Morte como filosofia no Fédon de Platão Yasmin Tamara

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Morte como filosofia no Fédon de Platão
Yasmin Tamara Jucksch
Mestranda UFF
Resumo
As defesas da ideia e da urgência do conhecer-se a si não são em nada superficiais na obra
platônica, e no Fédon, em especial, esta ideia é exposta cabalmente (e com grande requinte
literário) pelo agudo discurso socrático. Nele, o problema do conhecer-se a si mesmo engolfa
de forma magistral o problema da reminiscência e da temperança: a recordação de psyché do
atemporal, uno e fundamental deveras esquecido é capaz de manifestar-se ao mesmo tempo
em que ela própria afrouxa gradualmente os elos entre as emoções e o devir (Fédon, 64e-65a;
84a-b). Ora, é possível observar no Fédon que a dose desse conhecer-se a si é sempre dupla:
de um lado, a acurada observação e a desvinculação do que é corporal e sensível (81b-e; 64cd) completa-se com a própria identificação ativa e deliberada com o lógos cujo lugar é a alma
(83a-b; 64e-65c), e ambos os movimentos são exaltados em abundância por Sócrates como o
próprio jogo da filosofia enquanto ação dirigida à plenitude da morte. A partir disso, o
presente artigo buscará (1) explicar como se dá, entre essas duas instâncias, essa copertinência ética e epistemológica – já que, ao desenfronhar-se das influências desiderativas e
limitantes das formas sensíveis, a psyché recupera, ao mesmo tempo, sabedoria e sensatez; e
(2) denodar o problema do exame de si para o qual é requerida uma medida muito delicada
entre o silenciamento (do corpo) e a audição (da alma), como o próprio métron do meléte
thanátou.
Palavras-Chave: Platão. Fédon. Auto-conhecimento. Morte.
I
No Fédon, o exercício de morte enquanto tarefa filosófica por excelência é
apresentado como uma diligência dedicada à persecução do conhecimento de certas
prerrogativas, em grande medida insuspeitadas, atinentes ao corpo e à alma. Ao possibilitar a
distinção entre umas e outras, esse conhecimento, consequentemente, traria em seu bojo a
oportunidade de uma espécie de imunização da alma em relação a paixões turvadoras e
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infecciosas, ao conceder, ao mesmo tempo, acesso a um saber de tipo divino e imaculado.
A expressão “conhecimento de si” não surge de modo explícito no contexto do
exercício para a morte, mas o problema a que se refere o conhecimento de si mesmo não está
alijado do processo de crítica ou separação intencional entre alma e corpo, uma vez que o
processo de conhecimento e o processo de morte supõem os mesmos difíceis trabalhos
fundamentais realizados (ou os mesmos “esforços de toda uma vida”, Fédon, 67c; 69d), por
um lado, na observação e na renúncia à hýbris – que nesse contexto manifesta-se como as
desmedidas dos prazeres e dores da alma na lida com o corpo e com o sensível – e, por
outro, numa espécie de homologação da alma consigo mesma que conduziria a uma espécie
de “experimentação” de veladas excelências anímicas. Pois tanto quanto o exercício de
morte, o conhecimento de si visa a desautorização do corpo (Fédon, 66a; 79c; 81a; 84b) e a
recuperação do conhecimento cujo lugar é a alma (65d; 69a-c; 79d; 83a-b; 84a-b).
Descrito no próprio Fédon como um obstinado “corte de relações” (67e) da alma
com o corpo e também como o seu refúgio no que é mais puro e valioso (79d), o exercício
de morte configura-se, assim, como um duplo processo: a resistência aos desejos e ganas
corporais, por um lado, e a saciedade causada pela sabedoria, por outro, manifestando-se
relacionalmente num crescendum da inversão axiológica dos prazeres e dores que
permitiriam à alma, nessa atuação simultânea, o (re)conhecimento da sua natureza sadia e
original.
Antes de debruçarmo-nos sobre essa dupla fundamentação, seria proveitoso aguçar
o olhar à ambiguidade anterior da própria ideia do “si mesmo” no Fédon. Pois ora essa ideia
nos sugere uma composição complexa entre corpo e alma, ora a ideia de uma alma livre cuja
natureza plena é indicada em mais de um diálogo do Corpus como originalmente livre da
saturação do corpo e das turbulências do vir-a-ser; essa duplicidade provém da distinção o
humano como animal, de um lado, e “princípio”, “sopro” ou “ar” divino, de outro, o que
remete à própria ambiguidade da distinção entre “puro” e “impuro”, ou “sadio” e “infecto”
notadamente marcadas na ontologia platônica.
