ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO I Débora Giselli Bernardo – Pólos: Sarandi/Cianorte João Batista Pereira – Pólos: Goioerê/Umuarama Tatyana Cavalcante – Pólos: Cidade Gaúcha/Diamante do Norte/Paranavaí INTRODUÇÃO À ANTROPOLOGIA Org. Valéria Soares de Assis APRESENTAÇÃO Discussão sobre o por que se estudar Antropologia em um Curso que visa à formação de Professores. Assis (2005, p. 09) afirma que o “homem é um ser que, entre outras formas, se faz por meio da e com a cultura”. Ainda afirma a mesma autora (2005, p. 9) que “se tivermos como premissa que a educação é um fenômeno cultural, é coerente que a Antropologia (uma disciplina que privilegia o estudo dos fenômenos sócio-culturais) seja entendida como uma interlocutora importante dos estudos sobre a educação”. ESCOLA: um dos elementos constitutivos da cultura. Se o homem tem na cultura um aspecto importante de sua formação, em nossa sociedade “é na escola, no ensino formal, que uma parcela significativa de valores, hábitos e maneiras de pensar é modificada ou incorporada a cada geração, promovendo tanto a manutenção quanto a transformação de nossa especificidade sócio-cultural. Portanto, é importante analisar a educação formal como um processo que interfere de maneira significativa na configuração cultural da nossa sociedade. A interface entre Antropologia e Educação permite conhecer e aplicar conceitos e métodos do campo antropológico para pensar os processos educacionais numa perspectiva mais ampla e rica" (ASSIS, 2005, p. 9). Logo, a Antropologia permitirá que os futuros Professores tenham uma visão mais ampla do processo educativo, possibilitando, por exemplo, uma melhor compreensão da diversidade de uma sala-de-aula e da escola em que está inserido. Em seguida, Valéria de Assis apresenta os capítulos que dividem o livro: No capítulo 1, Antropologia: uma introdução, a antropóloga uruguaia Andrea Quarelli introduz a disciplina (o que é Antropologia? o que ela estuda?), e será apresentado a seguir. 1 ANTROPOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO Andrea Quadrelli A espécie humana tem uma necessidade de compreender o mundo que a rodeia (diferentes fenômenos da natureza, mistérios sobre nossa origem e existência, origem e destino do universo). As disciplinas escolares (nossa forma de construir conhecimento) possuem o mesmo objetivo: compreender (ao mundo), compreender-nos. Definição de Antropologia "disciplina que concentra seus esforços no conhecimento do Homem e distingue-se por sua forma específica de construir conhecimento, seu específico modo de conhecimento que é a experiência de campo" (QUADRELLI, 2005, p. 13). O que alguns autores discutiram sobre a Antropologia. a) Bronislaw Malinowski (1884-1942), considerado um dos fundadores do moderno trabalho de campo antropológico. Malinowski, em sua obra Os Argonautas do Pacífico, estudou o significado social dos colares e braceletes trocados por tribos próximas da Nova Guiné. Malinowski define o objetivo final do antropólogo da seguinte forma: A meta é, em resumo, chegar a captar o ponto de vista do indígena, sua posição ante a vida, compreender sua visão de mundo. Temos que estudar o homem e devemos estudá-lo no que mais intimamente o concerne, quer dizer, naquilo que o une à vida. Em cada cultura os valores são ligeiramente distintos, a gente tem distintas aspirações, cede a determinados impulsos, aspira por distintas formas de felicidade. Em cada cultura se encontram distintas instituições que servem ao homem para conseguir seus interesses vitais, diferentes costumes graças aos quais satisfaz suas aspirações, distintos códigos morais e legais que recompensam suas virtudes e castigam suas faltas. Estudar estas instituições, costumes ou códigos, ou estudar o comportamento e a mentalidade do homem, sem tomar consciência do porquê o homem vive e em que reside sua felicidade é, em minha opinião, desdenhar a recompensa maior que podemos esperar obter do estudo do homem (MALINOWSKI, apud QUADRELLI, In: ASSIS, 2005, p. 14). Quadrelli afirma que, para Malinowski, "um dos grandes objetivos de compreender culturas estranhas é compreender a natureza humana e, em conseqüência, explorando nossa visão, compreender a nossa própria natureza" (QUADRELLI, 2005, p. 14, grifos meus). Ou seja, o estudo do "outro" pode permitir a que conheçamos a nós mesmos. B) Roberto Damatta: "para Damatta, o campo de trabalho da Antropologia social ou cultural é definido como o estudo do homem enquanto produtor e transformador da natureza e, enquanto membro de uma sociedade, de um dado sistema de valores, da 'perspectiva da sociedade humana enquanto um conjunto de ações ordenadas de acordo com um plano e regras que ela própria inventou e que é capaz de reproduzir e projetar em tudo aquilo que fabrica'" (QUADRELLI, 2005, p. 14). Perspectiva mais dialética e humana de Cultura em Damatta: não seria apenas uma resposta a certos desafios; é preciso ampliar este conceito que entende a cultura humana como um tipo de reação de certo animal a um ambiente físico (determinismo geográfico). Roberto Damatta chama a atenção para algo fundamental: o homem é mais do que um inventor de objetos, ele é o único animal capaz de inventar as regras de inventar objetos. O homem é capaz de pensar seu próprio pensamento, de criar uma linguagem da linguagem (tem consciência da mesma). Diversidade humana. O estudo da antropologia social é, em grande parte, o estudo da diferença. O homem também age diferentemente frente a estímulos universais; o homem em diferentes lugares e frente aos mesmos problemas, reage de forma diferente. Por esta razão há uma grande diversidade na organização social, sua história, as maneiras como classificam suas próprias realidades, etc. O homem é diverso. Esta diversidade leva a nos enxergar quando em contato com "o outro", pois quando vemos um costume diferente do nosso, reconhecemos, por contraste, nosso próprio costume. Damatta: Valores comuns em diferentes sociedades “primitivas” ou “selvagens” estudadas: "honra" (tatuagem dos Maoris), "verdade", "justiça", "dignidade", juntamente com o fato de nos sentirmos parte de uma totalidade, são o centro mesmo da sociabilidade humana e estão presentes onde quer que haja gente. Nossas diferenças são externas, relativas à outras formas de viver. Porém, estas diferenças podem nos ensinar muito. Os antropólogos não estudam os índios apenas porque estão desaparecendo, mas porque podemos aprender com eles o que não sabemos. Para Damatta, a Antropologia permitiria: [...] ver-nos, entre outros, como apenas mais um exemplo da forma que a vida humana adotou em um determinado lugar, um caso entre os casos, um mundo entre os mundos. Se a Antropologia interpretativa tem alguma função geral no mundo, é a de constantemente re-ensinar esta verdade fugaz (DAMATTA, apud QUADRELLI, 2005, p. 17). Característica da Antropologia: Estudo do peculiar. Ao contrário das outras ciências (como a Ciência Política e certos tipos de sociologia), que buscam modelos explicativos universais para analisar seus objetos de estudo, a Antropologia está preocupada com a peculiaridade de cada sociedade humana pesquisada. Propõe-se, desta forma, a formular a idéia de humanidade construída pelas diferenças. c) Clifford Geertz: "o estudo interpretativo da cultura tanto das formas de fazer como de entender a prática antropológica representa um esforço para aceitar a diversidade dos seres humanos no processo de constituição de suas vidas, bem como no processo de vivêlas" (QUADRELLI, 2005, p. 16). Para conhecer, é necessário a humildade. Devemos nos convencer de que não sabemos, descobrir a dimensão do ignorado, não ter conceitos pré-estabelecidos (pré-conceitos). Aprender com os outros não demanda atitudes condescendentes (bondosas) ou superiores. Devemos nos basear na troca igualitária de experiências humanas, fundamentado no fato de que realmente podemos aprender e nos civilizarmos com os outros. O ponto de partida da prática antropológica é a posição e o ponto de vista do outro, sempre com a perspectiva de que a intermediação do conhecimento produzido é realizado pelo próprio sujeito investigado em relação direta com o investigador. O antropólogo deve procurar se desvencilhar de seus conceitos, de suas visões de mundo, e, através da pesquisa de campo (junto ao sujeito investigado, portanto), entender aquela sociedade pesquisada. Por isso que se fala dos Antropólogos como tradutores culturais, porque