343 Morte como filosofia no Fédon de Platão Yasmin Tamara Jucksch Mestranda UFF Resumo As defesas da ideia e da urgência do conhecer-se a si não são em nada superficiais na obra platônica, e no Fédon, em especial, esta ideia é exposta cabalmente (e com grande requinte literário) pelo agudo discurso socrático. Nele, o problema do conhecer-se a si mesmo engolfa de forma magistral o problema da reminiscência e da temperança: a recordação de psyché do atemporal, uno e fundamental deveras esquecido é capaz de manifestar-se ao mesmo tempo em que ela própria afrouxa gradualmente os elos entre as emoções e o devir (Fédon, 64e-65a; 84a-b). Ora, é possível observar no Fédon que a dose desse conhecer-se a si é sempre dupla: de um lado, a acurada observação e a desvinculação do que é corporal e sensível (81b-e; 64cd) completa-se com a própria identificação ativa e deliberada com o lógos cujo lugar é a alma (83a-b; 64e-65c), e ambos os movimentos são exaltados em abundância por Sócrates como o próprio jogo da filosofia enquanto ação dirigida à plenitude da morte. A partir disso, o presente artigo buscará (1) explicar como se dá, entre essas duas instâncias, essa copertinência ética e epistemológica – já que, ao desenfronhar-se das influências desiderativas e limitantes das formas sensíveis, a psyché recupera, ao mesmo tempo, sabedoria e sensatez; e (2) denodar o problema do exame de si para o qual é requerida uma medida muito delicada entre o silenciamento (do corpo) e a audição (da alma), como o próprio métron do meléte thanátou. Palavras-Chave: Platão. Fédon. Auto-conhecimento. Morte. I No Fédon, o exercício de morte enquanto tarefa filosófica por excelência é apresentado como uma diligência dedicada à persecução do conhecimento de certas prerrogativas, em grande medida insuspeitadas, atinentes ao corpo e à alma. Ao possibilitar a distinção entre umas e outras, esse conhecimento, consequentemente, traria em seu bojo a oportunidade de uma espécie de imunização da alma em relação a paixões turvadoras e Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 2015 / 11ª edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 344 infecciosas, ao conceder, ao mesmo tempo, acesso a um saber de tipo divino e imaculado. A expressão “conhecimento de si” não surge de modo explícito no contexto do exercício para a morte, mas o problema a que se refere o conhecimento de si mesmo não está alijado do processo de crítica ou separação intencional entre alma e corpo, uma vez que o processo de conhecimento e o processo de morte supõem os mesmos difíceis trabalhos fundamentais realizados (ou os mesmos “esforços de toda uma vida”, Fédon, 67c; 69d), por um lado, na observação e na renúncia à hýbris – que nesse contexto manifesta-se como as desmedidas dos prazeres e dores da alma na lida com o corpo e com o sensível – e, por outro, numa espécie de homologação da alma consigo mesma que conduziria a uma espécie de “experimentação” de veladas excelências anímicas. Pois tanto quanto o exercício de morte, o conhecimento de si visa a desautorização do corpo (Fédon, 66a; 79c; 81a; 84b) e a recuperação do conhecimento cujo lugar é a alma (65d; 69a-c; 79d; 83a-b; 84a-b). Descrito no próprio Fédon como um obstinado “corte de relações” (67e) da alma com o corpo e também como o seu refúgio no que é mais puro e valioso (79d), o exercício de morte configura-se, assim, como um duplo processo: a resistência aos desejos e ganas corporais, por um lado, e a saciedade causada pela sabedoria, por outro, manifestando-se relacionalmente num crescendum da inversão axiológica dos prazeres e dores que permitiriam à alma, nessa atuação simultânea, o (re)conhecimento da sua natureza sadia e original. Antes de debruçarmo-nos sobre essa dupla fundamentação, seria proveitoso aguçar o olhar à ambiguidade anterior da própria ideia do “si mesmo” no Fédon. Pois ora essa ideia nos sugere uma composição complexa entre corpo e alma, ora a ideia de uma alma livre cuja natureza plena é indicada em mais de um diálogo do Corpus como originalmente