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Responsabilidade médica
– A informação a prestar ao paciente e o seu consentimento
informado
Por Daniel Torres Gonçalves*
Usualmente, quando se pensa na responsabilização do médico, tem-se em mente a imperícia e
desmazelo do cirurgião ou um diagnóstico deficientemente realizado. Tende-se a associar essa responsabilização com a denominada “negligência médica”.
Porém, de forma diversa, poderá vir um médico a ser
responsabilizado, mesmo depois de cumprir todos
os requisitos técnicos e até de ter curado o paciente.
Está em questão o consentimento informado. O bem
jurídico fundamental que o consentimento informado
visa proteger é a liberdade. Isto é, o consentimento
informado surge como um via para proteger a liberdade do indivíduo, nomeadamente no que toca à
autodeterminação quanto ao próprio corpo.
A posição do paciente e do médico
Antes de uma intervenção na esfera do corpo do
paciente, este deverá conformar-se com ela, tendo a
faculdade de a recusar. Contudo, para tal, mostrase necessário que o paciente tenha a informação
necessária a uma consciente e capacitada decisão.
Não podemos esquecer a posição relativa do paciente
neste contexto. Em primeiro lugar, ele é um leigo.
O paciente não é, em princípio, formado em Medicina, e desconhece os termos técnicos utilizados
pelos médicos. Além disto, ele nunca perceberá em
toda a extensão a sua condição física, bem como as
consequências de uma qualquer intervenção clínica.
Poderá ficar com uma noção, mais ou menos aproximada, mas nunca na mesma medida do médico. Em
segundo lugar, o paciente é uma parte no processo.
Isto é, não podemos descurar o facto de ser impossível dissociar a condição de paciente da condição de
decisor. A própria condição física poderá ter impacto
no discernimento do paciente no momento de decidir,
que pode ser incapaz de decidir de forma objectiva.
Por tudo isto, neste contexto surge, com um indelével relevo, o médico. A este cabe esclarecer e ajudar
o paciente na sua decisão. Como esclarece João Vaz
Rodrigues, é exigível ao médico “um novo papel: o
de facultar ao paciente os elementos imprescindíveis
para que este conheça e compreenda, no essencial,
os dados do problema e possa, assim, exercer, conscienciosamente, o seu poder de decisão”1.
O conceito e a lei
Vida Judiciária Outubro/2009
Para chegarmos a uma definição do conceito de
consentimento informado podemos abrir mão da lei.
O artigo 5º da Convenção sobre os Direitos do Homem
e a Biomedicina2, ratificada em 2000 por Portugal,
estabelece que “Qualquer intervenção no domínio da
saúde só pode ser efectuada após ter sido prestado
pela pessoa em causa o seu consentimento livre e
esclarecido. Esta pessoa deve receber previamente a
informação adequada quanto ao objectivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências
e riscos”. Por seu turno, o Código Penal, no artigo
157º, estabelece que o consentimento dado por um
paciente só será eficaz quando “o paciente tiver sido
devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências
da intervenção ou do tratamento”.
Também o Código Deontológico da Ordem dos
Médicos3 não descura esta temática. Desde logo o artigo 40º estabelece o princípio da “Livre escolha pelo
doente” do médico. O artigo 44º dispõe que o “doente
tem o direito a receber e o médico o dever de prestar
o esclarecimento sobre o diagnóstico, a terapêutica
e o prognóstico da sua doença”. No artigo seguinte
estabelece-se que o consentimento só será válido se o
doente “tiver capacidade de decidir livremente”. Das
disposições consideradas, facilmente se conclui que
não basta haver consentimento. Não basta, sequer,
que o consentimento seja informado. Para ser válido
o consentimento terá de ser informado, esclarecido e
compreendido e tem de ser prestado de forma livre.
Mas a sua delimitação não fica por aqui. A informação prestada ao paciente deve versar sobre o diagnóstico da sua condição, assim como sobre o objectivo
e natureza da intervenção que se pretende realizar.
Por outro lado, o paciente também deve ser informado das possíveis consequências da intervenção, tal
como dos riscos que corre ao não a realizar. Também,
os encargos económicos que a intervenção acarreta
e as alternativas de tratamento deverão fazer parte
do esclarecimento a prestar ao paciente.
O respeito pelo paciente, e pela sua autonomia privada, faz parte da conduta exigível ao médico. Atentando à definição de “leges artis” podemos concluir
que o respeito pelo consentimento informado cabe
dentro dessa definição. Parece claro que um médico
medianamente competente, prudente e sensato irá
informar e obter o consentimento do paciente antes
de uma intervenção clínica.
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O consentimento informado no Direito Civil
A integração da falta de consentimento na responsabilidade civil por factos ilícitos não é difícil de
concretizar. Podemos, até, concluir que ela poderá
acontecer de duas formas distintas. Desde logo, o
médico que intervenha sem consentimento do paciente estará a violar um direito de outrem – por
exemplo, o direito à integridade física. Contudo, a
ilicitude desta conduta será afastada pelo consentimento do lesado, se existir, como estatui o art.340º
do Código Civil.
