizaram esse sintetizador em seus shows de rock progressivo. Diversos estúdios de música eletrônica espalhados pelo mundo adquiriram o Moog modular para síntese sonora e composição eletroacústica (FRITSCH, 2008). Nesse sentido, Alves (2006, p. 16) afirma que a criação do sintetizador analógico marcou “uma nova era em termos de sonoridade de teclados e da própria música popular”. Na sua visão, o equipamento introduziu um novo conceito de geração e moldagem do som, e permitiu a expansão do universo sonoro e da criatividade musical. 24 Segundo Fritsch (2008), Robert Moog (1934-2005) foi um importante personagem tanto no desenvolvimento do sintetizador quanto da música eletrônica. Em 1954 fundou a empresa R. A. Moog e em 1964 lançou no mercado uma linha de aparelhos de síntese sonora. Seus inventos mudaram o curso da história da música, permitindo que o sintetizador e a música eletrônica assumissem um papel relevante na música atual. 33 34 O sucesso do equipamento se deu, principalmente, com a construção do Minimoog, que durante os anos 70, foi o sintetizador monofônico mais popular. Isso pode ser explicado pela a praticidade do equipamento que podia ser levado a qualquer lugar. Antes da invenção desse sintetizador portátil, o Moog modular era um equipamento grande e pouco prático. Assim, de acordo com Fritsch (2008), o Minimoog disponibilizava uma espécie de “minilaboratório de música eletrônica” que podia ser levado ao palco (FRITSCH, 2008, p. 63). Ressalta-se que até o surgimento do sintetizador, nenhum dos instrumentos havia sido projetado para a produção em série, ao contrário, a fabricação destes esteve sempre ligada e restrita as instituições acadêmicas como as universidades e laboratórios de pesquisa. Assim, como afirma Arango (2005, p. 48) os aparelhos foram “protótipos únicos ou modelos produzidos em mínima quantidade”, sendo projetados segundo necessidades individuais de alguns compositores. A partir de meados dos anos 1960 que começou a se estabelecer uma indústria de instrumentos musicais, passando o músico a ser também um consumidor das tecnologias disponíveis. Esse amplo consumo e emprego das tecnologias por parte dos músicos iria ser elevado ao infinito, especialmente, a partir da década de 80 com o advento das tecnologias digitais. Assim, é no final do século XX, que acontece a segunda profunda mudança no âmbito social e cultural, sendo a rede de computadores a maior expressão dessa mutação que reflete até o momento atual nas formas de produção de bens e signos culturais. 2. 2 Produção de Música na Cibercultura Desde o início do século XX diversos compositores ligados às universidades e conservatórios de música, se empenharam na criação de equipamentos para a produção sonora. Particularmente, a metade desse século demonstrou ser um momento prolífico para a busca de novas experiências no campo da música. Nessa década, paralela a invenção e utilização dos equipamentos eletrônicos analógicos, como os primeiros sintetizadores, iniciava-se uma longa pesquisa elaborada em diferentes universidades norte-americanas de incorporação do processo computacional ao trabalho musical. Segundo Arango (2005) Max Mathews, foi o primeiro pesquisador e grande antecessor da computação musical desenvolvendo no período o MUSIC, primeiro programa de computador destinado a fazer música. A partir da empreitada de Mathews, nos anos 70, outros pesquisadores, tanto dos 34 35 Estados Unidos quanto Europa, começaram a investir em pesquisas com propósito de experimentação musical (ARANGO, 2005). Em meados da década de 1970 os computadores, que até então eram os mainframes25, tiveram uma importante evolução técnica promovida pela aparição dos microprocessadores. Estes aparelhos tiveram seu tamanho reduzido e aumentaram em eficiência operacional, surgindo assim os primeiros computadores pessoais. Segundo Lévy (1999) o desenvolvimento e comercialização do microprocessador desencadearam diversos processos econômicos e sociais de grande amplitude. Essas tecnologias expandiram-se além dos muros das instituições governamentais, universitárias e de empresas privadas, tornando-se acessíveis a um número cada vez maior de usuários. Na época, a Apple foi uma das primeiras companhias a lançarem comercialmente o microcomputador e até esse fato, conforme Fritsch (2008), poucos eram os músicos que tinham acesso aos computadores para fazer suas experimentações sonoras. Desse período em diante, de acordo com Santini (2005) o uso do computador como ferramenta musical introduziu significativas mudanças em todos os âmbitos do fazer musical Este tem constituído uma ferramenta crucial no trabalho com música, tendo diversas finalidades desde as mais básicas como a de notação musical as mais complexas. Como exemplifica Alves (2006, p. 01) além da composição, arranjo, orquestração, sequenciamento26, há um série de outras funções musicais que são desempenhadas pelo computador sendo algumas destas Gravação de áudio proveniente de qualquer fonte sonora (microfone, instrumento musical, CD, gravação de fita, toca disco, etc; Execução de instrumentos virtuais; transferência de áudio digital entre diversas mídias; Educação musical - treino do ouvido musical, aulas de teoria, criação e testes de escalas e acordes, etc; Internet - sonorização de homepages com músicas, locuções e FXs sonoros (ALVES, 2006, p. 02). A criação da interface MIDI27 em 1983, que permitia a transferência de informações entre os diversos equipamentos externos (sintetizadores, sequenciadores e instrumentos 25 O Mainframe é um computador de grande porte, normalmente usado no processamento de um volume grande de informações. Ocupa amplos espaços e necessita de um ambiente especial para seu funcionamento, incluindo instalações de refrigeração. O termo se refere ao gabinete principal que alojava a unidade central de fogo nos primeiros computadores (http://pt.wikipedia.org/wiki/Mainframe). 26 Sequenciar, basicamente, consiste em tocar em um instrumento, por exemplo o teclado, enquanto outro aparelho registra as informações relativas a execução em formato digital. Os sequenciadores guardam as informações na memória interna, de forma que as mesmas possam ser enviadas de volta para os teclados e módulos que tocarão automaticamente o que foi executado (ALVES, 2006, p. 93). 27 MIDI ( Musical Instrument Digital Interface) é um padrão de comunicação de dados criado em 1983, em um acordo entre empresas Norte Americanas e japonesas para facilitar a transferência de informações entre instrumentos musicais e computadores. Esse padrão, de acordo com Frtsch (2008), utiliza a informação 35 36 musicais) com o computador, bem como, a produção de softwares musicais impulsionou ainda mais a apropriação desse recurso como ferramenta para a criação musical. A respeito do protocolo MIDI é importante entender, como explica Alves (2006), que o conteúdo das informações de MIDI, não é áudio, portanto, não é possível “ouvi-lo da forma convencional como se ouve, por exemplo, o som de uma guitarra ligada a um amplificador”. Assim, o que trafega são informações e instruções a respeito das notas, intensidades e durações que são transmitidos de um equipamento para outro (ALVES, 2006, p. 50 -51). A partir do protocolo MIDI e da tecnologia de chip (circuitos integrados baseados em silício) o home estúdio tornou-se uma realidade para qualquer músico profissional ou amador. Segundo Santini estas duas tecnologias foram “as alavancas para a reformulação dos estúdios e do próprio conceito de produção musical” (SANTINI, 2005, p. 47). Nesse contexto, as tecnologias digitais reconfiguram a atividade de produção musical de uma forma inédita, já que, com o barateamento das tecnologias da informática, artistas e músicos se tornaram cada vez mais autosuficientes. Devido ao surgimento dos softwares de produção musical e à possibilidade de digitalização dos arquivos de música para os formatos MP328 e WMA29, entre outros, músicos, cantores, compositores, bandas e Djs puderam passar a produzir e divulgar os seus trabalhos sem interferência das populares gravadoras. Assim, segundo Arango (2005, p. 65) o estúdio caseiro surgiu como “um novo lugar de concepção musical”. Atualmente, para se ter um pequeno estúdio de música caseiro não é necessário dispor de um superequipamento, basta apenas instalar no computador programas de edição musical e simuladores de instrumentos, que tornam a gravação e edição de áudio possível (SANTINI, 2005, p. 48). Diversos softwares estão disponíveis, alguns destes trabalham apenas com áudio, como o Sound Forge (Sonic Foundry/Sony) e Cool Edit (Syntrillium Software/Adobe) e outros permitem seqüenciamento MIDI e gravação de áudios conjugados, a exemplo do Áudio Logic (Emagic/Apple), Sonar (Cakewalk Music Software), Cubase, Pro tools, entre outros (ALVES, 2006). Esses softwares estão cada vez mais acessíveis podendo ser adquiridos facilmente pela internet e ser encontradas versões livres, embora algumas sejam vendidas. Também Lévy (1999) discorre que codificada em dados binários (bits) que são transferidos por meio de um cabo MIDI de um equipamento ao outro. 28 MP3 (da sigla de MPEG -1 layer 3) é um formato de áudio comprimido na faixa de 11 vezes em relação ao arquivo original. O formato popularizou-se na internet como padrão devido a sua capacidade de compressão de dados e por não deteriorar o material sonoro ao ser transmitido pela internet (SANTINI, 2005). 29 WMA (Windowns Media Áudio) formato lançado pela Microsoft para concorrer com o MP3, a novidade em relação a este, é que fornece o sistema anticópia. 36 37 (...) um dos primeiros efeitos da digitalização foi o de colocar o estúdio ao alcance dos orçamentos individuais de qualquer músico. [...] A partir de agora os músicos podem controlar o conjunto da cadeia de produção da música e eventualmente colocar na rede os produtos de sua criatividade sem passar pelos intermédios que haviam sido introduzidos pelos sistemas de notação e de gravação (editores, intérpretes, grandes estúdios, lojas) (LÉVY, 1999, p. 141). Essa autonomia pode ser observada também no caso dos Djs participantes da pesquisa, uma vez que, utilizando amplamente essas tecnologias, eles vêm se tornando cada vez mais os agentes das diversas etapas do seu trabalho, o que envolve além da produção musical, os processos de divulgação e circulação de suas músicas, como discutido no quarto capitulo desse estudo. Assim como a invenção do fonógrafo encantou as pessoas, o computador também tem fascinado os usuários, entre outras funcionalidades, pela possibilidade de se reproduzir e fazer música no ambiente doméstico. O computador e seus periféricos sonoros (sintetizadores, samplers, processadores de efeitos) permitem a simulação de uma orquestra ou banda preferida dentro de casa como afirma Santini (2005). Nesse sentido, as tecnologias digitais, conforme ressaltam Gohn (2007) e Yúdice (2007), vêm incidindo na experiência sonora, não apenas de músicos ou aficionados por determinado estilo musical, mas de todos os ouvintes. Boa parte dos discursos sobre a aplicação das tecnologias à música, por um lado despertam um misto de ansiedade em relação as novidades e possibilidades de novas experimentações no discurso musical e deslumbramento por se entender esses recursos como libertadores, no sentido de que trazem a música possibilidades de criação não mais restritas à limitações físicas do músico ou da “fisicalidade do seu instrumento” (IAZZETTA, 1997, p. 13). Por outro lado, também despertam desconfiança e pessimismo pressupondo-se que estas podem suprimir a capacidade de criação do ser humano. Segundo Iazzetta, estes sentimentos de ansiedade e deslumbramento, incluindo aqui também o de desconfiança e pessimismo, acompanham a história da humanidade em vários momentos e vêm à tona sempre que a “estabilidade de um certo período é confrontada com a criatividade trazida por alguma mudança substancial” (IAZZETTA, 1997, p. 13). Mencionando apenas os acontecimentos mais recentes, observa-se que isso sempre aconteceu, de acordo com o autor, por exemplo, com surgimento do mercado fonográfico e o desenvolvimento do rádio, com a introdução das ideias de Schöenberg sobre o serialismo e a invenção de instrumentos elétricos como o Theremin e o Ondes Martenot. Portanto, estes sentimentos não são privilégio da música eletrônica, ou melhor, de toda música produzida na atualidade, seja, por meios eletrônicos ou digitais. 37 38 De fato, destaca-se que estas novas formas de produzir música conferiram uma libertação do corpo do músico, uma vez que este não precisa se submeter mais a horas de treinamento em um trecho de uma partitura para uma performance ao vivo. Contudo, é um equívoco pensar que o uso das tecnologias na atividade musical não dependa mais da criatividade do homem e de sua capacidade de manipulá-las. Ao contrario, é preciso levar em conta que essas tecnologias só podem executar tarefas para os qual foram programadas. Tal como afirma Iazzetta, a linguagem musical sempre esteve profundamente relacionada com as tecnologias, sejam elas mêcanicas, eletrônicas ou digitais (IAZZETTA, 1997, p. 14). Portanto, é inadequado entender que a música produzida por esses novos meios, seria uma espécie de “música em conserva”, ou seja, mais artificial em relação aquela produzida de forma tradicional. Citando Schloezer (1931), Iazzetta lembra que para este a música mecânica é apenas um mito, pois esta sempre dependeu e depende de técnicas e tecnologias, dos instrumentos para sua realização. Para Schloezer, “o desenvolvimento dos aparelhos de reprodução fonográfica, do rádio e dos instrumentos elétricos não representa uma mecanização da música - essa é, e sempre será, essencialmente espiritual”. Há na verdade, nesse processo apenas “uma substituição gradual da relação direta entre o intérprete e o ouvinte por uma relação mais remota” (SCHLOEZER apud IAZZETTA, 1997, p. 6). 2.3 As Tecnologias e a Música Eletrônica 2.3.1 Música Eletrônica X Música Eletroacústica Desde a década de 1930, como mencionado anteriormente, alguns compositores já começaram a utilizar alguns instrumentos eletrônicos, como o Theremin. em suas composições. No ano de 1939, John Cage criou a sua obra Imaginary Landscape Nº 1 a partir de sons gravados e também Pierre Schaeffer em 1948 gravava sons, os transformando e os organizando para a realização de uma obra. Esse processo foi chamado de música concreta. O termo “Elektroniche musik” foi introduzido na Alemanha em 1949 pelo foneticista e linguista Werner Meyer-Eppler, sendo utilizado para designar a prática de composição realizada em estúdio, mas foi a partir da peça Gesang der Junglige de Stockhausen concluída em 1956 que acabou por se consolidar o termo “música eletrônica” (RODRIGUES, 2005; FRITSCH, 2008). Nesse momento, segundo Rodrigues (2005), a música eletrônica já definia uma elaboração sonora através de aparelhos eletrônicos analógicos, ou seja, os proto 38 39 sintetizadores, que podiam gerar e combinar frequências de múltiplos pulsos sonoros. Esse processo de composição se diferia da chamada “musique concrète” (RODRIGUES, 2005, p.54). Nesse período, músicos e compositores como Schaeffer, Stockhausen, Varèse entre outros, realizavam em estúdio suas composições a partir dessas duas técnicas: da eletrônica (de origem alemã) e da concreta (de origem francesa) que mais tarde, seriam reunidas naquilo que seria denominado de música eletroacústica. No entanto, o termo música eletrônica vem sendo utilizado desde a década de 80 também por críticos, produtores e Djs, e mais adiante por pesquisadores acadêmicos para referir-se a um novo fenômeno musical eletrônico voltado as pistas de dança, que emergiu fora da academia, e que veio desde então agregando, principalmente, o público jovem. Desse modo, o rótulo “eletrônico” é utilizado hoje para designar também a música feita pelos Djs. Contudo, de acordo com Fritsch (2008) o uso desse termo nesse contexto é inadequado, uma vez que, para o autor, estas apenas “são músicas instrumentais criadas por meios eletrônicos”. Ele acrescenta que Essa música comercial surge da união da composição eletroacústica com a dance music, misturado com o que o kraftwerk fazia, que é o tecnopop. Tudo isso foi evoluindo para essas várias subdivisões que criam até uma certa dificuldade em entender o que é trance e o que é house, por exemplo (FRITSCH, 2008b). Para o autor a música eletrônica “propriamente dita vem da década de 50, quando a montagem e a mixagem eram feitas por fitas” e que com o desenvolvimento tecnológico, começou a ser utilizado o computador (FRITSCH, 2008b). No entanto, o autor, sem depreciar o gênero aponta que tanto o termo “eletrônico” quanto “eletroacústico” trazem problemas em sua definição, já que são palavras que se referem apenas aos meios tecnológicos empregados no fazer musical. Citando Caesar (1994a) explica Fritsch (2008) que o compositor ao usar estes termos está anunciando somente que concebeu sua obra com o auxilio de recursos eletrônicos, porém, isto não possibilita um entendimento sobre a direção da proposta musical Certamente, é a partir do desenvolvimento tecnológico, bem como, da apropriação de técnicas de criação advindas da “música concreto-eletrônica” pelos sujeitos das esferas nãoacadêmicas que outras experiências musicais com os recursos eletrônicos emergiram e, assim como na música eletroacústica, buscaram na manipulação sonora fonte de inspiração e concepção musical. 39 40 2.3.2 Surgimento da Música Eletrônica de Pista A metade da década de 60 pode ser demarcada como período crucial na popularização dos dispositivos eletroacústicos. Nesse momento, rompeu-se com as restrições de acesso e consumo dessas tecnologias, que em princípio eram disponíveis apenas a compositores universitários e pesquisadores de empresas de telecomunicações. De acordo com Rodrigues (2005, p. 64) nesse período começou a haver um diálogo entre “artistas de formação acadêmica e amadores, autodidatas, não–músicos, ativistas culturais”. Esse intercâmbio de ideias, bem como, a disseminação do funk, do rock e da música pop, tornou a segunda metade do século XX um momento prolífico para novas experimentações sonoras fora do âmbito acadêmico. Tanto que comentaristas frequentemente retratam o final dessa década como “uma espécie de ‘era de ouro’ da experimentação”, momento de intensa efervescência criativa nos campos da expressão (RODRIGUES, 2005, p. 63). Sobretudo, a década de 70 foi decisiva na configuração da música eletrônica, uma vez que os recursos eletrônicos como sintetizadores já haviam se disseminado amplamente pelo mercado e passaram a ocupar lugar preponderante nos empreendimentos musicais de diversos grupos e artistas. Desse modo, no período, entre o final dos anos 1970 e o começo da década seguinte, a música eletrônica emergiu como um novo discurso musical, no qual os aparelhos eletrônicos são abordados de uma forma diferenciada pelos músicos. Como exemplo, Arango menciona o grupo Kraftwerk que emprega tais recursos “conduzidos por uma utopia futurista” (ARANGO, 2005, p.83). Apesar de outros grupos como o Tangerine Dream também incorporarem os recursos eletrônicos em suas produções musicais, o grupo Kraftwerk é frequentemente referido como mais significativo e o responsável por estrear as novas tecnologias no circuito mainstream e de fundar o gênero tecnopop (RODRIGUES, 2005). O grupo iniciou seu trabalho como um dos representantes do Kautrock30, mas, rapidamente e definitivamente incorporou os recursos eletrônicos abandonando totalmente a música instrumental. Impregnado pelo ambiente social da cidade alemã Düsseldorf, que nas décadas de 50 e 60 se tornou importante pólo industrial, o Kraftwerk, já na década de 70, adota uma sonoridade chamada industrial, a qual se caracteriza por inclusão de padrões repetitivos e as improvisações se concentram mais em 30 Gênero de Rock surgido na Alemanha, no qual se explorava as possibilidades de amplificação e improvisação. Neste se estabelece o experimentalismo em música. No Kautrock de acordo com Arango (2005), a exploração instrumental não objetiva o virtuosismo, mas, sim, estender as suas possibilidades tímbricas. Esse gênero manifesta-se como um happening de improvisação, cujas faixas podiam ultrapassar 20 minutos, e era executado em locais mais alternativos como galerias, universidades ou outros espaços, se afastando do circuito musical massivo das rádios (ARANGO, 2005). 40 41 criar ambientes sonoros que propriamente melodias. Então, o grupo passa a produzir diversos álbuns conceituais, cujos temas se referem à tecnologia: autoestrada, rádio, trem, robô e computador, como o próprio nome do grupo se refere à temática industrial significando “usina de força” conforme Arango (2005). Nesse empreendimento estético, Ralf e Florian apóiam-se nos recursos eletrônicos, especialmente nos sintetizadores e nos seqüenciadores. As produções de Kraftwerk deram um significado às sonoridades eletrônicas, reformulando o papel do instrumento musical no conjunto de rock. Ao mesmo tempo, Kraftwerk colocou no cenário pop uma série de idéias 31 desenvolvidas no estúdio da RTF (ARANGO, 2005, p. 142). Além desses grupos, diversos artistas começaram a utilizar os sintetizadores, entre os quais Steve Wonder, Pink Floyd, Emerson Lake e Palmer, entre outros como exemplifica Arango (2005). Ainda, na mesma época, a música disco32, aos poucos, ganha maior popularidade entre o grande público que se reúne em torno da música de dança. E nesse gênero já há um amplo progresso na incorporação dos recursos tecnológicos, tanto nas técnicas de gravação como na exploração de forma mais criativa de instrumentos e de equipamentos eletrônicos. De acordo com Rodrigues (2005), a utilização criativa de equipamentos como drum machines, basslines e sequenciadores na música disco incentivou muitos produtores33 a adotarem ostensivamente as novas tecnologias musicais que estavam disponíveis. Nesse contexto da disco é que surgiu a necessidade de alguém que operasse os equipamentos reprodutores de discos, selecionando e colando as faixas umas nas outras, que seria função do Dj. Dessa forma, apesar de a era disco ser lembrada hoje por nomes de artistas famosos como Donna Summer ou pela trilha do filme Saturday Night Fever do grupo Bee Gees, conforme Garson (2009, p. 13), inicialmente, ela se definiu como “uma cultura centrada na figura do Dj e na pista de dança”. Em princípio, não havia nenhum produto no mercado que caracterizasse o som da disco, assim, era pelas mãos e pela criatividade do Dj que ele surgia, ao realizar as suas combinações singulares de diversos discos. A partir daí, se cria “uma cultura” que não mais se centra no autor ou compositor da 31 Estúdio da Radio-Diffusion-Télévision Française (RTF), fundado em 1951 por Pierre Schaeffer, em Paris, e posterior Groupe de Recherche Musicaile (GRM), fundado por Pierre Henry em 1959 (ARANGO, 2005). 32 O termo é derivado do francês discothèque. As discotecas surgiram em Paris substituíndo os clubes de jazz. Nestas os parisienses se reuniam para dançar ao som de gravações das grandes orquestras de swing. Em Nova York, na década de 60, as luxuosas discotecas surgiam funcionavam como pontos de encontro da alta sociedade (ARANGO, 2005). 