resenha a filosofia contemporânea do direito: temas e

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RESENHA
A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA DO DIREITO:
TEMAS E DESAFIOS
PHILOSOPHY OF CONTEMPORARY LAW: ISSUES AND
CHALLENGES
Maurício ZANDONÁ1
O livro “A filosofia contemporânea do direito: temas e desafios” (Martins Fontes.
2006, 140 p.), da Italiana Carla Faralli, professora de Filosofia do Direito na
Faculdade de Direito da Universidade de Bolonha, nos traz ensinamentos valiosos e
pertinentes acerca da filosofia do direito, razão pela qual uma análise crítica de sua
obra não poderia passar em branco no mundo jurídico. Seu trabalho, dentre outros
temas, aborda os valores ético-políticos e os fatos da realidade, bem como passa pelo
estudo do raciocínio jurídico e lógica jurídica, para então, ao final, apontar as novas
fronteiras da filosofia do direito na contemporaneidade.
Introduzindo sua obra, a autora aponta a crise do modelo juspositivista
do século XX, como momento inicial da filosofia do direito contemporâneo, para
revelar que, nos últimos quarenta anos, vimos uma “dissolução progressiva” das
escolas e correntes doutrinárias até então consolidadas. Nas palavras da autora, a
distinção clássica entre o jusnaturalismo, o juspositivismo e o realismo jurídico já não
é tão útil para a filosofia do direito, contudo, isso não quer dizer que tais correntes
tenham desaparecido dos estudos doutrinários.
Salienta que “outra característica do debate filosófico-jurídico
contemporâneo é a notável ampliação do âmbito temático”, porquanto “o filósofo
do direito está hoje cada vez mais empenhado em tratar de questões específicas, que
o aproximam do filósofo moral, do filósofo político, do profissional de informática,
do médico, do sociólogo”.
O contexto social, na atualidade, necessita ser visto pela ótica da
incidência e efetividade de princípios e preceitos interdisciplinares na resolução
dos conflitos nascidos da sociedade, sendo que nesse contexto, o Direito exerce
função especial dentre as demais ciências sociais, pois está relacionado diretamente
com a transformação da sociedade, fazendo parte de um grande sistema de estudo
dos aspectos inerentes à sociedade contemporânea. Contudo, ressalta a autora: “[...]
o direito não é um sistema fechado e independente: ele é, em relação ao sistema
social considerado como um todo, um subsistema que está ao lado – em parte
Mestre em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense – UNIPAR. Especialista em Direito Civil e
Processo Civil pela Faculdade de Itapiranga - FAI. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo
- UPF. Professor de Direito Civil e Processo Civil na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões – URI,
Campus Frederico Westphalen. Advogado. e-mail: [email protected]
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se sobrepondo e em parte se contrapondo – de outros subsistemas (econômico,
cultural, político) e o que o diferencia dos outros é justamente a função.”
Por esta razão, sustenta a autora que a teoria formal do direito, calcada
numa análise estrutural dos ordenamentos jurídicos, afasta o juspositivismo dos
debates atuais, porquanto os grandes temas contemporâneos, como a justiça, os
direitos fundamentais, o multiculturalismo, o meio ambiente, dentre outros, estão
em voga no cenário jurídico.
No capítulo I, narra a autora que “a crise do positivismo jurídico levou à
superação da rígida distinção entre direito e moral e à conseqüente abertura do debate
filosófico-jurídico contemporâneo aos valores ético-políticos”. Disso decorre o
aparecimento das chamadas teorias constitucionalistas e a nova teoria do direito natural.
A teoria constitucionalista que impõe distinção ao positivismo jurídico,
fora tratada por Alexy e Dreier por ocasião do debate alemão acerca do papel da
Corte Constitucional Federal e a interpretação de sua jurisprudência, cuja principal
característica consistia na introdução dos princípios na estrutura normativa dos
sistemas constitucionais contemporâneos e à diferença entre estes e as regras.
A teoria constitucionalista de Alexy e Dreier tinha como base de análise
três aspectos principais. O primeiro consistia em considerar central a dimensão da
correção moral do direito, a qual não poderia ser reduzida ao direito válido. A conexão
entre direito e moral baseava-se num processo de inclusão de conteúdos morais no
direito, sendo que a presença dos princípios traduzia a abertura do direito e tais
conteúdos, bem como, determinava o desenvolvimento de novas formas de decisão
judicial com base na ponderação. O segundo consistia em ressaltar a importância dos
processos de aplicação do direito, em especial aos judiciários, observando essas novas
formas decisórias. Por fim, o terceiro aspecto trazido pela teoria constitucionalista de
Alexy e Dreier revelava a vinculação, no âmbito da estrutura política-constitucional,
do legislador aos princípios e aos direitos constitucionais, bem como o papel decisivo
dos juízes para sua execução.