No primeiro caso, a ideia do si mesmo enquanto conjunção entre alma e corpo
remete imediatamente à condição errática a que se submete a alma infectada: à imagem da
impureza e da enfermidade associa-se também a da alma-marionete que deseja manter-se no
gozo restritivo dos prazeres e dores devenientes. O corpo encerraria, assim, sempre uma
“infecção” (cuja causa não se encontra exatamente nele, mas na alma) justamente por
manifestar-se como um composto sôma-psyché, sob a condição passional de uma quase
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inamovível atadura (para alma contaminada, ver Fédon, 81b; para o fato de ela ser infectada
pelo corpo: 83b).
Note-se também que a (des)medida dos desejos da própria alma aparece em 82a-b
como o própria liga dos traços corporais singulares, manifestados como “veículos” ideais
para a satisfação desses mesmos desejos. Havendo, como diz Sócrates, sempre uma
conformação íntima entre uma alma e um determinado corpo animal, na raiz desse vínculo a
“infecção” sempre suporá um corpo, mas é o grau da infecção que determinará as feições sui
generis desse corpo e das circunstâncias que o relacionam com o mundo. Ora, essa
singularidade precisa ser examinada, conhecida nesta sua condição de forma “camaleônica”
da alma (cf. BOSTOCK, 1986).
Já de uma segunda perspectiva, a ideia do “si mesmo” como sendo alma (e não
corpo) parece remeter no Fédon à ideia da psyché indissolúvel e atemporal do Fedro que,
em relação ao corpo e ao movimento sensível, caminha nas alturas, quando perfeita e alada,
e governa o mundo em universal (Fedro, 240c). A alma é tomada, do estrito ponto de vista
da sua natureza imperecedoura, como inapreensível pelos paradigmas sensíveis e congênere
às Ideias (Fédon, 78e-79d). Note-se, entretanto, que essa liberdade e capacidade intelectiva
inerentes à sua natureza são paradoxalmente o seu próprio télos, isto é, a própria finalidade
ou plenitude a que se destina, e que tal condição supõe que o “si mesmo” diga respeito, neste
contexto, às potencialidades anímicas só manifestadas quando a alma volta a “possuir” a si
própria, graças, diz-nos o personagem Sócrates, ao treino de morrer e estar morto.
II
Na primeira perspectiva, isto é, considerando o si mesmo sob a perspectiva da
complexa união de soma e psyché, o trabalho de morte ou o conhecimento de si exercer-se-ia
sob a batuta de um agudo exame da compleição das fantasias e desejos por tudo que seja
temporal ou “corporal” (isto é, na observação da forma e das condições em que se impõem à
alma). Se o sensível não atinge nunca a identidade com a Forma por sua intrínseca condição
de imagem, também o apetite não alcança nunca a saciedade desejada, seja porque vincula a
satisfação ao mutável, ao inconstante, seja porque ele mesmo é inconstante e mutável.
No Górgias, Sócrates conta a Cálicles que já ouvira um certo sábio comparar a
alma a uma pipa, por ser facilmente sugestionável pelos ventos das circunstâncias e
conduzida por eles de um lado para outro; além disso, diz Sócrates,
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a porção da alma dos não iniciados em que se localizam as paixões,
justamente por ser incontentável e nada reter, comparou a um tonel furado,
que por isso mesmo nunca revela saciedade. Ao contrário de tuas
conclusões, Cálicles, essa pessoa nos mostra que no mundo das sombras –
o mundo invisível, conforme ele se exprime – os mais infelizes são os não
iniciados, pois carregam água para o tonel furado num crivo também cheio
de furos. Por esse crivo ele entendia a alma, como me explicou quem me
contou a história.
(PLATÃO. Górgias, 493a-c)
A observação destes apetites e desejos (ou o próprio ato de conhecer-se) ensejaria,
portanto, o conhecimento do uso uma nova metriké capaz de operar a ressignificação dos
prazeres e dores comumente atuantes. Cabe lembrar, neste exíguo ponto, a boa tékhne de
medição corretiva do Protágoras, reparadora das distorções fantasiosas impressas às dores e
prazeres:
Ora, se nosso bem-estar consiste em fazer e escolher o que é grande, e
evitar e não fazer o que é pequeno, qual seria o princípio salvador da vida
humana? A arte de medir ou a força da aparência? Não nos ilude esta
última, levando-nos muitas vezes a inverter as relações das coisas, a
modificar nossos propósitos e a nos arrependermos da resolução tomada,
não só com referência aos nossos atos, como com a escolha das coisas
grandes e pequenas? A arte da medida, pelo contrário, não neutralizaria
essa ilusão, com resolver a verdadeira relação das coisas, e não asseguraria
à alma a tranquilidade fundada sobre a verdade, salvando, assim, nossa
vida?