livre da saturação do corpo e das turbulências do vir-a-ser; essa duplicidade provém da distinção o humano como animal, de um lado, e “princípio”, “sopro” ou “ar” divino, de outro, o que remete à própria ambiguidade da distinção entre “puro” e “impuro”, ou “sadio” e “infecto” notadamente marcadas na ontologia platônica. No primeiro caso, a ideia do si mesmo enquanto conjunção entre alma e corpo remete imediatamente à condição errática a que se submete a alma infectada: à imagem da impureza e da enfermidade associa-se também a da alma-marionete que deseja manter-se no gozo restritivo dos prazeres e dores devenientes. O corpo encerraria, assim, sempre uma “infecção” (cuja causa não se encontra exatamente nele, mas na alma) justamente por manifestar-se como um composto sôma-psyché, sob a condição passional de uma quase Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 2015 / 11ª edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 345 inamovível atadura (para alma contaminada, ver Fédon, 81b; para o fato de ela ser infectada pelo corpo: 83b). Note-se também que a (des)medida dos desejos da própria alma aparece em 82a-b como o própria liga dos traços corporais singulares, manifestados como “veículos” ideais para a satisfação desses mesmos desejos. Havendo, como diz Sócrates, sempre uma conformação íntima entre uma alma e um determinado corpo animal, na raiz desse vínculo a “infecção” sempre suporá um corpo, mas é o grau da infecção que determinará as feições sui generis desse corpo e das circunstâncias que o relacionam com o mundo. Ora, essa singularidade precisa ser examinada, conhecida nesta sua condição de forma “camaleônica” da alma (cf. BOSTOCK, 1986). Já de uma segunda perspectiva, a ideia do “si mesmo” como sendo alma (e não corpo) parece remeter no Fédon à ideia da psyché indissolúvel e atemporal do Fedro que, em relação ao corpo e ao movimento sensível, caminha nas alturas, quando perfeita e alada, e governa o mundo em universal (Fedro, 240c). A alma é tomada, do estrito ponto de vista da sua natureza imperecedoura, como inapreensível pelos paradigmas sensíveis e congênere às Ideias (Fédon, 78e-79d). Note-se, entretanto, que essa liberdade e capacidade intelectiva inerentes à sua natureza são paradoxalmente o seu próprio télos, isto é, a própria finalidade ou plenitude a que se destina, e que tal condição supõe que o “si mesmo” diga respeito, neste contexto, às potencialidades anímicas só manifestadas quando a alma volta a “possuir” a si própria, graças, diz-nos o personagem Sócrates, ao treino de morrer e estar morto. II Na primeira perspectiva, isto é, considerando o si mesmo sob a perspectiva da complexa união de soma e psyché, o trabalho de morte ou o conhecimento de si exercer-se-ia sob a batuta de um agudo exame da compleição das fantasias e desejos por tudo que seja temporal ou “corporal” (isto é, na observação da forma e das condições em que se impõem à alma). Se o sensível não atinge nunca a identidade com a Forma por sua intrínseca condição de imagem, também o apetite não alcança nunca a saciedade desejada, seja porque vincula a satisfação ao mutável, ao inconstante, seja porque ele mesmo é inconstante e mutável. No Górgias, Sócrates conta a Cálicles que já ouvira um certo sábio comparar a alma a uma pipa, por ser facilmente sugestionável pelos ventos das circunstâncias e conduzida por eles de um lado para outro; além disso, diz Sócrates, Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 2015 / 11ª edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 346 a porção da alma dos não iniciados em que se localizam as paixões, justamente por ser incontentável e nada reter, comparou a um tonel furado, que por isso mesmo nunca revela saciedade. Ao contrário de tuas conclusões, Cálicles, essa pessoa nos mostra que no mundo das sombras – o mundo invisível, conforme ele se exprime – os mais infelizes são os não iniciados, pois carregam água para o tonel furado num crivo também cheio de furos. Por esse crivo ele entendia a alma, como me explicou quem me contou