uma de suas principais intenções é descrever/interpretar uma cultura para desvendá-la para aqueles que não a conhecem ou a ela não pertencem. Antropologia é definida, também, como atitude. Também pela prática antropológica (de contato com sociedades diferentes da sua), Roberto Damatta aponta que a Antropologia é definida como uma atitude: uma atitude positiva e valorativa, tendo em vista sua pretensão de compreender o que é exótico, o distante, o diferente, o outro, o qual não necessariamente está longe do nosso próprio mundo. O que faz um Antropólogo? Um Antropólogo olha, observa o que as pessoas fazem, escuta o que as pessoas dizem e logo escreve, interpretando aquilo que observou e aquilo que escutou. Quando o antropólogo escuta, olha e escreve começa a tornar possível a apreensão do fenômeno social. Um dos problemas com o qual o Antropólogo se depara: o trabalho de campo (motivo de críticas por parte da comunidade científica). Um dos pontos fundamentais do trabalho de campo são as inúmeras, variadas, distintas e constantes narrativas a que o Antropólogo está exposto quando efetua o seu trabalho de campo. Não se deve esquecer que as sociedades pesquisadas por um Antropólogo, em sua grande maioria, têm uma cultura de oralidade. Desta maneira o que o Antropólogo escuta e anota são narrativas. Estas seriam "histórias plurais", carregadas de sentido, pois: Nas histórias encontramos um conhecimento de outro tipo, são estruturas de sentido que têm a ver com o conhecimento pessoal sobre a vida nesta ou naquela sociedade, em distintas culturas, em distintos grupos; estruturas de sentido que são armazenadas e transmitidas por histórias. Prestemos atenção ao fato de que as experiências só se tornam realmente experiências depois que uma pessoa passa a contá-las, 'ainda que silenciosamente, para si mesma'; antes não são experiências no sentido pleno da palavra. Essa forma de comunicação da experiência é o que torna compreensível, no sentido mais profundo de compreender, a experiência de vida em distintos grupos, culturas, os momentos desses grupos, um dos objetivos primeiros do antropólogo (QUADRELLI, 2005, p. 20). A autora chama a atenção para este fato, pois quando a mesma foi realizar uma pesquisa na Tríplice Fronteira, em uma comunidade indígena, deparou-se com uma sociedade guarani, onde a oralidade é predominante. Entender apenas a narrativa, no sentido de tradução da língua, sem adentrar no universo cultural daquela população, poderia proporcionar conclusões precipitadas e/ou equivocadas. Também se deparou com as relações de poder em torno da escola formal que estava sendo efetivada naquela sociedade: que tipo de escola? O que aprender nesta escola? O que fazer com esta escola? Como participar da escola? Todas estas questões ainda não estão resolvidas, em uma comunidade com valores próprios, em que a escola é uma instituição “estranha” para a mesma. 2 A ANTROPOLOGIA ENQUANTO UM DOS CAMPOS ESPECÍFICOS DE ESTUDO DO HOMEM. Patrícia Silva Osório. O objetivo do texto de Osório é delimitar a Antropologia, abordando três questões: 1. a Antropologia Social como uma das especializações da Antropologia Geral; 2. antecedentes históricos, gênese do pensamento antropológico e consolidação da Antropologia Social, com algumas de suas transformações; 3. discutir os conceitos fundamentais da prática antropológica (cultura, relativismo cultural, totalidade e trabalho de campo). OS VÁRIOS RAMOS DA ANTROPOLOGIA GERAL A autora descreve a Antropologia como uma ciência abrangente e reconhecidamente subdividida, com múltiplas especializações (há pesquisadores que discordam quanto às subdivisões) . A autora comenta três especializações da Antropologia: 1. Antropologia biológica ou física. Interessa-se pelo estudo do homem enquanto ser biológico. Preocupa-se com a evolução biológica do homem e com as diferenciações humanas. Pergunta-se sobre o que é inato e o que é adquirido no homem, bem como a relação entre um e outro. 2. Arqueologia ou Antropologia pré-histórica. Seu foco de estudo está na análise das sociedades do passado, no estudo do homem baseado em vestígios materiais deixados no solo. Os pesquisadores buscam deduzir as relações sociais e produções culturais existentes em tais sociedades a partir desses vestígios. 3. Antropologia social. Preocupa-se com tudo que se relaciona à vida em sociedade, mantendo a intenção de demonstrar como os vários aspectos (político, econômico, de parentesco, crenças, línguas, produção artística) relacionam-se entre si. Trabalha sob a perspectiva da totalidade da vida social. Sempre que fizer menção à Antropologia, a autora estará se referindo à especificidade da Antropologia social. ANTECEDENTES HISTÓRICOS: O PENSAMENTO PRÉ-ANTROPOLÓGICO Osório elabora um resumo sobre a história da Antropologia, a partir dos principais pontos levantados por alguns autores (LIENHARDT, DAMATTA, COPANS, LAPLANTINE, LARAIA). * a curiosidade, traço característico do ser humano, não é condição suficiente para fazer alguém antropólogo. A descrição sobre costumes de outros povos é algo recorrente na história (Heródoto, Tácito, Marco Pólo). *O surgimento da Antropologia foi determinado por condições históricas e intelectuais específicas. *Alguns estudiosos localizam a gênese do pensamento pré-antropológico no contexto das grandes navegações (séculos XV e XVI), uma vez que, o contato com o Novo Mundo gerara indagações sobre a existência múltipla do ser humano. Embora não correspondesse ainda ao pensamento antropológico, as informações sobre os diferentes povos foram relevantes à construção dessa ciência, uma vez que evidenciavam a diversidade de formas sociais existentes. O pensamento sobre esses povos, no entanto, estava distante da perspectiva antropológica. *No século XVI, os discursos sobre o outro pautavam-se no Cristianismo: tinham esses seres diferentes alma? *Já no século XVII, marcado pelo advento do racionalismo, a questão era: seriam aqueles seres racionais? *Os povos recém-descobertos eram percebidos como selvagens ou infantilizados, definidos a partir do padrão europeu. Por esse motivo, esses discursos não correspondem à atitude antropológica, uma vez que esta busca o ponto de vista do nativo em seus próprios termos. CONSOLIDAÇÃO DA ANTROPOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA E TRANSFORMAÇÕES CONCEITUAIS *As condições para o surgimento da Antropologia enquanto ciência estão no século XIX: ** com o surgimento das Ciências Humanas, no final do século XVIII, o homem passa de sujeito do conhecimento (aquele que conhece as coisas) a objeto do conhecimento (o que deve ser conhecido). Torna-se necessária a elaboração de métodos e técnicas para observação e análise dos homens e suas relações sociais. *Já na segunda metade do sec. XIX, a Antropologia ganha legitimidade frente às outras Ciências Humanas em virtude da posse de um objeto próprio: o estudo das sociedades primitivas. Os povos “diferentes” deixam de ser vistos como selvagens ou infantilizados, e passam a ser entendidos como primitivos; Sociedades primitivas = ancestrais das sociedades civilizadas; Osório afirma que a noção de “sociedade primitiva” é marcada fortemente por teorias evolucionistas: todos pertenceriam a uma mesma espécie, mas encontrariam-se em estágios diferentes de evolução, sendo que a etapa final deste processo seria a sociedade ocidental. “Essa marcha do progresso refletia uma tendência sócio-cultural, cuja fonte era o desejo de ver a sociedade européia como o ponto alto da história da vida” (OSÓRIO, 2005, p. 35). *Muitas críticas são hoje feitas ao pensamento evolucionista, mas não pode ser negada a contribuição daqueles estudos para a consolidação da Antropologia enquanto ciência. *Com o desenrolar dos estudos antropológicos, os métodos de análise e as teorias foram sendo aperfeiçoados. “A antropologia foi percebendo que a unidade do gênero humano estava na diversidade” (p. 35). O reconhecimento de uma humanidade plural pôs em cheque a idéia de superioridade da civilização ocidental. *A autora destaca que as sociedades consideradas primitivas foram se integrando à sociedade ocidental, em função das transformações do mundo, ampliando, assim, o objeto de estudo da Antropologia. Novos conceitos também surgiram, como o de cultura e o de relativismo cultural, sendo que, no século XX, a diferença passou a ser explicada pelo conceito de cultura. A Antropologia consolida-se, assim, enquanto ciência atenta à diversidade. O