33 Os produtores que antes apenas dirigiam as sessões de gravação ganham maior importância nos gêneros da Dance music, pois, aqui técnicos e produtores atuam como criadores musicais (RODRIGUES, 2005). 41 42 música, sendo o Dj a estrela do momento, o que estará em jogo é qualidade de sua performance, ou seja, a sua habilidade em selecionar e combinar seu acervo sonoro em uma pista de dança, criando um evento único. Esta “cultura” de pista, de acordo com Garson (2009) se diferenciava muito da cultura do rock, que ao contrário, visava a fixação de suas produções em discos e ao “culto de estrelas”, de forma que fosse possível aos fãs seguirem a carreira dos artistas, acompanhando suas turnês e comprando “souvenires” (GARSON, 2009, p. 14). Para o autor, a disco, ao eleger a pista de dança como locus privilegiado ao invés do estúdio, delegava ao anonimato o rosto de quem produzia sua música, “valorizando aquele que a executava e enquanto a executava” (GARSON, 2009, p. 14). Sendo assim, a disco inicialmente foi uma expressão difícil de ser comercializada, não satisfazendo ao anseio por lucros da indústria fonográfica, pois, seu espaço de circulação se restringia à pequenos clubs que, segundo Garson (2009, p. 14), “se definiam como espaços de liberdade e aceitação para as minorias negra e homosexual”. A industria fonográfica só conseguiu obter lucros com esse gênero quando o transformou numa expressão caracterizada pelo star system e a venda de álbuns, processo tão característico de gêneros massivos como o rock. Desde a música disco o Dj vem acumulando a tarefa de produtor musical, começando a utilizar também os recursos das citações, por meio da reapropriação, de recortes e colagens de diversos trechos musicais, ou seja, o sampling. Segundo Garson (2009) o Dj produtor passa a misturar tanto os efeitos produzidos ao vivo, com aqueles pré-produzidos em estúdio. Nesse momento, já há uma quebra bastante significativa com as práticas anteriormente atreladas à figura do Dj, pois, até então, suas apresentações ao vivo eram baseadas em “uma transposição de suas técnicas desenvolvidas no rádio”, em outras palavras, o Dj era como um “mestres de cerimônias”, que tocava músicas e conversava com a platéia (GARSON, 2009, p. 13-15). Na década de 80, surgiram ainda outros gêneros como o Chicago House e o Techno34, de Detroit, e nos anos 90, com os Djs britânicos, o Trance. Do cruzamento de ideias e de trabalhos entre os Djs envolvidos em tais práticas que se desencadeou uma “expansão constelacional de estilísticas, de gêneros e subgêneros do que passou a ser designado com o rótulo ‘electrónica’” (RODRIGUES, 2005, p. 65. grifo do autor). Rodrigues destaca que a grande contribuição, tanto no que se refere à produção quanto a circulação dessa nova música 34 O House, O techno e trance, são alguns dos estilos ou subgêneros da música eletrônica que serão abordados adiante. O termo tecno em outros tempos designava a música eletrônica em geral. Mas, ainda hoje, segundo Fontanari (2003), em estudos franceses o termo é empregado para designar o que no Brasil chamamos de música eletrônica. 42 43 eletrônica foi trazida pelas tecnologias digitais. Como afirma o autor, A digitalização certamente revolucionou a música gravada com a passagem e o acoplamento dos dispositivos analógicos aos dispositivos digitais, acionando uma revolução técnica considerável para o desenvolvimento de toda a música concreto-eletrônica. O sintetizador conectado a um seqüenciador e posteriormente, a um computador, também mudou sensivelmente o modo de produção musical no circuito do eletrônico pop (RODRIGUES, 2005, p. 79. grifo do autor). Os equipamentos permitiram maior facilidade e possibilidade de manipulação do som gravado, sendo automáticos a realização dos cortes e colagens, tornando mais rápidos e fáceis os loopings35. É justamente na dinâmica da criação e escuta coletiva que, de acordo com Lévy (1999), a digitalização possui o efeito mais significativo. Com a passagem dos dispositivos analógicos para os digitais, ou seja, com o surgimento dos microprocessador, a “implementação do protocolo MIDI e de programas de edição multicanal, o estúdio virtual tornou-se uma realidade para o músico eletrônico” (ARANGO, 2005, p. 90). Sobretudo, esse processo de digitalização da produção musical vem ocorrendo desde a década de 90, surgindo diversos programas que simulam o funcionamento e sonoridades de determinados aparelhos analógicos que deixaram, então, de ser fabricados. Diversos fatores contribuíram para delinear os contornos desse novo universo musical. Desse modo, tanto o desenvolvimento tecnológico quanto aspirações individuais de músicos, compositores, Dj e produtores ou de grupos colaboraram para o surgimento de novas experimentações sonoras. Nesse contexto, a música eletrônica se popularizou e, cada vez mais, adentrou as pistas de dança. Essa música ganhou maior projeção comercial ao ser associada a uma prática social especifica dos jovens da sociedade contemporânea, isto é, às Raves, aos Teknivals36 e aos Clubs, fazendo com que emergisse uma nova cultura jovem denominada por alguns autores como “cultura Club”, “cultura Rave” ou ainda como “cultura eletrônica”. Segundo Gushiken (2004) essa cultura surgiu na Inglaterra quando jovens de baixa renda teriam inventado uma festa clandestina denominada “Really Safe Heaven”37 destinada a se consumir bebidas, drogas e ouvir música eletrônica oriunda dos Estados Unidos, ou seja, o House de Chicago e o Techno de Detroit. Contudo, o marco do surgimento da cena Rave ficou sendo o verão de 1988 na Inglaterra (GUSHIKEN, 2004; SÁ, 2006). 35 Trechos colados uns nos outros que se repetem constantemente. Termo que se refere aos festivais de música eletrônica. 37 Segundo Gushiken (2004, p. 33) é dessa frase “Really Safe Heaven” ( traduzido “paraíso realmente seguro”) que se origina o termo Rave. 36 43 44 […] ainda sob o nome de Acid House, o movimento ganha sotaque inglês na medida em que mistura ritmos oriundos dos EUA e dá a ver as primeiras grandes aglomerações de jovens e seus elementos de guerra: formação de multidões, música alta, roupas coloridas, drogas variados (GUSHIKEN, 2004, p. 33). Esta cultura logo alcançou outros países como Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Assim, durante a década de 90 os adeptos da cultura Rave constituíram-se no principal público da música eletrônica. Contudo, de acordo com Petiau (2001) a música eletrônica ou Techno38, embora esteja muitas vezes ligada a um movimento social, tal como outras músicas populares como o rock e o rap, não deve ser vista somente como sinônimo de festa. Mas, também “abordada sob uma perspectiva artística, com músicos que são profissionalizados e ouvintes que são constituídos em amadores, que apreciam essa música por seu valor estético”39 (PETIAU, 2001, p. 6). Ainda, é importante destacar que, apesar de ter atingido vários países e ser vista como um fenômeno massivo, essa música se distingue pelos envolvidos na cena eletrônica em duas vertentes opostas. De um lado há os adeptos de uma linha underground, ou seja, que tem uma abordagem mais alternativa e conceitual, cujas produções não são difundidas pelos meios de comunicação como televisão e rádio. De outro, há os que trabalham na linha mainstream, que ao contrário, é de cunho mais comercial. Essas linhas geram uma dicotomia na cena eletrônica, que portanto, não pode ser visto como um fenômeno homogêneo. 2.3.3 Estilos Produzidos pelos DJs de Música Eletrônica de Pista A música eletrônica têm sido referida nessa pesquisa como um gênero40, contudo, as suas diversas subdivisões são mencionadas pelos Djs como “estilos”, assim, aqui se usa este último termo para se referir as essas diversas subdivisões. A música produzida pelos Djs, apesar de apresentar alguns elementos em comum, como a utilização de recursos eletrônicos e digitais como samplers, mixers, toca-discos, computador, e técnicas como o sampling também traz algumas peculiaridades entre os diversos estilos que o gênero engloba. Desse modo, em virtude de suas características próprias, essa música não deve ser entendida como uma versão 38 O termo Techno aqui utilizado pela autora parece designar a música eletrônica em geral. “Elle est aussi abordeé dans une perspective artistique, avec des musiciens qui se sont profisionalisés et des auditeurs qui se sont constitués e amateurs, appréciant cette musique pour as valeur esthétique” 40 O gênero pode ser entendido de forma simplificada por uma categoria ou um tipo. “As diversas enciclopédias, as histórias-padrão e as análises críticas a respeito da música popular usam o conceito de gênero como um elemento básico de organização”. Contudo, alguns estudos tendem a usar os termos estilo e gênero como termos sobrepostos, ou preferem o emprego do termo estilo ao termo gênero (SHUKER, 1999, p. 141). 39 44 45 popular da música eletrônica realizada na ambiente acadêmico, já que os diversos estilos que compõem a esse gênero se diferem bastante da música eletroacústica. Alguns dos estilos mais difundidos nas pistas de dança e que já foram mencionados anteriormente, são o Techno, o House, o Trance e o Drum`n bass entre outras subdivisões ou variações desses estilos, como Deep house, Tech-house, Psytrance. Essa diversificação na música feita para a pista de dança começou a emergir, de acordo com Arango (2005), num período em que a música disco entra em decadência como um movimento comercial e social. Falando em termos comerciais, a disco, internacionalmente, foi um gênero bem sucedido entre o final da década de 70 e início dos anos 80, mas musicalmente falando, conforme destacam Shuker (1999) e Rodrigues (2005), era bastante denegrido. Frequentemente a disco foi associada à comunidade gay, se tornando, conforme Arango (2005), praticamente uma “bandeira” de um grupo excluído da sociedade. Segundo Sá […] a disco music não era um gênero mas sim a música que fizesse a pista dançar. Ainda que com uma inclinação gay, as pistas acolhiam diversos grupos étnicos com opções sexuais distintas tanto quanto diversos gêneros tais como o de Donna Summer mas também o funk, o hip-hop, o electro e a vertente chamada de freestyle (SÁ, 2003, p. 6). Desde a disco, a música de dança manteve o seu processo de incorporação das sonoridades eletrônicas e o público que passou a se reunir em torno do culto à dança se ampliou. Assim, “o movimento underground nova-iorquino de música de dança” foi se ampliando e atingindo outros lugares dos Estados Unidos (ARANGO, 2005, p. 109). Nesse contexto, é que acontece a passagem da música disco ao House. O House, segundo Rodrigues (2005), surgiu em 1986 quando discófilos como Frank Knuckles, que frequentavam as casa noturnas de Chicago, começaram a desenvolver uma nova concepção sonora para a música de pista. O estilo batizado de House Music era construído a partir do uso de sintetizadores primários e de drum machines41. Acrescenta o autor que As produções do house foram claramente impulsionadas pelo ritmo pulsante do bumbo fortemente acentuado e contínuo derivado da disco music 4/4, porém com as novas alternativas eletrônicas para se alcançar um pulso ainda mais frenético e um bpm ( batidas por minuto) acelerado, já esboçada pelas bandas do Technopop e do hard disco. A bateria eletrônica tornara-se, cada vez mais, expressivamente maquínica e mais distante da pulsação daquela 41 Em português as Baterias eletrônicas 45 46 dinâmica “humana” das percussões tocadas pelos músicos das primeiras bandas da disco music (RODRIGUES, 2005, p. 86). No House, assim como em toda a música voltada para a dança, a enfâse está no rítmo e não na melodia. Desse modo, a própria utilização da voz, ritmicamente trabalhada, se constitui mais um elemento que contribui para o propósito da dança. A combinação de baterias eletrônicas, sintetizadores e samplers dá lugar, portanto, a uma textura rítmicomelódica e assim, a música eletrônica, a partir do House começa a se afastar em termo de sua estrutura, da canção do rádio e da música pop (ARANGO, 2005). Conforme Gushiken (2004) A partir de sua difusão e massificação, o house é considerado o primeiro grande rítmo da chamada música eletrônica. Na Inglaterra, o house americano ganha inserções musicais a partir de sintetizador Roland TB-303. Com esse equipamento foi possível acelerar e alterar freqüências das batidas. O resultado foi um som mais metálico que recebeu o nome de Acid House (GUSHIKEN, 2004, p. 37). Pouco tempo depois do aparecimento do House, cerca de um ano, surge em Detroit um círculo de produtores da música para a dança que, conforme Rodrigues, foi denominada Prototechno, sendo este uma “síntese de misturas de influências das estéticas como a da música eletrônica européia (desde a linha tecnopop do Kraftwerk e do New order) e o p-funk (‘funk de pelúcia’) de George Clinton (parliament e funkdelic)” (RODRIGUES, 2005, p. 88). Detroit enfrentava na década de 80 as consequências da grave crise econômica que havia começado na década anterior a partir da competição com a indústria japonesa e dos chamados tigres asiáticos. Dentro desse cenário jovens discotecários passaram a adquirir, a preços acessíveis, os antigos aparelhos musicais como baterias eletrônicas, sequênciadores, sintetizadores e samplers fabricados em larga escala, mas, que foram rapidamente ultrapassados por novos modelos. Inseridos nesse contexto, Juan Atkins, Derrick May e Kevin Sauderson, três jovens negros de classe média, inspirados pela literatura de ficção científica e Alvin Toffler, pelo som do Kraftwerk e do funk da década anterior, criaram o techno (SÁ, 2003; ARANGO, 2005). O Techno distingui-se dos outros estilos de música eletrônica captando, consciente ou inconscientemente, reflexões sobre o futuro e a tecnologia. Ao contrário do House, o Techno não permite distinguir a sobreposição de partes como beat e a voz, assim sendo, sua estrutura consiste mais em “uma densa trama de som artificial que avança num padrão regular” (ARANGO, 2005, p.132). Nesse sentido, descreve Kosmicki, citado por Petiau (2001, p. 76) que essa música “é construída antes em espessura, verticalidade que em desenvolvimento de 46 47 linearidade”, portanto, sua estrutura “se apresenta como uma sobreposição de camadas sonoras igualmente importantes”.42 Devido à sua primordial aplicação as pistas de dança, o Techno, assim como o House, tem um formato mais extenso e ambos não precisam necessariamente ser escutados desde o início, permitindo amplamente a mixagem entre duas ou mais faixas. O Techno, logo se irradiou para Nova Iorque e, em seguida, Londres e Tóquio. Como em cada lugar incorporou influências locais, o estilo originalmente surgido em Detroit, passou a ser designado Detroit Techno. O estilo teve uma grande projeção mercadológica ao se associar a já mencionada prática musical das Raves, Clubs e festivais de música eletrônica (RODRIGUES, 2005). Da fusão eletrônica com elementos da música negra como o Reggae, Jazz, Funk, Hip Hop misturados com ideias do Techno originam outros estilos como o Breakbeat e o Drum`n bass. No Breakbeat, de acordo com Rodrigues, as batidas “são ricamente sincopadas, em defasagem como as demais fontes percussivas. A mistura produz uma cacofonia urbana, que experimenta linhas de baixos pesadas e até mesmo elementos estilísticos extraídos do Jazz” (RODRIGUES, 2005, p. 89). O Drum’n bass também apresenta um ritmo quebrado, mas, bem mais rápido que no BreakBeat. O estilo surgiu nos bairros mais pobres de Londres no início dos anos 90 e é resultado do cruzamento de uma série de sonoridades que “iam do dub e do ragga jamaicano ao hip hop, hip house, hardcore e o techno mais ‘pesado’” (SABÓIA, 2003, p. 76. Grifos do autor). Em países como o Brasil, o Drum`n bass acaba sendo recebendo inserções ou “suplementações sonoras”, usando o termo de Gushiken (2004), de gêneros como a MPB, bossa nova e samba O Trance, que surgiu no início da década de 90, se caracteriza por seu beat acelerado (entre 130 e 160 bpm), apresentando partes melódicas feitas com o sintetizador e uma forma musical progressiva durante a composição. O termo, que em português designa transe, é atribuído devido ao seu caráter repetitivo e progressivo que associado à dança, “induz supostamente no ouvinte um ‘estado de transe’ e convida a uma ‘viagem’ sensorial” (CALADO, 2006, p. 21). É importante ressaltar que a música eletrônica não foi simplesmente disseminada mundo a fora tal qual como foi criada nos Estados unidos, adquirindo características também locais como é, por exemplo, o caso do Drum’n bass, ao se misturar com a música Brasileira. Percebe-se mesmo que a música eletrônica se trata de um gênero híbrido, ou seja, gerado 42 “Elle est davantage construite dans l’épaisseur, la verticalité, que comme un déroulement linéaire. Sa construction se presente en effet comme une superposition de couches sonores, qui sont toutes d’une égale importance”. 47 48 pelas mesclas ou fusões de elementos, ou de outros gêneros musicais, distintos. Para entender melhor o termo híbrido, reporta-se ao pensamento de Canclini (2008), o qual afirma que hibridação em uma primeira definição pode ser entendida como processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. 2.3.4 Os Novos Músicos no Universo da Música Eletrônica:O Papel do DJ Dentro do contexto da música eletrônica o Dj desempenha um papel fundamental. Além de realizarem as práticas musicais principais de um Dj, lembrando produção discotecagem e, em alguns casos a, remixagem, hoje percebe-se que ele vem atuando também no processo de divulgação ao público do seu próprio trabalho e de outros Djs em sites de relacionamentos na internet, postando flyers (convites) dos eventos de música eletrônica em que fazem parte do line-up (programação), bem como, disponibilizando arquivos para que o usuário possa ouvir e comentar sobre o trabalho. Diante dessa diversidade de funções, parece mais complicado tecer uma definição precisa sobre quem é o Dj. Também no decorrer da revisão de literatura percebe-se que não há um consenso entre os autores sobre essa questão, sendo que alguns os tratam como músicos produtores, outros como produtores não músicos, artistas ou músicos populares. Em termos gerais, Shuker (1999) define o Dj como o responsável tanto pela apresentação e execução de músicas em clubes e discos, como também em emissoras de rádio e TV dedicadas a exibição de videoclipes. No entanto, tal definição parece demasiado simples considerando o status que possui hoje o Dj de música eletrônica, e remete mais à década de 50 quando surgiram os primeiros Djs de rádio e os discotecários. Em princípio, nas emissoras eram os locutores musicais “os responsáveis pela apresentação das gravações sugeridas e pelo fluxo contínuo da transmissão, com pequena influência para determinar a programação musical” (SHUKER, 1999, p. 100). Nas pistas de dança eram os discotecários ou “selectors” quem se responsabilizavam pela seleção musical dos bailes. No entanto, até a década de 40 a função de colocar discos para tocar não era vista como especializada, ao contrário, era considerada uma função meramente técnica e mecânica, e que qualquer um poderia desempenhar. O Dj era também visto com desconfiança não apenas por músicos profissionais que lutavam contra a “substituição” de orquestras pela música gravada, mas pela própria indústria fonográfica, no caso do Dj de rádio (SÁ, 2003, p. 48 49 10. Grifo da autora). Conforme Sá, a partir dos anos 50, especialmente com o surgimento do Rock’n roll, que o Dj começa a desfrutar de um certo status dentro da indústria do entretenimento. Assim, Configura-se a partir daquele momento o papel do Disc Jóquei como mediador entre o público e as novidades da indústria fonográfica. Pois, se por um lado, ele é um consumidor bem informado, que faz da sua paixão por música uma forma de ganhar dinheiro; do outro, ele é um formador de opinião, provocando através de suas preferências musicais uma cadeia de consumo (SÁ, 2003, p. 11). Nessa década no Brasil, especificamente, em São Paulo, eram comuns os bailes com orquestras ao vivo organizados em salões nobres para a alta sociedade. E ao contrário do que acontecia em países como os Estados Unidos, aqui não “havia um código social que barrasse a entrada de negros nesses bailes. O fator excludente era mesmo o alto preço dos ingressos” (ASSEF, 2008, p. 23). Então, uma alternativa para se organizar bailes mais baratos para outras camadas da sociedade, surgiu com Osvaldo Pereira, considerado o primeiro Dj do Brasil. Osvaldo Pereira foi quem teve a ideia de organizar o primeiro baile no Clube 220 no qual ao invés de se ter uma orquestra ao vivo tocando teria-se um discotecário. Ele relata em entrevista a Claudia Assef esse acontecimento Montei meu toca-discos no palco, distribuí as caixas de som pelo salão. As pessoas que iam chegando não entendiam direito como um som tão potente saía da minha vitrolinha. Tinha gente que subia no palco para ver. Às vezes, eu ficava escondido num cantinho ou deixava a cortina fechada. Aquele sonzão todo e nenhum músico, o pessoal ficava meio assim. Daí um primo meu deu a idéia de divulgar que os bailes eram animados pela orquestra invisível, porque ninguém via direito de onde vinha o som. Eu gostei disso, achei charmoso. E completei com um nome em inglês bem bonito. Eu virei a orquestra invisível Let’s dance (OSVALDO PEREIRA apud ASSEF, p. 2008, p. 24). A partir da empreitada de Osvaldo Pereira, surgiram outros discotecários no Brasil. Esse fato foi o que deu origem, na década de 70, às equipes de bailes que contavam com o trabalho dos Djs, que eram considerados ainda discotecários. Contudo, até esse momento, apesar de muitas vezes o público procurar as festas pela seleção dos Djs, eles eram ainda mal pagos e não reconhecidos, sendo que o destaque era dado às tais equipes de bailes (ASSEF, 2008). Em Nova Iorque, o trabalho dos Djs de disco já começaram a ter uma repercussão em outras comunidades, no mesmo momento o hip hop se consolidava como um movimento artístico e social nos Estados Unidos, o qual incorpora também no rap o toca-disco como elemento de criação musical (ARANGO, 2005). 