O gene em seu ambiente psicologia evolutiva, genética comportamental e uma afirmação da natureza humana (Texto produzido para ser apresentado no seminário temático ST03 da XXVIII Reunião Anual da ANPOC) Por Ricardo Waizbort Pesquisador Associado Programa de Pós-graduação em História das Ciências da Saúde Casa de Oswaldo Cruz FIOCRUZ Rio de Janeiro Setembro 2004 O gene em seu ambiente psicologia evolutiva, genética comportamental e uma afirmação da natureza humana - - De qualquer forma, não há uma verdade, só pontos de vista, diz a jornalista Bitsey. Se você diz que não há verdade, afirma que é verdade que não há verdade. Isso é uma contradição, replica seu estagiário, Zack. Qual é Zack? Está se preparando para concorrer a uma medalha de filosofia? Diálogo adaptado a partir do filme A vida de Gale, de Allan Parker. 1 – Uma longa introdução: Três proposições básicas Boa tarde. Antes de mais nada eu gostaria de agradecer a oportunidade que a ANPOCS nos deu para promover esse debate. Só esse fato demonstra que os cientistas sociais estão interessados em investigar os limites e os diálogos de suas próprias disciplinas. Meu desejo é que esse nosso encontro dessa semana possa vir a ser uma ponte para a criação de um GT para o próximo biênio da ANPOCS. Vou ler um texto que preparei para essa ocasião, apesar de não gostar muito de ler em público, pois na maioria das vezes perdemos o contato com os olhos das pessoas. Certa vez uma amiga dileta me aconselhou a não olhar nos olhos dos ouvintes para quem eu ministrasse uma comunicação como esta, por que muitas vezes podemos encontrar discordância e, o que é pior, desinteresse e desprezo. Ocorre que, no fundo, eu acho que olhar nos olhos é o melhor de toda a coisa. Bem, eu vou tentar ler e ao mesmo tempo olhar nos olhos de pelo menos alguns de vocês, o que naturalmente não vai ser nada fácil. Vocês podem imaginar que o meu coração, a essa altura, quer sair pela minha boca. O que eu quero colocar inicialmente é que estamos aqui reunidos, justamente, por que não compreendemos de forma completa, e nem mesmo razoavelmente de modo parcial, questões existenciais de senso comum como: O que somos? De onde viemos? Para onde vamos? Eu vou tentar concluir que com o advento da engenharia genética nós poderemos introduzir finalmente um sentido para as espécies de seres vivos antes inimaginável. Vivemos em um cenário social em óbvia crise. Fome, guerras, violência urbana, as situações críticas podem se multiplicar facilmente. A origem e a manutenção do sofrimento humano, em muitos casos, têm sido interpretados como o resultado da aplicação de uma filosofia de mercado a uma subjetividade plena de anseios transcendentais e românticos. A crítica feita, por exemplo, pelos adeptos da Escola de Frankfurt ao Iluminismo, à ciência e ao conceito de verdade que a própria ciência reproduziria, procura mostrar como o conhecimento humano é mais uma prisão do que um elemento que poderia levar a alguma liberdade e justiça sociais. Negar a existência de uma natureza humana significou, do ponto de vista de uma sociologia socialista, a possibilidade de compreender a mente humana como uma matéria infinitamente moldável, aberta à experiência social e cultural, transpondo todos os limites e coerções de uma herança genética e biológica ancestral. Nessa minha apresentação eu vou fazer 3 proposições e comentá-las muito brevemente. Depois disso eu vou apresentar rapidamente a genética comportamental e a psicologia evolutiva como duas linhas de investigação científicas que tem servido de ponte, nas ultimas décadas, para ligar estudos biológicos a sociais e culturais. Finalmente, vou tentar discutir esses assuntos à luz de um estudo feito pelo psicólogo e psiquiatra infantil Simon Baron-Cohen, que investigou uma doença de neuro-desenvolvimento conhecida como autismo a correlacionou com as diferenças mentais de gênero entre crianças pequenas (BARON-COHEN, 2004). Vou tentar mostrar que para compreender o fenômeno da diferença psicológica entre mulheres e homens - e lutar para que a diferença não se traduza nem em discriminação machista, nem em um feminismo do tipo “o homem é o macho no poder querendo subjugar a mulher” - devemos acessar tanto elementos de teorias sociais como elementos de teorias biológicas e evolutivas (darwinistas). Mas vou partir de um fato existencial, que é o nervosismo que me assalta por estar aqui na frente de vocês, e tentar mostrar que para compreender esse fenômeno, também devemos acessar elementos tanto de teorias sociais como de teorias biológicas e evolutivas (darwinistas). Para chegar a esse ponto eu parti de um fato que prevejo há muitos meses. Ou seja, o cenário em que aqui estamos. Muitos de vocês crêem que esse nervosismo é o produto do meu desejo de ser compreendido, de ganhar respeitabilidade, de conquistar parceiros intelectuais ou até sexuais, de angariar financiamentos, de me tornar conhecido ou simplesmente de agradar. E que todos esses objetivos são socialmente construídos, são o produto de uma sociedade e de uma cultura que prezam a ciência, a reputação e o dinheiro. Eu vou defender aqui que esse nervosismo é o produto de genes em contato com um ambiente específico. Talvez eu tenha genes que me deixem nervoso para falar em público. Ou melhor: as diferenças de nervosismo entre eu e outras pessoas em situações como essa são parcialmente influenciadas por genes. Pois há pessoas que lidam muito melhor com isso. Também há os que lidam pior com isso. Pode-se dizer, segundo Baron-Cohen, que as mulheres, na média, lidam melhor com circunstâncias como essa pois seus cérebros, na média, são sutilmente mais capazes de empatia do que de sistematização, atributo mais masculino, também na média. Baron-Cohen chama sua teoria de “teoria do autismo como um cérebro extremamente masculino”(BARON-COHEN, 2004). De qualquer