a história. (PLATÃO. Górgias, 493a-c) A observação destes apetites e desejos (ou o próprio ato de conhecer-se) ensejaria, portanto, o conhecimento do uso uma nova metriké capaz de operar a ressignificação dos prazeres e dores comumente atuantes. Cabe lembrar, neste exíguo ponto, a boa tékhne de medição corretiva do Protágoras, reparadora das distorções fantasiosas impressas às dores e prazeres: Ora, se nosso bem-estar consiste em fazer e escolher o que é grande, e evitar e não fazer o que é pequeno, qual seria o princípio salvador da vida humana? A arte de medir ou a força da aparência? Não nos ilude esta última, levando-nos muitas vezes a inverter as relações das coisas, a modificar nossos propósitos e a nos arrependermos da resolução tomada, não só com referência aos nossos atos, como com a escolha das coisas grandes e pequenas? A arte da medida, pelo contrário, não neutralizaria essa ilusão, com resolver a verdadeira relação das coisas, e não asseguraria à alma a tranquilidade fundada sobre a verdade, salvando, assim, nossa vida? (PLATÃO. Protágoras, 356d) Já que a salvação de nossa vida se nos revelou como consistindo na escolha acertada de prazeres e sofrimentos, conforme sejam mais ou menos numerosos, maiores ou menores, ou se encontrem mais afastados ou mais perto, não é evidente que o de que se faz mister é do conhecimento das medidas para estudar o excesso, a falta ou a igualdade de uns com relação aos outros? (Idem, ibidem, 357a-b) Morrer, nesse contexto, é operar a depuração da ignorância e da desmedida, nascidas dos efeitos ilusórios advindos da sensação e do prazer. Ainda no Górgias, vemos que essa depuração também é comparada ao restabelecimento da saúde, tanto como no Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 2015 / 11ª edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 347 Fédon, e livra-nos, também como neste diálogo, do pior dos males. Mas enquanto a ênfase na discussão sobre o que seja o pior dos males, no Fédon, recai sobre a ignorância, no Górgias ela pende para a injustiça, embora sejam ambas faces do mesmo mal. Depois de um longo raciocínio, Sócrates e Cálicles, no Górgias, concordam que a injustiça, a intemperança e os demais vícios da alma são os piores males do mundo; em seguida, comparando a necessidade de remédios para a restauração da sanidade do corpo com a necessidade do castigo auto-imposto como antídoto para a maldade, e acrescenta que sempre vale a pena suportar a dor de um tratamento médico para recuperar a saúde, mesmo que ele seja penoso, repulsivo e amargo. Nesse ponto, a inter-relação que propomos entre o Górgias e o Fédon é a de que, embora no primeiro o que livre do mal seja o castigo e o acusar-se a si mesmo e no segundo seja exercício de morte, ambos se equivalem; o exercício de morte enquanto antídoto para a ignorância seria, também, uma espécie de castigo auto-imposto, já que o processo de conhecimento de si não é, enquanto meio, nem fácil nem aprazível. O “conhecimento das medidas” e o “conhecimento de si mesmo” envolvem, assim, os mesmos problemas atinentes à indução ao erro à qual a alma se expõe no seu comércio indiscriminado com o vir-a-ser. Ora, graças a esse caráter sedutor e distorcivo do brilho do fluxo sensível sobre psyché (e a despeito de todo o caráter cândido de que ela se reveste como puro princípio de vida no Fedro), vemo-la no Fédon quase que indistintamente amalgamada com o corpo (enquanto nele se concentra). Aqui, diferentemente do Fedro, o desejo não está circunscrito apenas aos impulsos amorosos, mas é alargado para a glutonaria, para a embriaguez e para os excessos de vaidade (Fédon, 64d). Tais formas de prazer entretecem, no entanto, imagens mais fundamentais da ideia de fraqueza e de uma provisória incapacidade da alma para concentrar-se na rememoração das Formas (Fédon, 66a) isto é, para a audição daquilo que se dá como “discurso” especial que pode ser “colhido” ou “relembrado” e que “se dispõe” na própria alma [...] quando a filosofia toma conta de uma alma [...], a exorta a isolar-se