Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Cidades, Campos e Territórios (Breve) aproximação ao processo de metropolização de Lisboa a partir da história de um edifício de habitação situado na sua periferia (Reboleira, 1972-2002) João Pedro Silva Nunes* Histórias de edifícios, histórias da metrópole As histórias de edifícios de habitação e as histórias dos seus habitantes constituem uma via para perspectivar a interacção entre as dinâmicas do povoamento urbano e as estruturas habitacionais. Em contexto metropolitano, tais estruturas são caracterizadas por um forte grau de heterogeneidade. Porque as metrópoles e os seus habitantes herdam um parque habitacional morfológico e valorativamente diferenciado e diferenciador. Mas também porque uma pluralidade de iniciativas construtivas e de tipos de edificado vai construindo e reconstruindo o parque habitacional – e assim produzindo e reproduzindo diferenças tanto habitacionais como sociais. Já a um outro nível, o parque habitacional vai sendo modelado pelo efeito das trajectórias sociais dos habitantes e em função do que esses itinerários devem à socialização, à acumulação e ao dispêndio de recursos (Pinçon e Pinçon-Charlot, 2001). Segundo Yves Grafmeyer (1995: 61), o cruzamento entre histórias de edifícios e histórias de habitantes é frequentemente condicionado por dados singulares e por microacontecimentos locais, em boa parte aleatórios. Todavia, sublinha o autor: «Comme dans les approches qui se déploient à une échelle plus fine, il s’agit bien de saisir, mais à un autre niveau d’analyse, l’interdépendance entre ces deux lignes de forces des dynamiques urbaines (les histoires de logement et les histoires d’habitants)» (Grafmeyer, 1995: 66). Os grandes conjuntos habitacionais Nos anos sessenta, na periferia das metrópoles europeias, uma importante gama de processos de territorialização de habitação foi protagonizada por agentes promotores implicados na actividade de produção de grandes conjuntos habitacionais, compostos por grandes imóveis, agrupados, apresentando um elevado número de alojamentos e de ocupantes (Clerc, 1967; Ledrut, 1968; Chamboredon e Lemaire, 1970). Este tipo de habitat, comummente designado na tradição sociológica francesa por grand ensemble, distingue-se pelo carácter massivo da construção (Lacoste, 1992 [1963]). O grande conjunto habitacional obedece, regra geral, a um plano de ordenação que organiza a massa a edificar, na esteira do plan-masse de Le Corbusier; já enquanto objecto habitacional e urbanístico destina-se a uma quantidade de habitantes (massa) muito considerável. Para Michel Bassand «o grand ensemble é uma primeira materialização da metrópole», porque «a forte concentração que a metrópole exige supõe uma edificação massiva de habitação que por seu turno irá incidir sobre o modo de habitar» (1997: 42, tradução minha). Em Lisboa, e em especial nos seus concelhos limítrofes, os grandes conjuntos habitacionais desempenharam um papel estruturante no crescimento urbano das décadas de sessenta e setenta. Empresas como a ICESA (Santo António dos Cavaleiros), a URBANCO (Carnaxide) a SIURRBE (Alferragide), a EUT J. Pimenta (Amadora, Cascais, Paço de Arcos), a EMACO, a Torralta ou a Grão-Pará encontravam-se à época implicadas quer na edificação quer na promoção deste tipo de objecto habitacional e urbanístico. Se o processo de metropolização de Lisboa constituía então um contexto de oportunidade imobiliária não deixava no entanto gerar condições muitas vezes urbanísticas e territorialmente precárias. Com efeito, como os autores de Lisboa, a Metrópole e o Rio * Doutorando em Sociologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. 