49 50 Aos poucos, a função do Dj foi se afastando largamente daquela de mero selecionador de discos ou de locutor de rádio. Especialmente entre os anos 80 e 90 que os Djs começaram a desfrutar de maior prestígio profissional devido ao surgimento dos clubes e pela propagação da música eletrônica. Mesmo tendo sua música repudiada por alguns grupos de rock que fizeram sucesso nesse período, a exemplo do The Smith43, com o advento desse gênero, o Dj começava a ser cada vez mais requisitado, não mais apenas pela sua seleção, mas também por sua técnica em misturar e combinar as gravações, o sampling. Como afirma Sá (2003) [...] ele será valorizado a partir da riqueza do seu acervo musical e de sua capacidade de construir uma trilha sonora (um set) inusitada e surpreendente, onde se combinam clássicos do gênero escolhido, novidades fornecidas por produtores exclusivos, músicas obscuras ou esquecidas, além de sobreposições musicais originais (SÁ, 2003, p.11). Foi a partir da técnica do sampling que o Dj, conforme Shuker (1999), entrou para o mundo dos instrumentistas musicais. É desse profundo relacionamento com o universo Club que hoje, de acordo com Rodrigues, [...] aflora um culto considerável ao DJ, pois ele entra numa espécie de relação empática com o público, à medida que ele consegue captar o estado de ânimo na pista e passa a combinar criteriosamente as faixas, a forjar grooves, a criar intervenções, a cortar e colar a sua non stop music (RODRIGUES, 2005, p.84). Nesse sentido, entende-se que o Dj controla não apenas a música, mas, a própria atmosfera, o estado de espírito e a vibração (vibe na linguagem dos clubbers44). Essa vibe ou atmosfera é criada justamente na interação entre o Dj, o público e o espaço físico que todos partilham, sendo a seleção musical fundamental para tal interação. E é nessa capacidade de percepção do momento exato de tocar determinada música, que segundo Assef (2008) reside a essência do trabalho do Dj. Assim sendo, para a autora os Djs seriam “filtros musicais pessoais”, ou seja, “selecionadores particulares de música para gente que gosta de dançar” (ASSEF, 2008, p. 11). Arango (2005) afirma que ao escolher formas e idéias e combiná-las de um modo pessoal, o Dj adota um posicionamento artístico diante do contexto musical. Arango cita Ulf Poschardt o qual compara o Dj ao curador de arte, já que este deve realizar uma pesquisa das 43 Na letra da música Panic do grupo pode-se encontrar uma declaração evidente de tal repúdio aos Djs: Burn down the disco/ Hang the blessed DJ / Because the music that they constantly play / It says nothing to me about my life. (ver Garson, 2009). 44 Termo que os adeptos do gênero que frequentam os clubes se identificam e são mencionados pelos autores. 50 51 produções de música para dança e no momento certo executar a produção mais adequada. A prática da seleção e colagem realizada pelo Dj, é que o leva o autor a defini-lo como um artista conceitual, em suas palavras “um músico do ready-made” (ARANGO, 2005, p. 115). Ressalta-se que a noção do ready-made inaugurou-se nas artes plásticas na primeira metade do século XX, mas mais especificamente, com a vanguarda com o dadaísmo tendo como seus representantes Kurt Schwitters e Marcel Duchamp. Betrame e Moretti (2011) afirmam que na visão de Duchamp, criador do termo ready-made, este é uma apropriação daquilo que já está pronto, melhor dizendo, trata-se somente de uma transposição ou deslocamento de objetos com uma finalidade prática e não artística, ou seja, objetos de ordem industrial que são elevados à categoria de obras de arte. Na música esse princípio da apropriação e combinação de sons diversos, ruídos, sons do ambiente, como discutido anteriormente, foi primeiramente incorporada na música concreta, com técnica da bricolagem. Assim, a partir disso, o Dj pode ser visto, conforme Rodrigues (2005), também como um “artesão do som” ou “artista bricoleur”. Percebe-s que embora sejam utilizados termos diferentes, nota-se que um mesmo pensamento de reutilização de materiais (objetos ou sons) para se criar algo novo vem permeando o campo cultural desde o século XX até o momento atual, portanto, nesse sentido, a produção musical dos Djs se insere nesse movimento cultural. Outros autores, ou mesmo os envolvidos na cena eletrônica atribuem aos Djs uma habilidade que vai bem além da mixagem e produção, sendo comparado a um xamã, o qual pode induzir o ouvinte a “estados alterados de consciência” (Dj Mantrix apud FERREIRA, 2006). No entanto, apresentando uma perspectiva menos holística, Pourtau (2001, p. 29) afirma que nessa música é o Dj quem tem a função do intérprete, contudo, sua participação no processo de criação “é talvez mais ampla, graças ao mix, que em outros tipos de música”45. Entende-se que, para o autor, o papel que veio se destacando seria aquele do “intermediário”, o qual com os progressos tecnológicos “o antigo Dj, passador de discos” se própria pouco a pouco da obra46, se tornando nesse contexto, um compositor indireto.47 A partir dessa discussão, percebe-se os diversos prismas sob os quais o assunto vem sendo abordado, mas, observa-se também que embora não haja uma definição da figura do Dj há um consenso de que o seu papel é bem mais complexo do que se imagina, pois, o que o Dj faz na frente do público é apenas “o resultado final de várias horas gastas pesquisando sobre 45 « Dans la musique techno, c’est le Dj qui a fonction d’interprète. Sa part de création est peut-être plus vaste, grâce au mix, que dans d’autres types de musique » 46 « la fonction qui se détache est celle d’un intermédiaire, le Dj L’ancien passeur de disques utilise les progrès technologiques dans les tables de mixage pour s’approprier peu à peu le morceau ». 47 O autor entende como compositor direto, como será discutido no capítulo quatro, o produtor que cria as suas músicas e vendem a outros Djs (ou compositores indiretos). 51 52 música” (ASSEF, 2008, p. 11). Este trabalho de pesquisa é bastante enfatizado neste estudo pelo Dj e produtor Faraz no capitulo final como parte fundamental do processo de produção. Partindo do exposto pelos autores, bem como, das declarações dos Djs escolhidos para esse estudo durante as entrevistas, nota-se que o trabalho do Dj envolve “um universo de saberes, sentidos e técnicas” (FONTANARI, 2003) que num primeiro momento podem parecer simples. Essas questões estão especificamente discutidas no último capítulo do presente estudo. 52 53 3. CIRCULAÇÃO E CONSUMO MUSICAL NA CIBERCULTURA No campo artístico e cultural, a industrialização que se estendeu mundialmente no começo do século XX trouxe grandes mudanças, especialmente com a invenção do fonógrafo e cinematógrafo. A arte do cinema, por exemplo, conforme Morin (2009) instituiu uma divisão do trabalho semelhante aquela da fábrica, desde a entrada da matéria prima, ou seja, o script ou romance que deve ser adaptado, até o produto acabado. A cadeia de produção começa com os adaptadores, cenaristas, operador, engenheiro de som até chegar ao acabamento final da obra coletiva, dado pelos músicos e montador (MORIN, 2009). No caso específico da música, também a invenção da gravação e o desenvolvimento da indústria fonográfica, consolidaram a separação entre o músico e os meios de produção musical. Assim, o invento destas tecnologias pode ser considerado, conforme Castro (1988), o correspondente da revolução industrial na atividade musical. É certo que houve um condicionamento da “revolução industrial” na produção musical que atingiu as novas formas de circulação e consumo musical. A música se tornou, pela primeira vez, tal como o livro, o filme ou o automóvel, uma mercadoria fabricada industrialmente e vendida comercialmente por meio de um novo suporte físico, que é o disco. Seguindo o curso histórico, acontece também uma “terceira revolução”, como propõe Warnier (2000), a qual se processou no final do século XX, com as tecnologias digitais que reconfiguraram mais uma vez todo o âmbito da atividade musical, desde a produção até os modos de recepção. Assim, é abordado neste capítulo, como se processaram tais transformações na passagem de uma cultura escrita à cultura de massa, com a invenção dos meios de gravação e reprodução e o estabelecimento de uma indústria fonográfica e, posteriormente da cultura de massa à cibercultura. É importante ressaltar que os processos de mudança nesse sentido não significam pressupor uma ruptura, mas sim levar em consideração as transformações desde as mais contínuas e sutis até as que causam maior impacto, concordando com o pensamento de Morin (2009), quando afirma que se pode perceber nesse traçado histórico que não há rupturas, mas, uma contínua metamorfose do movimento cultural das sociedades ocidentais. 53 54 3.1 Circulação da Música: Da Escrita à Gravação É possível afirmar que a notação musical foi um dos primeiros meios de circulação da música no Ocidente. A música era registrada em partitura e veiculada graficamente sendo compartilhada principalmente por quem detinha o conhecimento de tal registro. Posteriormente, pela gravação, pode se romper com os limites físico-temporais, possibilitando uma nova forma de circulação de informação sem se basear na tradição oral e, como afirma Gohn (2007), sem depender da memória humana. Lévy (1999) acrescenta que a escrita musical permite uma nova forma de transmissão que vai “não mais de corpo a corpo, do ouvido à boca e da mão ao ouvido, mas por meio do texto” (LÉVY, 1999, p. 139). Os registros musicais, em papel ou em um disco, abriram caminhos para uma circulação da música mais aberta, no sentido de que não se restringia mais a um único espaço físico, como acontecia na cultura oral. Iazzetta (1997) considera que apenas o registro em partitura promovia uma difusão ainda que, de certa forma limitada, em suas palavras, uma “difusão musical fechada”, já que a música era uma experiência vivenciada, em geral, apenas pelos integrantes de uma dada comunidade devido as dificuldades de se ultrapassar os limites “espaço-temporais” dessa comunidade. O autor acrescenta que, ainda que o registro na partitura tenha colaborado com o processo de materialização da música, ao contrário do livro ou do quadro que ofereciam imediatamente a obra a quem quisesse apreciá-la, a partitura ainda demandava a etapa mediadora da performance. Um processo que exigia um longo tempo de aprendizagem e execução, além disso, a interpretação de uma determinada música quando colocada em um papel inevitavelmente passa a sofrer transformações decorrentes da interpretação acrescenta Gohn (2002). Sobre a imprecisão da escrita musical, é importante destacar o pensamento de Aaron Copland (1939) citado por Gohn, o qual afirma que a notação musical não significa uma transcrição exata do pensamento do compositor sendo esta vaga e que permite liberdade no que se refere às questões individuais de gostos, isso por parte dos intérpretes. Mesmo que viesse existir uma forma mais exata de escrever uma composição, a música ainda estaria aberta a diferentes interpretações. Portanto, a música registrada em partitura criada por um compositor ao ser executada por outros músicos sempre foi e ainda tem sido uma experiência vivenciada em um determinado tempo e espaço, sendo esta subordinada às questões subjetivas diversas do contexto em que ocorre. Pode-se afirmar que desse modo, dificilmente a interpretação de uma obra musical, ainda que seja repetida inúmeras vezes, será idêntica, mesmo se for repetida por um mesmo intérprete, considerando as particularidades implícitas no contexto. Com o 54 55 advento da gravação, onde se pode repetir uma mesma interpretação muitas vezes, aparentemente o problema se torna amenizado, uma vez que o acesso à interpretação de uma obra por um determinado músico aumentaria e seria veiculada sendo repetida quantas vezes fosse possível. Quanto à notação musical, faz-se necessário salientar que ainda que esta tivesse propiciado que uma música pudesse ser levada de um lugar a outro e ser interpretada, para que o ouvinte pudesse apreciá-la era condição fundamental a presença no evento enquanto este acontecia conforme acrescenta Iazzetta (1997). O autor afirma que, Até o advento dos sistemas de gravação neste século, o contato com música se dava primordialmente através da performance. O ouvinte, mesmo que não envolvido diretamente com a produção sonora, participava da realização musical ao reconstruir internamente, não apenas seqüências de notas produzidas pelos instrumentos musicais ou as estruturas formais da composição, mas todo o universo gestual que os acompanha, pois a música era fruto dos corpos que a produzem e era impossível, para o ouvinte, ficar alheio à presença desses corpos (IAZZETTA, 1997, p. 2). Com o surgimento dos equipamentos de gravação, que se iniciou com a invenção de Tomas Edison em 1887, houve uma radical mudança nas formas de circulação musical. A música passou a ser registrada em um suporte que poderia ser copiado e reproduzido em tempo e espaço diferenciado daquele em que foi produzido. A gravação permitiu, dessa forma, a fixação dos “estilos de interpretação da música escrita” (LÉVY, 1999, p. 140). A mudança não era apenas na estrutura abstrata de uma peça que poderia ser transmitida e descontextualizada, mas também a sua atualização sonora na medida em que poderia ser reproduzida muitas vezes. O próprio fato de que para desfrutar de certos gêneros musicais não haveria a necessidade de se encontrar naquele espaço privilegiado, próprio para a apreciação foi uma das mudanças provocadas nas formas de circulação musical. Outro fato significativo decorrente do advento da gravação é que cada vez mais a música seria produzida para ser ouvida e produzida em série, em grande escala, essa mudança altera também a relação entre compositor intérprete e ouvinte. Para Iazzetta (1997), desde que a música passou a ser registrada, seja em partitura ou por meio da gravação, o ato de fazer música (compor ou tocar) progressivamente se distanciou do ato de escutar. Nesse processo, instauraram-se categorias de “especialistas musicais”, sendo estas a de compositor, intérprete e ouvinte, cada qual desempenhando um papel específico. Portanto, com a gravação tal separação entre a produção e recepção musical apenas se intensificou. O autor cita John 55 56 Mowitt (1987) que afirma que a ênfase no processo de produção foi transferida para a ênfase na recepção, ou seja, houve um empreendimento maior na audição como experiência cultural. Torna-se saliente aqui o fato de que é incomensuravelmente maior o número de pessoas que ouvem música do que o número de pessoas que fazem música. Mais do que um dado quantitativo, isso reflete uma transformação no espaço sociocultural: a música é produzida primordialmente para ser ouvida e não para ser tocada, e os processos de composição e interpretação passam a ser os meios pelos quais isso se realiza. Essa projeção na direção do ouvinte é realçada pelos processos de reprodução que vão impor, de certa forma, os padrões de recepção (IAZZETTA, 1997, p. 3-4). A partir dessa nova realidade é que grande parte dos ouvintes passou a entender por audição musical aquilo que se referia à escuta por meio dos sistemas reprodutores e seus periféricos, ou seja, o rádio, os discos e as fitas magnéticas. O cenário regido pela gravação e reprodução se tornou o padrão de norteamento da própria produção musical, na medida em que, principalmente no campo da música popular, os músicos tentavam reproduzir cada vez mais em suas performances ao vivo o mesmo padrão oferecido nas suas gravações. Houve um aumento dessa tendência à reprodução, na medida em que se foram aperfeiçoando os equipamentos e se tornando também mais acessíveis. É importante acrescentar o pensamento de Carvalho (1999) que considera que a gravação chegaria a tornar-se “uma montagem industrial” tal como a edição de uma película cinematográfica. O autor comenta que, Fragmentos de vários takes, gravados em canais independentes, são unidos entre si e depois superpostos, formando uma colagem tridimensional, e ninguém possui completa autonomia do processo como um todo; são vários os tipos de técnicos e artesãos, articulados como especialistas para decidir como será o produto definitivo e o músico é apenas um deles (e nem sempre o que toma as decisões mais importantes) (CARVALHO, 1999, p. 8). A fragmentação no modo de produção musical, que pressupõe uma intervenção não apenas de uma única mão de obra no material musical, que seria em princípio a do compositor, acaba por colocá-lo apenas como mais um no processo e que por questões como o domínio de certas tecnologias já dominadas por técnicos especializados não teria condição de tomar uma decisão de maior peso no que se refere ao produto final. Se no início do século XX a performance era a referência de escuta, a partir da década de 60, a situação se inverte e a gravação em estúdio torna-se a referência. O padrão de qualidade da gravação passou a ser definido não pela sua fidelidade a uma performance como em seus primórdios, mas pela qualidade do registro. Dito de outra forma, a gravação aos poucos deixaria de ser um registro do real para se tornar um registro ideal conforme pensa Santini (2005). Um exemplo desse 56 57 fato, citado por Carvalho (1999) é o caso do pianista Glenn Gould que, durante toda a sua vida profissional, procurou buscar a gravação perfeita ou o disco perfeito ao invés de buscar a execução, ou a performance perfeita. Ainda na visão de Carvalho (1999) é possível considerar que todo o aparato tecnológico que surgiu no século XX modificou a sensibilidade do ouvinte contemporâneo. Esse autor destaca que, se por um lado, o acesso que se tem hoje às músicas das diversas culturas do mundo é um fato extremamente positivo, já que inspiraram criadores e ouvintes sensíveis a explorar dimensões e linguagens sonoras há pouco tempo desconhecidas, por outro, traz uma conseqüência que em seu pensamento seria um “efeito perverso”, como denomina a padronização, bem como a homogeneização da escuta. Segundo o autor, com o advento da eletricidade, e por consequência, dos aparelhos eletrônicos, algumas técnicas foram sendo cada vez mais utilizadas nos processos de gravação, como a equalização e reverberação. Contudo, se inicialmente estas seriam recursos especiais usados nas gravações de alguns estilos musicais, ao longo do tempo foram generalizadas, “fazendo parte do formato de toda e qualquer música comercial gravada massivamente” (CARVALHO, 1999, p. 6) e isso, sem se levar em conta o gênero, a origem étnica ou as variáveis temporais. No processo da equalização, por exemplo, o autor afirma que os vários elementos sonoros são submetidos a um tratamento que leva a homogeneização, o qual se não elimina totalmente, ao menos atenua, certas diferenças, ou em outras palavras, características particulares de um evento musical, que poderiam ser captadas pelo ouvinte quando escutasse em seu contexto particular de execução (CARVALHO, 1999). Sendo assim, toda e qualquer gravação, independente de seu lugar de origem estaria subordinada “a estética sonora da transparência e da equanimidade” e, conforme Carvalho, deveria soar do mesmo modo, como se escutasse gravações de “Philip, Monteverdi, David Byrne, ou B.B. King”(p. 18-20). No entanto, ainda que hajam diversas posturas a respeito das tecnologias, umas otimistas e outras nem tanto, é preciso considerar que com novas formas de se vivenciar a música, remetendo ao pensamento de Gohn (2007), sempre surgem diferentes práticas e conceitos, os quais reformulam os papéis daqueles envolvidos tanto na produção quanto no apreciação e/ou consumo musical. 57 58 3.2 Circulação Musical na Cultura de Massa Do século XIX para o XX observa-se a passagem da “cultura escrita ou impressa” – do jornal, folhetin, romance, onde se pode incluir também a partitura musical - para a cultura de massa48. Esta última, na visão de Morin (2009), absorveu os conteúdos da primeira metamorfoseando-os progressivamente. Esta metamorfose não sucedeu apenas em caráter quantitativo, mas também qualitativamente ao criar um mercado mundial, já que entre o impresso e o rádio, o filme, a televisão há uma profunda diferença. Morin comenta que a imagem impressa é imóvel e afirma que O filme, a televisão, bem como o rádio, são capazes de reproduzir a vida, e reproduzi-la em seu movimento real. Pode se dizer, então, que a cultura de massa é marcada por um caráter de extensão e intensificação em relação à cultura impressa. Na visão do autor, ainda que a cultura de massa não seja a única, ela é a primeira cultura universal da história da humanidade, “cosmopolita por vocação e planetária por extensão” (MORIN, 2009, p. 16). Talvez por este motivo, haja uma tendência em conceber a cultura de massa como homogeneizante e alienante; uma cultura que, ao invés de ser “o lugar onde as diferenças sociais são definidas, passa a ser o lugar onde tais diferenças são encobertas e negadas” (BARBERO, 2003, p. 180). Morin (2009) afirma que na verdade a estratificação é reconstituída no interior da cultura de massa. Por exemplo, o público dos cinemas de arte não será o mesmo daquele do circuito popular, embora que muitas vezes os programas e sucessos dos dois sejam os mesmos; os ouvintes de rádio se diferenciam pela escolhas das estações e dos programas, e essa diferenciação de gostos, conforme o autor significa também uma diferenciação parcial no que concerne ao social. A despeito das separações que acontecem no campo do trabalho por relações de autoridade, ou no habitat por quarteirões ou blocos, o que se pode adiantar é que “a cultura industrial é o único grande terreno de comunicação entre as classes sociais” (MORIN, 2009, p. 41). Corroborando com esse pensamento, Barbero (2003) entende que é impossível uma sociedade chegar a uma completa unidade cultural. O autor ressalta que, considerando a cultura de massa também como a primeira a possibilitar a comunicação entre os diversos estratos da sociedade, os meios de comunicação desempenham um papel importante por possibilitarem o fluxo cultural e o encontro das classes. 48 Produzida segundo normas da fabricação industrial e também propagada pelas técnicas de difusão maciça, destina-se a uma massa social, ou seja, “um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade (Classes, família, etc)”. (MORIN, 2009, p. 14) 58 59 Partindo disso, pode-se dizer que a radiofonia, inaugurada oficialmente nos EUA em 1920 e dois anos mais tarde no Brasil, foi o primeiro meio a possibilitar o “encontro das classes” por meio da música, já que tanto o trabalhador da fábrica como o patrão poderia ouvir os sucessos da época, e isso sem que fosse necessário sair de casa. Discorrendo sobre tal importância que o rádio desempenhou na transmissão musical, Shuker (1999) afirma que entre os anos de 1920 e 1930 o rádio se desenvolveu como um aparelho de uso doméstico, desempenhando papel importante como entretenimento para a família, especialmente no período noturno. E acrescenta que Nos Estados Unidos, disseminou a música de concerto e ajudou a resgatar formas de música regional, como o western swing e o jazz, para um público amplo. Durante as décadas de 1930 e 1940, o rádio foi inimigo da indústria fonográfica nas disputas sobre pagamento pela execução das gravações. Mas posteriormente tornou-se seu mais imprescindível aliado. Nos anos de 1950, a remodelação das emissoras de rádio influenciou o rock’n’roll, e a veiculação radiofônica tornou-se essencial para o sucesso comercial, especialmente nos programas dedicados às paradas de sucessos (SHUKER, 1999, p. 225). Também dos Estados Unidos para os outros países ocidentais, emergiu o cinema que tal como o rádio tem como caráter o fato de se dirigir a todos independente da classe social. O cinema, “foi o primeiro a reunir em seus circuitos os espectadores de todas as classes sociais urbanas e mesmo camponesas”(MORIN, 2009, p. 37- 40. Grifo do autor). Ainda por volta do fim da década de 20 aos anos 30 as empresas fonográficas se tornaram gravadoras. Nesse período, as principais companhias fonográficas foram adquiridas por novas corporações de radiodifusão, passando a se ocupar com os conteúdos dos discos e não mais com os aparelhos reprodutores. A música se tornou, então, a principal fonte de renda das gravadoras que deram início à utilização das novas possibilidades tecnológicas, isto é, da gravação elétrica e microfones, para produzir e reproduzir mais fonogramas (MARCHI, 2006). As companhias fonográficas contaram, então, com o rádio, o cinema e a televisão na década de 50, como meios de acesso ao público. Segundo Gohn (2002), o rádio e a televisão atuaram como transmissores de rítmos e estilos para o grande público. Estes promoveram a música tendo, de certo modo, “um aspecto educativo (apesar de despertar discussões sobre a qualidade do ensino) e através do espírito de consumo, pregado pela ondas e captado pelas antenas, instigaram a audiência a comprar seus discos e artistas”(GOHN, 2002, p. 46). 