forma, minha hipótese é que esse nervosismo em parte está programado em uma natureza humana inscrita em minha mente para situações análogas a esta; que na realidade tal nervosismo não representa um descontrole mas uma adaptação, um instinto (como o ciúmes, segundo David Buss). Tal disposição para esse nervosismo foi transmitido pelos genes de meus pais para reagirem assim em ambientes ancestrais específicos. Homens do sexo masculino herdam genes, na média, ligeiramente diferentes dos genes femininos, genes do cromossomos Y (SRY, SOX9) , por exemplo, que podem contribuir para um efeito masculinizante. Essas distinções são importantes na história da espécie Homo sapiens, pois mulheres e homens percorreram percursos ligeira mas sensivelmente diferentes no curso da evolução humana. Minha boca está seca, meu coração batendo mais rápido, provavelmente nesse momento tenho uma midríase, a adrenalina é mais abundante em minha corrente sangüínea, minhas mãos estão suando frio, minha concentração na linguagem falada agora é próxima à máxima que posso dar. Talvez, na média, uma mulher pudesse lidar melhor com essa situação, por causa de sua ligeira superioridade em empatia. Claro que eu não sou essa pessoa. Argumento que na minha mente há um módulo inato, modelado pela seleção natural, influenciado por genes específicos, mas também por hormônios, enzimas, fatores de crescimento para lidar com situações sociais análogas a essa em que me encontro. Minha mente não foi modelada para a situação em que me encontro. Não aprendi a ficar nervoso. Todavia, muito provavelmente, minha mente foi selecionada em um ambiente no qual a habilidade de se comunicar era vital. Obviamente não existem genes para a mente, mas existem genes que uma vez modificados podem ter um impacto bastante profundo sobre isso que chamamos de mente. Os genes que herdamos são transmitidos para funcionar em um ambiente molecular específico. Transforme-se esse ambiente (a temperatura, o pH, a umidade, a concentração de sais) e os genes podem se expressar diferentemente ou mesmo nem se expressar. Como ser humano ante o dilema filosoficamente intrigante de estar vivo gostaria de alimentar a brasa de uma compreensão menos fragmentada da vida psicológica e social do bicho Homo sapiens. As três proposições que vou fazer a seguir são até certo ponto básicas e fundamentais, vistas de um referencial biológico. Julgo que são necessárias para que o debate a seguir não comece repetindo verdadeiros equívocos a respeito de objetos, resultados, teorias e métodos científicos. Descrever não é prescrever. Eu também não concordo com vários estados de coisas naturais que vou apontar a seguir. Mas a natureza é! E o que podemos fazer é modificá-la. Negar a sua existência ao meu ver é uma estratégia ruim, pois, no mínimo, corre-se o grande perigo de ignorar uma ou alguma das causas daquilo que justamente procuramos compreender: o comportamento humano. Antes ainda de proferir as três proposições eu gostaria de mencionar que quando falo de comportamento humano estou mencionando uma numerosa lista compilada pelo antropólogo Donald E. Brown em 1989 e publicada em 1991, que consiste essencialmente em universais “exteriores” de comportamento e linguagem manifesta observados por etnógrafos (PINKER, 2004). A lista, de cerca de trezentas características universais a todas as culturas humanas, não relaciona universais mais profundos de estrutura mental revelados por teoria e experimentação. A seguir cito, um pouco aleatoriamente, alguns desses universais exteriores: adorno corporal; brincadeiras para aperfeiçoar habilidades, classificação (fauna, flora, partes do corpo, etc.); discurso simbólico; estupro proscrito; folclore; generosidade admirada; horas para refeições; prevenção ou abstenção do incesto; luto; machos mais agressivos que fêmeas; narrativa; idéias de passado/presente/futuro; piadas, reparação de ofensas; sexualidade como foco de interesse; tabus alimentares e na fala; utensílio para cortar, para fabricar outros utensílios; vida íntima privada; antevisão; brincar de fingir; cócegas; fazer comparações; gostos e aversões; justiça informal; mapas mentais; orgulho; provérbios e ditados; sentimentos morais; vergonha. Agora passo diretamente a minhas três proposições e seus comentários: Primeira proposição: O objetivo desse trabalho é argumentar que os genes são elementos necessários mas não suficientes para a explicação e a compreensão da vida social e cultural. Para entendermos melhor temas politicamente delicados tais como identidade, gênero, raça, violência e organização social, temas que tradicionalmente são objetos das ciências sociais, não podemos ignorar a base biológica sobre a qual esses fenômenos se radicam. Os fatos sociais tomados como coisa devem reconhecer a base material sob o qual radicam. O homem é antes de tudo um animal, um animal social. A relação de cada indivíduo com seus pais, irmãos, parceiros sexuais e outros atores faz parte da vida da espécie, e certamente da vida de muitas outras espécies de seres vivos. Essa interação do indivíduo com os outros membros de seu grupo, desde sua concepção, é fonte de inúmeras perspectivas e sofrimentos que estão radicadas no fato, mas não rigidamente determinadas por ele, de que cada indivíduo é construído corporal e mentalmente a partir de uma base biológica, neuronal e genética herdada de seus pais. Argumento que há uma natureza humana comum a todas as épocas e etnias e não podemos compreende-la sem levar em conta o nível de explicação dos genes. Essa natureza é composta de uma grande número de comportamentos que são universais a todas as culturas humanas (BROWM apud PINKER, 2004). Mas necessário não significa suficiente. E nem compreender significa absolver (PINKER, 2004). Compreender, por exemplo, por que há violência em outras espécies diferentes da humana