68 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Cidades, Campos e Territórios sublinham: «o crescimento migratório (da Metrópole de Lisboa) exponencial, nos anos 60 e 70, praticamente sem infra-estruturas, nem equipamentos, haveria de criar uma progressiva degradação urbanística naquele território» (V.M. Ferreira et al., 1997: 110). Foi neste contexto socio-territorial que começou a ser edificado o grande conjunto habitacional de que veio a fazer parte o edifício em análise. Um edifício de habitação na periferia de Lisboa: O Lote A A primeira menção oficial ao edifício objecto desta análise encontra-se no Plano de Urbanização da Reboleira – datado de 1966 e aprovado em 1968 – um instrumento de ordenação urbanística e habitacional, de origem privada, associado a uma operação de loteamento requerida à Câmara Municipal de Oeiras pelos proprietários dos terrenos. Tal plano previa a edificação de torres de habitação ao longo de uma encosta, a partir de um esquema de arranjo do solo em socalcos, ajardinados e dotados de espaço para estacionamento. Na cota mais baixa do terreno, e adjacente à linha de Sintra, situar-se-ia um apeadeiro de caminho de ferro. A programação de equipamentos compreendia escola, cine-teatro, supermercado e centrocomercial, bem como uma reserva de espaços para comércios.1 Tudo isto era referido a um território com cerca de noventa hectares para o qual se previa uma densidade de ocupação de aproximadamente 150 habitantes por hectare.2 Em frente ao apeadeiro foi edificado o Lote A. Tem 14 pisos e é composto por cave, résdo-chão e 12 andares – estrutura ao longo da qual se distribuem 174 apartamentos. Através de um esquema em cruz, com a caixa de elevadores e as escadas ao centro, os apartamentos dispõem-se ao longo de quatro extensos corredores e apresentam apenas duas tipologias: T0 (casa de banho, sala-quarto e kitchenette) e T1 (casa de banho, sala, quarto, e kitchenette) – oferecendo ambas áreas reduzidas. O edifício começou a ser ocupado em Novembro de 1972.3 A empresa construtora, os proprietários dos apartamentos e os habitantes As determinações iniciais da história do edifício que acima se apresentou encontram-se na acção de uma empresa de promoção e construção de habitação.4 À época, essa empresa era parte integrante de um grupo económico que articulava uma pluralidade de negócios: de um lado, a construção civil e os estudos de urbanização; de outro, a construção, a venda em propriedade horizontal de apartamentos mobilados e sua administração. Porque o grupo detinha também empresas de fabrico de mobiliário e de louças sanitárias, de venda de electrodomésticos e de artigos para casa economias de escala horizontais eram obtidas. 5 A venda de apartamentos era objecto de forte investimento publicitário que se traduzia em anúncios quer nos jornais quer na televisão. Aos interessados era sugerido deslocarem-se aos locais de construção ou aos escritórios da empresa: um em Queluz, outro, com um endereço mais prestigiante, na Praça Marquês de Pombal, em Lisboa.6 1 Processo de Loteamento OCP 659/66, 8 Volumes, Câmara Municipal da Amadora, Arquivo da Sala de Desenho. 2 A comparação entre o plano de urbanização e a representação cartográfica da freguesia da Reboleira revela divergências (habituais, de resto) entre o planeado e o executado. O grande conjunto imobiliário no qual este lote se integra caracteriza-se por uma elevada densidade de alojamentos. Uma aproximação à escala desta operação urbanística pode ser obtida através dos resultados dos Recenseamentos Gerais da População. De acordo com o Censo de 1981, a população residente na Reboleira cifrava-se em 16 360 indivíduos e a do concelho da Amadora em 163 878 indivíduos. 3 Processo de Obra n.º 278/70, vol. III. Câmara Municipal da Amadora, Arquivo da Sala de Desenho 4 O caso que se apresenta e discute nesta comunicação integra uma investigação em curso, motivo pelo qual não são apresentados atributos utilizados pela estrutura empresarial na sua apresentação. 5 Cf. Anónimo, «(...) Uma empresa de nível internacional que prestigia o país», Indústria da Construção, n.º 9, Março de 1972, pp. 61-3. 