e a concentrar em si todas as forças, a não se fiar senão dela mesma em tudo o que capte em si e por si através do pensamento, quando toma por objeto a realidade dos seres em si mesmos. (PLATÃO. Fédon, 83a – grifos nossos) Se mesmo combalida por um mal que lhe é, segundo Sócrates, mais prejudicial do que quaisquer outros, a alma é capaz de se regozijar na própria infecção, este deleite (que Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 2015 / 11ª edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 348 também devém na dor, no desejo que o prazer deixa quando se ausenta) não é um fasto prazer, dirá Sócrates, mas um torvo suplício. As constantes desmedidas da têmpera – é precisamente o que envolve a alma com certas imagens fictícias (cheias de dor e prazer) de si mesma, imagens que o seu conúbio com o sensível torna mais verdadeiras quanto mais ela se entrega ao exercício constante de “conviver” com ele (Fédon, 81c.). Esta “convivência” deliberada entre corpo e alma é expressa por um interessantíssimo vocabulário dialógico, a julgar pelos finos termos usados por Sócrates ao apresentar a imagem da alma que, carregada de máculas corporais, toma quase sempre por verdadeiro o que o corpo lhe diz: “Na verdade, cada sentimento de prazer ou dor é como pregos que fixassem a alma ao corpo; e assim a agrafam a ele, a enleiam na substância corporal, por tal forma que tudo aquilo que o corpo lhe disser ela toma por verdadeiro”. (Fédon, 83d). “Escutar” o “corpo” (no sentido de dar ouvidos ou credibilidade a “seus” discursos e crenças, ou, como temos no livro IX da República, deixar a alma dominar-se pelas partes que governam os indivíduos ambiciosos e interesseiros) impõe-se imediatamente como o lugar comum da alma; nessa condição intrinsecamente humana, tudo que jamais mantém identidade (Fédon, 79a) passa a regê-la e a conduzi-la, enquanto que “aquilo que é eterno e sem forma ela aprendeu a odiar, temer e evitar” (81b). Ora, o ato de “escutar” o corpo de desejos, ou ainda de “observar” o que varia ao sabor das circunstâncias (dedicando-lhe deleites e sofrimentos) é, portanto, completamente destituído de valor para o filósofo “morto”, capaz de ver e ouvir o que é invisível e inaudível: [...] aquilo que varia ao sabor das circunstâncias e que ela observa por outros meios, não deverá [a alma] de forma alguma tomá-lo por verdadeiro (alethés): é que coisas como estas pertencem ao mundo do sensível e do visível, ao passo que aquilo que a alma vê por si é do domínio do racional e do invisível. (PLATÃO. Fédon, 83a – grifos nossos) Assim como no Górgias os intemperantes não são, para Sócrates, donos de si mesmos, uma vez que não dominam em si os prazeres e apetites, no Fédon o corpo que fala alto e em excesso cala a alma que, retraída, mantém-se afastada do conhecimento de si e da “audição” do próprio lógos, capaz de comunicar os fundamentos do real (τὸ όν) apenas quando ela, psyché, “se isola o mais possível em si e por si mesma mandando o corpo Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 2015 / 11ª edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 349 passear, e se abstém, na medida das suas forças, de todo o contato e comércio com ele para aspirar unicamente ao real” (Fédon 65c).Vê-se que o sentido do termo “corpo” adquire maior densidade ontológica no Fédon ao remeter a tudo que esteja sujeito à temporalidade e ao devir, e também (principalmente) às impressões e erros concrescidos na alma, graças à sua lida apaixonada com tudo que é “corporal”; para o filósofo que morre, portanto, o sensível ressignificado perde o seu caráter perturbativo, e a alma, antes móbil, deixa de agitar-se sobre as suas caprichosas ondas. Como consequência (se é através destas afecções que a alma mais fortemente se prende ao corpo), Sócrates pode arrogar-se o direito de elevar a morte filosófica ao mais alto umbral: ela passa a ser contemplada como a inversão radical do “olhar” do visível para o invisível, da “audição” do discurso do “corpo” para a audição do lógos da própria alma