não significa, em hipótese alguma, que devemos aceitar a violência entre os homens, presumindo que o natural é bom, que o real é o racional. A minha segunda proposição é: A relação da sociologia e da antropologia com a biologia evolucionária (a teoria contemporânea da evolução por seleção natural) é análoga à relação da biologia com a física e a química, ou seja: a biologia não pode ser reduzida à física e à química sem importantes perdas de informação (penso no fenômeno conhecido como emergência), mas a biologia não pode prescindir dessas ciências ou ainda, não pode contrariar o comportamento da matéria estudada nos níveis de organização subvenientes dos objetos e processos da física e da química: forças, átomos, massa, etc. Assim também: a sociologia, a antropologia e mesmo a psicologia e a filosofia não podem ser reduzidas à biologia evolucionária sem importantes perdas de informação (emergência), mas a sociologia, a antropologia, a psicologia e a filosofia não podem prescindir dessa ciência ou ainda, não podem ignorar, por exemplo, o comportamento social de outros animais, pois esse é provavelmente um exemplar de como os animais interagem naturalmente. Um dos grandes problemas que se coloca aqui é que a biologia evolutiva é uma ciência muito mal compreendida fora dos círculos mais estritos (GOULD, 1977). Ernst Mayr, por exemplo, critica aqueles que interpretam a teoria da evolução de Darwin como apenas uma teoria. Mayr assinala que o arcabouço darwinista deve ser decomposto, no mínimo, em cinco teorias, com graus de evidência e testabilidade diferentes: 1) A teoria da evolução como fato; 2) A teoria da origem comum; 3) A teoria do gradualismo; 4) A teoria da especiação; 5) A teoria da seleção natural. Além disso Mayr demonstra como o pensamento populacional de Darwin refuta de vez qualquer pensamento essencialista, que interpreta as variações que existem entre os indivíduos como um afastamento acidental de um tipo ideal, o espécime-tipo (HULL, 1985). No pensamento de populações, a variação é uma evidência. É sobre os indivíduos que variam que a seleção natural opera, como que peneirando aqueles que na média apresentem maior sucesso reprodutivo em relação a outros indivíduos da mesma espécie, que competem pelos mesmos recursos do ambiente, modelando assim, como um escultor, as populações (MAYR, 1998). De todas as teorias que compõe o darwinismo e o neodarwinismo sem dúvida a teoria da seleção natural é a mais controvertida. Há verdadeiras e encarniçadas batalhas acerca da questão de se a seleção natural é necessária e/ou suficiente para explicar a evolução como um todo e sobretudo o comportamento humano. Ela é talvez melhor conhecida pela polêmica causada por um conhecido biólogo evolucionista, S.J.Gould e sua polêmica contra a teoria do gene egoísta. Podemos discutir um pouco mais isso depois no debate. Minha terceira proposição é: Em 1973 Dobzhansky argumentou: “Nada faz sentido em biologia senão à luz da evolução” (DOBZHANSKY, 1973). Eu pergunto: Algo faz sentido em sociologia senão à luz da história? Algo faz sentido na história senão à luz de reflexões metahistóricas, e portanto filosóficas? (FREITAS, 2003). Para que os genes tenham sentido na história da vida, os genes devem ser considerados em sua relação com a teoria contemporânea da evolução por seleção natural, o darwinismo ou neodarwinismo. Como muitos aqui sabem, historicamente falando, o mundo em que Darwin viveu não produziu nenhum tipo de teoria da hereditariedade aceitável. Só com a redescoberta dos trabalhos de Mendel em 1900 os cientistas puderam começar a investigar realisticamente a relação entre a evolução dos seres vivos e a transmissão das características hereditárias. Dito de outra forma: somente a partir de 1900 começou a se pensar qual a base genética para a história das espécies de seres vivos e de sua fantástica diversidade. Em fins da década de 1930 e inícios de 1940 vários biólogos de formação diferentes, mas conhecedores dos desenvolvimentos na teoria da evolução e na teoria genética, produziram a assim chamada Teoria Sintética da Evolução. Tal teoria seria a síntese entre a teoria da evolução por seleção natural, desenvolvida inicialmente por Darwin e Wallace, e a teoria da herança particulada de Mendel, em que as características hereditárias eram transmitidas por partículas que se combinam mas não se misturam, de geração à geração. Tais partículas, seriam bastante imunes às vicissitudes da experiência, fenômeno da separação entre os soma e o genoma, descoberto por Weissman, considerado o primeiro neodarwinista (Bowler). Weissman descobriu que as células somáticas e as reprodutivas têm destinos completamente separados. O que acontece ao corpo de cada indivíduo não é incorporado ao patrimônio genético da espécie. A estrutura química e física desvendada em 1953, quando descobriram a estrutura molecular um modelo para a replicação dos genes só foi Watson e Crick do DNA, sugeriram da dupla-hélice, e insinuaram que a mensagem genética poderia ser composta pela seqüência de bases nitrogenadas que forma, por assim dizer, os degraus internos do DNA, no famoso modelo de escada de corda torcida. Quase dez anos se passaram até que a comunidade científica aceitasse que o gene era composto de DNA (OLBY), e que surgisse de fato um teste experimental provando que a seqüência de bases representava um código para a síntese de proteínas e um modelo para a replicação dos genes (JUDISON). Mas não foi preciso esperar o decifrar da estrutura fisico-química dos genes para que os cientistas pudessem desenvolver modelos de como os genes afetam traços físicos e comportamentais, afetam traços de desempenho, nas mais variadas espécies. A genética de populações, por exemplo, em meados da década de 1920, definia a evolução como “mudança na freqüência de genes de uma população”, sem