6 Relativamente ao mês de Novembro de 1972, os anúncios publicados no Diário de Noticias referiam como locais de construção na área metropolitana de Lisboa: Alapraia (Estoril), Amadora-Centro, Cascais, 69 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Cidades, Campos e Territórios Destinava-se este negócio a pequenos aforradores – geralmente distantes geograficamente dos locais de construção – e a empresa apresentava-o como um atractivo esquema de compra de propriedade urbana. Na aquisição de um ou mais apartamentos em propriedade horizontal, ao comprador era proposto um contrato no qual eram delegadas na empresa as tarefas de administração de um eventual arrendamento desses apartamentos. Simultaneamente, os apartamentos eram colocados no mercado de arrendamento. Ao arrendar um apartamento através desta empresa, o inquilino dispunha de um apartamento mobilado, beneficiando igualmente um conjunto de serviços compreendendo a limpeza das partes comuns, a recolha de lixo e a manutenção dos dispositivos técnicos – elevadores, iluminação, intercomunicadores e campainhas. As rendas eram pagas em escritórios locais, instalados em fracções que a empresa reservava para esse efeito. Qual então a distribuição de vantagens relativas decorrente deste negócio? Para o promotor-construtor um importante ganho de liquidez seria obtido, permitindo-lhe uma fonte de financiamento regular e um equilíbrio de contas correntes. Os proprietários obtinham a remuneração de um investimento com a vantagem os custos de administração (em tempo e em oportunidade) estarem a cargo da empresa. Por se tratar de um apartamento mobilado e equipado, os arrendatários viam a despesas de instalação reduzidas – um atractivo importante para um dos grupos destinatários destas habitações, os jovens casais de origem popular. Entre a empresa, os proprietários e os arrendatários a distribuição de capital económico seria favorável à empresa que ademais dispunha de uma organização especializada na construção de edifícios e na gestão de propriedades. Em termos ideais-típicos, e na perspectiva dos proprietários, a empresa administrava a propriedade, recebia as rendas e prestava aos residentes serviços de proximidade. Do valor cobrado em renda, uma parte revertia a favor da empresa (relativa, por exemplo, aos custos de administração, de manutenção ou à margem da operação), outra era enviada aos proprietários dos apartamentos arrendados.7 Dadas as posições e o esquema de fluxos torna-se compreensível que a administração do condomínio fosse atribuída à empresa. Nostalgicamente, o Sr. F., um dos quatro residentes actuais do Lote que viveram os momentos de instalação pioneira na ordem habitacional que se analisou, no final de uma conversa mantida com o observador, recorda-os: «Era um conforto! nunca vivemos tão confortavelmente como naquela altura». Reconhecendo-se que a nostalgia é uma figura de apropriação, e que entre os habitantes pioneiros decorre de um sentido entre a sua biografia de habitantes, a sua carreira habitacional e a história do imóvel, a qualificação e a evocação do conforto experimentado não deixam de sugerir um oposto, entrevendo-se assim um processo não confortável de experiência do habitat. «Quem exige o cumprimento da lei» Nos anos que se seguiram à Revolução de Abril, as comissões de moradores foram particularmente activas no concelho de Oeiras e nos bairros da freguesia da Amadora (Zibaia, 2000). Alguns habitantes do Lote A haviam, por exemplo, participado nas lutas relativas aos transportes colectivos. Tanto nas que pretendiam produzir alterações nos horários e no terminus dos autocarros (de Benfica para a Damaia, localidade vizinha), como naquelas que se orientavam para a activação do apeadeiro da Reboleira (Sr. F, entrevista). A oferta inicial de transportes públicos disponível aos habitantes do Lote implicava sempre deslocações pedonais com alguma distância, fosse para a Damaia (terminus da carreira de autocarro) ou para a vila da Amadora (estação de comboio). Paço de Arcos, Reboleira (Norte e Sul) Venda Nova (Amadora). Eram também referenciadas as cidades do Porto, de Coimbra e de Luanda, bem como a localidade da Praia da Rocha (Algarve). 7 No processo de reconstituição da história deste edifício não foram encontrados registos ou referências a proprietários residentes senão a partir da década de noventa, já numa estrutura de relações transformada e em circunstâncias de aquisição de casa própria (e de acesso a crédito à habitação) muito diferentes das dos primeiros anos da década de 1970. 