Relata a autora que a abertura da filosofia do direito aos valores éticopolíticos conduziu também a uma nova teoria do direito natural, cujo marco
histórico se deu na polêmica entre Hart e Devlin relativo à questão da conveniência
e oportunidade da repressão do homossexualismo e da prostituição na Inglaterra.
As posições ideológicas opostas dos estudiosos são emblemáticas: o
liberalismo e o moralismo jurídico. Na defesa do liberalismo, a doutrina sustenta
que cada um deveria ser livre para escolher os próprios valores e fins, com igual
liberdade do mesmo tipo para todos, enquanto que o moralismo jurídico considera
a conservação da moralidade da sociedade um valor digno de ser defendido pelo
instrumento coercitivo do direito. E é justamente a partir deste debate entre o
liberalismo e moralismo jurídico contemporâneo, com a redimensão aos valores
principiológicos, que a autora define a abertura da filosofia do direito aos valores
ético-políticos.
Adiante, no capítulo II Carla Faralli trata sobre a abertura da filosofia
do direito aos fatos, dizendo que tal momento se manifestou nas teorias neoinstitucionalistas e em alguns desdobramentos do realismo jurídico.
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O chamado neo-institucionalismo, nas palavras da própria doutrinadora
é definido como “um desenvolvimento do normativismo em sentido realista”, que
se contrapõe às idéias formalistas do século XX. Desta feita, tanto o velho como
o novo institucionalismo se apresentam como reações ao positivismo jurídico e se
aproximando de uma concepção realista, para então dizer que “as normas não são
realidades ontologicamente diferentes da realidade dos fatos empíricos, uma vez que
se defina como real tudo aquilo que tem existência no tempo”.
A autora insere no texto a possibilidade de confrontar o neo-institucionalismo
e o realismo normativista com referência a três aspectos: sob o aspecto ontológico, “o
realismo normativista adota uma concepção monista da realidade que inclui o direito
na realidade empírica, considerando-o um fenômeno da psicologia social”; sob o
aspecto metaético, “o realismo normativista é divisionista, isto é, admite a distinção
entre o ser e dever ser, entendida como irredutibilidade lógica dos discursos descritivos
a discursos prescritivos e vice-versa”; e por fim, sob o aspecto jurídico-teórico, “o
realismo normativista é deontologista, isto é, entende que idéia de dever é essencial ao
fenômeno jurídico”.
Algumas correntes foram mencionadas no trabalho resenhado como forma
de demonstrar a abertura da filosofia do direito aos fatos, e para tanto, Carla Faralli
trouxe como exemplo os Critical Legal Studies, movimento nascido nos Estados Unidos
que detinha uma visão crítica radical para com o liberalismo defendido na época, bem
como o movimento feminista que abordava os preceitos jurídicos dos direitos da mulher.
Diante dos aspectos ora analisado, a autora define, com peculiar sutileza
que, “enquanto o apelo à regra reconhece o status quo, isto é, consagra a situação
existente e leva, por assim dizer, ao conservadorismo, o apelo aos fatos concretos abre
caminho para a mudança social”. Merece aplausos a ilustre professora, porquanto
esse ponto é abordado com extrema relevância no mundo contemporâneo.
Os estudos sobre o raciocínio jurídico é o tema do capítulo III da obra
de Carla Faralli, a qual menciona que nos anos 1950 surgiram inúmeras críticas ao
modelo lógico do raciocínio jurídico que advinha dos preceitos do positivismo. Diz
a autora que tais críticas resultaram em revelar a inadequação e a insuficiência da
metodologia lógico-formalista e apontaram para a necessidade de elaboração de
novos instrumentos de pesquisa da argumentação, em especial, a pesquisa jurídica.
Valendo-se das teorias relativas à interpretação jurídica, a autora determina que
“o direito não é uma entidade já dada e disponível, que o operador do direito encontra
‘pré-fabricada’, pronta para o uso. Ele é antes uma construção do operador, que deve
encontrar, em relação ao caso concreto, a combinação correta entre fatores diversos”.
Desta feita, o raciocínio jurídico, quando feito pelos julgadores, deve ser coerente,
congruente e produzir conseqüências aceitáveis no ponto de vista interpretativo.
A lógica jurídica é o estudo abordado pela autora em seu IV capítulo,
discorrendo que a difusão da filosofia analítica, nos anos 1950, renovou o interesse
dos filósofos do direito pelos estudos da lógica jurídica, entendida esta, como a
lógica das normas ou proposições normativas estabelecidas nos textos legais.