precisar fazer qualquer referência à estrutura fisico-química dos genes. Assim, desde o início, pode-se entrever que há pelo menos dois conceitos de gene distintos: o gene evolutivo da genética populações e o gene molecular oriundo da descoberta da estrutura fisico-química do DNA. Qualquer um que esteja um pouco familiarizado com a genética de populações sabe que a mudança de freqüência no genes significa que, em uma dada população, um gene qualquer, por exemplo, o gene para cor de olhos, ocorre em mais de uma forma, os chamados alelos. Há um alelo para olho castanho e outro para olho azul. Há evolução quando ocorre uma nova e estatisticamente significativa proporção entre os alelos dentro de populações ou entre elas. Analogamente, quando um cientista fala que um comportamento humano tem um importante componente genético ele NÃO está querendo dizer necessariamente que há um gene que determina tal comportamento, mas que na população há variações de comportamento, e que essas variações podem ser causadas por diferentes alelos, por distintas versões dos genes. Com essa proposição eu chego ao ponto que quero realmente discutir, ou seja, se as diferenças de gênero são socialmente construídas ou se são atribuíveis aos genes e à biologia. E se é possível resolver essa querela assumindo uma solução do tipo “tudo é natureza” ou “tudo é cultura”. 2 - Corpo, mente e ambiente Biologicamente falando, nosso corpo é construído para ser sensível ao meio ambiente. O desenvolvimento do corpo depende de uma série de processos celulares e moleculares que não ocorreriam se não existissem os genes. Igualmente os genes não existiriam se não fosse pela existência sobretudo de proteínas, mas também, de modo necessário, de água, de íons, de gorduras, de açucares e de uma população imensa de outros tipos de moléculas. De qualquer forma são os genes que transmitem de geração à geração a informação biológica necessária para que o corpo dos indivíduos se forme, da célula-ovo ao embrião ao bebê à criaça ao adolescente até o organismo adulto. Embora talvez aqui todos concordem que nosso corpo é biologicamente estruturado, diferentes são as opiniões quando se trata de saber como a mente se desenvolve, tanto ontogenética como filogenéticamente, quer dizer, tanto de modo individual, como de modo histórico. Filósofos, cientistas sociais e antropólogos como Boas, Geertz, Mead, Foucault, Ingold, Gadamer, Montagu (a lista poderia se estender por muitas páginas) e seus seguidores, pensam que a mente é uma espécie de substância amorfa, papel em branco ou tábula rasa na qual a cultura e a experiência imprimem todo o conteúdo psicológico e social. Alguns desses autores sustentam também que só no homem há uma subjetividade imaterial habitando o corpo material, como um fantasma na máquina. Essa subjetividade nos separaria de todo o resto do mundo animal, em termos mentais. Conseqüentemente, os métodos das ciências que estudam a subjetividade devem ser necessariamente diferentes dos métodos das ciências que estudam a matéria objetiva. Além disso, ainda há os que acreditam que é a vida social que corrompe o homem, que o estado selvagem é sem malícia e violência, que o natural é necessariamente bom, proposição conhecida filosoficamente como falácia naturalista. Associadas das mais diversas formas, as doutrinas da tabula rasa (ou papel em branco), do bom selvagem e do fantasma na máquina formam o núcleo do abismo entre as assim chamadas humanidades e as ciências biológicas (PINKER, 2004). Para muitos cientistas sociais o que chamamos de mente psicológica, subjetiva e individual é o resultado de um longo processo de aprendizagem social, cultural e lingüística, no qual tradições sociais e culturais imprimem seu caráter na argila amorfa da mente. Eles consideram que o cérebro pode ser até compreendido como a base física da mente, mas a mente viria ao mundo como um papel em branco. Nascemos com um cérebro livre de conteúdos e nosso caráter, personalidade, inteligência, identidate, o que chamamos de “eu”, é impresso por meio de linguagens e símbolos no qual somos imersos desde os primeiros instantes da vida. Entretanto, desde o momento de nossa concepção a célula que se divide e se divide até se tornar o adulto que somos está a sujeita a transmissão de informação genética de uma célula para outra, em um processo chamado de mitose. O que chamamos de cérebro se desenvolve assim. Note-se que o cérebro é formado basicamente por proteínas que são produtos de células que se diferenciaram justamente nos tipos de células mais característico dos cérebros (neurônios, células glias, etc). Enzimas e hormônios são tipos de proteínas cujas as mais diversas funções que executam no corpo e no cérebro, nos níveis celular e molecular, estão envolvidas com o que chamamos de comportamento. Do ponto de vista cognitivo o cérebro é um processador extremamente complexo para extrair e computar informações do ambiente. Os autores que tenho estudado enfatizam que a mente surge de processos físico-químicos do cérebro, o que não significa que estejamos completamente determinados por esse nível de organização. A base física não se confunde com o que somos, com esse sentimento de subjetividade viva e sensível: o “problema difícil” das investigações acerca da consciência (CHALMERS, 2004). Mas a informação sobre o que somos passa inexoravelmente pelo fato de que somos produtos milenares de outras gerações de mulheres e homens. Mulheres e homens, por sua vez, são o produto de um processo genealógico que não se extingue na fronteira da nossa espécie com a de outros animais. É a teoria da origem comum, que está viva desde antes de Darwin, que garante que nosso corpo e nossos genes fazem parte de um rio que se bifurca e se bifurca, no qual alguns braços se extinguem, mas que muitos outros permanecem correndo desde uns quatro bilhões