conceito de alteridade ajuda a entender as diferenças: “O pressuposto é o de que cada cultura tem a sua lógica própria, e é por esse meio que deve ser compreendida” (p. 36) O QUE É ANTROPOLOGIA? *Atualmente, a Antropologia não é definida por um objeto de estudo específico, mas pela maneira pela qual analisa os fenômenos humanos. As especificidades da Antropologia frente às demais Ciências Humanas dizem respeito à formulação de conceitos chave para a compreensão dos fenômenos sociais, bem como à utilização de determinados métodos e técnicas de análise. Osório responderá à questão (O que é Antropologia?) a partir de três aspectos que lhe são fundamentais: 1. conceitos de cultura e relativismo cultural; 2. a idéia de totalidade social; 3. o trabalho de campo. Cultura e relativismo cultural *A autora esclarece que existem muitas definições de cultura. Lembra que o senso comum entende a cultura como inteligência, gosto refinado (teatro, música clássica, artes plásticas, etc.), ou seja, como algo que é privilégio das pessoas com alto poder aquisitivo. O ponto de vista antropológico assume uma perspectiva completamente diferente: a cultura não é privilégio de uma pessoa, mas diz respeito à sociedade humana como um todo. *** A cultura é uma condição essencial da experiência humana e diz respeito à capacidade dos seres humanos para dar significado às suas ações e ao mundo que os rodeia. “O objeto privilegiado da Antropologia é tudo o que diz respeito a essas formas de pensar e agir, compartilhadas por um dado agrupamento humano em qualquer época e lugar” (p.37). Sendo assim, a análise antropológica não se restringe a um objeto de pesquisa; ela pode se voltar ao estudo de tudo o que diz respeito ao homem, em qualquer sociedade (indígena, camponesa, urbana, etc.). *Uma das funções da análise antropológica é relativizar os comportamentos (os nossos e os dos outros), mostrando como eles são determinados por códigos sociais e culturais. É importante destacar que a análise das práticas sociais deve ser feita de acordo com o conceito de relativismo cultural, que determina que “Toda a cultura tem sua lógica própria e deve ser entendida desta forma” (p. 39). O estudo da totalidade *Para a Antropologia, a análise de um fato social deve levar em conta a totalidade que o envolve. “O estudo da totalidade pressupõe que um fenômeno deve ser apreendido na multiplicidade de suas dimensões: política, econômica, social, cultural, etc.” (p.39). *Dentre os muitos fatos sociais, alguns revelam ao antropólogo a idéia de totalidade. Estes são chamados de fatos sociais totais e permitem a compreensão, como um todo, da sociedade a qual se referem, pois reúnem em si aspectos da organização política, econômica e sócio-cultural desta sociedade. O trabalho de campo *O contato pessoal estabelecido entre o pesquisador e seu informante (trabalho de campo) é uma contribuição específica da Antropologia e está ligada ao modo de elaboração de seus conhecimentos, desde os primórdios dessa ciência. “Todo o conhecimento antropológico é constituído a partir da observação direta dos comportamentos sociais” (p. 40). *Uma questão importante para o entendimento do trabalho de campo, diz respeito à subjetividade. Até o final do século XIX, ela não era admitida no conhecimento científico, pensado como lógico e exato. Historicamente, os pesquisadores foram tomando consciência de estar imersos em um tempo e em um espaço: “todo cientista encontra-se inserido num espaço físico, social e intelectual, e é por meio da percepção do que existe nesse universo (daquilo que a sua percepção pode captar) que ele formula o objeto de sua investigação. Ou seja, tudo depende de suas qualidades pessoais (personalidade) e do contexto social no qual está inserido. Assim, subjetividade já não é mais pensada como antônimo de veracidade. Ter essa consciência torna-se fundamental para entendermos o que é o trabalho de campo na Antropologia.” (OSÓRIO, 2005, p.41) ** É preciso assumir que a dimensão subjetiva está presente no trabalho de campo: “O antropólogo, ao se inserir no campo, carrega consigo sua personalidade e tudo aquilo com o que está envolvido”. Todavia, é claro que, antes de ir a campo, o pesquisador estuda e se investe de uma série de hipóteses teóricas, que direcionarão seus interesses, sua observação e o modo de apresentar os resultados do trabalho. Conclusão: afinal, o que é Antropologia? A Antropologia surgiu de uma preocupação em entender as sociedades “primitivas”. Ao longo do tempo, com o surgimento de novos conceitos, essas sociedades passaram a ser compreendidas de outra forma. As análises antropológicas, através dos conceitos de cultura e de relativismo cultural, passaram a entendê-las no âmbito de sua própria lógica. Além dos conceitos, também o campo de atuação da Antropologia se ampliou: os estudos deixaram de se voltar apenas para sociedades “exóticas”, e passaram a abarcar a própria sociedade em que o pesquisador se insere. Agora, a tarefa da Antropologia é dupla: 1) tornar familiar o que é, a princípio, exótico; 2) tornar exótico aquilo que nos é familiar. Em outras palavras, mostrar que costumes aparentemente estranhos têm uma lógica cultural e que, muitas vezes, fenômenos que tomamos por naturais são também culturais (p. 43). A Antropologia cumpre sua tarefa através do uso de conceitos específicos (cultura, relativismo cultural, totalidade social) e de um método particular de pesquisa (trabalho de campo). 3 A CULTURA DO PONTO DE VISTA DA ANTROPOLOGIA Marcos S. da Silveira Partindo da idéia de que o conceito de cultura é fundamental para a Antropologia, o autor objetiva tratar: das raízes do conceito; do contexto no qual ele passou a fazer sentido; dos fundamentos de sua definição e aplicação; e de seus desdobramentos atuais. O CONCEITO DE CULTURA * “As primeiras formulações sobre o valor da singularidade de estilo de vida de cada povo da terra surgem com o filósofo alemão Herder, no final do século XVIII, que criticou duramente o universalismo do Iluminismo francês. Herder via em cada povo, e no alemão em particular, uma expressão singular e válida de um aspecto da Humanidade.” * Herder reintroduziu, no seio do universalismo iluminista (igualdade universal entre os homens), o princípio de que os seres humanos são essencialmente sociais e, portanto, possuem práticas culturais diferentes, que dependem da sociedade na qual se inserem (lembrar que Herder vivia o contexto de uma Alemanha fragmentada, ainda não unificada como Estado Nacional); * Contribuição de Herder: graças a ele, até hoje nós “afirmamos que a espécie humana está constituída por diversos povos, [...] vivendo sob diversos valores culturais.” (p.48). As idéias de cultura e relativismo cultural têm, para o autor, origem no pensamento de Herder; * o surgimento da noção de cultura, com a construção da idéia de alteridade, é um dos maiores eventos da tradição ocidental; * No século XIX, surge a Antropologia, voltada, a princípio, para as sociedades primitivas. Como vimos, de início a explicação para a variedade cultural era baseada em uma teoria evolucionista. Os antropólogos consideravam as diferenças culturais como resultado de uma escala genealógica de desenvolvimento. Desse modo, o “outro” passou a ser visto como representante de um estágio inferior de civilização. “Os povos tribais passariam a ser considerados como exemplos vivos das primeiras etapas do desenvolvimento da Humanidade”. ** “No século XX, finalmente, a noção de cultura, fundamentada na idéia de diversidade cultural, rompe com a noção de evolução cultural, recolocando o outro no presente. A idéia de diferença é transformada em relatividade. Se toda cultura é relativa a seus propósitos, não se pode mais falar em diferenças, pois não há uma cultura universal, geral, única...” (p.49). * Nesse contexto, a Antropologia, especialmente o ramo da Antropologia social, passou a analisar as diversas sociedades a partir do respeito às suas singularidades culturais; Definição antropológica de cultura *** Cultura é a organização da experiência e da ação humana por meios simbólicos. A existência humana manifesta-se por meio de valores e significados que não podem ser reduzidos a dimensões físicas ou biológicas. Isso nos distingue das outras espécies. É na vida social que o homem forja os significados e símbolos que constituem a sua cultura (daí a importância, para os estudos antropológicos, de vivenciar a cultura do outro). A cultura deve