Filosofia de Gestão de Pessoas, Processo da Estratégia e

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 Filosofia de Gestão de Pessoas, Processo da Estratégia e Performance Organizacional
Autoria: Marcos Abilio Bosquetti
O Propósito deste artigo é aprofundar o conhecimento sobre a influência dos princípios
filosóficos da gestão de pessoas, ou seja, o significado das pessoas no trabalho para os
dirigentes da organização, no processo da estratégia e na performance organizacional. Apesar
dos inúmeros modelos teóricos propostos tanto pela área de estratégia como de gestão de
pessoas, diversos pesquisadores reconhecem que ainda falta sólida evidência empírica do
alinhamento da gestão de pessoas com a estratégia e performance das organizações. Esta falta
de alinhamento estratégico continua sendo apontada como a principal causa dos fracassos no
alcance dos objetivos e na melhoria da performance da organização (Ulrich, 1997; Fitz-Enz,
2000, Bowen e Ostroff, 2004; Boleslie, Dietz e Boon, 2005; Becker e Huselid, 2006; Kaplan e
Norton, 2006, 2008; Boxall e Purcell, 2008). Diante os desafios que permeiam o campo da
gestão estratégica de pessoas, alguns pesquisadores têm feito uma distinção analítica entre a
camada superficial e mais tangível da gestão de pessoas, composta pelas políticas e práticas
de RH e o nível mais profundo, composto pela filosofia e princípios que governam a gestão
de pessoas na organização (Becker & Gerhard, 1996), mas a grande maioria das pesquisas
tem investigado apenas a camada mais evidente (Boxall & Purcell, 2008). Portanto, os dois
níveis de análise da gestão de pessoas (Boxall e Purcell, 2008), a tipologia das filosofias de
gestão de pessoas (Milton, 1970), a abordagem da estratégia como prática (Whittington, 1993)
e as sugestões de futuras pesquisas apontadas na revisão bibliográfica formam o quadro
teórico de referência do presente estudo. Como estratégia de pesquisa utilizou-se o estudo
multicasos com abordagem qualitativa, enfoque indutivo e perspectiva histórica,
possibilitando, assim, maior abrangência analítica entre diferentes aspectos do fenômeno
ocorrido ao longo da trajetória das três organizações estudadas. Os dados, oriundos de
múltiplas fontes, foram coletados por meio de quatro técnicas, incluindo a condução de 37
entrevistas semi-estruturadas e em profundidade com gerentes e não gerentes das três
organizações. Os dados foram tratados utilizando-se software específico para análise
qualitativa. Os resultados desta pesquisa ilustram que a filosofia de gestão de pessoas pode
influenciar, de forma significativa, o processo da estratégia empresarial (no continuum:
deliberada – emergente) bem como o significado de performance organizacional e o nível de
abrangência de interesses e de participação dos stakeholders no processo. Apesar de fazer
sentido e de ocorrer na prática organizacional, a filosofia de gestão de pessoas não tem estado
presente nas discussões sobre o processo da estratégia e performance organizacional.
1 Gestão de Pessoas, Estratégia e Performance Organizacional
A literatura aponta que a pesquisa sobre a gestão de pessoas, estratégia e performance
organizacional tem uma longa história iniciada com a abordagem pioneira de
Woodward (1965) e fortalecida com a inauguração do campo da gestão estratégica de
pessoas a partir da argumentação de Devanna, Fombrum & Tichy (1981) sobre a importância
do alinhamento da gestão de pessoas com a estratégia empresarial para o sucesso da
organização.
Para aumentar o desempenho empresarial, diversos autores de RH (Storey, 1992; Becker,
Huselid, Pickus & Spratt, 1997; Wright & Snell, 1998) e também de estratégia organizacional
(Kaplan & Norton, 1996, 2004, 2008) têm proposto vários modelos de integração entre
estratégia e gestão de pessoas, sendo que a grande maioria deles considera a estratégia
empresarial como força motriz das políticas e práticas de RH numa abordagem de causaefeito. A lógica dos modelos de integração é que “as práticas de RH devem desenvolver
habilidades, conhecimento e motivação dos empregados para que se comportem de forma
instrumental para a implementação de uma dada estratégia empresarial.” (Bowen & Ostroff,
2004, p. 203).
A Figura 1 apresenta o modelo causal desenvolvido por Boselie, Dietz & Boon (2005, p.72)
para ilustrar sua síntese sobre as propostas de alinhamento encontradas na literatura de gestão
estratégica de pessoas.
Figura 1. Padrão Causal entre Gestão de Pessoas e Performance Organizacional
Fonte: Boselie, Dietz & Boon (2005)
A meta-análise de Boselie et al (2005) aponta a predominância de um processo seqüencial,
originado pelos objetivos e pelas estratégias da organização que orientam o desenvolvimento
de respostas do RH para a execução da estratégia e o alcance dos objetivos da empresa,
avaliados pela performance empresarial.
Na área de estratégia a variável dependente dessa relação causal, ou seja, a performance
organizacional vem recebendo atenção crescente nos últimos anos. O assunto ganhou
destaque em função das limitações do modelo tradicional de avaliação do desempenho
empresarial, baseado apenas em indicadores financeiros e historicamente orientado.
Peter Drucker (1972) já questionava o uso de indicadores estritamente financeiros para avaliar
o desempenho empresarial e apontava a necessidade das organizações assumirem
responsabilidades que vão além da sua performance financeira. Entretanto, foi a partir de
1992, quando Robert Kaplan e David Norton publicaram, na Harvard Business Review, o
artigo The Balanced Scorecard: Measures That Drive Performance, que o conceito e o debate
sobre desempenho empresarial foi ampliado e alavancou o desenvolvimento de vários
2 modelos e ferramentas de gestão da estratégia, destacadamente aquelas criadas por Kaplan e
Norton (1996, p. 5) para traduzir a “estratégia em ação” devido a ampla aplicação nas
organizações.