59 60 Portanto, estes meios e outras tecnologias como o disco de vinil contribuíram para o fortalecimento da indústria fonográfica. Especialmente com o desenvolvimento da radiodifusão e o surgimento do disco de vinil ela se consolidou como meio hegemônico de produção e distribuição internacional de música. Na medida em que mais artistas recorriam as gravadoras para terem seus trabalhos produzidos e também divulgados para os ouvintes, estas se estabeleceram como mediadoras entre o trabalho do músico e o ouvinte. Acompanhando o movimento e desenvolvimento capitalista, a indústria fonográfica herdou a produção em série e a padronização dos produtos musicais, pois ao concentrar as propriedades dos meios de produção e difusão, a indústria fonográfica induziria a uma forma dominante de consumo musical: “a compra de discos com pouco mais de meia-hora de música” (SANTINI, 2005, p. 17). Nesse contexto, Iazzetta (2001) entende que o processo de expansão cultural, propiciado pelos meios de comunicação e informação então existentes, acontecia de modo unidirecional. Se é certo que o rádio e a televisão, até o disco, apresentam uma característica de unidirecionalidade, no sentido em que a mensagem parte de um emissor para um receptor (LÉVY, 1999), é preciso ter em conta também que o espectador [ou ouvinte] não é passivo aos meios, e mesmo que haja uma preponderância de forças partindo do emissor para o receptor, remetendo ao pensamento de Morin (2009), este último ouve e vê ou se recusa a ouvir ou a ver. Portanto, ainda que haja uma padronização no que concerne aos modos de produção, com o lançamentos de determinados gêneros musicais no mercado, como por exemplo, o “Axé’ ou o “Sertanejo universitário”, bem como, uma monopolização dos meios de circulação de música isto não pressupõe necessariamente um consumo musical homogeneizado e irrefletido. Exemplo deste fato está na legião de fãs que se agregam em torno de determinados gêneros musicais ou de artistas, ou seja, “tribos” formadas em torno da música, usando um termo de Maffesoli (2006), que buscam a diferenciação por meio do consumo musical. Partindo dessa discussão, pode se afirmar que a cultura de massa não é imposta pelas instituições sociais, nem mesmo por uma indústria ávida por lucro mas sim, proposta, ou seja, essas instituições propõem modelos, mas não ordena que estes sejam incorporados. Mesmo que de modo desigual, Morin (2009) considera que a cultura de massa é produto de um diálogo, ainda que desigual entre uma produção e um consumo. O próprio termo “cultura de massa”, para Morin, é limitado. Já para Canclini (2008) parecia mais justo falar em cultura para a massa, o autor comenta que, 60 61 Essa designação durou enquanto pode ser sustentada a visão unidirecional da comunicação que acreditava na manipulação absoluta dos meios e supunha que suas mensagens eram destinadas às massas, receptoras submissas. A noção de indústrias culturais, útil aos frankfurtianos para produzir estudos tão renovadores quanto apocalípticos, continua servindo quando queremos nos referir ao fato de que cada vez mais bens culturais não são gerados artesanal ou individualmente, mas através de procedimentos técnicos, máquinas e relações de trabalho equivalentes aos que outros produtos na indústria geram; entretanto, esse enfoque costuma dizer pouco sobre o que é produzido e o que acontece com os receptores (CANCLINI, 2008, p. 257). Ainda segundo as considerações de Canclini, este equívoco foi propiciado pelos primeiros estudos de comunicação, segundo os quais a cultura de massa substituiria o culto e o popular tradicionais. O autor explica que os processos de industrialização e urbanização, a educação generalizada e as organizações sindicais e políticas foram se reorganizando conforme as leis massivas que regiam a vida social desde o século XIX, isso antes que surgissem à imprensa, o rádio e a televisão. Os estudos sobre estes meios de comunicação e informação de massa, pouco a pouco modificaram a direção da abordagem, passando a importar não o que os meios faziam com as pessoas, mas o que as pessoas faziam com esses meios conforme considerações de Gushiken (2008) . A inversão dessa questão continua sendo relevante de acordo com o autor, por ter dado ênfase ao campo da recepção como parte dinâmica na ideia do que seria o processo de comunicação e de consumo no que se refere à informação. No mesmo sentido Barbéro (2000) defende que deve haver tal deslocamento dos estudos dos meios para as mediações. Não é que deva ser negada a importância dos meios, contudo, o autor considera impossível estudar a influência ou importância destes sem se levar em contar como as pessoas se relacionam com os meios. Na visão do autor, portanto, as mediações se referem ao “espesso espaço de crenças e costumes” enfim tudo, aquilo que configura a cultura cotidiana (BARBERO, 2000). 3.3 Circulação e Consumo de Música na Cibercultura 3.3.1 O Nascimento da Cibercultura Ao discutir a ideia da existência de uma Cibercultura ou de uma Cultura de internet, no entendimento de Castells (2001) é necessário entender, que ela se constitui por quatro estratos superpostos/sobrepostos que se articulam: a cultura tecnomeritocrática, a cultura hacker, a comunitária virtual e a comunidade emprendedora. Considerando a análise do autor 61 62 entende-se que os dois primeiros se relacionam à cultura dos produtores da internet, isto é, aqueles que contribuíram diretamente na sua criação e no seu desenvolvimento tecnológico, os quais foram os seus primeiros usuários. As duas culturas são descritas conforme as características de cada uma, em que cada uma delas dá ênfase. A cultura tecnomeritocrática está ligada ao meio acadêmico e científico, e está na origem da criação da internet. Nela existe um investimento no mérito que “é medido pelo grau de contribuição ao desenvolvimento de um sistema tecnológico que proporciona um bem comum a comunidade de descobridores conforme CASTELLS, (2001, p. 54)49. A cultura hacker50 surgiu desempenhando um papel crucial para o desenvolvimento tecnológico, sua participação mais efetiva pode ser exemplificada pela criação de softwares de caráter aberto, essa cultura “inclui o conjunto de valores e crenças que surgiram das redes de programadores informáticos interagindo on line em torno a sua colaboração em projetos autodefinidos de programação criativa” (CASTELLS, 2001, p. 57)51. Do mesmo modo, as outras duas culturais, a lembrar, a cultura comunitária virtual e a empreendedora, contribuíram decisivamente para a evolução da internet, adicionando a esta uma dimensão social e comercial como afirma Castells, Quando a world wide web explodiu nos anos noventa, milhões de usuários puseram na rede suas próprias inovações sociais com ajuda de uns conhecimentos técnicos limitados. Não obstante, sua contribuição à forma e à evolução da Internet, incluindo muitas de suas manifestações comerciais, foi decisiva (CASTELLS, 2001, p. 52).52 Para Lévy (1999) a cibercultura nasceu entre a última metade da década de 1980 e início da década de 1990, tendo como marco desse nascimento, o movimento sócio-cultural computers for the People que aconteceu no estado da Califórnia (EUA). Foi um momento importante, onde novas possibilidades e técnicas se mostraram possíveis e que até então haviam sido monopolizadas por grandes instituições burocráticas. Uma dessas possibilidades foi a invenção do computador pessoal. Foram os atores desse movimento que inventaram o 49 “En dicha cultura, el mérito se mide por el grado de contribución al desarrollo de un sistema tecnológico que proporciona un bien común a la comunidad de descubridores”. 50 De acordo com Castells (2001) a visão corrente que se tem dos hackers, como um bando de informáticos sem escrúpulos que se dedicam a invadir os sistemas, é equivocada, pois, na verdade estes são os chamados Crackers. 51 “Em sentido restringido, la cultura hacker, en mi opinion, incluye al conjunto de valores y creencias que surgieron de las redes de programadores informáticos interactuando on line en torno a su colaboración en proyectos autodefinidos de programación creative” 52 “ y cuando la world wide web hizo eclosión en los años noventa, millones de usuarios pusieron en la red sus propias innovaciones sociales con ayuda de unos conocimientos técnicos limitados. No obstante, su contribución a la forma y la evolución de Internet, incluyendo muchas de sus manifestaciones comerciales, fue decisive” 62 63 verdadeiro uso social dessas tecnologias. Tendo como palavras de ordem a interconexão, comunidades virtuais e inteligência coletiva, estes atores exploraram e construíram um espaço de encontro, de compartilhamento e de criação coletiva que é chamado por Lévy de ciberespaço. Partindo do exposto é que se pode entender que a noção de Cibercultura, como propõe Lévy, não remete somente ao conjunto de técnicas material e intelectual, mas como de práticas, de atitudes e de modos de pensamento e de valores. O autor explica que ela é A expressão da aspiração de construção de um laço social que não seria fundado nem sobre links territoriais, nem sobre relações institucionais, nem relações de poder, mas sobre a reunião em torno de centros de interesses comuns, sobre o jogo, sobre o compartilhamento do saber, sobre a aprendizagem cooperativa, sobre processos abertos de cooperação (LÉVY, 1999, p. 130). O ciberespaço ou internet, mais que a infra-estrutura material da comunicação digital caracteriza-se, principalmente pelo o universo de informações que a rede abriga, assim como, os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Em outras palavras, o ciberespaço não é a infra-estrutura técnica de telecomunicação, mas se distingue nos modos de utilizar essas infra-estruturas já existentes, por mais imperfeitas e disparatadas que sejam ele visa criar um tipo distinto de relação pessoal como aponta Lévy, (1999). Pode se dizer que, então que, hoje, o ciberespaço se tornou um espaço relacional, o qual coloca em contato pessoas de todo o mundo que utilizam o potencial da telemática para se reunirem por interesses comuns, para bater papo, bem como trocar arquivos de fotos, música, correspondência como sugere a concepção de Lemos (2008). Nessa discussão, percebe-se que um dos argumentos mais freqüentes no discurso desses pesquisadores quando abordam as transformações na cultura da informação é o de que essa nova configuração, da comunicação em rede tem construído um espaço mais livre e democrático, assim como participativo e interativo. Propõe um novo modelo de produção e de distribuição e conforme Sá (2006) tem uma ênfase na relação direta entre produtores e consumidores. Contudo, Sá entende que esses argumentos parecem expressar certo fascínio tecnológico, e tendem a ver esse novo modelo mais democrático e participativo como estando em oposição ao modelo mais centralizador, massivo e totalizador característico da mídia de massa. Contrapondo-se a essa visão, a autora propõe uma interpretação da questão tecnológica, com base nos estudos de Bolter & Grusin (2000)53, para os quais “toda nova 53 Traduzido para Remediação ou remediatização (SÁ, 2006). 63 64 mídia é pensada e representada como, por um lado, em continuidade e por outro desafiando as tecnologias em voga num determinado momento” (SÁ, 2006, p. 08) . 3.3.2 O Ciberespaço: Reconfigurando a Circulação e Consumo de Música Uma peculiaridade trazida por esse espaço é a comunicação e circulação da informação em uma rede global. Apesar de, na visão de Castells (2001), a rede não ser uma novidade, já que “é uma forma antiga de atividade humana”, as tecnologias da informação e comunicação, em especial a internet, permitiram que as redes se desenvolvessem tanto em questão de flexibilidade e adaptabilidade como na coordenação de tarefas e a gestão da complexidade. Segundo o autor De tudo isso se resulta uma combinação sem precedentes de flexibilidade e eficacia na realização de tarefas, de tomada de decisões coordenada e execução descentralizada, de expressão individualizada e comunicação global e horizontal. O que permite o desenvolvimento de uma forma organizativa superior da atividade humana54. (CASTELLS, 2001, p. 16). Esta forma de circulação da informação representa uma novidade em especial no que concerne à circulação e consumo musical. Devido ao processo de digitalização da informação55, o qual permite que qualquer arquivo (texto, imagem, som) possa ser transmitido e copiado quase que indefinidamente e sem perda de informação (LÉVY, 1999), no ciberespaço a música pode ser disseminada à vontade e sem depender de um suporte físico. Pela primeira vez isso acontece de forma descentralizada, ou seja, usuários localizados em diferentes pontos do mundo podem ao mesmo tempo enviar e receber arquivos de música com os softwares de compartilhamento P2P56, sem depender da intervenção da indústria fonográfica. Nesse sentido, assistimos a importantes modificações nos modos de escuta de música, pois, o registro de gravação, ou seja, “o álbum ou CD deixa de ser o único ou principal 54 “De todo ello se deriva una combinación sin precedentes de flexibilidad y eficacia en la realización de tareas, de toma de decisiones coordinada y ejecución descentralizada, de expresión individualizada y comunicación global y horizontal. Lo que permite el desarrollo de una forma organizativa superior de la actividad humana”. (CASTELLS, 2001, p. 16) 55 Digitalizar uma informação segundo Lévy (1999, p. 50) consiste basicamente em traduzi-la em números. 56 A sigla pode ser traduzida por ponto a ponto, ou pessoa a pessoa. Os arquivos são transmitidos de um usuário a outro, e quanto mais usuários possuírem o mesmo arquivo, mais rápido se torna o seu download. 64 65 formato nos lançamentos comerciais” (CASTRO, 2005, p. 31). No final do processo, ou seja na recepção, segundo Gohn (2007) A informação digital pode estar em um CD ou outro aparelho de reprodução sonora (como os players que se tornaram tão comuns para executar arquivos MP3); pode estar na internet, em websites que vendem ou disponibilizam músicas, em sistemas de compartilhamento de dados ou em rádios transmitindo programação ao vivo ou pré-gravada; pode estar no sistema de transmissão digital de uma estação de rádio; entre outras possibilidades (GOHN, 2007, p. 21). Além disso, é possível aos usuários, não apenas ouvirem as músicas do seu artista preferido como também assistirem à sua performance em um concerto ou show, onde quer que este seja realizado. Assim, se pode arriscar dizer que, na atualidade, o acesso do ouvinte à música, com alguma excessão, se tornou irrestrito. Gohn (2007) ressalta que a rapidez dessa forma de comunicação acentuou processos que já puderam ser percebidos, por exemplo, com o surgimento do rádio ampliando a quantidade e diversidade de música em circulação no mundo hoje. Desse modo, para o autor, há uma maior facilidade de acesso a novos tipos de música, e para isso, basta apenas saber requisitar a informação, a qual está disponível a qualquer hora e em qualquer local na internet. Esta facilidade e rapidez propiciada pelo ciberespaço no que se refere ao consumo musical é ressaltado também pelos Djs entrevistados. Conforme o Dj Faraz Na internet é legal porque as pessoas tem muito acesso as músicas. É muito fácil, eu gravo uma música hoje, e eu solto ela na internet e... sei lá em uns dois minutos tem gente já ouvindo a música com ela já no computador, o acesso é muito mais fácil, né? Antigamente o Dj, tinha que pedir a música, a música tinha que chegar, às vezes, os cara tinha que ir pra São Paulo. Na década de 80 você tinha que ir lá em São Paulo comprar música pra os Clubs, né? Hoje não, você tem a internet aí, que você consegue baixar a música na hora (Faraz, 28/07/2010). Entretanto, este cenário, é visto com perplexidade por alguns, sendo retratado como de “crise da indústria fonográfica” pelas grandes gravadoras, e tem sido atribuído a inúmeros fatores como a pirataria, troca de arquivos musicais pela internet, estúdios caseiros, podcasting57, o crescimento de gravadoras independentes, bem como, o download de música em celulares, as rádios online, entre outros exemplos. (SÁ, 2003; 2006). No entanto, longe de 57 O podcasting foi inventado pelo ex-Vj da MTV Adam Curry. O nome é uma mistura de iPod com broadcast (transmissão). Entende-se que trata-se de um conteúdo previamente gravado, produzido e postado por podcasters, o qual pode ser baixado e ouvido a qualquer momento pelo usuário. 65 66 se tratar de uma “crise” concorda-se com Sá ao ressaltar que tal fenômeno reflete mais uma reconfiguração do processo de produção, difusão e consumo de música na contemporaneidade. De acordo com a autora Descentralização, personalização e desmaterialização são as noções que traduzem com acuidade o modelo desse universo aberto e flexível, onde serviços e acesso se combinam para criar uma experiência mais importante do que a venda de suportes “fechados” como o disco ou o CD; e onde o papel das redes sociais tais como o Facebook, Orkut, Twitter, são de crescente importância para o consumo, apontando ainda para um empoderamento do consumidor a partir das práticas do fandom (SÁ, 2006, p. 2). Apesar de algumas especulações em torno da decadência de venda de CDs, que na verdade, não é um fato comprovado, a circulação e troca de arquivos digitais sem depender de um suporte físico, constitui, entre muitos outros, um dos recursos mais atraentes para os usuários da internet. Sobretudo, hoje, com a comercialização dos aparelhos portáteis (Mp3, Mp4, Ipods, Celulares) para reprodução de música, o download de musical através da internet demonstra ser um fenômeno consolidado. 3.3.3 Redes de Compartilhamento Musical: O MP3 e Napster Desde o início quando a internet ainda era novidade, a necessidade de transmissão de som já era latente. Inúmeras formas de compressão do som para a transmissão em rede foram sendo pesquisadas, como exemplo o formato MIDI. Contudo, todas deterioravam bastante a qualidade do material sonoro. Então, a criação do formato Mp3, desenvolvido em 1988, foi a melhor solução para esse problema. Em 1992 ele se tornou o formato padrão para compactação de arquivos musicais na internet, por possibilitar uma redução significativa em tamanho dos arquivos, sem, contudo, haver uma grande perda de qualidade sonora. Apesar de haver pensamentos controversos e posições críticas a respeito da sonoridade do formato Mp3, que alguns entendem como sendo inferior em relação ao CD, ele apresenta a vantagem por ter seu formato aberto e não possuir dispositivo contra cópia como o formato WMA, sendo possível, copiar livre e infinitamente. Devido a esse caráter aberto é que, como afirma Santini (2005) os arquivos podem ser recebidos, replicados ou distribuídos de forma tão simples como se envia uma mensagem. Além disso, devido ao pouco espaço que formato ocupa, o ato de colecionar música se torna muito mais fácil de acordo com Sterne (2010). 66 67 O autor trás uma discussão interessante em torno do Mp3 enquanto artefato cultural. Ele aplica a seu estudo um termo usado por Lewis Mumford (1959) de “tecnologia de contêiner”. O Mp3, para Sterne, se encaixa nessa categoria por ser “um armazenador para gravações sonoras”, mais que isso: “um contêiner para contêineres”, ou seja, “uma tecnologia de mídia para ser utilizada em outras tecnologias de mídia” (STERNE, 2010, p. 67). Para Sterne devido ao seu design como uma “tecnologia de contêiner portátil”, o Mp3 tem adquirido o status de objeto na prática cotidiana. Tanto empresas que comercializam música nesse formato, ou aparelhos que o reproduzem, como usuários tendem a falar das coleções de arquivos Mp3 como se estivessem se referindo a uma coleção de discos ou de livros. Dessa forma, a relação dos usuários com os seus arquivos Mp3 especialmente aqueles que os colecionam, parece não ser muito diferente daquela estabelecida pelos colecionadores com seus discos. Explica Sterne (2010) que Embora o mp3 exista enquanto um software, as pessoas tendem a tratá-lo como objeto(e, de fato o argumento aqui é que nós devemos analisá-los como artefatos),, talvez porque elas estejam acostumadas a manusear discos enquanto coisas físicas. Mas por causa da sua micromaterialização, usuários podem manusear os mp3s de forma totalmente diferente de discos que possuem em um forma mais obviamente “física” como o LP ou o CD, embora eles possam falar sobre os mp3s como se fossem objetos físicos (STERNE, 2010, p. 74). Nesse caso, o autor observa haver uma distinção entre dois tipos de objetos: aqueles que podem ser colecionados, incluindo nessa categoria os mp3, e os que podem ser tocados (no sentido convencional) como o CD. No caso específico do Mp3, ainda que seja um arquivo de dados, é tomado pelo usuário como “objeto cultural”. Devido ao sucesso do Mp3 tornou-se necessário também o desenvolvimento de softwares que viabilizassem o download e troca de arquivos. Assim, surgiram o winamp58, que se popularizou como software para audição no computador de arquivos em Mp3, e o Napster59, considerado o programa pioneiro de compartilhamento de música on-line (SANTINI, 2005). O Napster foi uma revolução na virada do século XX em termos de compartilhamento de música. A grande novidade deste software é o acesso peer to peer (P2P) que se trata de um sistema de acesso direto de um computador pessoal a outro, onde a troca de arquivos acontece 58 Winamp é um programa freeware (gratuito) de reprodução de mídia em diversos formatos como MP3, MID, MOD, WAV, entre outros. Foi desenvolvido por Justin Frankel em 1997, na época com 17 anos, que disponibilizou o software na rede para que outras pessoas pudessem fazer download e reproduzir suas músicas em seus computadores. Desde 2001 o programa é disponibilizado pela America Online (SANTINI, 2005). 