ser vista como uma lógica que controla o comportamento social. Ela consiste em instruções e regras, aprendidas de diversas formas, também socialmente definidas. ( p. 51); Etnocentrismo e Relativismo Cultural *** Se cultura é, fundamentalmente, um processo simbólico que se realiza através da transmissão institucional de significados, toda sociedade tende a ver a sua cultura como algo “natural” (é aprendida desde o nascimento). É comum uma sociedade definir a si mesma como padrão de humanidade e ver as outras como “menos humanas”. Tal fenômeno é denominado etnocentrismo. Para combater esse tipo de visão, os antropólogos usam o conceito de relativismo cultural. “Relativismo seria uma atitude deliberada, um esforço consciente para perceber como culturas distintas expressam maneiras distintas de viver, social e historicamente construídas como diferentes, como respostas diferentes a outros problemas que a existência colocou para outras pessoas e em outros lugares. Neste esforço, que caracteriza o fazer antropológico, coloca-se a necessidade de se vivenciar outra cultura como forma de acesso a esta outra lógica simbólica”. (p.53). Pesquisa de campo em Antropologia * A pesquisa de campo é a característica mais distintiva da Antropologia. O antropólogo precisa vivenciar a outra cultura, através do trabalho de campo, para questionar os seus próprios valores e se sensibilizar diante das diferenças que ele quer compreender. O trabalho de campo de cada pesquisador é único, ao contrário das experiências das ciências naturais, que podem ser repetidas (desde que se observe as mesmas condições do experimento inicial). * “O trabalho de campo é um meio para a realização de um conhecimento específico, o conhecimento etnográfico. Etnografias são textos, escritos fora do momento do campo, para uma comunidade intelectual que os apreciará criticamente.” (p.57); *A seguir, o autor apresenta os “clássicos” da Antropologia: - Bronislaw Malinowiski: um dos “pais” do trabalho de campo; preocupou-se com a autenticidade dos relatos etnográficos; defendeu a idéia de que os povos tribais vivem em comunidades organizadas e que têm consciência dos princípios que orientam as suas ações (não são desregrados); - Evans Prittchard: também refletiu sobre a experiência de campo e os escritos etnográficos; criou o termo “observação participante” para designar a vivência do antropólogo no âmbito do grupo cultural estudado; refletiu sobre a necessidade do diálogo entre os dados coletados em campo e os problemas teóricos iniciais; o trabalho de campo só surte efeito quando os dados coletados são formulados enquanto dados científicos. - Gregory Bateson: introduziu a noção de ethos, hoje muito popular na Antropologia, para designar a essência de uma dada cultura, ou seja, a totalidade da vida social que envolve seus membros; - Edmund Leach: criticou os modelos de totalidades sociais apresentadas sempre de forma harmoniosa e coerente, procurando demonstrar que os sistemas sociais se apresentam como entidades não equilibradas, o que se pode perceber quando se diferencia o comportamento ideal do comportamento real. - Clifford Geertz: pensou a descrição etnográfica como uma interpretação que o antropólogo faz, baseado em teorias, dos dados obtidos em um trabalho de campo; destacou que esses dados, por sua vez, são interpretações de outras pessoas (modo particular de o nativo ver a própria cultura); A Antropologia no Quadro das Ciências Sociais * Segundo o antropólogo Claude Levi-Strauss, o objeto da Antropologia não é uma sociedade específica (primitiva, exótica, etc.), mas justamente a existência de diferenças entre as culturas. Assim, a Antropologia pode debruçar-se tanto sobre povos civilizados quanto sobre os “selvagens”, sociedades simples ou complexas, tradicionais ou modernas... * Essa expansão do fazer antropológico, todavia, suscita um debate interno às ciências sociais (Sociologia e Ciência Política). Os representantes dessas ciências acusam a Antropologia de perda de rigor científico e ausência de sofisticação teórica ao estudar sociedades modernas. Essas críticas se devem, em geral, à peculiaridade dos métodos de estudo da Antropologia (trabalho de campo, por ex.), que, como vimos, são bastante “subjetivos”. * Posicionando-se em relação a esse debate, o autor conclui com duas observações: 1. a Antropologia privilegia a dimensão local de um grupo social, mas, para ser uma ciência mais completa, ela deve realizar um profundo diálogo com as outras ciências sociais (Sociologia e Ciência Política); 2. a Antropologia contemporânea tem problematizado profundamente a relação sujeito-objeto, refletindo sobre sua posição em campo e sobre o contexto em que seu conhecimento é produzido, o que demonstra, sim, rigor científico da parte dos pesquisadores. 4 QUANDO NOS TORNAMOS HUMANOS? REFLEXÕES SOBRE A ORIGEM DO HOMEM E DA CULTURA Adriana Schimidt Dias. O texto de Dias é um exemplo de trabalho da Antropologia Biológica. Para refletir sobre a origem da cultura, a autora organiza o texto em quatro partes: dedica a primeira delas a discussão das teorias evolutivas sobre a origem das espécies, a segunda à origem evolutiva dos hominídeos e a importância do bipedismo, a terceira ao gênero homo e a cerebralização e, finalmente, a quarta parte é dedicada à revolução da linguagem e a origem do homem. Como este é um trabalho ligado à Biologia, muitos dos termos e conceitos empregados pertencem à essa ciência. Ao introduzir o assunto, a autora lembra que o caminho evolutivo percorrido por nossa espécie data dos últimos 7 milhões de anos. Afirma: “ Como qualquer outra espécie viva, os humanos evoluíram graças a circunstâncias naturais específicas, no tempo de no espaço, e nosso padrão evolutivo, percebido em retrospectiva, é, na verdade, o produto de condições locais e de pequena escala” (DIAS, 2005, p.69). As teorias evolutivas sobre a origem das espécies “A história das espécies vivas é caracterizada por sucessivos episódios de extinção massiva e recolonização de nichos ecológicos por espécies maginais” (p.69). O homem atual pertence a: Ordem: Primatas (65 milhões de anos) Sub-Ordem: Primatas Superiores (Antropóides ou Haplorríneos) Infra-Ordem: Macacos do Velho Mundo (Catarríneos – 35 e 23 milhões de anos) Super-Família: Hominóides (macacos sem rabo – 23 milhões de anos) Família: Homínidas (macacos bípedes – entre 7 e 5 milhões de anos) Gênero: Homo (2,5 milhões de anos) Espécie: Homo Sapiens Sapiens (150 mil anos) É importante desassociar a idéia de progresso da idéia de evolução biológica. Historicamente, Darwin, associado a outros autores contra ao paradigma Criacionista (espécies criadas por Deus e imutáveis), apresentou uma teoria que se diferenciava por entender que todos os organismos vivos descendem de um antepassado comum. Para Darwin, o processo de mudança, movido pela seleção natural, é inevitável e gradual. No entanto, os mecanismos que geram a mudança entre gerações estão ausentes da obra de Darwin: a síntese entre a genética e a teoria darwiniana só ocorreu na década de 1950. Os ritmos do processo de mudança do modelo darwiniano foram revistos por Niles Eldredge e Stephen Jay-Gould nos anos 1970. Niles Eldredge e Stephen Jay-Gould entendem que a mudança se dá de forma esporádica e rápida, por saltos evolutivos, enquanto que, para Darwin, elas se dariam de forma lenta e gradual. Origem evolutiva dos hominídeos e a importância do bipedismo Darwin, no texto A Origem do Homem (1871) expõe três aspectos que definem e diferenciam o homem: 1. origem africana da espécie; 2. processo de longa duração; 3. origem com um pacote evolutivo: bipedismo, cerebralização e tecnologia. As pesquisas do século XX apontam que os dois primeiros aspectos mostram-se corretos; entretanto o último ponto não é aceito de forma conceitual pelos paleo-antropólogos. Hoje é concensual a idéia de que o processo de hominização desencadeou-se na África a partir do surgimento da bipedia, separando-se evolutivamente os homínidas de seus “primos mais próximos” em termos genéticos, os chimpanzés, entre 6 a 8 milhões de anos atrás (LEAKEY, 1995; LEAKEY; LEWIN, 1995; LEWIN, 1999; FOLEY, 1993, 1998) (DIAS, 2005, p. 73). Dias afirma que o bipedismo conduziu a alterações na estrutura óssea e muscular dos hominídas, em relação aos demais primatas. A autora se pergunta em que medida essas adaptações se constituíram em vantagens adaptativas. Alterações ambientais e geológicas na África: há 15 milhões