Mesmo após uma década de desenvolvimento e aplicação de ferramentas e modelos de gestão
da estratégia, Kaplan e Norton (2008) reconhecem que o maior desafio apontado pelos
executivos ainda é conseguir implementar a estratégia de forma efetiva para aumentar a
performance da organização e propõem um processo de integração entre planejamento e
execução da estratégia contendo seis estágios. Os três primeiros passos destinam-se à
utilização do BSC e do mapa estratégico no processo de formulação da estratégia; o quarto
passo trata do plano operacional para fazer a estratégia acontecer; o quinto passo está
relacionado com a avaliação da estratégia entre previsto versus executado e a investigação de
dificuldades que possam emergir ao longo do processo. O estágio final pesquisa o negócio e
seu ambiente para ver se há necessidade de fazer mudanças ou adaptações no plano. A
Figura 2 ilustra o modelo proposto por Kaplan e Norton (2008).
Figura 2. Sistema de Alinhamento da Organização com a Estratégia
Fonte: Kaplan & Norton (2008)
Trata-se de um processo de integração que considera a estratégia empresarial como
antecedente das políticas, estratégias e práticas de gestão de pessoas e das demais funções de
uma organização.
Apesar desta visão clássica do processo estruturado, planejado e racional da estratégia, tanto o
papel da informalidade e da não racionalidade, como o aspecto social do processo têm sido
destacados por alguns autores e comprovados em pesquisas empíricas (Pettigrew, 1985;
Johnson, 1987; Mintzberg, 1994; Mintzberg, Quinn & Ghoshal, 1995; Bailey, Johnson &
3 Daniels, 2000). Esta dicotomia entre design versus processo da estratégia tem sido bastante
debatida na área da administração.
O enfoque do design considera a estratégia como deliberada e direcionada para a produção de
um futuro planejado. Sua missão é descobrir os fatores que determinam o sucesso e permitir
que os gerentes desenvolvam estratégias para alcançar vantagem competitiva em longo prazo.
O clássico enfoque racionalista do pensamento estratégico consiste basicamente de três etapas
distintas: a primeira refere-se à análise do ambiente, a segunda é voltada à formulação da
estratégia, e a terceira visa garantir sua implementação. (Kay, 1993).
Já o enfoque do processo percebe o planejamento formal de longo prazo menos relevante que
o processo pelo qual a estratégia “emerge” de diferentes combinações e influências na
organização. Mintzberg & Waters (1985) ampliaram a visão da estratégia ao afirmarem que
“a estratégia é emergente, ao invés de deliberada, racional e top-down como argumenta a
escola clássica do pensamento estratégico”. Nesta nova perspectiva de análise, destaca-se a
escola emergente da “estratégia como prática” que tem por fundamento a idéia de que a
estratégia é uma prática social e, portanto, deve ser compreendida sob um referencial analítico
sociológico (Whittington, 1993, 2006; Wilson & Jarzabkowski, 2004).
Apesar dos inúmeros modelos teóricos gerados tanto pela área de estratégia como também da
área de gestão estratégica de pessoas diversos pesquisadores reconhecem que ainda falta
sólida evidência empírica do alinhamento da gestão de pessoas com a estratégia e
performance das organizações. Esta falta de integração continua sendo apontada como a
principal causa dos fracassos no alcance dos objetivos e da melhoria da performance da
organização, uma vez que este tem sido considerado a variável dependente nessa relação
causal (Ulrich, 1997; Fitz-Enz, 2000, Bowen e Ostroff, 2004; Boleslie, Dietz e Boon, 2005;
Becker e Huselid, 2006; Kaplan e Norton, 2006, 2008; Boxall e Purcell, 2008).
Autores como Mintzberg, Ahlstrand e Lampel (2005) e Paauwe (2004) reconhecem que as
pessoas e o fruto de suas interações sociais continuam sendo um dos grandes desafios para o
sucesso da estratégia e, ao mesmo tempo, uma fonte de vantagem competitiva sustentada, por
ser uma eficaz e durável barreira à imitação.
Diante do impasse e das incertezas que permeiam o campo da gestão estratégica de pessoas,
alguns pesquisadores têm feito uma distinção analítica entre a camada superficial e mais
tangível da gestão de pessoas, composta pelas políticas e práticas de RH e o nível mais
profundo, composto pela filosofia e princípios que governam a gestão de pessoas na
organização (Becker & Gerhard, 1996), mas a grande maioria das pesquisas investiga a sua
camada mais evidente (Boxall & Purcell, 2008). A Figura 3 ilustra as duas camadas que
compõem a gestão de pessoas.
Embora a maioria das pesquisas tenha investigado a camada superficial, Boxall & Purcell
(2008) acreditam que as respostas sobre o alinhamento entre gestão de pessoas, estratégia e
desempenho empresarial estejam enterradas na camada mais profunda onde se alojam os
princípios filosóficos que governam a gestão de pessoas e do trabalho.
No entanto, uma ampla revisão bibliográfica, não somente de estratégia e gestão de pessoas e
relações de trabalho, mas também das áreas da psicologia e antropologia, realizada para
fundamentar o presente estudo sobre o que existe de pesquisas em relação à filosofia de
gestão de pessoas ou HR Philosophy aponta a obra de Charles Milton (1970), professor e
pesquisador norte-americano de comportamento organizacional, como o texto mais recente
que discute em profundidade a abordagem filosófica de gestão de pessoas.
4 Figura 3. Gestão de Pessoas: Dois Níveis de Análise
Fonte: Boxall & Purcel (2008)
Milton (1970) utiliza o conceito clássico de filosofia de gestão de pessoas ou de pessoal
definido pelo psicólogo Lewis Johnson. Segundo Johnson (1946) “uma filosofia de pessoal
representa as crenças, princípios, ideais e pontos de vistas fundamentais da gerência no que
diz respeito à organização e ao tratamento das pessoas no trabalho, de modo que cada um
consiga desenvolver suas habilidades e realizar seu potencial intrínseco e, assim, oferecer o
seu melhor para a organização.” (Johnson, 1946, p.43).