de anos. 3 – Duas mentes A diferença entre o comportamento social feminino e masculino é um dos temas em que mais se afirma o caráter social e não biológico do comportamento humano. Psicologicamente falando as mentes de mulheres e homens seriam socialmente construídas. Entretanto, nas últimas décadas estudos têm mostrado que certas diferenças entre os comportamentos de homens e mulheres são universais (BUSS, RIDLEY, PINKER, ), e se evidenciam desde o início da vida de cada vida (Baron-Cohen, 2004), contrariando o mito dos três anos. Esses estudos mostram que há durante o processo de desenvolvimento físico e mental de mulheres e homens, processos fisiológicos que ocorrem de forma diferente entre os dois gêneros. Antes de tudo enfatizo que Baron-Cohen assinala que se deve pensar no sexo em cinco níveis diferentes: 1. Sexo genético: você é mulher se tem dois cromossomos X (XX) e é homem se tem um cromossomo X e um Y (XY). 2. Sexo gonádico: você é mulher se tem um conjunto normal de ovários (produzindo hormônios femininos), e é homem se tem um conjunto normal de testículos (produzindo hormônios masculinos). 3. Sexo genital: você é mulher se tem uma vagina normal, e é homem se tem pênis normal. 4. Tipo de cérebro: você é mulher se a sua empatia é melhor que a sua sistematização, e é homem se a sua sistematização é mais forte do que a sua empatia. 5. Comportamento típico do sexo: Está ligado ao tipo de cérebro (4.). Você é mulher se os seus interesses envolvem atenção aos amigos, o cuidado com os sentimentos deles e a conquista de intimidade e é homem se os seus interesses envolvem aparelhos, coleções de CD e estatísticas de competições esportivas, etc. (BARON-COHEN, 2004) Segundo BARON-COHEN, boa parte da diferença entre os comportamentos de mulheres e homens em sociedades são devidos a componentes genéticos. Ele não está querendo dizer que toda mulher é melhor para determinadas tarefas que qualquer homem, que ela têm genes para isso e nós não. Ao contrário, está querendo mostrar que as diferenças que existem em certas disposições mentais são devidas, em boa parte, ao fato de que as mulheres herdam uma estrutura mental de seus pais que, na média, se parece mais entre elas do que entre os homens. A fim de dirimir algumas dúvidas eu queria dar voz a uma passagem do livro Nature via nurture, de Matt Ridley, pois o que ele fala a respeito da herdabilidade das características hereditárias vai nos importar não só para discutir as diferenças de comportamento entre homem e mulher, mas também entre pais e filhos, entre irmãos, entre amigos e outros atores sociais. 4 – Genes para comportamento A genética de comportamento é o estudo do comportamento de gêmeos. Ela é uma é uma forma de investigar em que proporções o que chamamos identidade - que pode ser analisável em termos de personalidade, inteligência, caráter e outros atributos mentais ou subjetivos – é determinado pelos genes, em que medida é transmitido pelos pais, e em que medida é determinado pelos ambientes sociais compartilhado e estrito. Usando uma metodologia muito sofisticada. Não é mais uma ciência anedótica que assinalava as surpreendentes semelhanças entre dois irmãos univitelinos que foram separados ao nascer e que se reencontram depois de décadas. Mas a comparação de milhares de pares de gêmeos espalhados por todo o mundo. Isso produziu uma base para compreender o quanto da personalidade (OCEAN) e da inteligência, por exemplo, está influenciada pelos genes e pelas estruturas mentais modulares que herdamos do patrimônio genético da espécie a partir da reprodução de nossos pais. A genética comportamental é uma maneira simples de medir quão similares são os gêmeos idênticos, quão diferentes são os gêmeos fraternos, e como os gêmeos idênticos e fraternos se comportam se adotados separadamente por diferentes famílias, em diferentes sociedades. O resultado é uma estimativa da herdabilidade para qualquer traço. Entretanto, herdabilidade é um conceito traiçoeiro, muito mal compreendido. Ele é uma média populacional, sem sentido para qualquer pessoa individual. Matt Rildey mostra que Shakespeare criou em “Sonhos de uma noite de verão” a idéia de “gêmeos virtuais”. Gêmeos virtuais são um par de pessoas que, desde a mais tenra idade viveram juntos e foram tratados igualmente (aproximadamente a mesma alimentação, as mesmas escolas, etc.) uma situação bastante propícia para testar a hipótese de que o ambiente é que cria a identidade, pois seria de se esperar, nesse caso, que essas duas pessoas se parecessem extremamente entre si. Não é o caso das gêmeas virtuais Hérmia e Helena, da peça do bardo inglês. Apesar de terem sido criadas juntas, sem discriminações, elas discordavam em tudo. Entretanto, seria absurdo dizer, segundo Ridley, que Hermia tem mais inteligência (ou traços de personalidade) herdável que Helena, ou vice-versa. Quando um geneticista diz, por exemplo, que a herdabilidade da altura é de 90% isso não significa que 90% dos centímetros de Hérmia vem seus genes, e 10% da sua alimentação ou dos exercícios que fez. Isso significa que a variação na altura em uma amostra particular é atribuível 90% aos genes e 10% ao ambiente. Não existe variabilidade na altura para um indivíduo; não há herdabilidade em sentido individual. A herdabilidade pode medir somente variações, não absolutos. A maioria das pessoas nasce com dez dedos. Aquelas com menos dedos usualmente os perderam em algum acidente – através dos efeitos do ambiente. A herdabilidade para o número de dedos é portanto próxima de zero, pois quase não há variações. Todavia, seria absurdo argumentar que o ambiente é a causa de termos dez dedos. Nós desenvolvemos dez dedos porque nós somos geneticamente programados para desenvolver dez dedos. É a variação no número de dedos que é ambientalmente determinada; o fato de temos dez dedos é