de anos a crosta da parte leste do continente separou-se e elevou-se uma cadeia montanhosa, criando um acidente geográfico, o Vale da Grande Fenda, que se estende do Mar Vermelho até Moçambique. As condições geográficas alteraram o clima e as antigas florestas foram fragmentadas em arbustos. Essas mudanças ambientais guiaram a história evolutiva dos bípedes. As vantagens adaptativas dos bípedes se relacionam às possibilidades de ampliação das áreas de captação de recursos em ambientes abertos, bem como ao transporte de alimentos por grandes distâncias e também o aumento no campo de visão. O gênero homo e a cerebralização: o longo caminho para o nascimento da cultura. Os primeiros representantes do gênero homo, surgidos por volta de 2,5 milhões de anos, apresentam tamanho e estrutura corporal similar aos do gênero australoptecíneo, diferenciandose por apresentar o dobro do volume cerebral. Menos de 500 anos depois, floresce a espécie Homo erectus, com volume corporal e cerebral semelhante ao dos humanos modernos. Dias conta que a encefalização é uma tendência evolutiva dos mamíferos em geral. Entretanto, afirma que não é o tamanho do cérebro que conta, mas a estrutura organizativa do “novo cérebro” humano, que surge com o Homo habilis e o Homo erectus, oferece instrumentos cognitivos capazes de enfrentar os desafios da seleção natural. 1. Um cérebro grande é um órgão de alto custo energético: o gênero homo precisa incorporar alimentos com alta taxa de retorno energético (carne e gordura animal), que demanda de meios “extra-somáticos” para obtenção: “O Homo habilis abriu o caminho, por meio da tecnologia, para que, centenas de milhares de anos mais tarde, o Homo erectus invertesse a ordem natural da cadeia alimentar, tornando-se, de potencial caça, um eficiente caçador!” (p.76). 2. O desenvolvimento de um cérebro grande e complexo só é possível se o crescimento continuar a ocorrer após o nascimento dos bebês. O período de gestação humana é o mais longo entre os primatas. Os bebês humanos nascem com 23% da capacidade cerebral e são extremamente frágeis. No entanto, apesar de parecer uma grande desvantagem adaptativa, esta fragilidade e o alto grau de dependência dos bebês estimulam, ao longo do processo evolutivo, o desenvolvimento de uma estrutura social altamente complexa e coesa, estreitando laços de cooperação entre machos e fêmeas. A taxa lenta de crescimento na infância, padrão apenas do gênero homo, contribui para reforçar laços sociais através do aprendizado e convívio entre crianças e adultos. A revolução da linguagem e a origem do homem que sabe mais que todos os outros O favorecimento de organizações sociais cada vez mais complexas exige uma maior necessidade adaptativa para os primeiros humanos, exigindo formas mais sofisticadas de transmissão de regras sociais, sendo, a linguagem falada, o capital cultural das sociedades humanas modernas. Em outras palavras: “Em termos evolutivos, as forças da seleção natural favoreceram o surgimento de formas cada vez mais elaboradas de sociabilidade e de transmissão de informações entre os humanos, centradas na nossa capacidade de vocalização” (p.78). São múltiplas as conseqüências da origem da linguagem para história evolutiva da espécie humana, contribuindo para o sucesso reprodutivo da espécie e nos proporcionou uma vantagem adaptativa para lidarmos com as adversidades climáticas, ligada à capacidade de acumular, registrar e transmitir informações. Dias lembra que somos a única espécie remanescente de nossa árvore filogenética. Por fim, a autora afirma que nosso moderno padrão de complexidade cognitiva está documentada no registro arqueológico a partir de 60 mil anos atrás (em rituais de sepultamento e manifestações artísticas). Portanto, a linguagem falada é o motor de uma “revolução” que deu origem à “mente moderna”. Ao vencer a barreira da fala, o Homo sapiens “tornou-se capaz de criar novos tipos de mundo na natureza: o mundo da consciência introspectiva e o mundo que construímos e dividimos com os outros, o qual chamamos cultura. A linguagem tornou-se nosso meio e a cultura nosso nicho” (LEAKEY apud DIAS, 2005, p.79). Dias afirma que a nossa espécie é resultado de um processo evolutivo (aleatório e interativo) e que a hominização é um processo complexo, resultante de interferências genéticas, ecológicas, cerebrais, sociais e culturais. Vale destacar que a cultura não é inata: Por fim, uma vez que a cultura não é inata, a linguagem falada, associada a uma infância prolongada, amplia a capacidade de transmissão das regras sociais através dos sistemas de ensino-aprendizado (DIAS, 2005, p. 80). 5 APRENDER COM A DIFERENÇA: A CONSTRUÇÃO DE OLHARES SOBRE NÓS E SOBRE OS OUTROS Katiuci Pavei Neste texto, Pavei visualiza as possibilidades de trabalho com a diversidade cultural na educação, a partir da desnaturalização da cultura e do conhecimento do outro. A autora aborda diferentes entendimentos e conceitos de cultura e a define enquanto construção humana. Também levanta o problema do caráter negativo adquirido pelo outro em algumas relações sociais. Nesse sentido, aponta para a responsabilidade do Etnocentrismo nos processos de legitimação e manutenção da intolerância. Pavei reserva uma parte do texto para sistematizar os produtos da intolerância: preconceitos, discriminações e desigualdades. Em seguida, discute o papel da escola (produtora, reprodutora, legitimadora) em relação às desigualdades, lembrando que os valores e sentimentos culturais construídos vão sendo aprendidos no processo de socialização. Nesse contexto, estranhar o familiar é uma estratégia para o processo de desnaturalização. Viver em sociedade, um contínuo aprender O texto apresenta uma proposta pedagógica, com base no exercício da tolerância, que implica na predisposição para aprender algo novo, desprendendo-se de noções já introjetadas. A escola apresenta uma grande diversidade social, uma vez que seus componentes provêm de diferentes grupos sociais. Como qualquer outra instituição, é permeada por relações de poder. Também é necessário lembrar que, em nossa sociedade, muito tempo é dedicado à vida escolar, tornando a escola um importante agente socializador. Nesse sentido, a idéia é “desacomodar”, desnaturalizar o social, o contexto, o cotidiano, o conhecimento. Proximidade física não garante o conhecimento, uma vez que o outro pode ser esteriotipado: “C.D.F”, “maluco”, “estranho”, “bobo”, “puxa-saco”, “patricinha” etc. Como primeiro passo para tratar a diversidade, Pavei sugere o conhecimento da diversidade presente na sala de aula: atividades que discutam referências culturais – com muito cuidado – valores e visões de mundo, preferências, hábitos, etc. -> tolerância: respeito ao outro -> Alteridade: “exercício da capacidade de respeitar e reconhecer a cultura e os direitos do outro, colocando-se no lugar deste outro a fim de melhor compreendê-lo” (HICKMANN, 2000, p. 26). Sujeitos culturais Cultura é conceito (construção humana) que varia no espaço e no tempo. Há diversos entendimentos de cultura, sendo que alguns deles ainda se mantêm: 1. Sinônimo de conhecimento (desde a Antiguidade): refinamento, educação, erudição (cultura pertence a um grupo: elite); 2. Determinismo Biológico (desde a Antiguidade): diferenças biológicas determinam diferenças culturais (raça superior); 3. Nação: (séculos XVIII-XX): cada unidade política possui características culturais próprias; idéia da homogeneização; 4. Evolucionismo (século XIX): culturas em “evolução”; diferentes graus evolutivos; justificativa da neo-colonização; 5. Determinismo Geográfico (final do século XIX): ambiente físico é responsável pelas diferenças culturais. Na proposta de Pavei, não se aceita determinações biológicas ou geográficas; bem como o entendimento antropológico de cultura não aceita culturas hermeticamente fechadas, mas culturas plurais: De nossa perspectiva, cultura é algo que envolve todos os seres humanos, uma vez que cada um de nós cria e recria o seu meio e ao mesmo tempo é (re)criado por ele, num movimento que se dá dialética e constantemente; resumidamente: somos “portadores e produtores de cultura” (GOMES, 1996, p. 86). PAVEI, 2005, p.89. Mudanças culturais desenvolvem-se de duas maneiras: interna (dinâmica própria) e externa e a cultura consiste em um campo de luta e contestação. Cultura é um sistema simbólico subjacente ao pensamento humano coletivo. Neste sentido, o pesquisador não busca “desvelar” uma