Em sua obra, Milton (1970) apresenta uma tipologia das filosofias de gestão de pessoas para
fundamentar as atitudes das empresas em relação aos seus empregados ao longo de todo o
século XX nos Estados Unidos. O autor apresenta, de forma cronológica, a tipologia de quatro
filosofias de gestão de pessoas: Laissez-Faire, Paternalista, Técnica e Humanista, destacando
as três últimas como mais presentes na atualidade, enquanto que a primeira predominou na
virada do século XIX.
Milton (1970) considera as últimas duas filosofias de gestão de pessoas (Técnica e
Humanista) como predominantes no final do período do seu estudo e defende que ambas se
tornaram mais dinâmicas nos Estados Unidos após a deterioração das atitudes individualistas
em relação aos problemas organizacionais e sociais, facilitando, assim, a subseqüente
aceitação da responsabilidade social das empresas perante os empregados e o surgimento do
senso de confiança e respeito mútuo (Milton, 1970). A Tabela 1 apresenta uma síntese dos
conceitos, valores e postura gerencial em relação às pessoas no trabalho que caracterizam a
tipologia das filosofias técnica e humanista.
Tabela 1. Filosofia Técnica versus Humanista de Gestão de Pessoas
Filosofia
Conceito e Postura em Relação às Pessoas no Trabalho
Filosofia
Técnica
A busca de maior eficiência demandou dos gestores uma utilização mais apropriada das
habilidades individuais. A visão como recurso natural e diferenças individuais eram consistentes
com o conceito de máquina evoluído com a administração científica que se especializou nas
tarefas dos empregados. A versão moderna da racionalidade técnica é caracterizada por maior
flexibilidade na gestão. Mas as disciplinas oriundas da filosofia técnica de gestão de pessoas têm
sido utilizadas primeiramente para promover a eficiência, a manipulação e controle, ao invés de
promover um ambiente de trabalho propício para a satisfação dos anseios dos empregados.
Filosofia composta basicamente pelo conceito Humanista com enfoque do empregado como
Ator Social. Nesta filosofia de gestão de pessoas o conhecimento e técnicas científicas visam
alcançar um ambiente de trabalho mais gratificante do que meramente a manipulação e controle
dos empregados. Executivos com uma filosofia humanista de gestão de pessoas buscam
harmonizar as relações empregador-empregado com valores e sentimentos da organização e da
comunidade. Requerimentos legais em relação ao trabalho são considerados como padrão
mínimo, ao invés do ideal e esforços adicionais são empenhados para promover políticas mais
orientadas ao atendimento dos anseios e expectativas dos empregados.
Filosofia
Humanista
Fonte: Adaptado de Milton (1970)
5 A filosofia humanista é caracterizada por uma concepção mais abrangente do comportamento
humano, motivacional e social nas organizações, enquanto que a filosofia técnica de gestão de
pessoas é direcionada por incentivos econômicos, ajustes das pessoas ao trabalho/cargo e às
demandas da organização industrial. Para o autor, uma abordagem predominantemente
técnica em relação ao aspecto humano das organizações não estimula nem alavanca de fato
todo o potencial humano, privando acionistas, gerentes, empregados, governo e a comunidade
dos benefícios mútuos da filosofia humanista (Milton, 1970).
Os dois níveis de análise da gestão de pessoas (Boxall e Purcell, 2008), a tipologia das
filosofias de gestão de pessoas (Milton, 1970), a abordagem da estratégia como prática
(Whittington, 1993) e as sugestões de futuras pesquisas apontadas na revisão bibliográfica
formam o quadro teórico de referência do presente estudo empírico que investiga como a
filosofia de gestão de pessoas pode influenciar o processo da estratégia e o significado de
performance organizacional.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Esta pesquisa exploratória adota a estratégia de estudo multicasos com abordagem qualitativa,
enfoque indutivo e perspectiva histórica, possibilitando, assim, maior abrangência analítica
entre diferentes aspectos do fenômeno ocorrido ao longo da trajetória de três organizações
estudadas: a Semco, líder Brasileira em soluções industriais, reconhecida internacionalmente
pela sua transformação sob a liderança de Ricardo Semler; a Australiana Lonely Planet, líder
mundial em edições de guias de viagens; e a Canadense Hydro-Quebec, maior empresa do
setor elétrico norte americano e referência internacional em pesquisa e desenvolvimento em
sistemas de geração e distribuição de eletricidade.
A escolha das organizações para a realização deste estudo de multicasos obedeceu aos
seguintes critérios: (i) origem da organização, priorizando empresas fora dos Estados Unidos
como recomendam as revisões bibliográficas internacionais sobre gestão estratégica de
pessoas; (ii) tipo de configuração organizacional (Mintzberg, 2007), privilegiando três tipos
distintos (Adhocrática: Semco, Máquina: Hydro-Quebec, e Profissional: Lonely Planet) para
proporcionar à pesquisa exploratória maior riqueza de contexto e insights; (iii) posição de
destaque nos setores de atuação; (iv) exposição a eventos críticos ao longo de sua trajetória,
visando capturar mudanças organizacionais, onde o fenômeno em estudo se torna mais
evidente; e (v) potencial de contribuição que o caso oferece para o alcance dos objetivos do
estudo.
Para efetivação da pesquisa foram coletados dados primários e secundários de múltiplas
fontes. Precedeu o trabalho de campo uma análise da biografia oficial das empresas que,
coincidentemente, possuem pelo menos uma biografia oficial, publicada pelos fundadores ou
líderes da organização (Semler, 1988 e 2003 sobre a Semco; Lonely Planet: Wheeler e
Wheeler, 2005 sobre a Lonely Planet; Chanlat, Bolduc & Larouche, 1984 e Bolduc, Hogue &
Larouche, 1989 sobre a Hydro-Quebec) e de outros documentos e informações
disponibilizadas nos websites das organizações em estudo, bem como de outras fontes de
dados secundários como associações e órgãos reguladores do setor e a imprensa especializada.