70 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Cidades, Campos e Territórios Numa outra vertente dos efeitos da Revolução, a empresa promotora e construtora foi intervencionada. Após a tomada da empresa pelos trabalhadores, em 1975, o Estado nomeou administradores. O principal accionista do grupo e presidente da empresa abandonou o país rumo ao Brasil. Ao regresso do empresário, em 1977, segue-se a instauração de um processo judicial contra o Estado e contra os administradores que haviam sido nomeados relativamente aos elevados montantes em passivo da empresa intervencionada. Os termos da disputa diziam respeito às causas da situação económica da empresa. É neste contexto que ocorrem episódios reveladores de ineficácia na administração do parque habitacional. Um conjunto habitacional da empresa, em edificação na zona oriental da área metropolitana, é abandonado e rapidamente ocupado. Em 1978 surge a primeira referência oficial à degradação das condições habitacionais no Lote A, num comunicado intitulado «Quem exige o cumprimento da lei», assinado pela Comissão de Moradores do Lote A e dirigido a presidência da Câmara Municipal de Oeiras.8 Os dois elevadores da torre avariados há seis meses; campainhas e intercomunicadores inoperacionais; limpeza interior deficiente provocando maus cheiros e abundância de insectos; inexistência de porteira; iluminação interior quase inexistente – era nestes termos que, em Agosto de 1978, a Comissão de moradores descrevia as partes comuns do edifício. Para alterar este estado de coisas a Comissão de Moradores ensaiou uma dupla estratégia, fundada na utilização de dispositivos jurídicos. De um lado, tentou persuadir uma parte dos proprietários a convocar uma assembleia de condóminos, de modo a que se produzissem alterações no governo das partes comuns do lote. De um outro, tentou que o poder público municipal interviesse na tríade proprietários, administração, arrendatários, argumentando que à luz do Regulamento Geral das Edificações Urbanas o edifício apresentava irregularidades. Fracassada a estratégia, a Comissão de Moradores do Lote A dirige-se ao Município e declara-se investida de um direito constitucional – o de representar e organizar a participação dos cidadãos nos processos de decisão à escala local (Miranda, 1978: 467-470). A questão é situada num plano cívico (Boltanski e Thèvenot, 1991), sob a forma de denúncia: «a Câmara Municipal de Oeiras, eleita pelo povo, órgão a quem compete fiscalizar e fazer cumprir o RGEU, não obriga ao cumprimento da lei, mas antes pelo contrário é conivente com a Administração e Proprietários». No final, a Comissão de Moradores concluía: «quem faz cumprir a lei? / a quem serve a lei? / aos prevaricadores?!...» (em maiúsculas no original). O Município interpretou à legislação e concluiu que as «deficiências apontadas (seriam) da responsabilidade dos proprietários, podendo os inquilinos recorrer aos tribunais na hipótese de aqueles não procederem à sua resolução».9 Essa informação foi transmitida à Comissão de Moradores que nunca chegou a tentar a via judicial proposta. Da protelada Assembleia de Condóminos não há registos. «Sangue nas escadas, fogueiras no hall, droga no telhado» 10 Dois anos passados, no final de 1980, os registos acerca da degradação do estado das partes comuns do Lote A mantiveram-se. A descrição feita pela Comissão de Moradores foi detalhadamente actualizada numa reportagem publicada no recém lançado semanário Tal & Qual. «Vidros partidos, elevadores estragados, campainhas inoperacionais, escritos ‘revolucionários’ nas paredes, choro de crianças e penetrante mau cheiro». O repórter resumia 8 Inscrito no Processo de Obra n.º 278/70, vol. III. Nota Interna da Câmara Municipal de Oeiras, datada de 29/08/1978 e inscrita no Processo de Obra 278/70, vol. III. 10 «Sangue nas escadas, fogueiras no hall, droga no telhado», Semanário Tal & Qual, n.