realidade posta, mas percorrer caminhos que o conduzam às explicações contextualizadas de fenômenos e acontecimentos em particular. Os olhares construídos acerca do outro Há uma tensão entre as esferas de afinidades e diferenças, tensão que constitui identidades sociais e individuais. A diferença entre indivíduos e grupos produz a diversidade (subjetiva e cultural). “Diferença ou diferenciação social é a constatação de grupos ou categorias particulares de indivíduos. Por exemplo: sexo, idade, grupos étnicos, profissão, etc” (p.92). A diversidade pode ser um campo fértil para ampliação do conhecimento, mas também pode ser encarada como prejudicial e potencialmente perigosa. Há uma tendência dos grupos se “auto-afirmarem” por meio da negação do outro e, muitas vezes, grupos atribuem a culpa por situações indesejáveis ao outro. A rigidez do Etnocentrismo é proporcional a possibilidade de conflito entre os grupos. O Etnocentrismo associado à ignorância é responsável pela legitimação e manutenção da intolerância. Problema: círculo vicioso. Pessoas com pensamentos intolerantes geram ações intolerantes, contribuindo para a permanência de grupos intolerantes, formando novas pessoas intolerantes. A autora afirma que a base para uma sociedade justa e democrática não está no igualitarismo: as pessoas não devem ser iguais, mais possuírem direitos iguais: “Toda vez que a igualdade não respeita a diversidade, se torna injusta e tirânica. Inimiga da democracia” (MACHADO, 1996, p.59). Intolerância produz e reproduz preconceitos, discriminações e desigualdades. Preconceito: “julgamento prévio, rígido e negativo sobre um indivíduo ou grupo”. Preconceitos não são universais, não são monopólio de uma cultura ou grupo específicos, não são inatos, variam em espécie e em intensidade nos indivíduos, encorajam comportamentos discriminatórios. Podem expressar-se de formas sutis ou evidentes. Uma forma comum do preconceito é o estereotipo, que, exacerbando uma característica, cristaliza e simplifica. As idéias etnocêntricas que temos sobre as ‘mulheres’, os ‘negros’, os ‘empregados’, os ‘paraíbas de obra’, os ‘colunáveis’, os ‘doidões’, os ‘surfistas’, as ‘dondocas’, os ‘velhos’, os ‘caretas’, os ‘vagabundos’, os gays e todos os demais ‘outros’ com os quais temos familiaridade são uma espécie de ‘conhecimento’ um ‘saber’, baseado em formulações ideológicas, que no fundo transforma a diferença pura e simples num juízo de valor perigosamente etnocêntrico. (ROCHA, 1993, p.18-20). Discriminação: “conjunto de práticas baseadas em uma suposta superioridade, que favorecem determinada coletividade em prejuízo de outra” (p.94). É efetivada por indivíduos ou grupos. É visível, por exemplo, no mercado de trabalho (sexo, idade, obesidade etc). Há também a discriminação institucional (procedimento institucional padrão) que ocorre “independentemente do fato de a pessoa ter ou não preconceito aberto ou intenção de discriminar” (BENTO, 1998, p.54). Uma das práticas mais generalizadas de discriminação é o racismo. Racismo, noção européia surgida durante o nazismo, baseia-se num sistema classificatório de raças; nele, a constituição biológica origina qualidades morais e culturais. Nos momentos de crise, atribui-se os males à coexistência de outros grupos. Racismo foi generalizado para designar classificações de superioridade/inferioridade de outros grupos (cor da pele, sexo, origem étnica etc). Desigualdade Social: “forma de discriminação, pois consiste numa privação social” (RODRIGUES; SOUZA, 1994). Privilegiar alguns grupos em detrimento de outros, que não têm direitos e oportunidades efetivadas. Um exemplo é o desrespeito a igualdade de todos perante as leis. Segundo estudo do Bird (Banco Mundial) em 2004, o país que apresenta a melhor distribuição de renda da América Latina é o Brasil, que ainda assim é mais desigual do que qualquer país da Europa Oriental. A desigualdade apresenta-se de inúmeras maneiras: educação formal, concentração de renda, condições de moradia... Os grupos que são as maiores vítimas de desigualdades são as mulheres, os negros, os portadores de deficiência, os pobres. Para pensadores como Althusser, Bourdieu e Passeron, a escola é um local privilegiado para o aprendizado de saberes e normas de comportamento de grupos específicos. Para Pavei, a escola acaba, em diversos momentos, reproduzindo e legitimando desigualdades. A intolerância entre os grupos sociais é cotidianamente banalizada e exercida de inúmeras maneiras: nas piadas ou charadas ofensivas; nas palavras que denotam algo de ruim, formadas a partir de raízes étnicas; nos provérbios populares; nas “brincadeirinhas”; nos rótulos e estereótipos; nas representações sociais negativas; nas ironias; nas difamações; nos xingamentos; nos desmerecimentos; nas generalizações; nas tentativas de evitar, não se aproximar ou “se misturar”; nas reações de reprovação ou de nojo; nas omissões (diante de certos casos); nas eliminações; nos isolamentos; nas mortes; nas manifestações xenófobas entre habitantes de regiões de um mesmo país ou entre povos; nos genocídios; nas “limpezas” étnicas; nas guerras de cunho religioso e/ou étnico que tomam abrangência intra e internações; nos sentimentos de raiva e repúdio; nas desigualdades sociais, entre outras (PAVEI, 2005, p.97). Agora, juntando tudo o que foi apresentado Valores e sentimentos culturais construídos vão sendo aprendidos no processo de socialização. Tais concepções vão sendo difundidas e normatizadas, como também o etnocentrismo, preconceito e discriminação. Com a normatização, tradições preconceituosas ganham força e resistência. Estranhar o que é familiar – estratégia metodológica dos antropólogos – é a sugestão de Pavei, para o processo de desnaturalização. O distanciamento possibilita a compreensão da diferença. Segundo a autora, é necessário, no ambiente escolar, tratar de questões que dizem respeito à construção do outro em nossa cultura, compreendendo os elementos da intolerância, bem como a reprodução desses discursos. Partindo do exercício de alteridade e estranhamento, chega-se à relativização. Isso não significa dizer que “tudo vale”, mas que cada pessoa deve ser tratada com dignidade e respeito. Para terminar Por fim, Pavei sugere o acesso, a leitura e a discussão do material “Racista, eu?” Fonte: (Fonte: http://ec.europa.eu/comm/publications/young/txt_whatme_racist_pt.pdf) 6 A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE SÓCIO-CULTURAL E O ETNOCENTRISMO Walter Lúcio de Alencar Praxedes · Objetivos do capítulo: a) Realizar uma reflexão crítica sobre a educação voltada para o tratamento da diversidade social e cultural. Abordará os preconceitos racistas e etnocêntricos que fundamentam as práticas de exclusão e marginalização daqueles que são considerados os outros. b) Na segunda parte: discutirá como os Estudos Culturais podem inspirar algumas possibilidades de superação da intolerância nas relações sociais que ocorrem nos processos de educação escolar. · GLOBALIZAÇÃO: caracterizada pela internacionalização da economia, pelos avanços tecnológicos na comunicação e nos meios de transporte, vem promovendo o crescimento do comércio internacional, a migração de trabalhadores e refugiados, o crescimento do turismo, intensificando assim, o contato direto entre os seres humanos e evidenciando as diferenças no acesso ao poder e aos recursos econômicos (nas e entre as diferentes sociedades). · Diferenças tornam-se mais visíveis nos modos de viver, costumes e crenças, tanto nas pequenas e grandes cidades como entre as nações. Potencializam-se os choques entre as identidades baseadas no sentimento de pertencer a determinada classe social, gêneros, etnias, raças e confissões religiosas. PARADOXO: globalizou-se o mundo, mas as diferenças se acentuaram. · Debate sobre as diferenças se tornou mais politizado: tornou-se imprescindível o respeito e reconhecimento recíprocos entre indivíduos que convivem nos mesmos espaços. · Entretanto, é mais fácil chegar a um consenso (teórico) no que diz respeito às diferenças do que praticar este conceito. Indivíduos e grupos sociais que estão no poder (com acesso privilegiado aos bens materiais, às manifestações culturais e à educação escolar de qualidade) não concedem gentilmente uma redistribuição dos recursos que concentram para si. · UM DOS PRESSUPOSTOS ADOTADO PELO AUTOR (PRAXEDES): o respeito à diversidade não se deve combinar com a indiferença quanto às causas que geram as desigualdades