Por outro lado, a conduta do médico será susceptível de responsabilização também pela violação
de disposições legais. Desde logo, o médico está
obrigado a informar e obter o consentimento esclarecido do paciente pelo seu Código Deontológico,
como vimos.
Assim, perante o direito civil o consentimento informado acaba por se incluir na conduta geral profissional exigível ao médico. No fundo, isto significa que
o respeito pelo consentimento do paciente se integra
nas leges artis da Medicina. Como refere Guilherme
de Oliveira, o consentimento informado constitui-se
como “aspecto de boa prática clínica; isto é, tratar
bem não é apenas actuar segundo as regras técnicas
da profissão mas também considerar o doente como
um centro de decisão respeitável”4.
O consentimento informado no Direito Penal
A coincidência do consentimento com as “leges
artis” não acontece sempre. No Direito Penal os dois
conceitos têm impacto diferenciado para a criminalização do agente médico. A intervenção médica, mesmo que viole a integridade física ou a vida do paciente, se tiver respeitado as “leges artis”, juntamente
com outros pressupostos, nunca se chega a constituir
como um acto típico, crime de ofensa à integridade
física ou homicídio – o artigo 150º do Código Penal
afasta a tipicidade da conduta do médico. Contudo,
neste conceito de “leges artis” não podemos integrar o
consentimento. Pois, se o médico respeitar as leis da
arte médica mas não tiver obtido o consentimento do
paciente, ele responderá pelo crime previsto no artigo
156º do Código Penal, “Intervenções e tratamentos
médico-cirúrgicos arbitrários”.
Para a verificação do acto típico punível pelo
artigo 156º terá que se cumular a aplicabilidade
do artigo 150º com a ausência de consentimento,
ou seja: cumprimento das “leges artis” sem que se
verifique o consentimento do paciente. O legislador
penal entendeu, então, diferenciar o consentimento
das “leges artis”. Estas relevam para o artigo 150º,
enquanto o consentimento interessa ao disposto no
artigo 156º. Neste sentido, André Dias Pereira5 acaba por distinguir as “leges artis em sentido estrito”
referente ao conceito do artigo 150º, das “leges artis
em sentido amplo” que coincidirão com o conceito
aplicável no contexto do Direito Civil.
Dever de informar
Ao médico, como vimos, cabe um dever de informar
o paciente informação esta que terá de anteceder o
consentimento dado por aquele.
No cumprimento do dever de informar, a informação deverá ser:
- simples, devendo ser utilizadas “expressões
acessíveis ao comum dos leigos”6;
- suficiente – segundo João Vaz Rodrigues7, a
informação deverá ser: pontual, progressiva
(“crescente troca de dados”), oportuna, neutral (“salvaguardando liberdade de decisão do
paciente”).
- esclarecida – o paciente terá de compreender
o sentido e alcance das informações, e deverá
perceber as consequências da sua decisão, bem
como as alternativas que existam.
O requisito da suficiência merece uma maior
concretização. Para a determinação, em cada caso,
da quantidade de informação a prestar ao paciente,
deverá ser tido em conta um conjunto vasto de circunstâncias – desde o nível cultural do paciente até
à complexidade da questão médica. Para definirmos
quais os elementos que devem constar da informação a
prestar, podemos abrir mão de diferentes conceitos.
Afastando o padrão médico, bem como o padrão
do doente médio, deveremos atentar ao padrão subjectivo do doente. Segundo este padrão, a suficiência
da informação determina-se consoante o paciente
em concreto. Assim, há informações que poderão ser
irrelevantes para o paciente em abstracto, mas que
para aquele em particular assumem importância
vital – por exemplo, informações quanto a possíveis
consequências para a voz de uma cantora, ou para
as mãos de um pianista. Com isto, o médico não fica
onerado com a obrigação de investigar o concreto contexto do paciente. Antes, ele deverá ter em atenção as
vicissitudes que conheça, devendo procurar descobrir
as informações que seja expectável conhecer.
*advogado
Gabinete de Advogados
António Vilar & Associados
[email protected]
www.antoniovilar.pt
1 J. Vaz Rodrigues, O Consentimento Informado para o acto médico no ordenamento jurídico português – (elementos para o estudo da manifestação da
vontade do paciente) (Coimbra Editora, 2001), p.17
2 Convenção para a protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser
Humano face à aplicação da Biologia e da Medicina: Convenção sobre os
Direitos do Homem e a Biomedicina publicada pela Resolução da Assembleia
da República nº1/2001, de 3 de Janeiro.
3 Publicado pelo Regulamento nº 14/2009, de 13 de Janeiro de 2009.
4 G Oliveira, Temas de Direito da Medicina (Coimbra Editora, 1999), p.99.
5 A. G. Dias Pereira, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente
– Estudo de Direito Civil (Coimbra Editora, 2004), pp.70-71.
6 Ver nota 1, pp.241-242.
7 Id.
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Vida Judiciária Outubro/2009
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