Os dados primários foram coletados por meio de quatro técnicas distintas: roteiro semiestruturado de entrevistas, gravação das entrevistas, diário de campo do pesquisador e
mensagens de correio eletrônico. Ao todo foram conduzidas 37 entrevistas semi-estruturadas
e em profundidade com gerentes e não gerentes das três organizações (15 diretores/gerentes e
22 profissionais) ao longo de 23 visitas ao campo. Para definir os entrevistados, foi utilizada a
técnica snowball sampling (bola de neve) que, segundo Noy (2008) é uma estratégia de acesso
a atores importantes para o estudo, descobertos durante as entrevistas e indicados pelos
6 próprios entrevistados. As entrevistas exploraram: as grandes mudanças ocorridas na
organização; o significado das pessoas no trabalho e de performance organizacional para a
liderança; o propósito e estratégia da organização; as principais características da cultura
organizacional; e a política de gestão de pessoas e seu alinhamento com a estratégia
empresarial.
Para a análise e interpretação dos dados foi aplicada uma versão moderna da análise de
conteúdo sugerida por Hardy, Harley & Philips (2004), com enfoque mais interpretativo e
reflexivo, cujas categorias de cada tema e sua ênfase emergem dos dados coletados, num
processo iterativo de análise entre textos e categorias. Para tratar o grande volume de dados
coletados foi utilizado o software de análise qualitativa N-Vivo7.
Os casos foram analisados individualmente e tiveram como pano de fundo as três dimensões
da análise contextual-processual sugerida por Pettigrew (1987) que visa explicar o que
mudou, como mudou e o porquê da mudança organizacional. Foram aplicadas as estratégias
de mapeamento visual e a narrativa, propostas por Langley (1999) para construir a história e a
linha do tempo de cada empresa estudada, adotando uma perspectiva longitudinal e
contextualista. Numa segunda etapa foi realizada a análise cruzada de casos, recomendada por
Eisenhardt (1989) para identificar, de forma ampliada, padrões de manifestação do fenômeno
entre os casos, denominado por Stake (2006) como o quintain do estudo de multicasos.
A estruturação de um banco de dados da pesquisa e a aplicação de técnicas de triangulação de
múltiplas fontes de dados e de múltiplos métodos de coleta, bem como a validação dos
estudos individuais de casos por pelo menos um dos líderes de cada empresa estudada,
proporcionou maior robustez ao processo de análise e interpretação de dados. Por se tratar de
uma pesquisa de campo internacional, realizada em três continentes distintos envolvendo três
idiomas nativos (Português, Inglês e Francês Québécois), o presente estudo seguiu as
recomendações de Ryen (2002) quanto às decisões de idioma nas etapas do projeto de
pesquisa, das entrevistas e da análise, visando reduzir o desafio lingüístico e os potenciais
impactos de tradução na exatidão e autenticidade dos dados da pesquisa.
APRESENTAÇÃO DOS CASOS
Esta seção apresenta uma síntese dos casos estudados, composta por uma breve descrição da
empresa, seus eventos críticos que separam as fases de sua trajetória, bem como sua filosofia
de gestão de pessoas (significado das pessoas no trabalho para a liderança), o significado de
performance organizacional e sua estratégia predominante em cada fase estudada.
Caso Semco (Brasil)
Este caso de sucesso ficou bastante conhecido após a publicação dos best-sellers ‘Virando a
Própria Mesa’ e, posteriormente, ‘Maverick’, escrito pelo empresário Ricardo Semler (1993),
reconhecido internacionalmente pelo sucesso do seu modelo de gestão não convencional.
Historicamente o grupo Semco tem entre três a seis negócios em seu portfólio, sendo que a
Semco Equipamentos Industriais tem sido a única a permanecer no portfólio desde o início da
gestão de Ricardo Semler. Atualmente a Semco emprega 800 pessoas e possui quatro
negócios em parceria com líderes mundiais: desenvolvimento de soluções customizadas para
mistura e refrigeração industrial, tecnologia de sistemas inteligentes para processamento e
automação de correspondências e documentos, administração de fundos private equity, e
tecnologia de geração de energia em alta escala a partir de fontes renováveis.
Seus 55 anos de história foram analisados neste estudo em duas fases distintas separadas por
um evento crítico que marcou a trajetória da empresa: a posse de Ricardo Semler como
7 presidente da Semco a partir de 1980. A Tabela 2 resume este evento crítico, seguindo a
sugestão de Pettigrew (1987) para a análise contextual-processual de estudos de casos.
Tabela 2. Evento Crítico na Trajetória da Semco
Dimensão
Contexto
(por que)
Conteúdo
(o que)
Processo
(como)
Descrição Resumida do Evento
A sobrevivência da empresa familiar Semco Equipamentos estava ameaçada devido à crise na
indústria naval (único ramo de negócios da empresa) e ao reduzido número de clientes
(estaleiros). O jovem Ricardo Semler ameaça deixar a empresa do pai para montar um negócio
próprio, uma vez que suas idéias sobre diversificação e estilo de gestão não são ouvidas pela
diretoria da Semco que prefere aguardar o fim da crise dos estaleiros. Diante da pressão, o
fundador nomeia Ricardo Semler como Presidente da Semco que recebe carta branca para tentar
recuperar a empresa.
Sob a liderança de Ricardo Semler a Semco cresce rapidamente, sai do vermelho e se torna líder
nacional em diversos negócios e mercados. A Semco passa a ser referência internacional em
transformação organizacional e caso de sucesso em gestão participativa e desenvolvimento de
parcerias com empresas estrangeiras.
Ricardo Semler diversificou os negócios da Semco. Lançou vários negócios de sucesso, por meio
de parcerias e joint-ventures com empresas líderes mundiais, trazendo tecnologia de ponta e
soluções inovadoras para diversos setores da indústria Brasileira. Realizou uma transformação
nas políticas e práticas de gestão de pessoas na Semco, fundamentadas por uma nova filosofia de
gestão participativa e democrática, extremamente oposta aquela praticada pela gestão anterior.