(PLATÃO. Protágoras, 356d)
Já que a salvação de nossa vida se nos revelou como consistindo na escolha
acertada de prazeres e sofrimentos, conforme sejam mais ou menos
numerosos, maiores ou menores, ou se encontrem mais afastados ou mais
perto, não é evidente que o de que se faz mister é do conhecimento das
medidas para estudar o excesso, a falta ou a igualdade de uns com relação
aos outros?
(Idem, ibidem, 357a-b)
Morrer, nesse contexto, é operar a depuração da ignorância e da desmedida,
nascidas dos efeitos ilusórios advindos da sensação e do prazer. Ainda no Górgias, vemos
que essa depuração também é comparada ao restabelecimento da saúde, tanto como no
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Fédon, e livra-nos, também como neste diálogo, do pior dos males. Mas enquanto a ênfase
na discussão sobre o que seja o pior dos males, no Fédon, recai sobre a ignorância, no
Górgias ela pende para a injustiça, embora sejam ambas faces do mesmo mal. Depois de um
longo raciocínio, Sócrates e Cálicles, no Górgias, concordam que a injustiça, a intemperança
e os demais vícios da alma são os piores males do mundo; em seguida, comparando a
necessidade de remédios para a restauração da sanidade do corpo com a necessidade do
castigo auto-imposto como antídoto para a maldade, e acrescenta que sempre vale a pena
suportar a dor de um tratamento médico para recuperar a saúde, mesmo que ele seja penoso,
repulsivo e amargo. Nesse ponto, a inter-relação que propomos entre o Górgias e o Fédon é
a de que, embora no primeiro o que livre do mal seja o castigo e o acusar-se a si mesmo e no
segundo seja exercício de morte, ambos se equivalem; o exercício de morte enquanto
antídoto para a ignorância seria, também, uma espécie de castigo auto-imposto, já que o
processo de conhecimento de si não é, enquanto meio, nem fácil nem aprazível.
O “conhecimento das medidas” e o “conhecimento de si mesmo” envolvem, assim,
os mesmos problemas atinentes à indução ao erro à qual a alma se expõe no seu comércio
indiscriminado com o vir-a-ser. Ora, graças a esse caráter sedutor e distorcivo do brilho do
fluxo sensível sobre psyché (e a despeito de todo o caráter cândido de que ela se reveste
como puro princípio de vida no Fedro), vemo-la no Fédon quase que indistintamente
amalgamada com o corpo (enquanto nele se concentra). Aqui, diferentemente do Fedro, o
desejo não está circunscrito apenas aos impulsos amorosos, mas é alargado para a
glutonaria, para a embriaguez e para os excessos de vaidade (Fédon, 64d). Tais formas de
prazer entretecem, no entanto, imagens mais fundamentais da ideia de fraqueza e de uma
provisória incapacidade da alma para concentrar-se na rememoração das Formas (Fédon,
66a) isto é, para a audição daquilo que se dá como “discurso” especial que pode ser
“colhido” ou “relembrado” e que “se dispõe” na própria alma
[...] quando a filosofia toma conta de uma alma [...], a exorta a isolar-se e a
concentrar em si todas as forças, a não se fiar senão dela mesma em tudo o
que capte em si e por si através do pensamento, quando toma por objeto a
realidade dos seres em si mesmos. (PLATÃO. Fédon, 83a – grifos nossos)
Se mesmo combalida por um mal que lhe é, segundo Sócrates, mais prejudicial do
que quaisquer outros, a alma é capaz de se regozijar na própria infecção, este deleite (que
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também devém na dor, no desejo que o prazer deixa quando se ausenta) não é um fasto
prazer, dirá Sócrates, mas um torvo suplício. As constantes desmedidas da têmpera – é
precisamente o que envolve a alma com certas imagens fictícias (cheias de dor e prazer) de
si mesma, imagens que o seu conúbio com o sensível torna mais verdadeiras quanto mais ela
se entrega ao exercício constante de “conviver” com ele (Fédon, 81c.). Esta “convivência”