genético. Paradoxalmente, portanto, as características menos herdáveis da natureza humana podem ser as mais geneticamente determinadas. Assim também com a inteligência. Não seria certo dizer que a inteligência de Hermia é causada pelos seus genes: é óbvio que não se pode tornar inteligente sem comida, sem cuidado parental, sem aprendizagem ou sem livros. Entretanto, em uma amostra de pessoas que possuem todas essas vantagens, a variação entre os que vão bem nas provas e aqueles que não vão pode ser uma questão de genes. Nesse sentido, a variação na inteligência pode ser genética (ver tabela de QI em Genoma de Ridley). Por acidente geográfico, classe ou dinheiro, a maioria das escolas têm alunos com um background similar. Por definição, tais escolas dão a esses alunos uma ensino similar. Ridley argumenta que, tendo minimizado as diferenças nas influências ambientais, as escolas inconscientemente têm maximizado o papel da hereditariedade genética: é inevitável que as diferenças entre as notas altas e as notas baixas dos alunos devam ser devidas aos seus genes, por que foi apenas isso que se deixou variar. De novo, herdabilidade é uma medida do que está variando, não do que é determinante. Da mesma forma, em uma verdadeira meritocracia, continua Ridley, onde todos têm oportunidades e treinamentos iguais, os melhores atletas serão aqueles com os melhores genes. A herdabilidade da habilidade atlética se aproximaria de 100%. No tipo oposto de sociedade, onde somente poucos privilegiados obtêm comida e chance para treinar suficientes, o background e a oportunidade vai determinar quem vence a corrida. A herdabilidade vai ser zero. Paradoxalmente, portanto, quanto mais igual [em termos de oportunidade] nós fizermos a sociedade, maior será a herdabilidade, e mais os genes irão importar (RIDLEY, 2002, p 76-77). 5 – A psicologia evolutiva A psicologia evolucionária é um afastamento da visão dominante da mente humana. John Tobby e Leda Cosmides batizaram a tradição ocidental que domina as humanidades, a hermenêutica, a sociologia, a antropologia social e cultural e até a filosofia, como Modelo Clássico das Ciências Sociais (MCCS) (SSSM, standard social science model). O MCCS postula uma divisão fundamental entre biologia e cultura A biologia dotaria os seres humanos com os cinco sentidos, alguns impulsos como a fome e o medo e uma capacidade geral para o aprendizado (TOBBY E COSMIDES, 1992; PINKER 1998). O cérebro é compreendido como um aparato de resolução geral de problemas sem áreas ou regiões especializadas. A evolução biológica, segundo os adeptos de um MCCS, tem sido suplantada pela evolução cultural. Um dos elementos mais importantes da revolução que a psicologia evolucionária trouxe foi a consideração de que o cérebro e a mente são modulares e que já nascemos préprogramados com instintos para vários comportamentos considerados sociais. Para nos relacionarmos com nossos pais, comer o alimento certo, engatinhar, andar, evitar predadores, formar alianças e amizades, prover ajuda aos filhos e outros parentes, ler as mentes alheias, comunicar-se com outras pessoas, selecionar parceiros sociais, a seleção natural desenvolveu módulos específicos. Tobby e Cosmides conjecturam que o cérebro humano poderia ter cerca de mil módulos diferentes. O que chamamos de cultura poderia ser interpretado como um caminho instintivo aberto pelos módulos do cérebro com o intuito de tirar vantagens do ambiente a partir da experiência, explorando ontogenética e filogeneticamente o arcabouço físico que a vida nos ofertou. Na segunda metade da década de 1960 e inícios de 1970 Robert Trivers, psicólogo social com fortes inclinações evolucionárias, fez uso da teoria de Williams do gene como nível fundamental da seleção (mais tarde mal conhecida como a teoria do gene egoísta) para tentar interpretar de um ponto de vista biológico várias fontes do sofrimento humano. Antes de tudo é preciso esclarecer que o egoísmo no nível dos genes não significa a determinação de um necessário egoísmo no nível psicológico (SOBER). Há muito lugar para o altruísmo. Trivers percebe que as grandes origens de sofrimento para os indivíduos são conflitos com outros indivíduos da espécie: parceiros sexuais, filhos, irmãos, primos e outros atores sociais. No filme Colcha de retalhos a personagem Winona Ryder é uma mulher de 26 anos que se retira de sua cidade para a casa de sua avó a fim de terminar de escrever sua tese de doutorado. Ela também vive um certo conflito com o noivo e ao ir para a casa da avó, acaba por conhecer um outro homem que lhe é bastante atraente. Enquanto escreve com penar seu trabalho de doutorado dialoga com as amigas de sua avó que estavam se reunindo para construir uma colcha de retalhos. Conversando com elas acaba descobrindo que várias tinham narrativas de um passado no qual homens as deixaram sozinhas com seus filhos pequenos ou ainda no ventre. O fato de que a reprodução humana depende de um longo período de gestação que ocorre dentro do corpo da mulher, permite ao homem uma liberdade escandalosa para decidir abandonar a gravidez, a mulher e o filho. O investimento parental da fêmea é incrivelmente maior. Isso talvez esteja de alguma forma incorporada na lei que costuma dar a guarda do filho para a mãe. Para ter um filho a mãe, quer queira ou não, muda seu corpo (e seu cérebro). O investimento inicial do macho é fisicamente o esperma, o que permite que o macho tenha inúmeros filhos quase ao mesmo tempo. Paralelos desse tipo de comportamento distinto entre fêmea e macho, entre mãe e pai biológicos, se encontram em muitas espécies de mamíferos, por exemplo, nos haréns de elefantes e lobos marinhos, gorilas, leões, etc. Ao contrário, muitas aves se comportam em relação à prole de uma maneira diferente, pois o ovo depende de cuidados que somente ambos os pais podem oferecer. Há