º 22 de 29 de Novembro a 5 de Dezembro de 1980, p. 3. (assinada sob o pseudónimo José Lobo Serrano). Ao longo das duas secções seguintes, as expressões citadas não apresentam a referência bibliográfica resumida para evitar a repetição. Encontram-se todas na reportagem citada em epígrafe. 9 71 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Cidades, Campos e Territórios assim o estado do Lote. E adiantava: acerca da entrada, os relatos dos habitantes sobre «fogueiras e ocupação nocturna»; acerca dos elevadores, o facto de estarem inoperantes «há três anos» e das suas «portas (terem) os vidros partidos»; nas escadas sem luz «o lixo abunda e os tanques de lavagem de roupa atravancam os corredores»; no terraço, «barraca(s) de madeira» são tidas como abrigo nocturno para consumidores de drogas. A população jornalisticamente construída residente no Lote compreendia: «trabalhadores da construção civil, tipógrafos, escriturários, médicos, advogados, oficiais das forças armadas, estudantes, um ex-agente da Policia Judiciária, desempregados, comerciantes, mulheres postas por conta de outrem, prostitutas, dançarinas dos cabarets lisboetas».11 A reportagem referia que entre os habitantes, «um pequeno grupo (...) está a fazer esforços junto da Câmara da Amadora para que esta (...) promova a recuperação do prédio através do seu Fundo para Imóveis Degradados», outros abandonavam o lote: «a maioria dos apartamentos (muda) de mãos com frequência a troco das institucionalizadas indemnizações directas ao inquilino que detém a chave». Quanto aos proprietários, referia o repórter: «na generalidade dos casos (...) estão a milhas da identidade dos seus inquilinos, (e) também não dão mostras de se preocupar muito com isso». Globalmente, o campo semântico utilizado na descrição compreendia os termos «fantasmagórico», gerador de «sensações de medo», «inseguro», «desconfortável», um local onde «o impossível acontece diariamente», «o sinistro lote». As contra-imagens propostas na reportagem eram as de uma norma habitacional pequeno-burguesa: geradora de segurança, caracterizada pela limpeza, evocativa de conforto. Margens No começo dos anos oitenta, as trocas que anteriormente decorriam entre os proprietários, a administração e os habitantes parecem ter-se reduzido ao mínimo. O edifício degradava-se rapidamente e o valor de mercado das suas fracções tendia a reduzir-se. Para os proprietários, a remuneração do investimento era provavelmente baixa e as oportunidades de uma venda rentável não seriam muitas. Para a administração, a gestão de propriedades processar-se-ia em condições mínimas e precárias, sendo a rentabilidade da operação provavelmente negativa. Tudo isto num contexto de crise económica. À margem: parece ser a condição de habitante do Lote em finais de 1980. Nem os proprietários nem a administração apresentavam a intenção de no curto prazo restabelecer as condições de habitabilidade. Os regimes jurídicos da propriedade horizontal e do arrendamento urbano apresentavam-se-lhes inoperantes. O pedido para a intervenção do poder municipal fracassou. À degradação socio-ecológica do habitat acrescia a projecção jornalística de um estigma habitacional sobre o imóvel e sobre os agentes com aquele relacionado. Aos habitantes restava mudar de casa, adaptar-se ou tentar uma vez mais a obtenção de apoio público. «Administração do Lote (...) – Entidade Equiparada a Pessoa Colectiva» 12 Em 1981 os habitantes anteriormente mobilizados na Comissão de Moradores do Lote A, e nas tentativas de obtenção de apoio junto do Município da Amadora (através do Fundo para 11 Não sendo este o contexto para uma análise às condições de produção do trabalho jornalístico importa ter em conta que: em contextos nos quais a reputação dos actores seja ou pareça duvidosa os processos de construção da notícia podem ser desatentos às modalidades pelas quais as suas fontes produzem (ou tentam produzir) efeitos de re-acreditação ou de neutralização de processos sociais mais vastos como o processo de estigmatização, por exemplo. Daí também que a noção de população jornalisticamente construída seja utilizada como precaução analítica. 12 Processo de Obra n.