deliberada entre corpo e alma é expressa por um interessantíssimo vocabulário dialógico, a
julgar pelos finos termos usados por Sócrates ao apresentar a imagem da alma que,
carregada de máculas corporais, toma quase sempre por verdadeiro o que o corpo lhe diz:
“Na verdade, cada sentimento de prazer ou dor é como pregos que fixassem a alma ao
corpo; e assim a agrafam a ele, a enleiam na substância corporal, por tal forma que tudo
aquilo que o corpo lhe disser ela toma por verdadeiro”. (Fédon, 83d). “Escutar” o “corpo”
(no sentido de dar ouvidos ou credibilidade a “seus” discursos e crenças, ou, como temos no
livro IX da República, deixar a alma dominar-se pelas partes que governam os indivíduos
ambiciosos e interesseiros) impõe-se imediatamente como o lugar comum da alma; nessa
condição intrinsecamente humana, tudo que jamais mantém identidade (Fédon, 79a) passa a
regê-la e a conduzi-la, enquanto que “aquilo que é eterno e sem forma ela aprendeu a odiar,
temer e evitar” (81b). Ora, o ato de “escutar” o corpo de desejos, ou ainda de “observar” o
que varia ao sabor das circunstâncias (dedicando-lhe deleites e sofrimentos) é, portanto,
completamente destituído de valor para o filósofo “morto”, capaz de ver e ouvir o que é
invisível e inaudível:
[...] aquilo que varia ao sabor das circunstâncias e que ela observa por
outros meios, não deverá [a alma] de forma alguma tomá-lo por verdadeiro
(alethés): é que coisas como estas pertencem ao mundo do sensível e do
visível, ao passo que aquilo que a alma vê por si é do domínio do racional e
do invisível.
(PLATÃO. Fédon, 83a – grifos nossos)
Assim como no Górgias os intemperantes não são, para Sócrates, donos de si
mesmos, uma vez que não dominam em si os prazeres e apetites, no Fédon o corpo que fala
alto e em excesso cala a alma que, retraída, mantém-se afastada do conhecimento de si e da
“audição” do próprio lógos, capaz de comunicar os fundamentos do real (τὸ όν) apenas
quando ela, psyché, “se isola o mais possível em si e por si mesma mandando o corpo
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passear, e se abstém, na medida das suas forças, de todo o contato e comércio com ele para
aspirar unicamente ao real” (Fédon 65c).Vê-se que o sentido do termo “corpo” adquire
maior densidade ontológica no Fédon ao remeter a tudo que esteja sujeito à temporalidade e
ao devir, e também (principalmente) às impressões e erros concrescidos na alma, graças à
sua lida apaixonada com tudo que é “corporal”; para o filósofo que morre, portanto, o
sensível ressignificado perde o seu caráter perturbativo, e a alma, antes móbil, deixa de
agitar-se sobre as suas caprichosas ondas.
Como consequência (se é através destas afecções que a alma mais fortemente se
prende ao corpo), Sócrates pode arrogar-se o direito de elevar a morte filosófica ao mais alto
umbral: ela passa a ser contemplada como a inversão radical do “olhar” do visível para o
invisível, da “audição” do discurso do “corpo” para a audição do lógos da própria alma ou,
ainda, da posição “submissa” da alma para o domínio ou independência do “discurso”
sensível.
Este domínio, entretanto, não se prefigura como desprezo do corpo, mas, ao
contrário, como uma mais alta potencialidade corporal, manifestada na própria transmutação
do gozo animal em gozo divino, pois o “corpo” silenciado harmoniza-se com o “discurso”
anímico justamente quando ela (psyché) reassume o seu posicionamento original:
[...] enquanto se mantêm juntos o corpo e a alma, impõe a natureza a um
deles obedecer e servir e ao outro comandar e dominar. Sob esse aspecto,
qual deles se assemelha ao divino e qual ao mortal? Não te parece que o
divino é naturalmente feito para comandar e dirigir, e o mortal para
obedecer e servir?