59 Foi criado pelo Norte americano Shawn Fanning em janeiro de 1999, na época com 18 anos. 67 68 entre usuários que possuem o mesmo programa instalado. O programa, no auge de sua popularidade, ultrapassou 30 milhões de usuários simultaneamente conectados, trocando músicas online. No entanto, como a maior parte dos arquivos de Mp3 disponíveis para download gratuito foi continua sendo feita sem a permissão dos detentores dos direitos autorais, o Napster e outros sistemas de compartilhamento foram processados pelas principais gravadoras60(CASTRO, 2007, p. 49). Recentemente, o novo Napster, relançado em formato modificado, vem atuando na venda legal de música através do sistema de assinaturas. Esse modelo vem sendo uma alternativa para o pay per download, no qual o usuário paga uma taxa fixa por cada faixa musical comprada. Como outro exemplo desse modelo de comercialização, pode ser citado a loja virtual da Apple –o iTunes- que lidera o mercado de downloads cobrados por faixa ao preço 99 centavos de dólar. Entretanto, ainda que o download pago venha sendo fortemente estimulado e adotado de forma crescente, a prática do compartilhamento gratuito através das redes peer-to-peer segue vigorosa (CASTRO, 2005; 2007). 3.3.4 As Redes Sociais e Circulação de Informação As redes como mencionado anteriormente, apesar de não ser uma novidade, tem ganhando relevância no ciberespaço, emergindo como uma forma dominante de organização social segundo Castells (2001). Uma rede social, usando a definição de Recuero (2009), pode ser definida como um conjunto de dois elementos, sendo estes, o atores sociais (pessoas, instituições ou grupos) e suas conexões (interações ou laços sociais). Os atores sociais, por se tratar de redes on line, podem ser representados por um weblog, um fotolog ou um perfil no orkut. Sem pretende adentrar em uma análise estrutural destas redes sociais, interessa aqui é explicitar como estas são apropriadas pelos atores sociais e utilizadas para trocar e difundir informações. Ao tratar dessas redes sociais, Recuero argumenta que, como apontaram alguns estudos, no ciberespaço há um processo constante de construção e expressão de identidade por parte dos atores sociais. Essa construção personalizada pode ser visível, por exemplo, em um weblog, ou um perfil no Orkut, entre outros, nos quais os indivíduos expressam seus gostos e interesses, podendo participar de comunidades de identificação. Desse modo, essas ferramentas são apropriadas, de acordo com a autora, como meios de expressão do self ou 60 Sony, BMG, EMI, Warner 68 69 “espaços do ator social percebidos pelos demais como tal” (RECUERO, 2009, p.28). Como no ciberespaço é preciso estar conectado ou, nas palavras de Recuero, visto para existir, tal visibilidade parece ter se tornado um imperativo para a sociabilidade mediada pelo computador. Destaca-se que a ideia de visibilidade não remete a um sentido depreciativo de “aparecer” pura e simplesmente, no caso das redes, entende-se que implica em estar mais acessível as informações. A visibilidade constitui, portanto, em um valor que pode trazer outros “benefícios” para os indivíduos, influenciando, inclusive, na construção de outros valores, que conforme Recuero (2009) seriam a reputação, a popularidade e a autoridade. Dito de outra forma os indivíduos, precisam ser vistos e interagirem com os outros para construírem determinados valores como a reputação, por exemplo. Evidentemente, isso dependerá da informação que o usuário faz circular na rede. Nesse sentido, Recuero (2009) concorda que são alguns tipos de informações difundidas com frequencia na internet influenciam a constituição de dois tipos de “capital social” 61 , sendo estes o relacional e cognitivo. Dessa forma, as informações que circulam nas redes têm cunho um mais apelo relacional e outras, o de conhecimento, ou seja, visa o capital cognitivo. Voltando a atenção para a música eletrônica aqui se faz um paralelo as informações que circulam em algumas das comunidades virtuais de sites de redes sociais como o orkut. Se pode perceber que nestas comunidades, a profusão de informações disseminadas entre os atores sociais buscam gerar tanto o capital relacional quanto o cognitivo, embora se entenda que predomine um capital do segundo tipo. Nas comunidades de música eletrônica pode-se observar que alguns jogos de perguntas e respostas têm como objetivo conhecer o novos participantes que ingressam na comunidade, bem como, a integração entre os membros. Um exemplo disso são aqueles tópicos em que os membros da comunidade se apresentam e respondem qual estilo de música eletrônica preferem ouvir. Ressalta-se que também nesse caso, acredita-se ser possível que as informações gerem o capital cognitivo, quando algum membro, caso não conheça algum estilo musical ou artista mencionado nos tópicos se interesse em pesquisar e ouvi-lo. Por outro lado, muitas das informações têm um apelo informacional, ou seja, mais do gerar integração têm por objetivo obter novos conhecimentos. Além disso, acrescenta-se que muitas informações podem ter o objetivo também de integração entre os participantes, mas, principalmente de divulgação de um trabalho, aqui refere-se especificamente aos tópicos 61 A autora aborda diversos conceitos de capital social como o de Bordieu e Putman. Ela explica que não há um consenso sobre a abordagem e que a única concordância entre os estudiosos que abordam o conceito dentro das redes sociais é de que esse se trata de um valor que é constituído a partir das interações entre os atores sociais. 69 70 encontrados nas comunidades, a exemplo da comunidade música eletrônica Cuiabá, para as postagens de sets de Djs. Durante as entrevistas com o Djs, os sites de redes sociais, como o Orkut e o Facebook, foram destacados como meios muito utilizados para a divulgação do seu trabalho. Contudo, mais do que disseminar ou trocar informações com outros atores sociais, sejam estes ouvintes ou Djs, entende-se que a apropriação desses espaços consiste em um recurso importante para o agenciamento da própria carreira, uma vez que, reportando ao estudo de Recuero (2009), essas redes permitem que alguns valores, possam ser construídos e percebidos pelos demais atores. Assim, no que se refere à circulação de informação, seja musical ou qualquer outra, nas redes sociais é importante não apenas abordar a capacidade do fluxo de informação que elas propiciam, mas, considerar que valores ou tipo de capital social se constrói nas conexões estabelecidas pelos sujeitos. Sabe-se que o compartilhamento e troca de informações musicais a respeito de bandas ou artistas favoritos sempre ocorreu de uma forma ou de outra, contudo, segundo Castro (2005) atualmente, com esta novas formas de comunicação, tal possibilidade de compartilhamento de informações musicais nos coletivos virtuais ganha proporção global. Nesse sentido, é importante acrescentar o pensamento de Yúdice (2007) quando afirma que, As novas tecnologias têm afetado a maneira em que a música incide na organização social, desde os tradicionais clubes de mélomanos aos blogs, chats e locais na internet nos que os gostos musicais são um componente crucial dos perfis que atraem as pessoas para se relacionarem com seus congêneres os quais podem viver a volta da esquina ou a vinte mil quilômetros ao outro lado do mundo.62 (YÚDICE, 2007, p.23). Contrariando uma forte tendência em se pensar que os meios de massa surtiriam certos efeitos sobre a sociedade como a homogeneização do gosto e do consumo. Pode ser ainda, como sugeria a teoria da convergência mencionada por Warnier (2000) de que as diversas sociedades do mundo convergiriam a um modelo uniformizador e alienante de consumo imposto pela globalização, se percebe um movimento em sentido contrário a tal unificação. O que ocorre ao invés disso é uma proliferação de pequenas multidões ou agrupamentos identitários nas redes sociais, que se formam em torno de determinados interesses e afinidades. 62Las nuevas tecnologias han afectado a la manera em que la música incide en la organización social, desde los tradicionales clubes de melómanos a los blogs, chats y sitios en internet en los que los gustos musicales son un componente crucial de los perfiles que atraen a la gente a relacionarse con sus congéneres, los cuals pueden vivir la vuelta de la esquina o a veinte mil kilómetros al otro lado del mundo62 70 71 4. ALÉM DE TOCAR O QUE VOCÊ FAZ? Como já apontado, apenas há pouco tempo a profissão Dj ganhou autonomia e reconhecimento. Isso ocorreu mais precisamente com o nascimento de estilos como o garage, o house e o techno que foram o ponto de partida para o surgimento da cultura da música eletrônica, chegando muitos Djs na década de 90 a serem reconhecidos como pop stars. No entanto, hoje apesar de haver um mercado mais sólido em torno da música eletrônica, acredita-se ser possível que muitos Djs ouçam, ou já tenham ouvido alguma vez uma pergunta bastante comum: “Mas, além de tocar o que você faz?”. Considerando essa indagação, o presente capítulo foca na discussão e análise dos dois estudos casos buscando a compreensão e entendimento, tanto de aspectos concernentes à formação, à experiência, quanto, e principalmente, ao fazer musical do Dj. Dentro desses três eixos são abordadas questões como a motivação e aprendizado, conhecimentos necessários, materiais usados no fazer musical, a questão da criação/produção, que papéis desempenham e como produzem e divulgam o seu trabalho. A pesquisa de campo, como mencionado teve seu início mais especificamente a partir do dia 12 do mês de junho de 2010, data em que foi realizada a primeira observação no Club Garage. As entrevistas foram realizadas em 27 de julho e 11 de Janeiro de 2011 com o Dj Faraz e 25 de agosto com Gustavo Bongiolo, também no Club Garage por escolha dos dois Djs. Antes de adentrar as discussões e análises se faz aqui uma breve apresentação dos dois Djs participantes do estudo. Eles residem em Cuiabá e vem realizando o seu trabalho tanto na capital quanto em todo o Estado de Mato Grosso. O Dj e produtor Faraz (ou Rodrigo Farinha) tem 35 anos, é formado em Comunicação Social. Fez parte da banda Papo Amarelo e como Dj vem atuando há dez anos, sendo um dos pioneiros da música eletrônica do Estado de Mato Grosso. É idealizador do selo Pantano Beat Records63. Em 2009, foi eleito o melhor Dj de Cuiabá pelo Factóide64, um blog reconhecido como um dos maiores em termos de divulgação da cena eletrônica nacional. Atualmente, também trabalha no Club Garage como assessor de comunicação e realiza o projeto Hypernoticall, junto com mais dois músicos. 63 64 http://mp3.al/en/music/label/id/213773/name/Pantano-Beat-Records http//www.factoide.wordpress.com 71 72 O Dj Gustavo Bongiolo, tem 24 anos, é formado em Administração de Empresa. Iniciou a discotecar em 2004, com 18 anos, e pouco tempo depois foi residente do Club Floor, um dos primeiros clubes de música eletrônica do Estado. Em 2006, integrou o casting de artistas da Smartbiz DJs65. No final de 2008, junto com o Dj André Maggi abriu a primeira filial do Club Garage em Cuiabá. E tem se apresentado também em diversas cidades do estado e do Brasil. 4. 1 A Cena Eletrônica em Cuiabá A Cultura da música eletrônica de pista, como discorrido no segundo capitulo, se expandiu para muitos países nos anos 90, se tornando uma cultura globalizada. É importante entender que quando se fala de “cultura globalizada”, não significa que esta seja homogênea em todo e qualquer lugar do mundo, pois, no sentido proposto por Dickens mencionado por Ortiz (2007), a globalização não é sinônimo de internacionalização, termo este que se refere apenas ao aumento das extensões geográficas para além das fronteiras nacionais. Assim, a cultura eletrônica não foi simplesmente disseminada pelo mundo, mas também sofreu um processo de apropriação ou tradução66. Usando um termo de Canclini (2008), pode-se entender este fenômeno mais como uma cultura glocal. Partindo dessa premissa, o termo “cena eletrônica” parece ser mais indicado para designar as especificidades locais do gênero. Segundo Fontanari (2003) este termo é muito usado pelos participantes dessa cultura ou subcultura67. O termo cena, segundo Freire e Fernandes (2005), é um termo alternativo ao de subcultura, que foi apropriado por estudiosos interessados em descrever e analisar espaços localizados de produção e consumo cultural, especialmente o musical, dando sinal da possibilidade de construção de alianças que fogem às disputas tradicionais (entende-se de classe, gênero ou raça) pela hegemonia. O conceito de cena deve encorajar, portanto, o exame da interconectividade entre os atores sociais e os espaços culturais das cidades – suas indústrias, suas instituições e a mídia. Aplicado empiricamente, deste modo, pode ajudar a compreender a dinâmica de forças – sociais, econômicas, 65 Agência Brasileira, criada pelo Dj Renato Lopes, que representa Djs e produtores como Mau Mau, Cia, Renato Ratier, Digitaria, VJ Spetto, entre outros (www. fotolog.com.br/electroshake/23645553). 66 Embora não sejam sinônimos, tanto o termo apropriação como tradução, segundo Burke (2003), enfatizam o agente humano e a criatividade. A metáfora tradução, na visão do autor, enfatiza o trabalho empreendido por indivíduos ou grupos, ou seja, as estratégias e táticas empregadas para se domesticar o que é estrangeiro. 67 Fontanari (2003) explica que este é um termo cunhado pelos autores dos Cultural Studies da Universidade de Birmingham. Sara Thornton usa a noção de Subcultura para abordar a cena rave Inglesa, focando questões relativas a sua territorialidade, compartilhamento de gosto, a autenticidade até o mercado. 72 73 institucionais – que afetam a expressão cultural coletiva, por meio da investigação da mecânica social associada à produção musical (FILHO; FERNANDES, 2005, p. 6). Para Fontanari (2003, p. 36), “a noção de ‘cena’ remete ao local, ao território, ao espaço social, ao cenário, enfim, à ‘cena’, onde os símbolos associados à musica eletrônica de pista são operados pelos atores sociais por eles responsáveis”. Dito de outra forma, ela permite delimitar o território de determinada prática cultural, ou ainda, serve para pensarmos a apropriação local de uma cultura global, como no caso da música eletrônica em Cuiabá. Na capital mato-grossense, também a cultura eletrônica parece ter chegado nos anos 90. Mais precisamente em 1997, de acordo com o Dj Faraz, promoters de Cuiabá começaram a notar que “um novo estilo de dance music” vinha sendo tocado nos grandes centros. O Dj Mau Mau, considerado um dos nomes importantes da música eletrônica no país, nesse ano, pela primeira vez veio se apresentar na Capital. Estes eventos aconteciam geralmente em espaços como antigos casarões situados no bairro do Centro e Porto. Entre algumas das primeiras raves pode-se citar a festa Studio 54 no Menotti Gigri, realizada em uma de suas edições na Casa Cuiabana, ao lado do Pronto Socorro. Além desta, outras festas aconteceram no decorrer dessa década, segundo Gushiken (2004), um desses eventos aconteceu em um casarão antigo no bairro do Porto, a qual deram o nome de “Mascarade”. Ainda que não se tenha detalhes, conforme o autor, várias festas foram realizadas na corrente do movimento de produção audiovisual.68 No entanto, parece ser possível falar com mais precisão do crescimento cena eletrônica em Cuiabá a partir do ano 2000. Durante sua pesquisa, Gushiken (2004) presenciou algumas festas raves que aconteceram na cidade. Estas eram realizadas sempre em lugares alternativos, como “o antigo casarão” (ou Oficina 300)69, situado no centro velho, galeria de arte (Galeria do Pádua), em chácara (“Casarão Perdido no confins do Santa Rosa”). Estes lugares, muitas vezes eram bem discretos, como descreve o autor, no caso do antigo casarão: “a casa tem a discrição das primeiras raves, de caráter outsider-underground: uma vida quase subterrânea, longe ainda da visibilidade do mainstream da noite onde estão clubes mais confortáveis ou sofisticados” (GUSHIKEN, 2004, p. 68). 68 O Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá chegou à 11ª edição em 2004 tendo pouco mais de dez anos. Durante este tempo, segundo Gushiken (2004), foi que o fenômeno rave se difundia pelo mundo e, entre outros, por Mato Grosso. 69 Segundo Gushiken (2004, p. 68), na época da pesquisa o Casarão havia sido transformado em centro cultural, onde se realizavam, entre outros eventos, reuniões do Fórum Mato-Grossense Permanente de Cultura. “No ambiente artístico, ela se chama Oficina 300; no ambiente da noite, simplesmente Casarão Antigo”. 73 74 Dessa forma, de acordo com o Dj Faraz, o início do ano 2000 pode ser demarcado como o período em que a música eletrônica “chegou propriamente” na cidade (Faraz, 28/07/2010). Nesse período, propriamente em 2002, foi inaugurada em Cuiabá o primeiro Club exclusivamente de música eletrônica, que era chamado E-Club. O club ficava na Isacc Póvoas quase em frente ao Morro de Santo Antônio e tinham como residentes o Dj Tim Tim, Dj High e o Dj Faraz. Em 2003, surgiu o Club Floor, até hoje considerado um dos clubs mais memoráveis da cena eletrônica cuiabana. Inicialmente o Club tinha como residentes também o Dj Faraz, Dj Jairo Lens e Giovani Curvo, e mais tarde, em seu casting foram incluídos os Djs Tim Tim e Gustavo Bongiolo. A música eletrônica vem crescendo bastante em Cuiabá, desde então, e diversos eventos contribuíram para o crescimento da cena eletrônica na capital, sendo estes festas como a Mística, a Tecnodelic, White Label, a Santa Rave e s festas do festas do Top Cuiabá. Conforme o Dj Faraz, atualmente, Cuiabá desfruta de um certo reconhecimento estando a “entre as 10 capitais em que a cena pulsa fortemente” (Faraz, 25/04/2011). Na sua visão, a cidade tem um espaço importante de música eletrônica, que é o Garage. Conforme o Dj, este espaço é considerado o quarto melhor club do Brasil, ocupando ainda a 66 posição no ranking mundial, segundo a lista oficial de uma conceituada revista do gênero eletrônica, a DJ Mag. De fato, durante a realização desta pesquisa pode ser percebido um grande fluxo, tanto de Djs nacionais, a exemplo de Fabrício Peçanha, Aninha (3plus Warung, SC), Mau Mau (SP) quanto de Djs estrangeiros como o Motiv8 (Califórnia, USA) e Emerson (Alemanha), que vieram se apresentar no Garage. No mês de novembro de 2010 em que o clube fez aniversário, foram quatro finais de semana envolvendo apresentações com Djs estrangeiros e brasileiros, incluindo também nas programações o Djs residentes. Este intercâmbio parece evidenciar uma preocupação, não apenas em movimentar a cena eletrônica local, como, e principalmente, de sustentar a imagem do clube como um espaço de referência no circuito mundial. O Dj Gustavo Bongiolo ao relatar o motivo que o levou a investir nesse espaço afirma que o principal foi o de poder trazer Djs de renome para Cuiabá. Em suas palavras: Garage foi a vontade que sempre tive, desde que me tornei Dj, em estar à frente de um Club, podendo assim trazer vários Djs que sempre quis ver para Cuiabá. O processo de criação consistiu em uma parceria entre sócios de Campo Grande/MS e Cuiabá, sendo que viajamos bastante, pesquisando tudo que de melhor existia para introduzirmos no nosso club em Cuiabá (Bongiolo, 03/02/2011). O Dj Gustavo Bongiolo concorda com o desenvolvimento da cena eletrônica em Cuiabá. Destaca que vem crescendo o interesse de muitos jovens pelo aprendizado desta profissão e pelo constante “aperfeiçoamento”. Ele ressaltou que a cidade também conta com 74 75 importantes produtores, como “Farinha [Dj Faraz], que foi o primeiro produtor de música eletrônica do Estado”e que tem se destacado no cenário mundial, e “uma dupla chamada Atik” que o Dj acredita ter “tudo para ficar famosa”. O único “contratempo”, na sua visão, é a distância dos grandes centros, já que no eixo Rio-São Paulo, que são as cidades mais conhecidas fora do país, “tudo se desenvolve melhor na música eletrônica” (Bongiolo, 25/08/2010) O Dj Faraz concorda que essa distância do eixo Rio- São Paulo, dificulte um pouco a circulação de artistas cuiabanos, contudo, não impede que muitos Djs se apresentem em outros lugares do Brasil. Essa distância, portanto, não se torna um fator excludente dos artistas da capital e para o Dj Faraz, há nisso uma certa vantagem, já que, o fato de a cidade não estar tão próxima aos grandes centros, possibilita que os Djs sejam mais autênticos, não sofrendo “influências diretas daquilo que está na moda” ou seja, de estilos que fazem sucesso nos grandes centros (Faraz, 25/04/2011). Assim, segundo o Dj Pra quem gosta de música eletrônica os Djs são ótimos. É, os Djs tem uma pegada diferente[...].Então, aqui a galera acaba construindo uma identidade diferenciada de outros lugares que são maiores, tendem a ser assim superficiais porque a cidade acaba tendo que seguir certa linha musical, tal coisa...então, aqui tem uma identidade diferenciada (Faraz, 28/07/2010). Portanto, a partir das declarações dos Djs entende-se que os aspectos importantes para considerar o desenvolvimento da cena eletrônica de Cuiabá, dizem respeito tanto aos eventos que acontecem, festas e clubes de referência, quanto à valorização e projeção do trabalho do Dj. Percebe-se que, assim como outras manifestações musicais a exemplo do rap, há uma relação dialética entre o local e o global, ou seja, se o desenvolvimento da cena eletrônica local depende da sua inserção ou visibilidade no circuito mundial, igualmente depende de uma “diferenciação” do trabalho do Dj e de sua projeção no cenário internacional. 