Para tanto, o texto alerta que “a sistematização do direito consiste na
solução dos casos genéricos mediante a derivação das conseqüências lógicas do
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conjunto das normas jurídicas”. Contudo, a lógica jurídica não se presta para corrigir
as lacunas e incoerências do ordenamento jurídico, porquanto, a natureza da lacuna
e da incoerência está ligada diretamente com as decisões judiciais. Por sua vez, as
decisões judiciais estão sujeitas a três princípios basilares, dia a autora: o princípio da
inevitabilidade, pelo qual os juízes têm a obrigação de resolver todos os problemas
postos a sua solução; o princípio da justificação, pelo qual os juízes devem justificar
as decisões para provar a sua não-arbitrariedade; e por fim, o princípio da legalidade,
pelo qual os juízes devem fundamentar suas decisões com base nas normas jurídicas.
Nas palavras da autora, “a lógica não pode encarregar-se do conteúdo
de cada decisão jurídica, mas ainda assim deve ser considerada um instrumento
indispensável e necessário, embora não suficiente, para o controle e a justificação de
tais decisões”. Arremata o capítulo explicando que a lógica das normas não deve ser
mais entendida como a lógica em sentido estrito, mas sim como expressão de um ideal
de racionalidade normativa.
No último capítulo, Carla Faralli trata sobre as novas fronteiras para a
filosofia do direito, tendo em vista que a nossa sociedade (aqui se entenda por sociedade
global), nos últimos quarenta anos, passou por transformações profundas e aceleradas,
abordando, para tanto, os temas acerca da informática, da bioética e do multiculturalismo.
Ao tratar da informática, a autora revela que as atividades jurídicas hoje
se desenvolvem graças à interação do direito com os computadores, porquanto,
a instrumentalidade proporcionada pelo uso dos computadores e documentos
padronizados mostra-se capazes de influenciar a prática do direito. As novas
tecnologias, como a internet, acarretaram uma revolução no acesso à informação,
instrumento muito utilizado pelos operadores do direito, como advogados, juízes e
até mesmo, os cidadãos, fato este que não se pode negar em tempos contemporâneos.
A bioética é tratada como a segunda fronteira da filosofia do direito
contemporâneo, fenômeno este que, em suas palavras, significa a “ética da vida”,
ou mais amplamente, “de tudo aquilo que é vivo”. Assim, Carla Faralli ressalta que
“a bioética, na verdade, não é uma nova disciplina ou uma nova ética: ela é mais um
conjunto de pesquisas, de discursos e de práticas, geralmente pluridisciplinares, cujo
objetivo é o esclarecimento ou a solução de questões de caráter ético, suscitadas pelas
inovações científicas e tecnológicas que tornaram possível agir sobre fenômenos
vitais de maneiras há algumas décadas consideradas impensáveis”.
Ao refletir sobre a bioética, questões fundamentais como o direito a vida;
a autonomia do indivíduo de dispor da própria vida; a reanimação; a proteção ao
feto; os limites dos tratamentos médicos, dentre outros, são invocados no texto da
obra resenhada para exemplificar o alcance da discussão acerca do tema, além de
alertar o intérprete do direito para assuntos de extrema relevância jurídica e social.
A terceira fronteira da filosofia do direito contemporâneo é representada
pela teorização do multiculturalismo, cujo termo pode ser utilizado para designar
certo tipo de sociedade caracterizada pela presença de diversos grupos culturais.
O multiculturalismo visa “proteger e reconhecer as tradições culturais dos grupos
presentes nas modernas sociedades pluralistas”, principalmente a liberdade individual
e o desenvolvimento da própria identidade do ser cidadão.
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Nossa sociedade não é constituída por uma maioria e várias minorias,
como se pensava tempos atrás, mas sim, por uma pluralidade de grupos culturais
com direitos que merecem reconhecimento e proteção estatal. Essa concepção
implica significantes conseqüências nos debates jurídicos e sociais sobre as temáticas,
cidadania, soberania, forma de Estado, direitos individuais e coletivos, questões que
desafiam e convidam o enfrentamento de todos.
De todo o exposto, depreende-se do trabalho da estudiosa uma
relevante colaboração para os pensadores do direito, principalmente em tempos de
contemporaneidade, cuja velocidade das informações se dá quase que instantaneamente,
bem como oportuniza a reflexão filosófica acerca da diversidade cultural de nossa
sociedade atual. A obra resenhada também empresta ao intérprete do direito, temas de
grande abrangência social que ainda necessitam ser juridicamente trabalhados, a fim de
que a sociedade entenda as diversidades presentes e se entenda como uma sociedade
pacífica e harmônica.
REFERÊNCIA:
FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito: temas e desafios. Tradução de
Candice Premaor Gullo; revisão da tradução de Silvana Cobucci Leite. São Paulo.
WMF Martins Fontes. 2006, 140 p.
Recebido em: 08/05/2012
Aceito em: 17/06/2015
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