social, econômica e de acesso às instâncias de poder e aos bens culturais. · Do racismo ao etnocentrismo · Preconceitos: São construídos pelo pensamento humano com base em esquemas inconscientes de percepção, avaliação e apreciação. Desde o nascimento somos “carregados” de valores e idéias que fazem parte da cultura a que pertencemos. · Incorporamos e construímos estes valores (esquemas inconscientes de entendimento) de maneira inconsciente. São estes esquemas inconscientes que nos orientam para entender o mundo e permitem que classifiquemos os seres humanos, objetos, fatos e relações que mantemos com os outros. Julgamos o mundo que nos rodeia a partir de nossos valores. · Preconceitos podem ser prejudiciais para as relações sociais. Podem levar a que adotemos atitudes de opressão e exclusão de indivíduos que consideramos feios, inferiores, menos inteligentes, menos esforçados, incapazes ou simplesmente diferentes. · Preconceitos contra indivíduos ou coletividade podem ter conseqüência práticas negativas. Alguns seres humanos são suscetíveis aos julgamentos que os outros realizam sobre eles. · Da raça ao racismo · RAÇA: uma das formas de classificação dos seres humanos que aprendemos nas culturas européias modernas e que consta no nosso pensamento como um preconceito. · Johan Friedrich Blumenbach (Antropólogo alemão, 1752-1841): Um dos primeiros cientistas que sistematizou a classificação dos seres humanos em raças diferenciadas. CRITÉRIOS ADOTADOS: origem geográfica, cor da pele, tipo facial, perfil do crânio, textura e a cor do cabelo. Dividiu a raça humana em cinco: caucasóide, mongolóide, etiópica, americana e Malaia. A raça caucasóide (branca) seria a mais perfeita, porque, para Blumenbach, a espécie humana teria se originado no Cáucaso. · Carl Von Linné (naturalista sueco, 1707-1778) classificou os seres humanos em quatro raças, descrevendo-as da seguinte forma: a) Americano: descrito como moreno, colérico, cabeçudo, amante da liberdade, governado pelo hábito, tem corpo pintado; b) Asiático: amarelo, melancólico, governado pela opinião e pelos preconceitos, usa roupas largas; c) Africano: negro, fleumático, astucioso, preguiçoso, negligente, governado pela vontade de seus chefes (despotismo), unta o corpo com óleo ou gordura, sua mulher tem vulva pendente e, quando amamenta, seus seios tornam-se moles e alongados; d) Europeu: branco, sanguíneo, musculoso, engenhoso, inventivo, governado pelas leis, usa roupas apertadas. · Ambos avaliaram e julgaram os seres humanos de acordo com os preconceitos desenvolvidos em meio às culturas européias em que viviam. · HOJE: cientistas acreditam que a classificação dos seres humanos em raças deve ser cientificamente desacreditada. · Da etnia ao etnocentrismo Etnocentrismo: forma de preconceito alimentada pela certeza de que as idéias, valores, crenças e costumes da coletividade da qual participamos são mais razoáveis, normais, corretas, higiênicas, justas, inteligentes, etc. do que a dos outros. · Etnocentrismo, deriva da palavra etnia. ETNIA: palavra inventada pelo zoologista francês Vacher de Lapouge, em 1896, para designar “o sentimento de vida comunitária, de vínculo afetivo, de solidariedade, de compartilhamento de costumes e de crenças na mesma origem e ancestralidade; distingue-se, portanto, da classificação dos seres humanos em raças ou nações” (p. 112) · Em 1950, a UNESCO, preocupada com o crescimento da intolerância racial e étnica, solicitou estudos a Claude Levi-Strauss, que definiu o etnocentrismo como “uma atitude antiga que repousa, sem dúvida sobre fundamentos psicológicos sólidos, pois tende a reaparecer em cada um de nós quando somos colocados numa situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas mais afastadas daquelas com que nos identificamos”. · Em 1971, Levi-Strauss afirmou que o etnocentrismo poderia até mesmo levar os indivíduos e comunidades a se tornarem insensíveis a outros valores, colocando a própria maneira de viver e pensar acima de todas as outras. Levi-Strauss afirmou que isso não poderia ser de todo mal, pois cada grupo humano se diferencia dos demais, produzindo assim a imensa diversidade humana. CLIFFORD GEERTZ: "a imagem de um mundo repleto de pessoas tão apaixonadamemte encantadas com a cultura uma das outras, que aspirem unicamente a celebrar umas às outras, não me parece constituir um perigo claro e atual; a imagem de um mundo repleto de pessoas que glorifiquem alegremente seus heróis e diabolizam seus inimigos, sim, infelizmente, parece constituí-lo". Praxedes considera o conceito de Geertz mais pertinente. Fredrik Barth (antropólogo): quando se acredita no pertencimento a um grupo étnico, tal crença define como deve ser o comportamento de cada membro, com quem ele pode manter relações de afetividade ou de negócios, quais as profissões e papéis que pode desempenhar na sociedade e que posição social o membro deve ocupar. Assim, a etnia se protege contra qualquer confronto ou modificação. Barth: A adoção da identidade étnica pode ser influenciada e, ao mesmo tempo, influenciar a distribuição desigual das condições de existência em uma sociedade. Sistemas poliétnicos estratificados (de uma mesma sociedade) existem onde grupos são caracterizados por um controle diferencial dos recursos considerados mais importantes por todos os grupos do sistema. Em relações de grupos étnicos de uma mesma sociedade, portanto, não é raro que se veja grupos étnicos rivais, diferenciar-se pouco a pouco, quanto ao seu nível de instrução, e tentar controlar e monopolizar os recursos educacionais com essa finalidade. Edward Said (intelectual palestino, Universidade de Colúmbia USA): em “Orientalismo o oriente como invenção do ocidente”, demonstrou como concepções preconceituosas podem ser associadas ao etnocentrismo. Descreve a visão de um colonizador inglês, que se intitulando Senhor do Egito (Evelyn Baring - também conhecido como Lorde Cromer, que atuou no Egito entre 1882-1907), que afirmava que os árabes eram "irracionais, depravados, infantis, indiferentes, simplórios, desprovidos de iniciativa e muito dados a adulações de mau gosto, intriga, simulação e maus tratos aos animais, incapazes de andar em uma estrada ou calçamentos [...]" (p. 114-115). Ao contrário, a raça anglo-saxônica era racional, virtuosa, madura e normal. Este tipo de análise é uma construção etnocêntrica do conquistador inglês que visava legitimar a pretensão de dominar os povos colonizados. Entre 1815-1914 o domínio colonial direto europeu cresceu de cerca de 35% para cerca de 85% de toda a superfície da terra. Horkheimer e Adorno: estudando os preconceitos sobre os judeus, concluíram que a discriminação étnica e o racismo podem ser encarados como um mecanismo perverso de projeção: o sentimento de fragilidade, fraqueza e insignificância em relação de cada indivíduo ou grupo em relação à humanidade como um todo, ou à sua própria sociedade, é compensado por um sentimento de superioridade racial. Discriminar passa a ser uma atitude de compensação, de elevação da auto-estima de quem discrimina. Judeus: Em uma sociedade capitalista, que valoriza a propriedade e o conhecimento, aqueles que conseguem adquiri-los (muitos dos judeus) acabam se tornando vítimas da amargura e do ressentimento daqueles que não o conseguem. O anti-semitismo, para Horkheimer e Adorno, tem origens econômicas. O racismo à brasileira Chegada dos colonizadores (século XVI), e demais imigrantes europeus (século XIX), as relações sociais foram fortemente marcadas pelo preconceito e a intolerância em relação aos índios e africanos (e a descendência de ambos). Euclides da Cunha, Silvio Romero, Monteiro Lobato, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna são exemplos de intelectuais brasileiros que aderiram às teorias etnocêntricas. Pós segunda guerra mundial: discriminação fundamentada no conceito de raça ou etnia ficaram desmoralizadas. Mesmo assim, embora atualmente sejam consideradas deselegantes, grosseiras e crime (Constituição Brasileira pune o racismo como crime inafiançável), ainda continuam a existir (apesar da “democracia racial brasileira”, Brasil como “junção” harmônica das três raças). Racismo à brasileira: forma preconceituosa como os negros são tratados em nosso país. Veladamente, sem conflitos ou animosidade, aqueles considerados "racistas à brasileira" ainda carregam em seu íntimo, o conceito de uma hierarquia entre as raças, com cada um ocupando seu lugar previamente