4.2 Aprendendo a ser Dj: A formação Alguns pontos comuns puderam ser percebidos nas respostas dos entrevistados. O primeiro, se refere ao fato de os dois Djs manifestarem um interesse pelo aprendizado musical, antes de se interessarem pela música eletrônica. Esse fato transparece uma situação que as pessoas pensam sobre o aprendizado de música existindo somente quando há um processo formal de educação musical. Contudo, nem sempre esse aprendizado formalizado nem sempre implica em uma experiência motivadora como no caso do Dj Gustavo Bongiolo 75 76 que contou ter frequentado aulas de violão, piano e até cavaquinho, mas, como não teve “muita afinidade” com esses instrumentos,“nunca foi muito longe” então, depois começou a estudar a música eletrônica (Bongiolo, 25/08/2010). O Dj Faraz também relatou que já havia frequentado aulas de canto, de violão, “um pouco de teclado” e, ainda, antes de decidir seguir a carreira de Dj, fez parte da Banda Papo Amarelo como vocalista e compositor (Faraz, 28/07/2010). Na experiência relatada pelo Dj Faraz aprender a música eletrônica foi uma forma de inovar a sua carreira musical pois, quando ainda participava dessa banda já começou a se interessar pela discotecagem (mixagem) realizando suas primeiras perfomances tocando junto com o grupo em festas que realizavam na casa de alguns dos integrantes da banda.70 O segundo ponto se refere à questão da motivação em se tornar Dj que, como contaram os participantes, surgiu ao entrarem em contato com o ambiente das festas. Como afirma o Dj Gustavo Bongiolo, quando começou a frequentar festas de música eletrônica, aos 18 anos, se encantou pela estrutura e, sobretudo, com a figura do Dj porque: “Ele lá em cima do palco sem precisar falar nada, ele conseguia envolver toda a festa. E todo mundo ficava feliz, ficava eufórico e isso me inspirou, e eu quis fazer parte mais ainda da festa e me tornei Dj”(Bongiolo, 25/08/2010). Da mesma forma, relatou o Dj Faraz que ao participar de uma festa em que um amigo estava tocando, a reação do público o chamou a atenção, [...] eu tava achando super legal , tava vendo que o público, é [quer dizer]... era bem contagiante, assim, e a galera tava gostando, e eu ficava olhando vendo o cara tocando naquele mecanismo, eu pensei: pô, deve ser legal! pedi para o cara deixar eu tocar um pouco, eu tinha trabalhado em estúdio... ele me ensinou só soltar a música, aí eu experimentei tocar no toca-disco e aí eu me apaixonei por discotecagem (Faraz, 28/07/2010). A vivência dos Djs com o ambiente das festas demonstrou ter sido o fator mais decisivo pela escolha da carreira. Entende-se que, nesse contexto, ainda que a música tenha sido uma experiência envolvente, a principal motivação foi pela própria atuação do Dj que tocava na festa, ou em outras palavras pela forma com que ele conseguia se “comunicar” com público o envolvendo e o levando a “euforía”. O terceiro ponto em comum se trata propriamente do início do aprendizado da música eletrônica de pista. Ambos afirmaram que tiveram as primeiras lições com amigos que eram Djs. Conforme o Dj Gustavo Bongiolo, a sua formação começou em Rondonópolis, há seis anos, quando fez um curso com “um Dj de lá”. Esse amigo o ensinou a estrutura da música 70 A casa era chamada pelo grupo de casa do “papo” 76 77 eletrônica e a “mexer nos equipamentos”. Ele “montou toda a parte teórica71 que ele achava que devia me passar e durante um mês eu frequentei a casa dele e ele me passou, e o resto eu fui tentando aprender sozinho” (25/08/2010). Este aprendizado envolve a exploração dos equipamentos em casa, utilizando-se, também, de recursos como vídeos de outros Djs encontrados nos sites Youtube. De acordo com o Dj Gustavo Bongiolo, desde que se entenda a “parte teórica”, “você consegue aprender tudo pela internet” (25/08/2010). Um ponto interessante a ser destacado nessa forma de aprendizado com os recursos digitais, é que o caráter “aberto” e interativo, da internet possibilita não apenas o acesso às novas informações, mas um constante e colaborativo processo de aprendizado. No caso dos Djs por exemplo, a medida em que aprendem uma nova técnica, podem também passar aquilo que sabem aos demais interessados pela internet. Dessa forma, nessa rede, ou espaço do saber como chama Lévy (2007), o qual é formado e alimentado pelos indivíduos, há um rompimento de “hierarquias”, no sentido em que não há um único detentor do conhecimento, já que todos são, ao mesmo tempo, aprendizes e fontes de conhecimento. Esse contexto, acaba exigindo que os Djs exerçam uma maior autonomia em todo o processo de sua formação. Conforme Lévy, Em relação com os outros, mediante iniciação e transmissão, fazemos viver o saber [...]. Toda atividade, todo ato de comunicação, toda relação humana implica um aprendizado. Pelas competências e conhecimentos que envolve, um percurso de vida pode alimentar um circuito de troca, alimentar uma sociabilidade de saber (LÉVY, 2007, p. 27). Cabe entender ainda que tal autonomia não é propiciada exclusivamente por esses recursos tecnológicos, pois, retomando a discussão dos capítulos anteriores, são os indivíduos os principais agentes que criam e alimentam esse universo, sem os quais o ciberespaço, enquanto espaço relacional, retomando um termo de Lemos (2008), não seria possível existir tal como o temos hoje. O Dj Faraz relata que começou a investir na carreira trocando um teclado que usava para fazer jingles por dois toca-discos e um mixer e buscou aprender a produzir. Segundo o Dj, não fez propriamente “cursos”, mas aulas com três amigos: um Vj de São Paulo que o 71 A “parte teórica”, mencionada pelo Dj, se refere ao nome dos equipamentos e seus recursos (efeitos) e à estrutura da música eletrônica, ou seja, a organização do tempo e aos “estilos”: House, Tecno, etc. Algumas músicas eletrônicas podem ser estruturadas respeitando uma divisão métrica de 32 tempos, conhecido como “compasso de 32 tempos”. Usando os termos da teoria musical, pode-se dizer que a cada 8 compassos com 4 tempos, é acrescentado (ou tirado) um elemento novo na composição. Contudo, segundo o Dj Faraz, essa não é uma regra seguida em toda a criação musical desse gênero. 77 78 ensinou a produzir no programa Reason, um Dj do Rio de Janeiro ensinou a produzir no programa Cubase e, por fim, assistiu algumas aulas na IMEC (Instituto Música eletrônica de Curitiba). Sendo amigo dos donos, um deles o ensinou a produzir no software Ableton e logo começaram a fazer trabalhos juntos (Faraz, 28/07/2010). No tocante à formação inicial ficou evidente, portanto, que os participantes tiveram um aprendizado semelhante, ou seja, “na prática”, em contanto direto com as tecnologias e por meio de Djs mais experientes. O relato dos entrevistados apresenta paralelos com a pesquisa de Araldi (2004) que ao realizar estudos com Djs de Hip Hop, verificou que as primeiras vivências musicais destes, quando não aconteciam no ambiente familiar, se davam por meio dos amigos ou conhecidos. Ficou evidenciado assim, que a formação acontece em grande parte pela imitação, seja de Djs mais próximos, os amigos, ou de outros mais famosos. Como declara o Dj Gustavo Bongiolo: Então, quando eu comecei a tocar eu ouvia falar muito dele [Dj Mau Mau], depois que eu vi algumas apresentações dele, eu vi que a técnica dele é bem apurada, então, eu sempre me inspirei bastante nele, sempre observei bem ele tocando e sempre tentei imitar, mas, é difícil (rs).(Bongiolo, 25/08/2010). Ainda, concernente à formação pode-se dizer que ela é “contextual”, usando o termo de Lévy (1999), na medida em que “o curso” dura apenas o suficiente para que se aprenda as noções básicas de determinado equipamento e/ou software, mas, também é “móvel” e contínua, pois, devido a renovação constante de recursos e programas é importante sempre estar buscando se atualizar. Segundo Lévy O rítmo precipitado das evoluções científica e técnica determinam uma aceleração geral da temporalidade social. Este fato faz com que os indivíduos e grupos não estejam mais confrontados a saberes estáveis, a classificações de conhecimentos legados e confortados pela tradição, mas sim a um saber-fluxo caótico, de curso difícil, no qual deve-se agora aprender a navegar (LÉVY, 1999, p. 173). 4.2.1 Conhecimentos Necessários para o Dj No que concerne aos conhecimentos que permeam a formação e a atuação dos Dj, o entendimento da tecnologias, ou seja, os equipamentos, softwares, suas funções e recursos foi o primeiro ponto destacado como essencial. Como afirma o Dj Faraz: “acho que é importante ter bastante contato com tecnologia [...]tem que conhecer o programa” (28/07/2010). Assim, no início o Dj Gustavo Bongiolo afirma que é preciso dedicação e o treino, porque “a partir 78 79 do treinamento dia a dia ali você vai descobrindo coisas novas, coisas importantes com o seu ouvido mesmo”(25/08/2010). Contudo, além do entendimento das tecnologias, conforme o Dj Faraz também é importante “saber pesquisar”, ou seja, “tem que gostar de ouvir música, tem que ouvir muita música”, e de diferentes gêneros musicais para se ter um leque maior de possibilidades e “poder fazer um Set mais construído” (28/07/2010). Portanto, se percebe nas resposta dos Djs que os pontos relevantes se referem tanto à habilidade de “manusear” os equipamentos e/ou softwares, ou ao entendimento das tecnologias, como à percepção auditiva do que está sendo construído, bem como, de novas músicas e sonoridades. Na declaração do Dj Gustavo Bongiolo, por exemplo, uma vez que se está aprendendo ou “treinando”, o foco reside na manipulação das tecnologias, no entanto, nota-se que o “ouvido” ou a percepção auditiva assume um papel relevante, na medida em que ele explora os equipamentos e “descobre coisas novas e importantes”. Nesse processo de formação, pode-se dizer que está sendo empregado um tipo de “escuta” que Green (2000), citada por Lacorte e Galvão (2007), denomina de “intencional”, em outras palavras, se trata da escuta com a intenção de apreender algo (no caso do Dj, a estrutura musical, os efeitos produzidos no manuseio dos equipamentos, por exemplo), para ser relembrado e colocado em prática em situações posteriores. Enquanto na situação apontada pelo Dj Faraz, na qual entende-se já ter aprendido o uso das tecnologias, a “pesquisa” é o foco, nesse caso, a percepção auditiva assume papel preponderante, sendo o meio pelo qual se busca conhecer diversas músicas e novas sonoridades. Desse modo, considerando as duas situações apontadas pelos Djs, entende-se que a percepção auditiva é uma habilidade tão essencial quanto aquela de se manusear as tecnologias. Assim sendo, ressalta-se o que pensa o Dj Faraz ao afirmar que a “sensibilidade musical” é um elemento importante para que se consiga “produzir algo com coerência”(28/07/2010). A ideia de “sensibilidade musical” remete a aquilo que se entende por percepção musical, em outras palavras, a habilidade de reconhecer e compreender aspectos e elementos mais específicos da música, como a percepção de melodias, harmonia e estruturas musicais variadas e sua consequente reprodução (LACORTE; GALVÃO, 2007). Nas palavras do Dj: Eu vejo muitos produtores hoje que o cara vai..põe uma bateria que ele cria lá ou que ele recorta de uma outra música, aí ele pega coloca uma melodia de teclado e uma outra melodia de sintetizador, só que a melodia de teclado num campo harmônico e a outra melodia em outro campo harmônico, quer dizer, o cara precisa conhecer música para ele poder fazer com que um som entre no campo 79 80 harmônico do outro. A questão do ritmo é mais fácil porque o programa já oferece a métrica musical... os compassos, os compassos já vem certos, entendeu?... então, qualquer pessoa pode fazer uma música com o rítmo porque os programas já oferecem os compassos [...] mas, tem a questão da tonalidade musical que, por isso, eu acho que o cara que é músico ele consegue fazer a música mesmo fluir [...] e tem as pessoas que o ouvido...músicos que eu considero músicos têm sensibilidade musical e fazem de ouvido também, né? [...]. Então, é preciso ter conhecimento. Conhecimento técnico do programa que tá usando e conhecimento musical ou sensibilidade musical. Acho que mais sensibilidade musical, né? E bem antes do conhecimento (Faraz, 28/07/2010). A percepção musical, portanto, parece ser uma habilidade fundamental para que se possa criar produções mais elaboradas em termos musicais. Considerando que a música eletrônica tem se libertado do contexto festivo e que o ouvinte tem se tornado um apreciador desse gênero também por sua estética conforme Petiau (2001a), acredita-se que, cada vez mais, a preocupação com criações mais elaboradas seja uma constante na atuação como Dj. No entanto, segundo Dj Faraz, ainda que um certo entendimento de música seja necessário para fazer a “música fluir”, ele explica que: “o Dj, ele precisa conhecer música, não precisa ser músico” (28/07/2010). Acredita-se que essa afirmação é bastante pertinente, para a discussão do termo músico. Em definições encontradas sobre esse termo se referem frequentemente aos que compõem peças musicais, tocam um instrumento ou cantam, seja, por mero prazer ou profissionalmente, mas, em geral, designa-se por músicos aqueles que têm a atividade musical como profissão. Entretanto, de acordo com Shuker (1999), devido ao advento das novas tecnologias e a importância atribuída aos técnicos de som e aos produtores como criadores musicais, o “termo ganhou maior flexibilidade e um sentido mais difuso” (SHUKER, 1999, p. 199). Assim sendo, entende-se que o Dj é o novo músico, já que ele assume o papel tanto de compositor e o de intérprete no universo da música eletrônica. A única diferença reside nos seus instrumentos e nas técnicas de produção musical. Nesse sentido, afirma o Dj Faraz que Não é porque o cara produz música em computador que ele não é músico, isso vai do conhecimento dele [...]. É, existem muitos músicos que são dessa geração de agora que poderiam ter começado tocando numa guitarra, numa bateria, mas já começaram nessa geração da coisa tecnológica, na coisa do computador, de a música ser feita de uma maneira mais tecnológica (Faraz, 28/07/2010). É importante lembrar que as inovações nos instrumentos de criação e a interpretação não é uma novidade trazida pelas tecnologias digitais, pois, como foi discutido no segundo capítulo, desde o início do século XX, músicos começaram a criar novos instrumentos musicais baseados na eletrônica rompendo, assim, com os padrões tradicionais de criação e interpretação da música. Sobretudo, hoje, “é cada vez mais frequente que músicos produzam sua música a partir da amostragem (sampling, em inglês) e da reordenação de sons, algumas 80 81 vezes trechos inteiros, previamente obtidos no estoque das gravações disponíveis” (LÉVY, 1999, p. 141). Nas declarações dos entrevistados, depreende-se que a forma mais imediata de conhecimento se remete àquela da habilidade, isto é, ao "saber fazer" (know how), ou dito de outra forma, ao conhecimento “prático”. Nesse caso, se refere ao “saber” como usar as tecnologias, equipamentos e/ou softwares, à como registrar uma amostra de som e combina-lo com outros, por exemplo. Entretanto, percebe-se que outras competências72, como a percepção musical, a capacidade de “pesquisar” e a de captar a atmosfera na pista, são igualmente essenciais ao trabalho do Dj. Essas competências compreendem um conjunto de atos mentais e sensoriais, como a memória, atenção e escuta ou percepção. Assim sendo, entende-se que, como em qualquer atividade profissional, o conhecimento não se resume a esfera do “saber fazer”, mas, pressupõe um processo mental que organize o conjunto das percepções e das informações. Dessa forma, seria um equívoco entender que a atividade do Dj se reduz a uma mera manipulação das tecnologias, portanto, como desprovida de sensibilidade, criatividade ou qualquer outra capacidade cognitiva. Além disso, é importante ressaltar que, não apenas os aspectos técnicos e musicais, precisam ser dominados e integrados no trabalho do Dj, mas, outras informações as quais dizem respeito ao mercado, tendências musicais e gosto do público, também constituem e ampliam o universo de conhecimentos necessários tanto a formação quanto a atuação do Dj. Reportando ao pensamento de Morin (2003), todas essas informações e competências devem ser organizadas no contexto de atuação desses sujeitos, assim sendo, os seus conhecimentos resultam desta organização. 4.3 Atuando como Dj: Experiência 4.3.1 Iniciando a carreira O Dj Gustavo Bongiolo relata que a primeira festa que realizou profissionalmente, “mesmo como Dj”, foi a Groove in, em 2004, quando ainda morava em Rondonópolis (Bongiolo, 25/08/2010). Esta festa foi realizada pelo o núcleo 150bpm, tendo como integrantes os Djs Corpinho, Gustavo Bongiolo, Deki e Julio Teis. A partir daí, o Dj tem se apresentado em vários lugares do Brasil como Bonito, Manaus, São Paulo, Rio de Janeiro, 72 Nesse caso, prefere-se usar esse termo, por entender que este ultrapassa a noção de habilidade, implicando a capacidade de atuar em um determinado contexto como de refletir e argumentar a respeito da atuação. 81 82 Campo Grande. Além disso, também se apresentou em diversas cidades de Mato Grosso como Sinop, Lucas do Rio Verde, Primavera do Leste, Rondonópolis, entre outras. Em Cuiabá, tem se apresentado em diferentes locais como o clube Garage, a boate Lótus, até carnavais de música eletrônica e festas de quinze anos O Dj Faraz relata que iniciou a carreira como Dj entre 2001 e 2002 discotecando. O evento do qual participou profissionalmente foi o show do Planet Hemp. No evento tocaram quatro Djs de música eletrônica de Cuiabá, dentre os quais, ele próprio (Faraz, 11/01/2011). Em 2005 começou também a realizar suas próprias produções. O Dj tem tocado em diversos lugares de Mato Grosso e também fora do Estado. Em 2009 participou de uma turnê pelo projeto “Música do Mato” junto com diversos músicos de Mato Grosso, tocando em Brasília, Recife, João Pessoa, Natal, Fortaleza. Participou também de importantes festivais como o Chemical Music (Curitiba), Ecosystem (Manaus) e já tocou em clubes famosos como A Lôca, D-eged e Lov.e, em São Paulo, no Stereo (Curitiba), e em Cuiabá, muitas vezes no Garage. 4.3.2 Produção/Agenciamento da carreira do Dj De fato, as tecnologias, especialmente as digitais, constituem-se em instrumentos de criação para o Dj, como discutido adiante, porém, seu uso não fica restrito a essa função. Cada vez mais, os recursos da comunicação em rede vêm sendo utilizados pelos Djs como meio de interação com o público, troca de informações e atualização profissional. Segundo o Dj Gustavo Bongiolo, a internet facilita muito o contato com vários Djs, como explica ele: “Às vezes a pessoa [outro Dj] fala: ‘olha eu vou consegui uma data pra você aqui’, você consegue uma pra mim aí”. (Bongiolo, 25/08/2010). Além disso, a internet é uma “ferramenta” fundamental tanto para estar se atualizando em termos de equipamentos, fazendo pesquisas e aquisição de novas músicas (downloads ou compradas), bem como, para se ter acesso ao trabalho de outros Djs e fazer contatos profissionais. Na internet eu posso ver vários vídeos todos os dias de apresentações de Djs do mundo inteiro. Eu posso ver o que eles estão usando, posso ver as novidades. E eu também recebo bastante e-mails e novidades. Então o que eu mais uso é a internet mesmo, tanto pra buscar novidade em equipamento, em técnica e também pra buscar as minhas músicas (Bongiolo, 25/08/2010). O ciberespaço ou internet, portanto, vem sendo apropriado como um dos meios mais importantes de divulgação dos trabalhos dos Djs, mais ainda, se pode dizer que se constituem em um recurso de produção da sua carreira. Como forma de divulgação, os entrevistados 82 83 deram grande destaque aos sites de redes sociais. Por exemplo, o Dj Gustavo Bongiolo afirma que ao gravar um novo set, sempre disponibiliza na internet“pra todo mundo baixar”. Utiliza, então, o Orkut, Facebook, Twitter, posta também no MSN e procura divulgar em sites que aceitam postagens do link do set, inclusive muitos deles “já colocam o set pra rodar quando você entra no site”, então, “essas são ferramentas muito importante pra quem é Dj hoje” (Bongiolo, 25/08/2010). O Dj Faraz reforça o uso dessas “ferramentas” para divulgação do seu trabalho. Ele ressalta que Orkut e o Facebook são bastante utilizados, por exemplo, para divulgar os eventos onde vai tocar. Como pode ser observado no perfil do Dj no site do Orkut a seguinte divulgação da festa de Réveillon Spirit of the Sea que aconteceria na Chácara da Associação Médica que conforme estava descrita seria uma evento grandioso e “inesquecível” que contaria com os profissionais mais competentes no campo da sonorização, iluminação, decoração, segurança, Djs e Vjs (ORKUT, 2010). Além do facebook, Orkut e Twitter, o Dj Faraz acredita que o Sound Clound73 e o My Space74 são os principais sites para o músico porque: “Você vai lá põe sua foto, põe sua musica...é são próprios pra isso, e você conhece outros artistas também, você adiciona eles também e você troca figurinhas com eles e com público também (Faraz, 11/01/2011). Percebe-se a partir das declarações dos Djs duas situações: no caso do Dj Gustavo Bongiolo, por exemplo, o objetivo maior parece ser o de mostrar o seu trabalho, divulgando os sets aos ouvintes. Já, para o Dj Faraz, o uso dos diversos sites parece funcionar tanto como meio de informar a um público sobre um evento do qual irá participar, como de contabilizar a carreira, ou melhor, de medir ou perceber o reconhecimento do mesmo em relação ao seu trabalho, pois, como explica o Dj: “Você começar a ter um público, as pessoas saírem de casa pra ver você tocar, comentarem: ‘ah, farinha vai tocar em tal lugar, vamo lá, vai tá legal, vai tocar farinha ..fulano’... quer dizer, esse é o reconhecimento”(11/01/2011). Retomando uma discussão do terceiro capitulo, estes espaços funcionam como uma constituição do “eu” no ciberespaço, em outras palavras, é a inserção de um espaço privado dentro do público. Conforme Recuero (2009), o diferencial nos sites de redes sociais em relação a outras ferramentas de conexão, é que eles possibilitam a construção e facilitam a emergência de tipos de capital social, ou valores, que não são facilmente acessíveis aos atores sociais no espaço offline. Como exemplo, a autora menciona que no Orkut um determinado 73 Criado por Alexander Ljung e Eric Wahlforss em Agosto de 2007, o SoundClound é espécie de plataforma online de publicação de áudio (http//pt. wikipedia.org/wiki/SoundClound) 74 O MySpace, lançado em 2003, e é um sistema que permite a mostra de redes sociais e a interação com outros usuários por meio da construção de perfis, blogs, grupos e fotos, música e videos (RECUERO, 2009, p. 173). 83 84 ator pode ter rapidamente uma “quantidade de conexões”, ou seja, amigos que dificilmente terá na vida offline. Isso pode influenciar várias coisas como torná-lo mais visível na rede social e também tornar as informações mais acessíveis a este ator, ou mesmo, auxiliar a construir impressões de popularidade que podem transpassar ao espaço offline. Os valores construídos nas redes sociais, a exemplo da visibilidade e reputação, mencionados anteriormente, os quais estão relacionados ao capital social ou cognitivo, podem explicar a importância atribuída aos sites de relacionamentos pelos entrevistados como meio de divulgação do trabalho. Embora, tais valores não sejam exclusividades dos Djs, já que todos os atores sociais podem os possuir, em maior ou menor grau, entende-se que, nesse caso em específico, as construções destes valores no ciberespaço, parece contribuir de modo significativo para a produção da carreira do Dj. O estreitamento de relações com o público/ouvinte através dessas redes pode permitir a construção de afinidade e respeitabilidade, não apenas em relação ao trabalho, mas, à própria pessoa do Dj. Em outras palavras, ali pode se construir uma “persona”75 que ultrapasse o espaço virtual. Nesse sentido, estes espaços são ao mesmo tempo, conforme Recuero (2009), espaços de expressão do “eu” e de construção de impressões. Além da apropriação do ciberespaço como meio de produção da carreira, uma outra estratégia de divulgação utilizada é a “cara a cara”. O Dj Gustavo Bongiolo relata que costuma gravar vários CDs e distribuir enquanto toca. Também sempre carrega consigo alguns CDs e pede para amigos o ajudarem a distribuir, “muitas pessoas pedem o Cd, ouvem e, se gostam, te ligam...você coloca no Cd seu email, seu celular...as pessoas te ligam pra contratar, isso funcionou bastante e continua funcionando”( Bongiolo, 25/08/2010). Esse fato demonstra que embora as tecnologias venham desempenhando um papel central nas formas de comunicação e interação, elas, contudo, não substituem as relações humanas, nem mesmo os indivíduos se privam de interagirem uns com os outros, recorrendo por exemplo nessa situação aos amigos que ajudam a divulgar o trabalho do Dj aos ouvintes. 4.3.3 Relações com outros Djs e o Público Conforme os entrevistados, no universo da música eletrônica há muita troca de “figurinhas” entre os Djs. Como afirma o Dj Gustavo Bongiolo: “a gente vai trocando músicas , datas, materiais, e desde música até contato com outros Djs... tudo a gente troca”. 