(PLATÃO. Fédon, 80a)
A separação indica mais o exercício do predomínio de um elemento sobre o outro
(corpo e alma) do que um ascetismo de recusa absoluta da sensação e dos prazeres. Nesse
caso, se o supremo mal a que está exposta a alma localiza-se com tal furor nos ardores
excessivos de sofrimentos e prazeres, o ato de observar, criticar e compreender as nuances
qualitativas de cada prazer e dor é que traria ao campo de “visão” da alma o exato “peso” do
corpo – e torná-la-ia, dada a impossibilidade socrática da akrasía (isto é, a impossibilidade
da fraqueza de vontade para realizar ou deixar de realizar algo que verdadeiramente se sabe
ser bom ou ruim), capaz de livrar-se desse peso graças, justamente, a esse mesmo
conhecimento.
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III
Já do ponto de vista do segundo sentido da expressão “si ou ti mesmo” (isto é,
como alma livre de maculação corporal), o conhecimento é descrito como o fruto de uma
concentração em si e por si (Fédon, 65d.). Esta seria uma prática (ou estado) cuja
determinação levaria a estreitas minúcias interpretativas, tanto quanto o sério problema da
relação efetiva e do equilíbrio entre este “silenciar” e “ouvir”: fundamentar-se-iam ambos
reciprocamente em exata medida ou, ao contrário, será um condição de possibilidade do
outro? Em que medida a ressignificação operada pela phrónesis fundamenta ou é
fundamentada pela consonância entre a alma e ela mesma? Tais questões, embora cruciais,
não nos ocuparão neste texto. Basta-nos afirmar, por ora, que esse duplo télos (o
silenciamento dos “hábitos e crenças” do corpo e a audição ou concentração da alma em si)
unifica-se justamente no exercício de depuração da multiplicidade de crenças e hábitos
desiderativos dedicados ao corpo, para suscitar o alcance da unidade na apreensão do que
“[...] é divino, imortal e inteligível, ao que possui uma só forma e é indissolúvel e se mantém
constante e igual a si mesmo” (Fédon, 80b).
Os prazeres superiores reservam-se, assim, à “contemplação” das Formas e daquilo
que é o Bom ou o Bem – cuja profundidade de sentido pode ser apenas resvalada pelos
símiles poéticos e míticos das imagens platônicas –, dando-se na alma como o próprio
conhecimento de si mesma. Em República IX, 582c, Sócrates concorda com Glauco, quando
este afirma que “a natureza do prazer que procede da contemplação do ser, é impossível a
qualquer outro saboreá-la, exceto ao filósofo”. No Górgias, por exemplo, encontramos a
ideia contígua de que os apetites revalorados transformam-se em boa epithymía: a imagem
do alimento verdadeiro e superior capaz de aplacá-la pode ser aqui comparada à ideia do
lógos da alma desembaraçada do corpo, passível de ser “ouvido”, ao “concentrar [sc. a alma]
em si todas as forças e não se fiar senão dela mesma em tudo o que capte em si e por si [...]
quando toma por objeto a realidade dos seres em si mesmos” (Fédon, 83b). Nesse
movimento, a alma recupera o conhecimento do que ela própria é, uma vez que, conforme a
teoria platônica da reminiscência, a verdade encontra-se em si mesma.
Essa dimensão propriamente ética do esforço do filósofo para navegar rumo ao
lógos anímico – movimento apenas possível se e na medida em que o particular (ídion) é
silenciado – parece compor-se exatamente com a mudança de rumo epistemológica descrita
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como a “segunda navegação” (Fédon, 99c-100e), em que Sócrates, no intuito de examinar a
verdade dos seres, conta como se esquivara, por um lado, da pretensão de tomar contato com
as coisas através dos sentidos (o que o conduziria à cegueira intelectual) passando, ao
contrário, a refugiar-se nos lógoi.
Para a navegação nesses mares desconhecidos ao homem o genuíno trabalho
filosófico de conhecimento de si exposto no Fédon é condição sine qua non, mas este
trabalho só se manifesta efetivamente enquanto um duplo (e difícil) processo: o
conhecimento e a morte do lógos humano comum que faz deleitar na dor e no prazer
particular identificado com o corpo e com a temporalidade, por um lado, e a abertura para o
próprio logos “audível” pela alma sedenta e desfigurada, por outro. É o que parece indicar
Sócrates quando, em outras palavras, afirma que “calando em si a violência das paixões, [...]
[sc. a alma] contempla o que é verdadeiro (τὸ αληθὲς), divino (τὸ θεῖον) e não sujeito às
contingências da opinião (τὸ ἀδόξαστον)”, refugiada “no que é puro, [...] imortal e idêntico a
si mesmo [...]” (Fédon, 79a-80b).
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