Fonte: Elaborada pelo autor com base nos dados da pesquisa de campo
Significado das Pessoas no Trabalho: Recursos → Adultos que fazem a diferença
Na primeira fase da trajetória da Semco as pessoas eram consideradas como recursos da
organização. Na segunda fase o modelo de sucesso de Ricardo Semler é fundamentado no
reconhecimento e tratamento das pessoas como adultos que fazem a diferença.
Significado de Performance Organizacional: Lucro → Parcerias de Longo Prazo
Na primeira fase o significado de performance era medido por indicadores financeiros
tradicionais. Já na segunda fase a pesquisa de campo aponta que o principal indicador de
sucesso da Semco é o número de parcerias (internas e externas) bem sucedidas. A empresa
mostra, com orgulho, seu histórico de sucesso no desenvolvimento de relações de parcerias de
longo prazo, onde empregados, clientes e empresas parceiras cresceram com as iniciativas da
Semco.
Estratégia: Foco na Indústria Naval Brasileira → Parcerias In & Out
Na primeira fase da Semco, gerida pelo seu fundador, a estratégia da empresa era atender com
qualidade o pequeno número de estaleiros no Brasil. Na segunda fase, liderada por Ricardo
Semler, a estratégia da Semco passou a ser o desenvolvimento de parcerias, tanto dentro da
empresa, criando um ambiente de trabalho participativo e de aprendizado com
relacionamentos baseados na confiança, respeito mútuo e visão de longo prazo (propício para
alavancar o potencial das pessoas e da sinergia dos negócios), como fora da organização, por
meio de parcerias e joint-ventures com empresas estrangeiras inovadoras, trazendo para o
Brasil tecnologia de ponta em produtos e serviços industriais de alta complexidade.
Caso Hydro-Quebec (Canadá)
A Hydro-Quebec é a maior empresa do setor de geração, transmissão e distribuição de energia
elétrica do continente americano. A empresa é controlada pelo Governo da Província de
Quebec que detém 100% do seu patrimônio, avaliado em US$ 68 bilhões. Com 19 mil
8 empregados, a Hydro-Quebec fornece eletricidade para toda a Província de Quebec e seu
excedente de geração é exportado para os Estados Unidos, abastecendo parte da demanda do
sistema elétrico do Estado de Nova Iorque.
Os 65 anos de história da Hydro-Quebec foram analisados neste estudo em três fases distintas,
demarcadas por dois eventos críticos: a nomeação de Guy Coulombe para presidente, em
1981, que separa a primeira da segunda fase da empresa, e a nomeação de André Caillé para
presidente, em 1996, que inaugura a terceira fase. A Tabela 3 resume os dois principais
eventos nas três dimensões da análise contextual-processual.
Tabela 3. Eventos críticos na Trajetória da Hydro-Quebec
Dimensão
Contexto
(por que)
Descrição Resumida do Evento 1
A Hydro-Quebec atingiu um nível tão
alto de sucesso, legitimidade e independência que já não precisava mais do
governo – um fato difícil de ser aceito
pela maioria dos políticos que se sentia
ofuscado com o brilho da companhia.
Conteúdo
(o que)
Em 1981 o Governo de Quebec nomeou Guy Coulombe para CEO e Presidente do Conselho de Administração um servidor público formado em sociologia e o primeiro executivo de fora da
companhia. Tinha a missão de modernizar a gestão da Hydro-Quebec.
O processo de modernização da gestão
foi realizado por meio de reengenharia,
reestruturação e racionalização de atividades, demissões, burocratização, rigoroso sistema de comando e controle,
paralisação de obras de expansão e ênfase na redução de custos.
Processo
(como)
Descrição Resumida do Evento 2
O processo de ‘modernização da gestão’ levou a empresa à pior situação de sua história. O governo teve que intervir e nomeou o advogado Richard Drouin como CEO
com a missão de recuperar a performance e melhorar o
clima organizacional. Apesar de obter resultados positivos, a Hydro-Quebec deixou de ser a empresa mais admirada da Província de Quebec e se tornou apenas mais
um lugar para se trabalhar.
Em 1995 o Governo de Quebec nomeou o engenheiro
André Caillé, ex-CEO da concessionária de gás natural e
bastante reconhecido por sua habilidade de liderança e
sensibilidade para o papel socioambiental das
organizações. Caillé recebeu carta branca para tentar
recuperar o brilho da Hydro-Quebec.
Sob a liderança de André Caillé, a organização procurou
equilibrar os esforços e resultados nas três dimensões da
sustentabilidade: econômico, social e ambiental. A
Hydro-Quebec recuperou seus níveis de qualidade de
serviço e um pouco do prestígio que desfrutava, tanto
por parte da sociedade como dos seus empregados.
Fonte: Elaborada pelo autor com base nos dados da pesquisa de campo
Significado das Pessoas no Trabalho: a Empresa → Custos → Recursos
Na primeira fase havia uma forte identidade dos empregados com a empresa e seu trabalho,
bem como um forte senso de pertencimento. As pessoas eram consideradas a própria empresa
e o orgulho da Província de Quebec. Na segunda fase, as pessoas se transformaram em custos
que precisavam ser racionalizados para aumentar a eficiência e o resultado operacional da
companhia. Com a posterior intervenção do governo e com as mudanças na alta direção que
inauguraram a terceira fase, as pessoas passaram a ser consideradas recursos importantes para
a sustentabilidade da organização.
Significado de Performance Organizacional: Realização → Redução Custos → Equilíbrio
O significado de performance na primeira fase da trajetória da Hydro-Quebec estava
relacionado à realização, tanto de obras de engenharia, como também da satisfação das
necessidades da comunidade e da realização profissional dos empregados daquela época. Na
segunda fase, marcada pela modernização da gestão, a performance empresarial para a
diretoria de então significava redução de custos e aumento dos lucros. Um dos entrevistados
utilizou a seguinte expressão para descrevê-la: “Hydro-Quebec became a money hungry
organization”. Chanlat et al (1984, p. 234), ao estudar a mudança organizacional observa que
“o papel social da Hydro-Quebec deixou de ser significativo na medida em que o seu
9 significado de sucesso passou a se limitar apenas à dimensão econômica”. Já na terceira fase
da trajetória da Hydro-Quebec, a performance passou a significar o equilíbrio das dimensões
econômica, social e ambiental.