ou, ainda, da posição “submissa” da alma para o domínio ou independência do “discurso” sensível. Este domínio, entretanto, não se prefigura como desprezo do corpo, mas, ao contrário, como uma mais alta potencialidade corporal, manifestada na própria transmutação do gozo animal em gozo divino, pois o “corpo” silenciado harmoniza-se com o “discurso” anímico justamente quando ela (psyché) reassume o seu posicionamento original: [...] enquanto se mantêm juntos o corpo e a alma, impõe a natureza a um deles obedecer e servir e ao outro comandar e dominar. Sob esse aspecto, qual deles se assemelha ao divino e qual ao mortal? Não te parece que o divino é naturalmente feito para comandar e dirigir, e o mortal para obedecer e servir? (PLATÃO. Fédon, 80a) A separação indica mais o exercício do predomínio de um elemento sobre o outro (corpo e alma) do que um ascetismo de recusa absoluta da sensação e dos prazeres. Nesse caso, se o supremo mal a que está exposta a alma localiza-se com tal furor nos ardores excessivos de sofrimentos e prazeres, o ato de observar, criticar e compreender as nuances qualitativas de cada prazer e dor é que traria ao campo de “visão” da alma o exato “peso” do corpo – e torná-la-ia, dada a impossibilidade socrática da akrasía (isto é, a impossibilidade da fraqueza de vontade para realizar ou deixar de realizar algo que verdadeiramente se sabe ser bom ou ruim), capaz de livrar-se desse peso graças, justamente, a esse mesmo conhecimento. Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 2015 / 11ª edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 350 III Já do ponto de vista do segundo sentido da expressão “si ou ti mesmo” (isto é, como alma livre de maculação corporal), o conhecimento é descrito como o fruto de uma concentração em si e por si (Fédon, 65d.). Esta seria uma prática (ou estado) cuja determinação levaria a estreitas minúcias interpretativas, tanto quanto o sério problema da relação efetiva e do equilíbrio entre este “silenciar” e “ouvir”: fundamentar-se-iam ambos reciprocamente em exata medida ou, ao contrário, será um condição de possibilidade do outro? Em que medida a ressignificação operada pela phrónesis fundamenta ou é fundamentada pela consonância entre a alma e ela mesma? Tais questões, embora cruciais, não nos ocuparão neste texto. Basta-nos afirmar, por ora, que esse duplo télos (o silenciamento dos “hábitos e crenças” do corpo e a audição ou concentração da alma em si) unifica-se justamente no exercício de depuração da multiplicidade de crenças e hábitos desiderativos dedicados ao corpo, para suscitar o alcance da unidade na apreensão do que “[...] é divino, imortal e inteligível, ao que possui uma só forma e é indissolúvel e se mantém constante e igual a si mesmo” (Fédon, 80b). Os prazeres superiores reservam-se, assim, à “contemplação” das Formas e daquilo que é o Bom ou o Bem – cuja profundidade de sentido pode ser apenas resvalada pelos símiles poéticos e míticos das imagens platônicas –, dando-se na alma como o próprio conhecimento de si mesma. Em República IX, 582c, Sócrates concorda com Glauco, quando este afirma que “a natureza do prazer que procede da contemplação do ser, é impossível a qualquer outro saboreá-la, exceto ao filósofo”. No Górgias, por exemplo, encontramos a ideia contígua de que os apetites revalorados transformam-se em boa epithymía: a imagem do alimento verdadeiro e superior capaz de aplacá-la pode ser aqui comparada à ideia do lógos da alma desembaraçada do corpo, passível de ser “ouvido”, ao “concentrar [sc. a alma] em si todas as forças e não se fiar senão dela mesma em tudo o que capte em si e por si [...] quando toma por objeto a realidade dos seres em si mesmos” (Fédon, 83b). Nesse movimento, a alma recupera o conhecimento do que ela própria é, uma vez que, conforme a teoria platônica da reminiscência, a verdade encontra-se em si mesma. Essa dimensão propriamente ética do esforço do filósofo para navegar rumo ao lógos anímico – movimento apenas possível se e na medida em que o particular (ídion) é