º 278/70, Vol. III. 72 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Cidades, Campos e Territórios Imóveis Degradados), criaram a Administração do Lote A: um órgão de natureza jurídica, com o estatuto de Entidade Equiparada a Pessoa Colectiva.13 Através de negociações com a Câmara Municipal da Amadora obtiveram a garantia de um empréstimo destinado ao fecho do acesso ao 12º piso e à reparação dos elevadores. Ao mesmo tempo e em relação aos proprietários, os habitantes mobilizados iniciaram um trabalho de negociação (Sr. F., entrevista). Propuseram aos proprietários que lhes delegassem a administração do condomínio. Juridicamente, nada obstava a que essa figura fosse ocupada por um dos proprietários ou por qualquer outra entidade, e aí se incluem as Entidades Equiparadas a Pessoas Colectivas. Entre uma estrutura de relações que ruiu e a possibilidade de uma outra vir a ser construída, com o apoio e a garantia do poder público, a proposta daquele grupo de habitantes foi aceite. À reparação dos elevadores e ao gradeamento do acesso ao terraço seguiu-se um processo experimental e progressivo de imposição de normas de utilização das partes comuns do edifício – horários de funcionamento de elevadores e pequenas alterações sua configuração tecnológica (des-sincronização, alterações nas portas, introdução de alarmes), esquemas de recolha de lixo e organização de práticas de limpeza. Uma renovação das relações de troca foise processando longo do tempo e com ela a recondução sucessiva da Administração do Lote A na gestão do condomínio. Marcas de uma alteração na distribuição e afectação do capital económico entre os agentes bem como de uma transformação na estrutura de relações e de trocas entre os proprietários, os arrendatários e a nova administração do condomínio. Das partes comuns e da propriedade Ainda hoje os habitantes do Lote e sua administração têm problemas com os elevadores. Um dos dois elevadores da torre encontra-se encerrado sendo apenas utilizado em situações de necessidade acordadas com os utilizadores. Aquando das deslocações do observador ao prédio a administração fez questão de destacar a porta da rua em bom funcionamento e as caixas de correio cuidadas, as paredes e os tectos das escadas e dos patamares pintados, os extintores, a sinalética, a iluminação e os planos de emergência do edifício bem visíveis. Uma vez gradeado o acesso ao antigo terraço, a administração foi progressivamente ocupando o 12º andar. Aí instalou um gabinete e uma sala de reuniões para o condomínio. Dividiu o espaço em arrecadações que presentemente aluga aos habitantes do prédio e a comerciantes do bairro. No terraço do 11º andar, um espaço foi arrendado a uma empresa de telecomunicações móveis para instalação de antenas e servidores. Estas acções são inscritas numa lógica de obtenção de receitas para fazer face a despesas: decorrentes da recente contratação de uma funcionária de limpeza e da programação de um futuro arranjo exterior do prédio. A partir do começo dos anos noventa, a estrutura de distribuição da propriedade no Lote começou a alterar-se. Os proprietários começaram a vender os apartamentos. Muitos dos arrendatários compraram as casas onde viviam. Hoje, dos 174 apartamentos 95 são propriedade dos habitantes.14 No entanto, numa sociedade em que a proporção de alojamentos familiares clássicos ocupados por um proprietário, com ou sem encargos, passou de aproximadamente 50 para 75 porcento, entre 1970 e 2001, as dívidas aos condomínios terão certamente uma prevalência significava. A situação actual do Lote é ilustrativa. Na entrada do prédio, uma grande tabela colocada pela actual administração do condomínio divulga informação actualizada sobre os apartamentos devedores e os montantes em dívida. Aí, um aviso é formulado: «se pretender adquirir um apartamento informe-se acerca de possíveis dívidas ao Condomínio e esteja atento aos valores inscritos nas cláusulas do contrato-promessa de compra e venda». É frequente com a passagem de uma habitação realizarse a passagem de dívidas, inscrevendo-as na transacção. 13 Um dispositivo jurídico que se aproxima da figura da Associação e que é considerado muito semelhante às Administrações de Condomínios (José, 1982: 98). 