Estratégia: Construir → Racionalizar → Sustentabilidade
A estratégia da Hydro-Quebec, na sua fase inicial, era explorar os recursos naturais,
construindo toda a infra-estrutura de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica
para a Província de Quebec. Já na segunda fase, marcada pela modernização da gestão, a
estratégia era basicamente a busca de eficiência operacional por meio da racionalização de
atividades e custos através de um estilo de gestão batizado por Hafsi & Demers (1989, p.xxi)
de “gestão pela tensão”. A estratégia da terceira fase da Hydro-Quebec baseia-se no
desenvolvimento econômico e social e na proteção do meio ambiente, ou seja, na busca do
equilíbrio nos três pilares da Declaração de Desenvolvimento Sustentável de Johanesburgo.
Caso Lonely Planet (Austrália)
A Lonely Planet é líder global no fornecimento de informações sobre viagens. O casal
Wheeler publicou o primeiro guia de viagem da Lonely Planet baseado na sua primeira
aventura (lua-de-mel) pela Ásia. A empresa possui 650 títulos traduzidos em sete línguas e já
vendeu mais de 90 milhões de exemplares para 120 países. A Lonely Planet é formada por um
time de 900 profissionais, sendo que 650 são escritores e fotógrafos vivendo em 37 países.
Cada escritor tem visitado em torno de 45 países, e, ao todo, falam mais de 70 idiomas. A
Lonely Planet emprega dezenas de editores, cartógrafos, web-designers, produtores de
televisão, analistas de marketing e equipes de suporte técnico e administrativo, trabalhando na
sede da empresa em Melbourne, na Austrália, e em suas filiais na Inglaterra, França, Estados
Unidos e Nova Zelândia. Todos os profissionais têm algo em comum: forte paixão por
viagens e aventuras – requisito essencial para se trabalhar para a Lonely Planet.
Seus 35 anos de história foram analisados neste estudo em três fases distintas, separadas por
dois eventos críticos: a contratação do primeiro CEO em 1995, que separa a primeira da
segunda fase da empresa, e a substituição do CEO em 2002, que marca a terceira fase da
história da organização. Os dois eventos críticos são apresentados na Tabela 4.
Significado das Pessoas no Trabalho: Buddy → Recursos → Buddy
A Lonely Planet cresceu considerando e tratando as pessoas no trabalho como Buddy –
expressão que significa companheiro de viagem e de aventura. Trata-se de uma relação de
longo prazo, nutrida por emoções, desafios, conquistas e derrotas vivenciadas ao longo da
jornada dos milhares de projetos realizados pela organização. Esta jornada estava relacionada
com a forma de trabalho, à flexibilidade e à liberdade necessária para que os desejos das
pessoas também pudessem ser realizados e para que elas tivessem diversão enquanto
trabalhavam. Na segunda fase, marcada pela ‘profissionalização da gestão’ e pela filosofia
técnica e gestão pelo comando e controle exercido pelo novo CEO, as pessoas passam a ser
consideradas como recursos da organização. Na terceira fase a nova CEO procura resgatar o
significado das pessoas no trabalho como companheiros de viagem, mas agora com o desafio
de reinventar o negócio e o futuro da Lonely Planet.
Significado de Performance Organizacional: Have Fun → e-Business → Have Fun
Tanto na primeira como na terceira fase (esta com menor intensidade) o significado de
performance empresarial tinha mais a ver com a jornada do que com o destino. Na
organização, a performance dessa ‘jornada’ está relacionada com a forma de trabalho, à
10 flexibilidade e à liberdade necessária para que os desejos das pessoas também possam ser
realizados e para que eles tenham diversão (have fun) enquanto trabalham. Já na segunda fase
o novo CEO media a performance empresarial por meio de indicadores puramente financeiros
e de mercado eletrônico, como número de acessos e vendas pelo website da empresa.
Tabela 4. Eventos Críticos na Trajetória da Lonely Planet
Dimensão
Contexto
(por que)
Descrição Resumida do Evento 1
Em 1994 a Internet e a mídia digital
começavam a ganhar força (escopo e escala)
e a Lonely Planet precisava ser inserida no
mundo on-line que se apresentava como uma
ameaça e ao mesmo tempo como uma
oportunidade para o futuro da organização.
Descrição Resumida do Evento 2
A crise instalada na Lonely Planet se agravou com
os atentados terroristas iniciados em 11 de setembro de 2001 e com a epidemia SARS alastrada na
Ásia e Canadá que abateram a indústria de turismo.
Em 2002 o casal Wheeler teve que reassumir a
gestão da empresa.
Conteúdo
(o que)
Os Wheelers criaram um conselho de
administração onde Tony Wheeler se tornou
o presidente e a esposa um dos membros do
conselho. Para CEO foi contratado o jovem
inglês Steve Hibbard que tinha apresentado
um ambicioso projeto de MBA para inserir a
Lonely Planet na era digital.
O novo CEO conduziu a Lonely Planet para
a era digital, mas o excesso de diversificação
e iniciativas gerou problemas de fluxo de
caixa. A implantação das ferramentas de
planejamento e controle aprendidas no seu
MBA gerou conflitos de interesses e uma
crise de identidade que afetou drasticamente
o clima organizacional.
Em 2003 os Wheelers contrataram Judy Slatyer
para CEO e os fundadores retornam para o Conselho de Administração. A missão da nova CEO era
recuperar a cultura e o clima organizacional e
reorientar o foco e a visão da Lonely Planet.