casos que os machos são abandonados e as fêmeas buscam outros parceiros para se acasalar. Entre os peixes há espécies em que as fêmeas comem seus próprios filhotes se não estes forem defendidos pelos pais, que fazem ninhos de bolha de ar, expulsam a fêmea de seu território e passam o dia pegando seus filhotes na boca e os trazendo para sua toca. Há também o incrível caso do cavalo-marinho, um peixe cujo macho guarda em uma bolsa os filhotes, e, mais uma vez, nesse caso, é a fêmea que tende à poligamia. No seio de toda essa diversidade de sistemas sexuais encontra-se também alguns casos de espécies, incluindo espécies de mamíferos, que são verdadeiramente monogâmicas. Isso parece estar ligado em alguns casos não só com a produção de um hormônio chamado oxicitocina (a substância do amor) mas também com receptores celulares para esse hormônio. Hormônios e receptores estão naturalmente codificados nos genes. Do ponto de vista antropológico também parece haver em todas as culturas uma marcada diferença psicológica entre os dois sexos (BUSS, RIDLEY, PINKER, MILLER). Mas antropólgos e cientista sociais famosos, influenciados pelos trabalhos de Mead, Boas, entre outros, insistem que a menina brinca de boneca e o menino de carrinho e espada (a menina ajuda nas tarefas da oca, os meninos acompanham os pais em caçadas) por que a sociedade (ou a tribo) constrói os papéis sociais para o homem e a mulher e trata de encontrar mecanismos para solidificá-los, como no caso do brinquedo das crianças e da vida social dos indiozinhos. Isso significa que os pais, o ambiente familiar (e o escolar, no caso de uma cidade-Nação) contribuem socialmente para a determinar a formação da diferenciada psiquê entre filhos e filhas, desenvolvendo atributos de meninas em uns e de meninos nos outros. Os seres humanos seriam investidos de papéis sociais, como se fosse um script impresso na folha em branco da mente pela sociedade e pela cultura. Eu me disponho a defender que as diferenças entre os machos e as fêmeas são biologica e/ou genticamente influencidas, de modo profundo. A diferença de comportamento entre machos e fêmeas da espécie humana muito possivelmente representa o resultado (parcial e aberto) de nossa história evolutiva. Nós fomos selecionados para, na média, sermos melhores sistematizadores; elas, melhores empatizadoras. Até agora nossa sociedade valorizou economicamente muito mais os produtos das sistematizações. Mas as coisas parece que estão mudando. Veja-se a importância cada vez maior que se dá à formação de recursos humanos e pode-se vislumbrar que a função empática deve ocupar um lugar fundamental nas próximas décadas. As pesquisas de Baron-Cohen sobre as diferenças sexuais e sobre o autismo, doença mental que afeta sobretudo crianças masculinas, parecem estar correlacionadas (mas ainda não causalmente assocaidas) com um input natural do hormônio testosterona, que os fetos do sexo masculino recebem no útero entre a sexta e a oitava semana de gestação. Sabe-se que nos humanos, como em outros mamíferos, a caracterização do sexo está primeiramente relacionada ao fato de que todas as mulheres portam dois cromossomos X em sua células (daí XX), enquanto os homens possuem um X e um Y (XY). O novo ser que está se formando, antes de seis semanas, pode ser XX ou XY mas até então o padrão básico do desenvolvimento é feminino. Matt Ridley mostra como historicamente o problema da emergência do sexo masculino (é, no mundo biológico, o sexo feminino aparece primeiro, ontogentica e filogeneticamente) é chamado de a rainha dos problemas da biologia (RIDLEY, 1995). A partir de seis semanas o corpo e o cérebro masculino começam a se diferenciar sob a ação da testosterona. A hipótese é que um excesso desse hormônio poderia levar ao autismo. As habilidades mentais e comportamentais entre meninos e meninas diferem desde os primeiros meses ou mesmo dias de idade. Enquanto os bebês do sexo feminino demonstram maior interesse pelo som das vozes e conversas, os meninos demonstram mais interesse no movimento físico de objetos no espaço. Isso está de acordo com o fato de que mulheres, na média, são melhores em suas habilidades comunicativas e os homens em suas habilidades com objetos no espaço em com números. Creio que não preciso ressaltar que isso é uma média estatística e não uma determinação rígida. Há mulheres cientistas, conheço muitas na biologia, de primeira linha, e homens que se destacam por seu alto poder de comunicação social. Descrever as diferenças biológicas e psicológicos entre os dois sexos não significa que devemos utilizar tais procedimentos para justificar qualquer tipo de discriminação ou privilégios perante à lei ou o mercado. Tais diferenças, como assinala Baron-Cohen, não são traduzíveis, por exemplo, em maior inteligência. Tanto a empatia quanto a sistematização são variáveis na equação da inteligência. Assim também não servem como medida de caráter, como juízo de valor. São diferenças que devemos respeitar. Além disso, mulheres e homens em todo o mundo e todas as épocas são reconhecidos por uma série de características de fundo psicológico que são comuns aos dois sexos. Por exemplo, todos os seres humanos conhecidos são capazes de adquirir linguagens. Na década de 1950 Chomsky e outros lingüistas estavam assoberbados com o salto lingüístico de crianças de cerca de 3 anos que passam da repetição quase mecânica de palavras para sentenças quase perfeitas do ponto de vista sintático (e semântico). Por isso Chomsky imaginou que para adquirir uma linguagem é preciso herdar uma gramática universal (CHOMSKY), uma aptidão para, a partir de informações fragmentadas, e bastante desordenadas (como as que as crianças recebem), construir sentido. Herdamos um instinto de linguagem que compartilhamos com outros animais, mas que desenvolvemos inimaginavelmente mais do que