14 Informações colhidas junto da Administração do Condomínio e no III Volume do Processo de Obra n.º 278/70. 73 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Cidades, Campos e Territórios Em conclusão Certamente pontuada por singularidades, a história do Lote A e dos seus habitantes evidencia como a modelação do destino do edificado habitacional se processa através de etapas e de passagens. Evidencia também como essa modelação se encontra intimamente associada às transformações (e às permanências) verificadas nas configurações habitacionais específicas – isto é, no conjunto de actividades e de formas de relação mantidas entre agentes que entre si e relativamente a determinados imóveis ocupam posições económicas, políticas e estatutárias diferenciadas. As sucessivas tentativas de recuperação dos valores de uso e a imposição de normas relativas às partes comuns do edifício foram levadas a cabo pelos arrendatários como resposta à degradação física e à falência da estrutura de relações troca entre os proprietários e a administração. Deste processo emergiu um grupo que se organizou e que criou para si o papel de guardião do habitat. Tudo indica tratar-se de um efeito semelhante aquele descrito por J.-C. Kauffman e M. Lagneau (1983): um grupo de residentes, partilhando orientações morais, define e impõe normas de utilização no edifício. Todavia, esse processo parece aqui ter-se revestido de alguma especificidade. Desde logo, devido à história de conflito e de oposição de interesses entre os arrendatários, os proprietários e a administração do imóvel. Mas sobretudo porque o início do processo de recuperação do edifício decorreu do apoio do Município que ao conceder o empréstimo capacitou os arrendatários, quer material quer simbolicamente. Um exemplo curioso da articulação, à escala local, entre a ordem política e a ordem habitacional, que para mais coloca em questão a oposição (de senso) comum entre público e privado. Já de modo mais remoto, o caso remete para uma das mais importantes articulações entre a ordem habitacional e a ordem metropolitana: as redes de transporte público. Desde logo porque a essas redes cabe desempenhar funções de coordenação metropolitana. Mas sobretudo porque a sua distribuição espacio-temporal e as características de acessibilidade oferecidas incidem na (re) produção de desigualdades sociais. Para mais constituem bons analisadores dos processos de suburbanização. As lutas desenvolvidas pelos habitantes do Lote (e do bairro) relativamente aos transportes públicos são a esse nível expressivas. A partir do contexto pós-revolucionário, revelam a exígua oferta de transportes disponível naquele território e a sua incidência no quotidiano do conjunto habitacional. Ao longo da história do lote, a envolvente ferro e rodoviária foi-se alterando; a oferta de transportes foi-se diversificando. Já nos anos noventa, o apeadeiro de caminho de ferro situado em frente ao Lote foi transformado e tornado operacional. Em breve, está prevista a extensão da rede de Metropolitano para a Falagueira, território fronteiro ao grande conjunto residencial. Globalmente, a história do Lote A oferece uma breve contribuição para o conhecimento das complexas relações entre o parque habitacional e a constituição e estruturação do território metropolitano de Lisboa. Referências bibliográficas BASSAND, Michel (1997), Métropolisation et inégalités sociales, Lausane, Presses Universitaires et Polytechniques Romandes BOLTANSKI, Luc e Laurent THÈVENOT (1991), De la justification: les économies de la grandeur, Paris, Gallimard CHAMBOREDON, Jean-Claude e Madeleine LEMAIRE (1970), «Proximité spatiale et distance sociale. Les grands ensembles et leur peuplement», Revue Française de Sociologie, vol XI, 1, pp.3-33 CLERC, Paul (1967), Grands ensembles, banlieues nouvelles, Paris, PUF GRAFMEYER, Yves (1995), Sociologie urbaine, Paris, Nathan 74 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Cidades, Campos e Territórios ROSENDO D, José. 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