Processo
(como)
Com suas soft skills Judy Slatyer resgatou boa
parte da cultura e clima organizacional. Iniciou a
produção de programas para televisão e também
expandiu a presença da Lonely Planet na Internet,
gerando comunidades virtuais, banco de imagens,
desenvolvendo parcerias e negócios, e acertando o
fluxo de caixa da empresa. No final de 2007 os
Wheelers venderam 75% da Lonely Planet para a
BBC Worldwide.
Fonte: Elaborada pelo autor com base nos dados da pesquisa de campo
Estratégia: Descobrir Novos Destinos → Go Digital → Desenvolver Novos Negócios
A estratégia de sucesso adotada nos primeiros vinte anos da trajetória da Lonely Planet era
produzir guias de viagem para lugares nunca antes explorados pelos concorrentes. Essa
estratégia desenvolveu um segmento de mercado nunca antes explorado: backpacker ou
mochileiros com o mesmo espírito aventureiro dos fundadores. Na segunda fase, a estratégia
batizada pelo novo CEO como “Go Digital” visava explorar as oportunidades da Internet e
transformar a Lonely Planet numa empresa digital. Na terceira fase a estratégia empresarial da
Lonely Planet foi o desenvolvimento de novos modelos de negócios para comercialização,
inclusive via Internet, porém em parceria com outros atores da indústria mundial de viagem e
turismo.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS DA PESQUISA
Os casos estudados revelam que a mudança na filosofia de gestão de pessoas influenciou
profundamente o processo da estratégia empresarial. Tal influência pode ser visualizada na
Figura 4 que ilustra os resultados da pesquisa distribuídos na linha do tempo ao longo da
trajetória das empresas estudadas.
11 Figura 4. Filosofia de Gestão de Pessoas e Processo da Estratégia
Fonte: Elaborada pelo autor com base nos dados da pesquisa de campo
No caso da Semco, como Ricardo Semler tem uma filosofia humanista de gestão de pessoas,
o processo de estratégia, que antes era deliberado, passou a ser mais emergente e orgânico,
com grande participação dos empregados.
Já nos casos da Hydro-Quebec, sob a liderança de Guy Coulombe, e da Lonely Planet com
Steve Hibbard, como os dois presidentes tinham uma filosofia predominantemente técnica de
gestão de pessoas e uma visão mais utilitarista e instrumentalista do ser humano, o processo
da estratégia deixou de ser mais emergente e passou a ser mais deliberado.
No caso da Hydro-Quebec, mesmo após quase duas décadas da substituição de Guy
Coulombe, a filosofia de gestão de pessoas, apesar de não ter mais aqueles traços fortes do
tipo técnica, ainda está tentando caminhar para uma filosofia humanista, mas o processo da
estratégia permanece com fortes traços do tipo deliberado.
Já na Lonely Planet, sob a liderança de Judy Slatyer, a filosofia humanista voltou a
predominar na empresa e o processo da estratégia voltou a ser mais emergente, mas não no
mesmo patamar anterior.
É importante frisar que a influência da mudança de filosofia de gestão de pessoas no processo
de estratégia ocorreu independentemente da direção da mudança na filosofia (de técnica para
humanista e vice-versa), conforme ilustra a Figura 4.
12 Outro aspecto relevante deste trabalho foi a constatação da influência do tipo de filosofia de
gestão de pessoas no significado de performance organizacional e no nível de abrangência de
interesses e de participação dos stakeholders. O estudo histórico revelou que, durante os
períodos de maior intensidade da manifestação da filosofia humanista de gestão de pessoas e
da visão desenvolvimentista do ser humano, o nível de abrangência de interesses e de
participação dos stakeholders no significado de performance organizacional também foi
maior, ou seja, o significado de sucesso da organização levou em consideração o interesse de
um número maior de stakeholders, como clientes e empregados, do que nos períodos em que
prevaleceu a filosofia técnica e a visão utilitarista e instrumentalista das pessoas no trabalho.
No caso da Hydro-Quebec, antes das mudanças implantadas por Coulombe a empresa
considerava como sucesso (em termos de performance organizacional) o grau de realização,
não apenas das obras e empreendimentos de geração, transmissão e distribuição de energia
elétrica, mas, também, da realização pessoal dos empregados da organização, que tinham
mais liberdade para execução de suas atividades, bem como da realização das expectativas
dos clientes e da comunidade de Quebec, que admiravam a empresa e a tinham como um
ícone de sucesso da Província. Com o predomínio de uma nova filosofia técnica e uma visão
mais utilitarista, a Hydro-Quebec passou a enfatizar, como performance organizacional, o
aumento da eficiência operacional e dos lucros para o acionista, reduzindo a ênfase na
satisfação dos demais stakeholders, especificamente dos empregados e clientes.
Depois de Coulombe, a Hydro-Quebec tem tentado buscar atingir uma performance
organizacional mais equilibrada em relação aos interesses da empresa, não somente
financeiro, mas também de satisfação dos empregados e da comunidade, especificamente
sobre os impactos socioambientais e a educação para o uso eficiente de energia elétrica.
Porém, vale frisar que os dados de campo apontam que a organização ainda não conseguiu
conquistar os patamares anteriores de satisfação dos empregados e clientes.
Em relação à tensão entre valor agregado (retorno para o acionista) e valores morais (justiça e
legitimidade social) destacada por Paauwe (2004), o caso Hydro-Quebec ainda demonstra que
o lado do retorno do acionista tem tido mais força em termos de predominância do que o lado
da legitimidade social e dos valores da organização que impactam diretamente na realização
dos interesses dos demais stakeholders. É interessante observar que justamente na segunda
fase, cuja ênfase era a maximização do retorno para o acionista, o processo de modernização
da gestão conseguiu destruiu valor, não somente para o acionista, como também do clima
organizacional e da imagem da empresa perante a comunidade, transformando esta na pior
fase financeira e de imagem da sua história.