75 Um termo utilizado por Mafesolli (2006). O autor entende que a pessoa “representa diversos papéis” conforme a situação ou “cena” a qual se integra. 84 85 Para o Dj Faraz, essa troca é uma vantagem desse universo da música eletrônica, bem diferente, por exemplo, de quando ele fazia parte de uma banda, e participava de shows em que vinha algum grupo de fora tocar, O acesso a eles era complicado, às vezes o produtor não deixava nem chegar perto. Tipo, a gente tinha banda e, às vezes, a gente fazia o mesmo som que determinada banda e era muito difícil o acesso a essas pessoas. Era muita gente querendo autógrafo, tirar foto, os caras se enclausuravam no camarim e não saiam de lá, só saiam pra tocar. E outra coisa que era chato também, era que na hora de passar o som, o melhor som era pra banda [de fora] (Faraz, 28/07/2010). Este “estrelismo” quando se trata do Dj, conforme Faraz é muito raro, pois, ele está mais acessível as pessoas. Então, Raramente vai ter um Dj que vai ter segurança escoando o cara. O Dj vai tá sempre assim, ao alcance das pessoas. Quando ele termina de tocar muitas vezes ele quer ir embora para o hotel, tal...mas, nesse intervalo dá pra chegar, conversar, trocar uma ideia. A maioria dos Djs, a gente consegue trocar ideia (Faraz, 28/07/2010). Como exemplo, o Dj contou que já trocou idéias de produção com “o Murph” que já esteve várias vezes em Cuiabá e em uma dessas vindas, “[...] o club já tinha fechado, a gente ficou até mais tarde, a gente ligou o toca disco, ele inclusive deixou eu tocar com os discos dele. Tem mais troca de informação, eu acho, muito mais” (Faraz, 28/07/2010). Também, de acordo com as declarações dos entrevistados: “o Dj está muito mais próximo do público” (Faraz, 28/07/2010). E como já apontado, este exerce grande influência no seu trabalho, principalmente, no que se refere a prática da mixagem. Sobre essa relação entre Dj e público no contexto festivo da música eletrônica, Petiau (2004) mencionando Alfred Schütz, defende que há uma espécie de comunicação musical que é estabelecida pela participação em uma mesma dimensão temporal e pelo fluxo musical. Esse ideia é interessante e pertinente para explicar as declarações dos dois participantes da pesquisa sobre o que os motivaram a seguir essa profissão, como mencionado anteriormente. 4. 4 O Fazer musical dos Djs O fazer musical do Dj pode ser elencado em três atividades ou práticas musicais sendo estas a remixagem, a mixagem (ou discotecagem) e a produção. Alguns autores, a exemplo de Baldelli (2004) mencionam apenas as duas últimas como principais atividades dos Djs. Entretanto, a remixagem, apesar de não ser discutida por alguns autores, também é uma prática comum na música eletrônica. Entre Djs Brasileiros, segundo Fontanari (2003) a 85 86 remixagem tem ocorrido na maioria das vezes pela “transposição de trechos cantados e melodias de música” do repertório popular brasileiro para bases “rítmo-percussivas feitas eletronicamente” (FONTANARI, 2003, p. 100). De acordo com o autor, os Djs de Drum’n bass que teriam sido os precursores dessa prática. A produção, entendida como o processo de criação propriamente dito, seria a composição realizada em estúdio. Se pode aqui falar de dois tipos de atividades de produção: uma se refere àquela em que o Dj -nesse caso produtor- compõe suas próprias músicas para serem comercializadas, tanto com outros Djs que podem reutilizá-las em suas mixagens, ou mesmo com ouvintes por meio dos sites especializados nesse gênero. A outra atividade de produção se trata daquela em que os Djs utilizam faixas musicais já existentes para produção de um set para ser divulgado ao público, por exemplo. Por se tratar de uma atividade que acontece fora da pista, pode-se dizer que é um processo mais “livre” de influências do público (BALDELLI, 2004), no sentido, em que o Dj pode produzir seguindo suas próprias preferências, sem se preocupar em atender ao gosto dos ouvintes ou determinada tendência musical de um clube. A atividade de mixagem, diferente da produção, é um trabalho mais voltado para as pistas, mixar, segundo Petiau (2001b, p. 77) “consiste em utilizar discos de vinil [hoje também Cds ou música digitalizada] como banco de sons. Os discos e a mesa de mixagem são seus instrumentos, os quais lhe permitirão ‘dar a luz’ à uma nova criação sonora à partir de dois discos-bases”.76 Essa prática também constitue um processo criativo, pois, mais do que ligar uma música a outra com o intuito de manter o público dançando, há nela um espaço para a exploração de sonoridades peculiares que surgem dessa mistura. Entretanto, pode-se dizer que há uma maior interferência do público, na medida em que o Dj faz suas escolhas musicais de acordo com a atmosfera captada na pista de dança. Nesse sentido, afirma Sá (2003) que A qualidade de um DJ depende também da sua sensibilidade e intuição para sentir a disposição do ambiente para a experimentação e da sutileza (ou radicalidade) com que mescla novidades com faixas conhecidas dos freqüentadores, sem deixar a energia, a animação, a vibe desaparecer da pista (SÁ, 2003, p. 11). Para o Dj realizar as suas práticais musicais, seja estas a mixagem ou a produção, convém ressaltar uma atividade comum, mencionada anteriormente pelo Dj Faraz, que é a da pesquisa musical ou “garimpagem” (Pires, 2001; SÁ, 2006). Essa garimpagem, consiste em 76 “Mixer, pour un Dj, consiste à utiliser les disques vinyles comme des banques de sons. Les platines et la table de mixage sont ses instruments, qui vont lui permettre de donner naissance à une nouvelle création sonore à partir de deux disques- sources”. 86 87 uma característica marcante da profissão do Dj, sendo também fundamental para a qualificação e diferenciação do seu trabalho. Pode-se dizer se tratar esta de uma atividade auxiliar ao seu fazer musical, mas que está profundamente interligada aos processos criativos já que é esta que alimenta o repertório para as produções dos Djs. Hoje, muitos Djs acumulam também a função de produtor (autor de suas próprias músicas); nessa pesquisa o Dj Faraz é um exemplo desse caso. Ele relata que “a produção veio de uma maneira natural”, como sempre teve banda e gostava de compor, então, na sua visão, ser só Dj (discotecar) “ia ficar uma coisa sem sentido, eu acho que não ia me sentir realizado né? Então, eu sempre tive esse... anseio de fazer minhas próprias musicas, tocar quem sabe cantar, criar é compor e aí uma coisa completa a outra” (Faraz, 11/01/2011). Contudo isto, não é uma regra, pois, há os que, como o Dj Gustavo Bongiolo, preferem lidar apenas com uma das funções. Reportando ao pensamento de Pourtau (2001), discutido no primeiro capitulo, o Dj-produtor seria o compositor direto, enquanto que, na segunda situação, o Dj pode ser visto como um compositor indireto. Ressalta-se que a ideia do produtor como autor, assim como a do Dj como artista, é um fato mais ou menos recente na história da música popular, pois, quando aquele surgiu, na indústria fonográfica durante a década de 1950, era apenas a pessoa que dirigia e supervisionava as sessões de gravação. Em meados dos anos de 1960, os produtores de estúdio passaram a ser considerados autores, por empregarem a tecnologia dos múltiplos canais de gravação e do som estereofônico de maneira a tornar a gravação não um mero meio de registro de uma atuação mas, como uma forma de composição em si. Nas décadas de 1970 e 1980, com o desenvolvimento das novas tecnologias como sintetizadores, samplers e sistemas sequenciais baseados em computadores, o papel dos produtores se consolida como de “intermediários culturais”. E é, sobretudo, em gêneros como dub e a dance music77 que os produtores, passaram a ter fundamental importância (SHUKER, 1999). Nesse processo cultural, muitos Djs, antes considerados discotecários, como discutido no segundo capitulo se apropriaram das novas tecnologias e com o tempo migraram das pistas e clubs para os estúdios se tornando também produtores. Hoje, na música eletrônica, conforme Rodrigues, (2005) ser produtor: Implica em estar muito bem situado na cena produtiva, ou seja, estar melhor atento a respeito do que é produzido na esfera de suas afinidades sonoras e do universo musical em geral, além de conhecer as possibilidades dos suportes técnicos (equipamentos de gravação, processamento, mixagem, instrumentos (RODRIGUES, 2005, p. 96). 77 Como Dance music, Shuker (1999) designa tanto a música disco como a música eletrônica de pista. 87 88 Diante da transformação ou reconfiguração, do cenário musical, principalmente no que se refere a novas formas de produção de música com as tecnologias digitais, surgem questionamentos em torno das noções de autor, criação, e outras conceituações. Com o surgimento da Cibercultura que facilita o acesso as novas informações a todo o momento, os elementos sonoros disponibilizados na rede constituem nos materiais que poderão ser colados, remixados, manipulados e transformados em uma nova criação pelos Djs e produtores, sem que isso signifique uma decadência da produção musical. Assim sendo, diante de “novas formas de fazer”, conforme Duarte (2010), há um enfraquecimento de certas dicotomias como as noções de original/cópia, emissor/receptor, criação/apropriação. Estas noções, na atualidade, foram discutidas por diversos autores, entre os quais menciona-se Lévy (1999), que ao abordar os novos gêneros artísticos em seu estudo sobre a cibercultura entende que, diante da profusão de informações, não se pode pensar mais em “obra” como uma criação fechada, pronta e acabada, pois, nessa nova realidade o objetivo do trabalho artístico se desloca para o acontecimento. Em outras palavras, a “obra” fixada em um suporte destinada posteriormente a contemplação, perde, em certa medida, esse caráter adquirindo em troca o de “obras-fluxos” ou “obras-acontecimento”, usando o termo de Lévy (1999), as quais já não se adequam a prática do armazenamento e conservação em suporte físico. Conforme Bourriaud (2009) principalmente a partir dos anos 90 observa-se que a arte contemporânea busca cada vez mais se inserir em uma nova “estética”, a qual ele chama de relacional. Esta estética relacional discutida pelo autor trás justamente essa ideia da obraacontecimento mencionada por Lévy (1999), em que o intuito deixa de ser o de contemplação levando o público a vivenciar a obra. Embora, não seja pretensão adentrar a discussão se a música eletrônica pode ser ou não julgada como arte, entende-se, no entanto, que a produção musical dos Djs se insere nessa nova abordagem estética. Como um “artista relacional”, usando o termo de Bourriaud (2009) ou músico do ready made, o Dj através das suas mixagens na pista criam “obras-acontecimentos”, da qual o público tem sua parcela de contribuição e participação. 4.4.1. Tecnologias e Materiais utilizados pelos Djs As tecnologias no trabalho do Dj constituem-se em instrumentos ou ferramentas de criação. Elas tornam possíveis a ampliação e exploração de novas sonoridades na música. Especialmente com o surgimento de tecnologias digitais, o som pode ser manipulado com 88 89 mais facilidade e precisão. Ferramentas como computador e softwares vieram a facilitar o processo de criação. Assim, como afirma Lévy (1999, p. 140), a digitalização, assim como o fizeram em outras épocas a notação e gravação, “instaura uma nova pragmática da criação e audição musicais”. Conforme o Dj Gustavo Bongiolo, ainda hoje os sintetizadores são bastante utilizados, no entanto, em virtude do seu alto custo, muitos Djs têm preferido adquirir os programas que simulam estes instrumentos no computador. Na prática da mixagem, os mixers e toca-discos (e Cds), também conhecidos como pick-ups, ocupam lugar primordial, mas, o computador também vem sendo bastante explorado nessa atividade. Assim, de acordo com o Dj Faraz, “hoje o Dj está muito mais no computador do que propriamente no toca–disco e no toca Cd” (Faraz, 28/07/2010). No contexto da digitalização, há uma reconfiguração tanto de práticas musicais como do uso de determinados materiais pelos Djs. Como menciona o Dj Faraz, por exemplo, o uso da internet trouxe maior flexibilidade e facilidade na aquisição de músicas, pois, em princípio o Dj tinha de enfrentar o contratempo de encomendar os discos e esperar até que eles chegassem, ou, então, viajar para comprar as mídias que continham as músicas desejadas (Faraz, 28/07/2010). Com a internet e a expansão da música digital, não apenas se tornou mais fácil como mais barato adquirir música. Assim sendo, o Dj Gustavo Bongiolo explica que optou por usar apenas músicas digitais: “Pra você ter uma idéia um vinil hoje custa...45 reais enquanto uma música baixada na internet é 3 dólares, no máximo. Então, compensa bem mais você baixar as músicas na internet e aí ter opção de tocar em Cd ou vinil”(Bongiolo, 25/08/2010). Ressalta-se que essa opção de “tocar em CD ou em vinil” de início não era bem vista por muitos Djs. Em outras palavras, havia uma preferência pelo vinil e certo “preconceito” em relação ao uso de CDs. Tocar em vinil era um indicativo de maior habilidade técnica do Dj, pois, como relata o Dj Faraz: “No vinil ou você toca ou não toca. No CD também, mas, no vinil é mais aprimorado, é mais difícil, você tem que ter uma técnica melhor, as viradas são mais longas”(Faraz, 28/07/2010). No entanto, hoje, com a inserção do computador e softwares, não apenas no processo de produção como na mixagem, se pode dizer que o uso do vinil ou do CD, é mais visto como uma opção, que como uma “imposição”, ou como requisito para qualificação técnica do Dj. Como explica o Dj Gustavo Bongiolo 89 90 Hoje em dia eu toco em Cd e em vinil também, às vezes eu enjôo de uma coisa e toco em outra. Eu uso o computador também pra tocar. Hoje em dia em fácil tocar no vinil porque você tem o computador que você com suas músicas baixadas na internet, você usa uma placa de som ligada nos decks, nas pick – ups, né? E essa placa ligada no computador, então, você coloca um vinil lá do programa, você tem todo o manuseio como se tivesse um vinil normal da música, só que você escolhe a música no computador, então você pode tocar em vinil com as suas músicas no computador (Bongiolo, 25/08/2010). Portanto, a música eletrônica hoje, sem importar o meio no qual será reproduzida, é de um modo ou de outro, produzida com o auxílio do computador e softwares, que simulam os sintetizadores, samples, sequênciadores. Um dos programas mais utilizados atualmente pelos dois Djs é o Ableton Live78, mas, há outros programas como o Lógic e o Cubase. Contudo, o Ableton é o preferido tanto para produzir quanto para tocar, por ser, segundo o Dj Faraz, um programa “leve e bem prático”. Como ele relata, neste programa é possível tanto usar as “ferramentas” próprias dele quanto “ferramentas de outros programas que podem ser usadas no computador que eu abro dentro dele”[Ableton Live] (Faraz, 28/07/2010). Acrescenta o Dj acrescenta que é preciso estar muito atento às novidades tecnológicas, pois, cada tecnologia que surge pode “trazer possibilidade de criar novas texturas, novas maneiras de produzir […] que cada programa tem uma linha de raciocínio, cada programa você usa ele de uma maneira”(Faraz, 28/07/2010). 4.4.2 As Técnicas dos Djs No que se refere às técnicas dos Djs, no caso da música eletrônica entende-se que a principal seja o sampling ou colagem musical. Reportando ao pensamento de Shusterman (1998), o sampling é visto como uma “reapropriação reciclada”. Em outras palavras, amostras de sons (samples) são apropriadas e reordenadas dando origem a um nova música. Essa música por sua vez, pode ser também “objetos de novas amostragens, mixagens e transformações diversas por parte dos outros músicos” (LÉVY, 1999, p. 141). Nessa técnica, realizada com o uso do sampler79, o som pode ser imediatamente restituído tal qual ou ser modificado sendo acrescidos efeitos, looping (repetições de um som ou trecho musical), sofrendo alterações de altura sem alterar a duração (pitch shift) ou ajustar a duração sem mudar a sua altura (Time stretching), entre outras opções. Segundo o Dj Vas 78 Ableton Live é um software sequenciador musical, contudo, diferente de outros sequenciadores, a última versão, o Ableton Live 8, foi desenhado para ser tanto um instrumento para performances ao vivo como uma ferramenta para se compor e fazer arranjos (http//pt. wikipédia. Org/wik/ableton_live). 79 O sampler é um gravador numérico, em outras palavras, ele registra sons que ficam armazenados em sua memória os quais serão utilizados no sampling. 90 91 “O sampling é uma técnica por sua vez bárbara e criativa. Você pode desestruturar completamente aquilo que havia no início; um sample, você pode o desestruturar completamente e se apropriar”80 (Dj VAS apud PETIAU, 2001b, p. 103). Contudo, conforme Petiau (2001c, p. 78) “nem todos os compositores [se referindo aos Djs] trabalham a partir das mesmas técnicas ou ferramentas. Alguns compõem exclusivamente com samples, outros não utilizam mais que sons sintéticos [...], enquanto outros juntam estas diferentes ferramentas”.81 Ressalta-se que, na visão da autora, o sampling parece ser entendido como uma das práticas musicais do Dj, que nessa pesquisa é mencionada com o sentido de produção. Assim sendo, segundo a autora, dois procedimentos ou “gestos” são comuns às práticas da remixagem, mixagem e do sampling, sendo estes o “gesto de recriação” e de “montagem”. Assim os descreve a autora O gesto de re-criação: a utilização de um material musical pré-existente na criação. A recuperação, a reinterpretação, a reciclagem, a apropriação (criar uma obra musical à partir de dois discos de vinil, se reapropriar [de] um tema, o valorizar de maneira diferente em uma nova composição, reutilizar um diálogo de filme, um slogan publicitário, um riff de guitarra, um rítmo de bateria). O gesto de montagem: compor montando elementos pré-existentes, recombinar materiais musicais, reconstruir, relacionar dados selecionados em um fundo sonoro (uma discotecas, um banco de amostragem, discos de vinil antigos, etc).82 (PETIAU, 2001c, p. 79). Partindo disso, percebe-se que na prática estes procedimentos são interligados. E de acordo com a autora, “estes dois gestos – reutilização/apropriação e montagem-se reencontram em uma grande parte da estética da tecno”83 (leia-se música eletrônica). Essa apropriação ou reutilização e a montagem são o cerne da técnica dos Djs. Assim, entende-se que no fazer musical, tanto a escolha do material pré-existente, quanto, ou ainda mais, a forma como ele é reutilizado, reordenado e “montado”, são os aspectos mais relevantes para a qualificação do trabalho do Dj. 80 “Moi j’affirme vraiment le sampling, parce que pour moi c`est une technique à la fois barbare et créative. Tu peux complètement déstructurer ce qu’il y avait au départ ; un sample, tu peux complètement le déstructurer et te l’approprier”. 81 “Tous les compositeurs ne travaillent pas à partir des même techniques et des mêmes outils. Certains composent exclusivement avec des samples, d’autres n’utilisent que des sons synthétiques […], tandis que d’autres encore couplent ces différents outils”. 82 “Le geste de la re-creátion: l’utilisation d’un matériel musical préexistant dans la création. La récupération, la réinterprétation, le recyclage, l’appropriation (créer une œuvre musicale à partir de deux disques vinyles, se réapproprier un thème, le mettre en valeur de manière différente dans une nouvelle composition, réutiliser un dialogue de film, un slogan publicitaire, un riff de guitare, un rythme de batterie, etc.). Le geste de l’assemblage: composer en assemblant des éléments préexisants, recombiner des matériaux musicaux, reconstruire, mettre en relation des données sélectionnées dans un fonds sonore (une discothèque, un bac à disque, une banque d’échantillons, des vieux vinyles, etc.)”. 83 “Ces deux gestes – la réutilisation- réappropriation et l’assemblage – dans une grande partie de l’esthétique techno”(idem. p. 79). 91 92 Para o Dj de música eletrônica, na prática da mixagem, por exemplo, o importante é fazer com que o ouvinte não perceba as mudanças de uma faixa musical para a outra. Nesse sentido, o Dj Faraz afirma que a sua técnica é a paramétrica, ou seja, “a mixagem precisa”. Então, ele se preocupa mais com as “viradas” e o “efeitos”. Como afirma o Dj:“Eu dou prioridade pra naturalidade que uma música sai e a outra música entra”. Tanto o Dj Faraz quanto o Dj Gustavo Bongiolo declararam que para tocar se inspiram muito na “técnica” do Dj Mau Mau (SP) “porque ele dá muito valor na questão das viradas, assim. A virada dele é muito legal”(Faraz, 28/07/2010). De fato, ao ouvir algumas produções em casa e ao observar os Djs durante suas apresentações, ficou evidenciada essa habilidade técnica de fazer com que o ouvinte não perceba as passagens de uma música a outra. É muito difícil, principalmente para quem não vivencia esse ambiente, distinguir quais estilos estavam sendo tocados. Pode ser percebido que o foco era criar um contínuo de sons trabalhados, usando a linguagem musical, muito mais em termos de timbres e intensidades, e isso em plena conexão com a atmosfera da pista. 4.4.3 Estilos, Seleção de Repertório e a produção de assinatura No processo de criação, seja na mixagem na pista ou na produção de um set, pode-se dizer que há um “esquema” comumente seguido pelos sujeitos, o qual engloba a pesquisa, a seleção do repertório e a criação (produção ou mixagem). Isto ficou bastante evidenciado quando os entrevistados relataram como acontece a seleção de repertório para as mixagens e produções. Com relação à escolha musical para a mixagem, como destacaram os Djs é muito importante levar em consideração o lugar e o público que o frequenta. Assim, como contou o Dj Gustavo Bongiolo é necessário fazer uma “pesquisa” para saber se trata de “uma noite mais underground ou mainstream” para então, “encaixar ou adaptar” o seu repertório ao evento. Como explica o Dj: “Eu faço toda essa pesquisa de como é o ambiente, como vai ser o público, o que eles gostam de ouvir, pra assim eu me preparar para a apresentação. Eu não me preparo pra várias apresentações de uma vez só, eu me preparo pra cada apresentação” (Bongiolo, 25/08/2010). Ele esclarece que também pode acontecer, de ter planejado tocar determinado estilo, e na hora da mixagem precisar de modificar ou adaptar o repertório: “Às vezes, eu também vou pensando em tocar alguma coisa, tocar por exemplo o house, aí eu vejo que não era bem o que eu tava pensando,então, eu tenho que me adaptar ali na hora mesmo”(Bongiolo, 25/08/2010). 