silenciado – parece compor-se exatamente com a mudança de rumo epistemológica descrita Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 2015 / 11ª edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 351 como a “segunda navegação” (Fédon, 99c-100e), em que Sócrates, no intuito de examinar a verdade dos seres, conta como se esquivara, por um lado, da pretensão de tomar contato com as coisas através dos sentidos (o que o conduziria à cegueira intelectual) passando, ao contrário, a refugiar-se nos lógoi. Para a navegação nesses mares desconhecidos ao homem o genuíno trabalho filosófico de conhecimento de si exposto no Fédon é condição sine qua non, mas este trabalho só se manifesta efetivamente enquanto um duplo (e difícil) processo: o conhecimento e a morte do lógos humano comum que faz deleitar na dor e no prazer particular identificado com o corpo e com a temporalidade, por um lado, e a abertura para o próprio logos “audível” pela alma sedenta e desfigurada, por outro. É o que parece indicar Sócrates quando, em outras palavras, afirma que “calando em si a violência das paixões, [...] [sc. a alma] contempla o que é verdadeiro (τὸ αληθὲς), divino (τὸ θεῖον) e não sujeito às contingências da opinião (τὸ ἀδόξαστον)”, refugiada “no que é puro, [...] imortal e idêntico a si mesmo [...]” (Fédon, 79a-80b). Referências BRISSON, L. A Prova pela Morte: Um Estudo Sobre o Fédon de Platão. Revista Hypnos Revista do Centro de Estudos da Antiguidade. 9 (2002). CASERTANO, G. Discurso lógico e exigência ética no Fédon. Revista Hypnos- Revista do Centro de Estudos da Antiguidade. 1 (2014). DIXSAUT, M. Ousia, eidos et idea dans le Phédon. Revue Philosophique, n. 4 (1991). _________: De la Philosophie comme mort a la mort du philosophe (Phédon). Séminaire d’elèves àl’ ENS (2003). DORTER, K. The dramatic aspect of Plato's Phaedo. Dialogues 8 (1969-1970). DORTER, K. Plato's Phaedo, An Interpretation. Toronto: UTP, 1982. FESTUGIÈRE, A.J.: Contemplation et Vie Contemplative selon Platon. 2a. ed. Paris: Vrin, 1950. MUNIZ, Fernando. Prazer, Sensação e Errância em Platão. Kléos n.5/6 (2001). ________:.A Potência da Aparência: um estudo sobre a hedoné e a aisthesis nos Diálogos de Platão. Tese (Doutorado em Filosofia). Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1999. PAKALUK, M. Degrees of Separation in the Phaedo. Phronesis, vol. 48, (2003). PLATÃO. República. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 9 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001 _________:Fédon. Tradução e introdução: Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 2011. _________: Fédon. Tradução, introdução e notas: Maria Teresa Schiappa de Azevedo. 2ªed.Coimbra: Livraria Minerva, 1988. _________: Górgias, trad. de Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 1980. _________:Phaedo. Tradução, introdução e notas: David Gallop. Nova Iorque: Oxford University Press Inc., 2009 [1993]. PLATO. Phaedo. Tradução e notas: D. Bostock. Nova Iorque: Oxford University Press, 2002 Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 2015 / 11ª edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 352 [1986]. _________: Phaedo. Tradução e notas: Burnet, J.: Plato’s Phaedo. Oxford: Oxford University Press, 1925. PLATON. Oeuvres complètes. Tomes I à XII. C.U.F. Paris: Les Belles Lettres, 1920-1956. SALLIS, John. Being and Logos – Reading the Platonic Dialogues. Indiana University Press, 1996. VLASTOS, G. Reasons and Causes in the Phaedo. The Philosophical Review, Vol.78, No.3 (1969): Duke University Press. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2183829. _________: Separation. In: ANNAS, J. (org). Oxford Studies in Ancient Philosophy, Volume V. Oxford; Nova Iorque: Oxford University Press, 1987. WIGGINS, D. Teleology and the Good in Plato's Phaedo. In: ANNAS, J. (org). Oxford Studies in Ancient Philosophy, IV. Oxford; Nova Iorque: Oxford University Press, 1986. Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 2015 / 11ª edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417