No caso Lonely Planet a ênfase no alcance das metas e objetivos do planejamento estratégico
desenhado e implementado por Steve Hibbard voltou o foco das pessoas para estratégias
agressivas de crescimento e diversificação, impedindo a realização de iniciativas
empreendedoras e a execução de projetos sociais e pessoais, como os períodos de sabáticos.
Já no caso da Semco, a filosofia humanista de gestão de pessoas e a visão desenvolvimentista
de Ricardo Semler ampliaram a abrangência da participação dos stakeholders e
reconhecimento de seus interesses. A empresa passou a considerar a satisfação e a realização
dos empregados com a organização. A Semco desenvolveu um clima de parceria de longo
prazo não somente com os empregados, mas também com fornecedores, clientes e a
comunidade. A empresa criou uma fundação voltada para a educação e, desde 2005, organiza
o fórum anual batizado de DNA Brasil, envolvendo pensadores e representantes das diversas
camadas e segmentos da sociedade para pensar e desenhar o futuro do Brasil. A Semco parece
ser um exemplo de empresa que decidiu considerar a performance e o sucesso organizacional
sob o ponto de vista de múltiplos stakeholders, mesmo que isso resultasse em conclusões
13 paradoxais, preferindo reconhecê-las a ignorar sua existência, conforme sugere Boselie, Dietz
e Boon (2005). De fato, Ricardo Semler conseguiu, por meio de uma visão mais sistêmica e
de longo prazo, não somente alinhar os interesses dos diversos stakeholders (empregados,
clientes, fornecedores, parceiros, comunidade), como transformar essa congruência de
interesses em vantagem competitiva para a organização. A Figura 5 ilustra a relação
observada nos casos estudados.
Figura 5. Filosofia de Gestão de Pessoas e Abrangência dos Interesses dos Stakeholders
Fonte: Elaborada pelo autor com base nos dados da pesquisa de campo
Esta relação parece fazer sentido, uma vez que uma filosofia humanista leva naturalmente ao
maior envolvimento e participação dos empregados no processo da estratégia, que se torna
mais emergente, gerada pela prática social. Com a efetiva participação dos empregados, o
propósito e o significado de performance organizacional passam a ser ampliados para abarcar
também os interesses de outros stakeholders, além do acionista. O caso da Semco ilustra que
a filosofia humanista de gestão de pessoas pode contribuir, de forma significativa, para o
alcance da legitimidade social das organizações, que segundo Boxall e Purcell (2008) deveria
ser uma das metas das organizações modernas. Já os casos da Hydro-Quebec e Lonely Planet
(ambos na segunda fase de sua trajetória) ilustram que o a filosofia técnica e princípio
14 utilitarista da gestão de pessoas podem não somente destruir valor para o acionista, no médio
e longo prazo, como também ser um obstáculo para o alcance da legitimidade social das
organizações.
Considerações Finais
Este trabalho procurou aprofundar o conhecimento sobre a influência da filosofia de gestão de
pessoas no processo da estratégia e no significado de performance organizacional.
A perspectiva histórica deste estudo multicasos capturou os eventos críticos na trajetória das
empresas, marcados por mudanças na filosofia de gestão de pessoas, ou seja, mudança de
significado das pessoas no trabalho para os dirigentes da organização, ocorridas com as
mudanças no perfil da liderança.
Os resultados desta pesquisa exploratória apontam que a mudança na filosofia de gestão de
pessoas gerou mudanças no processo da estratégia no continuum entre os seus extremos:
deliberada – emergente. É importante frisar que a influência da mudança de filosofia de
gestão de pessoas no processo de estratégia ocorreu independentemente da direção da
mudança na filosofia (de técnica para humanista e vice-versa).
Vale observar que este estudo investiga alguns casos extremos de organizações e que a
reflexão é feita considerando-se a dimensão do ‘tipo ideal’. Todavia, com base nos resultados
da pesquisa, pode-se afirmar que o tipo de filosofia de gestão de pessoas e a sua intensidade
de manifestação são fatores que merecem mais atenção e consideração nos debates e modelos
de integração entre gestão de pessoas, estratégia e performance organizacional, tanto da área
de estratégia como da área de gestão de pessoas. Pode-se afirmar que tais fatores também
precisam ser considerados nos estudos sobre a estratégia como prática social, uma vez que a
filosofia humanista contribui para a formação de um contexto social propício para o processo
emergente da estratégia, enquanto a filosofia técnica tem contribuído para a implantação de
um processo mais deliberado. Apesar de fazer sentido, estes fatores não são considerados nas
pesquisas empíricas. Portanto, este estudo fornece elementos concretos, extraídos do campo
organizacional, para confirmar a suspeita de Boxall & Purcell (2008) sobre a importância da
base filosófica da gestão de pessoas, enterrada na sua camada mais profunda de análise, para
avançar a discussão sobre o alinhamento entre gestão de pessoas, estratégia e desempenho
empresarial.
Outro aspecto relevante deste trabalho é a constatação da influência do tipo de filosofia de
gestão de pessoas no significado de performance organizacional e no nível de abrangência de
interesses e de participação dos stakeholders. O estudo revelou que, durante os períodos de
maior intensidade da manifestação da filosofia humanista o nível de abrangência de interesses
e de participação dos stakeholders no significado de performance organizacional também foi
maior, ou seja, o significado de sucesso da organização levou em consideração o interesse de
um número maior de stakeholders, como clientes e empregados, do que nos períodos em que
prevaleceu a filosofia técnica e a visão utilitarista e instrumentalista das pessoas no trabalho.
Para futuras pesquisas sugerem-se investigações sobre a filosofia de gestão de pessoas e os
tipos de configuração organizacional, que neste estudo foi utilizada apenas como um dos
critérios para selecionar os casos, visando proporcionar mais riqueza de contexto e de
insights.
Outro fenômeno que merece ser investigado é a influência da filosofia de gestão de pessoas
no significado de modernização ou profissionalização da gestão para a liderança, uma vez que
15 os executivos dos casos analisados utilizaram as ferramentas de gestão de forma bastante
distinta no processo de modernização da gestão e de mudança organizacional.
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