92 93 Da mesma forma o Dj Faraz afirma que seleciona um “repertório diferente” dependendo do lugar. Na verdade, segundo ele, a seleção acontece mesmo na hora da mixagem: [...]eu não seleciono nada antes eu já venho com todo material comigo, aí se eu to tocando eu olho pro público, aí eu falo “não aqui vai funcionar tal coisa...aqui vai fica legal tocar isso” e assim vai indo. O que é mais difícil pra mim é tocar a primeira música. Depois que eu toco a primeira música, aí as outras vão tranquila (Faraz, 28/07/2010). Segundo o Dj Faraz, outros fatores também determinam a escolha do que tocar durante a mixagem, por exemplo, se é ele quem “abre a pista”, não se preocupa muito com a primeira música e “vai tocando”. Mas, se caso, vai se apresentar depois de outro Dj, então, tem duas maneiras de iniciar o seu Set: uma é “prestar muita atenção na última música que ele toca” para não haver “choque” entre o que vinha sendo tocado e a sua primeira música, ou, também, preparar uma entrada própria para a sua apresentação. Quando indagado se prefere seguir a vertente mais undergroud ou mainstream, o Dj Gustavo Bongiolo afirma que “gosta de participar das duas”, e que o seu repertório para as mixagens envolve os diversos estilos como o House, Tecno, Techouse, Mínimal, entre outros: “eu gosto de misturar tudo. Eu acho que vai muito bem, mas...tem lugares que vai bem tocar só o house e tem lugares que vai bem se for só o tecno, depende do lugar mesmo, do tipo de público” (Bongiolo, 25/08/2010). O Dj Faraz tem uma visão diferenciada e afirma que sua preferência é pelo estilo underground porque na sua opinião, “a música eletrônica underground ela é mais aprimorada, ela é uma coisa feita com mais atenção”. Contudo, quando vai tocar prefere ficar no meio termo, ou seja, nem um repertório “bába”84 e nem tão underground. Assim, em sua mixagem conta que gosta de mixar diversos estilos, além do Tecno e House, também o Eletro, o breakbeat, o minimal. Como explica o Dj Então, eu fico me baseando nesse[s] estilo[s] ... e o breakbeat que eu acho que é um diferencial que eu tenho junto com o eletro que dá aquele tempero no estilo porque um set só de tecno, pra muitas pessoas, não mas pra mim fica enjoativo...um set só de house...idem...só de eletro ...idem... eu não consigo ficar numa coisa só. (Faraz, 28/07/2010) Percebe-se na fala dos Djs que, embora precisem adaptar o seu repertório ao público que frequenta determinado local, não tocando um estilo totalmente underground, como contou o Dj Faraz, há, também uma preocupação em imprimir nessa seleção uma 84 Uma expressão que designa uma música muito comercial. 93 94 característica própria, misturando, por exemplo, estilos diferenciados para “dar um tempero” no set. Em relação à atividade de produção, convêm ressaltar uma diferença no trabalho dos dois Djs quanto ao tipo de produção: no caso do Dj Gustavo Bongiolo, esta prática refere-se à criação de sets (em estúdio) para a divulgação do seu trabalho, já o Dj Faraz, fala também, da produção de suas músicas próprias. Não há, no entanto, pretensão em comparar ou julgar um trabalho como mais importante que o outro, pois, como vem sendo discutido, entende-se ambos como uma atividade de criação. O Dj Gustavo Bongiolo contou que quando produz um set para distribuir ele gosta de misturar os diversos estilos, para mostrar que seu trabalho é bem flexível, ou seja, que ele tem, “tanto uma pegada house quanto uma pegada tecno... sem rótulos”, e por isso, pode “tocar em qualquer lugar” (Bongiolo, 25/08/2010). Percebe-se que é bastante comum, os Djs terem como referências, ou “se inspirarem” nos trabalhos de outros artistas e/ou grupos para as suas produções. O Dj Gustavo Bongiolo afirma que “se inspira” muito em trabalhos de Djs brasileiros além do Mau Mau, na parte técnica, também no estilo de música de outros como o Fabrício Peçanha, Renato Cohen (Bongiolo, 25/08/2010). Da mesma maneira, o Dj Faraz afirma que para as suas produções se inspira, tanto em grupos de música eletrônica como o trio “Laurent Garnier” e a banda Jamiroquai como em muitos artistas de outros gêneros. É importante destacar, no entanto, que embora seja comum tomarem como referência “a técnica” ou mesmo “o estilo de música” de outros Djs, o resultado de suas produções nunca será idêntico ao do outro e nem mesmo é essa a intenção. O Dj Faraz ainda afirma que costuma misturar muita música brasileira também, como explica: [...] eu gosto muito de música brasileira, inclusive eu também sou Dj de música brasileira, de bossa nova de acid Jazz, de Jazz Step. É, eu gosto muito da coisa brasileira, é uma coisa que eu sinto falta da música eletrônica é essa coisa da pessoa se desligar muito do que é nosso, né?...do brasileiro, dos rítmos brasileiros. E o Brasil é um país muito rico. E alguns estilos eles se encaixam muito bem na música eletrônica, principalmente no drum’n’ bass e no tecno, né?...o maracatu eu acho que fica bem bacana no tecno, o samba fica bacana no tecno a bossa nova se encaixa bem no drum’n’ bass. O rasqueado, eu já quebrei muito a cabeça tentando fazer música com rasqueado mas não consegui fazer nada que não fosse cantado, mas, o rítmo as batidas elas são muito quebradas e eu não consegui encaixar ainda (Faraz, 27/08/2010). Em algumas das músicas do Dj Faraz, a que se teve acesso durante a pesquisa se pode notar esta preocupação em misturar elementos de música brasileira com a eletrônica. Na 94 95 música “Ponteio”, por exemplo, Faraz mixa uma melodia nordestina do compositor Antonio de Nóbrega, a qual é retrabalha ganhando aspectos “percussivos”, dentro de um rítmo eletrônico. Em outra produção, “Uma Coisa Doida”, se pode notar outras influências como uma sonoridade parecida com a da banda dos anos 80 “Depeche Mode” em que apresenta uma melodia cantada com a voz distorcida. Estas fusões entre elementos musicais distintos, de cultura local ou nacionais com outros da cultura global, remetem ao processo que Canclini (2008) chama de hibridismo. Para Canclini, ainda que a hibridação muitas vezes ocorra de modo não planejado ou como resultado imprevisto de processos migratórios, turísticos ou de intercâmbio comunicacional, frequentemente, ela surge da criatividade individual ou coletiva. E isso não só campo artístico, mas também na esfera da vida cotidiana como no desenvolvimento tecnológico (CANCLINI, 2008). Partindo disso, entende-se que o hibridismo realizado pelos Djs, seja na mixagem, na produção de um set para divulgação ou em músicas próprias, faz parte de estratégias de produção, uma assinatura. Isso fica claro na fala do Dj Gustavo Bongiolo, quando afirma que o seu diferencial é o repertório, no qual procura estar misturando tudo o que gosta de ouvir, resultando, assim, em um “set bem eclético” (Bongiolo, 03/02/2011). Já o Dj Faraz afirma que busca se diferenciar também incluindo a voz cantada em suas produções (Faraz, 11/01/2011). Como artistas ou músicos do ready made, os Djs precisam trabalhar com uma reserva de informações que ocupa ao mesmo tempo “lugar de canal e memória comum” (LÉVY, 1999, p. 150. Grifo do autor). Dito de outra maneira, as informações estão à disposição de todos, e a todo momento são apropriadas, retrabalhadas e reinseridas na reserva informacional. Nesse contexto, cada vez mais, o que importa é a forma criativa e peculiar como tais informações, no caso aqui musicais, são reelaboradas ou re-interpertadas. Esse fato parece se tornar uma constante, especialmente, na atuação dos Djs, persistindo, com isso, o pensamento de que o hibridismo no trabalho dos Djs, cada um a seu modo, aponta para a forma de produzir sua singularidade. 4. 5 Sobre As Observações do trabalho dos Djs No decorrer das observações foi possível conhecer o universo de atuação dos participantes, bem como sua prática musical utilizando os recursos das tecnologias. Pode ser verificado como os Djs buscam interagir com público, precisando estar em plena sintonía com 95 96 a atmosfera do ambiente. Nas ocasiões em que se observou o Dj Faraz se apresentando foi observado, por exemplo, que enquanto tocava o Dj, sorria, dançava ou cumprimentava conhecidos que se aproximavam dele ou, as vezes, retribuía os sorrisos e acenos dos dançarinos que o observavam e cumprimentavam de longe. Percebeu-se com isso que o Dj, ainda que estivesse envolvido no seu fazer musical, se preocupava em “recepcionar” o público que adentrava o espaço da pista de dança. Assim, pode-se constatar a relação de “proximidade” entre o Dj e o público mencionado pelo Dj Faraz durante as entrevistas. Ressalta-se que essa proximidade é propiciada também, em parte, pelo próprio espaço que por possuir uma espécie de “tablado” ou “degraus” atrás e ao lado da cabine do Dj permite que “os dançarinos” possam se aproximar ao máximo dele, sendo possível observá-lo e fotografá-lo manipulando os seus instrumentos. Esse design do espaço parece pretender demonstrar que o Dj está mesmo mais ao alcance das pessoas, ao contrário do que se vê, por exemplo, em shows de artistas de outros gêneros que são instalados em palcos, mais distantes da platéia. Na ocasião em que o Dj Gustavo Bongiolo se apresentou também notou-se que o mesmo interagia com os dançarinos, contudo, sem pretender comparar ou julgar a performance dos dois participantes da pesquisa, percebeu-se uma diferença de “perfil” de cada Dj, ou seja, notou-se que sem utilizar tantos “gestos corporais” para se “comunicar” com a platéia, durante a sua apresentação esse último Dj transpareceu se preocupar bastante com a sua perfomance na técnica, quer dizer, com a manipulação dos equipamentos e mixagem do seu repertório. É importante ressaltar que não se trata aqui de uma crítica em relação à sua atuação, apenas que parecer haver uma maior “formalidade”, que, no entanto, não o impede ou impossibilite de captar a atmosfera da pista e realizar o seu trabalho como Dj. Dessa forma, entende-se que há nesse ambiente um tipo de “comunicação” entre o dj e os dançarinos criada pela participação na música (comunicação musical) e pelo “estar-junto” e compartilhamento de sensações e emoções o que Maffesoli (1995) chama de comunicação tátil. Pode-se perceber ainda que mesmo que os dançarinos exerçam uma certa “influência” na atividade de mixagem estes são afetados sensitivamente pela seleção musical e performance, como mostra um trecho transcrito do caderno de campo: Cerca de um tempo depois a pista já estava “fervendo”, o Dj realizava as suas “viradas” e efeitos e as luzes se ascendiam ficando coloridas em perfeita sincronia com a música. O público dançava muito animadamente ao rítmo da trilha sonora e, em certos momentos, se manifestavam através de “uhuuuus”. A animação do público em sintonia com a performance do Dj era algo muito interessante e contagiante (Caderno de Campo, 27/09/2010). 96 97 Quanto ao público que frequentava o Club Garage nas ocasiões observadas, pode-se afirmar em sua maioria era constituído por pessoas com faixa etária que varia entre 18 a 30 anos, embora houvesse alguns que ultrapassavam essa faixa, pois, como destacam os Djs a faixa do público que ouve música eletrônica em Cuiabá pode chegar até mais ou menos os 35 anos. Cabe acrescentar que ainda que se trate de um lugar de dança e lazer, nesse ambiente há um certa “formalidade” já que regras são estabelecidas e comportamentos são adotados e até mesmo esperado pelos participantes do ambiente. Como exemplo disso, notou-se que no espaço da pista de dança ou em seu entorno não é muito bem visto por quem frequenta o ambiente ficar parado observando ou apenas conversando, essa atitude é “estranha e curiosa” para os “nativos” da cena e mesmo pelos seguranças do lugar. Isso foi notado no decorrer das observações quando se aproximava da pista para fazer os registros fotográficos, quando isso acontecia sempre havia “burburinhos”, “cochichos” ou mesmo algumas “olhadelas” entre os grupos de pessoas que dançavam no espaço. No processo de observação destaca-se a dificuldade em conseguir permanecer no lugar até o final das festas, o que não foi possível embora a animação do público e apresentações dos Djs fossem contagiantes. Contudo, ainda que estas tenham representado um desafio físico para esta pesquisadora elas se constituíram em um experiência musical motivadora. 97 98 CONSIDERAÇÕES FINAIS No presente estudo buscou-se delinear as discussões e reflexões em torno do processo de produção e circulação musical, focando especialmente em como os Djs se apropriam das tecnologias, para realizar as suas atividades. Assim, foram abordados aspectos da formação, experiência e o fazer musical dos Djs, verificando como eles iniciaram a formação, os conhecimentos necessários, materiais e técnicas empregadas no fazer musical e como é realizado o seu processo de criação e divulgação ao público. Porém, antes, de adentrar essa discussão mais focada no trabalho dos participantes da pesquisa, foi examinado que o desenvolvimento tecnológico sempre manteve íntima relação com as mudanças sociais e culturais, e observando, principalmente, a atividade musical apontou-se que, tanto o processo de criação, de circulação bem como, o consumo de música foram sendo reconfigurados, ao longo de todo o século XX, com o advento dos equipamentos e recursos da gravação até o nascimento das tecnologias digitais e a internet. Partindo disso, buscou-se apontar que nem os meios de comunicação designados de massa, nem as tecnologias determinam os rumos sociais e culturais, sem que, remetendo ao pensamento de Lévy (1999), haja um “desejo coletivo” por certas transformações. Dessa forma, os meios ou as tecnologias não impõem, apenas abrem possibilidades para novas explorações e criações por parte dos indivíduos. Nesse percurso histórico, discutiu-se como novas estéticas musicais surgiram a partir da exploração e utilização por indivíduos de determinados recursos tecnológicos como instrumentos eletrônicos, sintetizadores até o computador, nesse caso, o foco consistiu na música eletrônica de pista. Partindo disso, mostrou-se como esse gênero musical foi sendo desenvolvido e deu origem à uma cultura nova cultura jovem, na qual o Dj se tornou a figura central, atuando em toda a cadeia produtiva da música, ou seja, da produção à distribuição. Ao entrar no universo da música eletrônica em busca de compreender o trabalho dos Djs, foi possível perceber a complexidade do seu fazer musical, no qual deve se levar em consideração inúmeros elementos musicais e, pode-se dizer extra-musicais. Assim, foi verificado que além da mixagem e a produção, sendo estas suas atividades “básicas”, outras práticas complementares mas, essenciais como a da pesquisa fazem parte do seu cotidiano. Nesse contexto, em que assume diversas funções, foi evidenciado que os Djs precisam possuir também conhecimentos ou competências que vão muito além de manusear os equipamentos, a exemplo, da percepção musical, habilidade tida como essencial tanto no processo de criação e mixagem quanto na pesquisa. Sobretudo, percebeu-se que há uma renovação ou atualização 98 99 do conhecimento que foi explicitado, por exemplo, quando os Djs afirmaram durante as entrevistas que devem estar sempre atentos ao cenário em que atuam, já que sempre surgem novos programas de produção que podem facilitar o seu trabalho, bem como novos estilos e tendências musicais. Na discussão discutiu-se ainda que não há um consenso sobre a figura do Dj entre os diversos autores (SÁ, 2003; ARANGO, 2005; POURTAU, 2001; RODRIGUES, 2005) que já realizaram estudos a respeito da música eletrônica. Contudo, nessa pesquisa considerou-se mais pertinente entender o Dj como um músico do ready made, ou seja, aquele que trabalha com informações musicais pré-existentes, reelaborando, re-interpretando, reciclando para inseri-las novamente na reserva de informações. Partindo disso, entende-se que a música elaborada pelos Djs constitue-se mais um processo, ou uma “obra-acontecimento” (LÉVY, 1999), na qual o Dj participa e entra em sintonía com o público presente. Nesse contexto, usando um termo de Canclini (2008), em que o músico se “converte” em Discjockey, algumas noções como a de autor e de criação são repensadas. Quanto a essa relação entre os Djs e o público, foi evidenciado que há uma certa “interferência” deste último, ou maior participação na atividade da discotecagem, pois, nesse momento, o Dj faz suas escolhas musicais em virtude do local e da “vibe” captada na pista. Contudo, é preciso ter em conta que há um limite de tal interferência, uma vez que mesmo que os Djs busquem agradar aos ouvintes-dançarinos, há ao mesmo tempo uma preocupação em imprimir nessa prática sua assinatura. Dessa forma, eles buscam explorar e misturar os diversos estilos da música eletrônica, satisfazendo também ao próprio gosto e criando uma estética particular. Assim, entende-se que esse hibridismo presente tanto nas mixagens como na criação da própria música, como no caso do Dj Faraz, é o meio pelo qual os Djs produzem tal assinatura. Assim sendo, embora eles utilizem amostras de sons, ou samplings retirados de um banco de dados sonoro que é compartilhado por muitos outros indivíduos, as suas criações serão sempre exclusivas ou originais pela forma como apropriam, manipulam, exploram o material sonoro. No que concerne ao uso das tecnologias verificou-se que elas estão presentes em todas as esferas do trabalho do Dj, sendo suas ferramentas, ou instrumentos essenciais de criação, de atualização e pesquisa (sonoras ou de público) e de divulgação. Os Djs apontaram em suas declarações haver uma relação entre a apropriação, a experimentação e adaptação das tecnologias no seu fazer musical. Foi também evidenciado que as tecnologias trouxeram maior facilidade, possibilitando que a distância dos grandes centros não fosse mais um empecilho à compra de material e músicas, permitindo também maiores contatos 99 100 profissionais. Além disso, os recursos como o computador e softwares trouxeram flexibilidade para a prática da mixagem, no sentido em que se tornou possível escolher o material (ou materiais) que se deseja manipular , seja este o disco, CD ou musica digital. Dessa forma, elas não apenas reconfiguraram antigas práticas, como vêm contribuindo para o rompimento de certos “pré-conceitos”, como aquele de considerar o uso do CD como sinônimo de pouca habilidade técnica do Dj. A internet ou ciberespaço, desempenha um papel central como meio de comunicação e agenciamento da carreira dos mesmos. No entanto, ainda que as tecnologias estejam muito presentes nesse contexto, elas não suprimem certas competências necessárias para se atuar como Dj. Assim, tanto as reflexões suscitadas demonstram como propõem que nos afastemos de certas visões equivocadas que tendem a considerar música realizada por meios tecnológicos como desprovida de sensibilidade e originalidade. Assim, apesar de todas as facilidades e possibilidades ressaltadas, é preciso ter em conta que as tecnologias devem ser vistas como aliadas dos Djs no processo de criação e como tal não substituíram as habilidades humanas, sobretudo, na atividade musical que continua dependendo da sensibilidade e da criatividade. A pesquisa revelou uma experiência impar de aprendizado, uma vez que possibilitou suscitar uma reflexão sobre antigos conceitos ou “pré-conceitos” que, muitas vezes, pairam em torno da prática musical do Dj. A pergunta que permeou o título dessa dissertação: “Além de tocar o que você faz?”, embora possa parecer ingênua, de certo modo, expressou a falta de entendimento, ou mesmo esse preconceito de que a profissão do Dj, como de todo o músico, é mais um tipo de “lazer”, ou um “trabalho fácil”, que se resume ao manipular algum instrumento musical ou uma tecnologia. Ao contrário, ao entrar nesse universo novo, pode-se perceber a complexidade de saberes e habilidades necessárias à estes profissionais. Abre-se um parêntese aqui para exemplificar com o próprio caso desta pesquisadora, que mesmo sendo musicista e trabalhando como educadora musical não tinha ideia de tal complexidade, uma vez que havendo frequentado poucas vezes clubes em noites de flachback, a visão se tinha da atividade da mixagem era equivocada. Entendia-se que o papel que o Dj desempenhava era mesmo aquela de “selecionador” ou “passador” de discos, o qual seguia um repertório (padrão) consagrado da música, inserindo apenas alguns “efeitos” utilizando as tecnologias. Este pensamento começou a apresentar mudanças quando houve a oportunidade de assistir a palestra do Dj Faraz e, então, buscar conhecer o seu trabalho. A partir disso, surgiu um interesse em redirecionar a presente pesquisa para os processos de produção e circulação musical com foco na atuação dos Djs, acreditando que esse objeto de estudo também se aproximava mais da área de interesse. 100 101 Não foi um percurso fácil, mas, foi mais instigante e enriquecedor, uma vez que adentrar ao campo, e juntamente com a pesquisa bibliográfica caminhar e traçar caminhos metodológicos possibilitaram a elucidação das questões levantadas sobre a temática. Os Djs na produção musical contemporânea bem como na circulação dessa música, a qual se configura como repertório presente na cibercultura, pode-se dizer que são os novos criadores ou artistas que ampliam a experiência musical, sobretudo, dos jovens na contemporaneidade. Portanto, acredita-se que nessa realidade seja importante buscar ampliar e suscitar reflexões dentro do ambiente acadêmico que considerem estas práticas musicais não como fenômenos massivos e passageiros ou como manifestações empobrecidas de sentido, uma vez que se inserem em um dado contexto cultural e social, estas práticas refletem as novas maneiras com que os indivíduos vivenciam, produzem, criam ou recriam a música e o seu cotidiano diante das transformações tecnologias. Dessa forma, julga-se importante estabelecer um maior diálogo entre a academia e estas novas práticas que podem dar sua parcela de contribuição ajudando a repensar antigos conceitos de criação, de autoria, do que vem a ser culto ou massivo na atualidade, e da ideia do fazer musical que ainda é muito atrelado ao fazer musical “erudito” ou seja, a música de concerto. 101 102 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Luciano. Fazendo Música no Computador. 2º Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. ARALDI, Juciane. 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O que te motivou a querer ser DJ? Como você começou a carreira de DJ? O que é importante para aprender a ser DJ? Como você busca aperfeiçoar sua técnica? Faz cursos específicos? 3. Experiência como DJ 1. Qual a sua experiência como DJ? 2. Você tem outras atividades paralelas? 3. Qual o estilo musical que adotou para o seu trabalho? O que influenciou para a escolha desse estilo? 4. Qual o perfil de público para o qual você costuma se apresentar? 5. Há troca de “figurinhas”/experiência com outros DJs? 6. Em que espaços o DJ atua em Cuiabá? 7. Como está o mercado/cena de música eletrônica em Cuiabá? 8. Como divulga o seu trabalho ao público? 4. Fazer musical do DJ 1. Quais conhecimentos técnicos/tecnológicos são necessários para a produção musical? 2. Que técnicas e materiais utiliza em seu trabalho? 3. Trabalha com vinil ou Cd? Ou com música abaixada direto no computador? Qual é a diferença no trabalho com cada um desses procedimentos? 4. Você tem preferência pelo estilo underground ou mainstream? Porquê? 5. Você se inspira em algum ídolo na produção musical do seu trabalho? 6. Como seleciona o repertório a ser utilizado nas suas produções? 7. Como acontece o processo de produção musical no seu trabalho? 108