definido na pirâmide social, com os brancos no topo. Este racismo tem vergonha de se assumir como tal, mas que não deixa de gerar a humilhação e a exploração dos negros (dificilmente, em qualquer instância de poder, os negros ocupam posição de destaque). Sociedade brasileira pode ter se acostumado com o tratamento diferenciado reservado aos negros, pois isto os torna úteis para a realização dos trabalhos considerados sujos, pesados e de baixa remuneração. Mecanismos de incorporação: os próprios negros podem ter incorporado alguns valores: bons no esporte, na dança, na música popular, na culinária e que são indisciplinados para aquelas atividades que exijam paciência, concentração, persistência, inteligência e racionalidade. Superando o racismo e o etnocentrismo na ação educativa: a contribuição dos Estudos Culturais. Estudos Culturais e ação educativa Com as obras do jamaicano Stuart Hall (Professor da Universidade de Birminghan), ocorreu na década de 1960-1970, a formação dos chamados Estudos Culturais na Inglaterra e Estados Unidos. Estudos culturais: apontam para a hipótese de que entre as diferentes culturas existem relações de poder e dominação que devem ser questionadas. ESTUDOS CULTURAIS: Envolvimento explicitamente político. Análises não pretendem ser neutras ou imparciais. Toma partido dos grupos em desvantagem nas relações estudadas. Estudos Culturais podem promover uma educação voltada par o respeito à diversidade e à diferença, rompendo com o universalismo eurocêntrico dominante na Universidade brasileira. Questões colocadas pelos Estudos Culturais que desafiam o pensamento e a prática educacionais nos países que nasceram como colônias européias como o Brasil a) Em que mediada a educação escolar e os currículos não estão comprometidos com a herança colonial e com isso possibilitam a manutenção do preconceito e da discriminação étnica e racial contra os afro-descendentes e índios contra os resultados e uma cultura híbrida que não se afirma com as expectativas eurocêntricas? b) Em que medida, a noção de raça forjada nos séculos XVIII e XIX pelo pensamento europeu, continua influindo na formação das identidades de alunos e educadores? c) Como os materiais didáticos, as narrativas literárias e os textos científicos e filosóficos continuam celebrando a soberania do sujeito imperial europeu? d) Como as subjetividades de alunos e educadores de diferentes grupos étnicos e raciais são influenciadas pelos padrões culturais europeus? e) Como tornar a escola um espaço de convivência democrática entre os diferentes segmentos étnicos e raciais da sociedade brasileira? "Como podemos construir um discurso que elimine os efeitos do olhar do colonizador enquanto ainda estamos sob a sua influência? Para a superação dos limites de um pensamento simplesmente reflexo e visto como caricato pelos centros metropolitanos, podemos aprender muito com aquelas produções culturais relevantes politicamente e com voz própria: Enrico Dussel (filosofia), Stuart Hall e Edward Said (estética), Leonardo Boff (teologia), Dermeval Saviani e Paulo Freire (educação), Maurício Tragtenberg (sociologia) entre outros tantos. A política do reconhecimento das identidades: da diversidade à diferença A necessidade de reconhecimento é uma das características próprias do ser humano, uma vez que interpretamos quem somos como membros de uma coletividade ou como indivíduos, dependemos do reconhecimento que nos é dado pelos semelhantes. A formação de identidades é um processo social que depende do contato e das características físicas, cognitivas, afetivas, sexuais, culturais e étnicas dos seres humanos envolvidos nas situações educacionais. A construção das identidades pode ser analisada como um processo de aprendizagem, e é formado por: a) Competência lingüística necessária para os processos de comunicação; b) competências cognitivas que nos propricia a busca dos conhecimentos necessários para a vida em sociedade; c) competência para a interação que possibilita a ação, a convivência com o outro e, enfim, a participação na vida social. As reivindicações dos sujeitos, tendo em vista o reconhecimento de sua identidade (como o caso do movimento negro no Brasil), ajudam a entender melhor que as dessemelhanças entre os seres humanos não representam simplesmente uma forma de diversidade cultural. Os mecanismos sociais, muitas vezes, são o que geram a dessemelhança. Muitos aceitam celebrar a diversidade humana à distância (via tela de computador, televisão ou cinema), pois tem uma concepção liberal de diversidade. Ou seja, não questionam os mecanismos sociais (propriedade dos mecanismos políticos, concentração de poder, dos mecanismos culturais como a educação escolar, hierarquização dos indivíduos em superiores e dominantes e em inferiores e subalternos). DIVERSIDADE, VISTA POR ESTE PRISMA, NÃO É NATURAL: Na prática vivemos em relação de intercâmbio econômico e cultural e não estamos simplesmente separados por uma diversidade neutra e bela, que pode ser contemplada desde que cada um saiba ocupar o seu lugar específico no espaço social (solidariedade orgânica, ORDEM E PROGRESSO). Sociedades humanas contemporâneas: Heterogêneas, compostas por diferentes grupos humanos, interesses contrapostos, classes e identidades culturais em conflito. Vivemos em sociedades nas quais os diferentes estão quase permanentemente em contato. Os diferentes são obrigados ao encontro e à convivência, como ocorre no cotidiano das escolas. Para Charles Tylor, na ação educativa, devemos sempre levar em consideração que não dar um reconhecimento igualitário a alguém pode ser uma forma de opressão. Também não devemos permitir que o indivíduo, ou grupo de pessoas, se veja de forma limitada, degradante e depreciado. Um falso reconhecimento é uma forma de opressão. Este exemplo pode ser visto nos portadores de deficiência e grupos subalternos, pobres, negros, prostitutas, homossexuais. As representações construídas sobre essas pessoas são, muitas vezes, deprimentes e lhes causam sofrimento e humilhação, principalmente porque, quase sempre, tais representações depreciativas são construídas para a legitimação da exclusão social e política dos grupos discriminados. A projeção sobre o outro desta imagem inferior ou humilhante pode deformar, oprimir até o ponto em que essa imagem seja internalizada. Não se trata, política e legalmente como iguais, aqueles que são desiguais econômica e socialmente.Todos os homens são dignos de respeito, mas isto não significa que devamos deixar as inúmeras formas de diferenciação que existem entre os seres humanos ou grupos. Devemos fornecer apoio e recursos necessários para que não haja assimetria, desigualdade de oportunidades e no acesso aos recursos. CONCLUSÃO A escola democrática será construída com base no desenvolvimento das consciências críticas quanto aos processos de imposição de culturas e visões de mundo, e da convivência entre identidades culturais e sociais múltiplas. Necessário questionar as relações de poder assimétricas (desconstrução não apenas dos privilégios que beneficiam os homens brancos, a heterossexualidade e os donos das propriedades, mas também aquelas condições que tem impedido outras pessoas de falar em locais onde aqueles que são privilegiados em função do legado do poder colonial assumem a autoridade e as condições para a ação humana). Respeitar a diferença, mas admitir que os diferentes têm direitos iguais. Aceitar a heterogeneidade da sociedade onde: a) não haja exclusão social de nenhum elemento da totalidade; b) os conflitos de interesse e de valores sejam negociados pacificamente c) a diferença seja respeitada. Conviver e aceitar o outro não pode significar que este deva ter menos oportunidades, menos atenção e menos recursos. Educação democrática pressupõe que todos possam participar dos rumos da educação, e não apenas dirigentes, professores, acadêmicos e técnicos. A escola, como esfera pública democrática, possibilita a capacitação de pais, alunos e educadores para compartilharem a busca de soluções para os problemas da escola, do bairro, da cidade, do Estado, do País e da vida da espécie humana no planeta. Uma escola pretensamente perfeita é um desastre educativo. O problema é que o controle dos alunos, por meio da disciplina, e as idéias de ordem, organização e limpeza, muitas vezes, tornam-se prioritários em detrimento do direito de participação. Para que tudo isto ocorra, são necessárias negociações permanentes.