qualquer outra das milhares de espécies de bichos com um sistema nervoso bem desenvolvido. Tal instinto para a linguagem, que é geneticamente herdado, se desenvolve durante a vida do animal humano em sua história social, cultural, econômica e política. Além de um instinto para a linguagem, um bebê humano quando nasce vem equipado também com um instinto para enxergar o mundo exterior, um instinto para engatinhar e depois desenvolver a postura bípede e o andar ereto, um instinto para segurar objetos, um instinto para desenvolver relações sociais, um instinto para formar amizades e inimizades, um instinto para procurar parceiros sociais, um instinto para se comportar como mulher ou homem, um instinto talvez para detectar trapaceiros. Todos esses instintos e muitos outros são equipamentos mentais, transmitidos de geração a geração por genes, ou melhor por equipes de genes, que tenderam a ser selecionadas, e efetivamente foram, em um passado e em um ambiente ecológico e social específicos. Por certo biologia não é destino. Penso até que o que foi selecionado pela natureza é aquilo que podemos também, até certo ponto, modificar. Édipo pôde arrancar seus olhos, que foram um bem que a natureza de seus maiores lhe legou. Podemos evitar ou contornar doenças genéticas, podemos desenvolver habilidades com exercícios ou estudo, pois existe uma base material sobre a qual o mundo pode operar. Assim também o ambiente (ou a sociedade ou a cultura ou as tradições) não nos determinam completamente. Nosso comportamento é o produto do que herdamos socialmente pelo que herdamos geneticamente. Para o que o gene possa se expressar, possa ganhar a luz da vida, é preciso que esteja em um ambiente específico. Os genes são estratégias para interagir com o ambiente, para extrair informação do meio em que está a fim de promover sua própria expressão e replicação. Mude-se o meio muda a expressão do gene. Aliás, esse parece ser a forma que a natureza encontrou para, usando praticamente os mesmos genes, construir espécies tão distintas quanto a dos elefantes, dos camundongos e dos humanos. Mude-se o gene muda a relação com o meio. O que parece estar em jogo são diversas formas de regular o tempo (o timing) de expressão dos genes. Quando perguntado o que contribuiria mais para o comportamento humano, o gene ou o ambiente, Steven Pinker replicou: “A pergunta em si mesma é absurda. É o mesmo que perguntar o que contribui mais para a área de um retângulo: sua largura ou sua altura?” Mais uma vez: descrever não é prescrever. Separar fatos e valores é um imperativo crítico que muitos cientistas sociais têm desrespeitado quando imputam a certas teorias darwinsitas intenções ideológicas escusas de manutenção do competitivo status quo capitalista. Todavia o darwinismo tem colocado justamente questões relativas às interpretações sempre valorativas dos fatos. O que queremos fazer com os fatos? O fato de mulheres e homens terem mentes diferentes na média significa que de um modo geral uns são melhores que os outros? Ou justamente aquilo que os genes nos dá (ou empresta) é a base sobre a qual se pode erigir alguma liberdade? 6 - Considerações finais Eu gostaria de concluir essa apresentação retomando àquelas três questões existenciais de senso comum que coloquei no início: O que somos? De onde viemos? Para onde vamos? Penso que enquanto as duas primeiras perguntas já estão respondidas, seja pelas ciências sociais ou pelas ciências naturais, o último problema continuará para sempre em aberto, pois trata-se de certa forma de construir um significado, um lugar para onde queremos ir, ao invés de sermos levados como um barco de papel pela correnteza. A questão “o que somos?” parece nos remeter à pergunta homóloga “o que é?”, que incorre no problema de definir o que seria a própria essência do ser humano. De um ponto de vista meramente científico posso afirmar que não existe um mundo transcendental, onde a Forma, a Natureza ou a Essência platônica incriada permaneceria imutável, idêntica a si mesmo, para todo o sempre. Não há uma essência humana, uma natureza interna inviolável pelo tempo, uma essência que resista a todas as pressões de circunstâncias históricas impredizíveis. Pode até haver uma natureza humana comum a todas as culturas e épocas, mas essa natureza está sujeita a variações ao acaso (genético ou não- genético) e intencionais. retenções seletivas, naturais e/ou Penso que a questão “de onde viemos?” também está razoavelmente respondida. . No que concerne ao Homo sapiens a antropologia física ou biológica descobriu que viemos de um estoque ancestral comum com populações de outros dos chamados grandes primatas africanos, como os gorilas e principalmente os chimpanzés. Se se pergunta de onde veio este estoque ancestral comum somos obrigados a descer ainda mais no tempo histórico profundo dos mamíferos, e, a continuar com perguntas desse tipo, depararemos com problemas não só da origem dos animais, mas com a origem das células de que somos feito e da própria vida. Embora existam muitas interrogações nesse longo percurso arborescente de mais de quatro bilhões de anos, a pergunta “de onde viemos?” só pode ser equacionada e tratada de um ponto de vista histórico, uma vez que trata-se de descobrir, compreender e interpretar o passado geológico e biológico (evolutivo). Para chegar a essa explicação necessito do conceito de gene, embora ele seja necessário mas não suficiente. Já a questão “para onde vamos?” é um problema de como aplicar o conhecimento da história que descobrimos na construção de um significado que não é dado de antemão pela natureza bruta. Ao final do segundo volume de A sociedade aberta e seus inimigos Karl Popper se pergunta se a história tem significado. Embora sua resposta seja negativa, no sentido de que não há um significado pré-dado, pré-destinado, Popper argumenta que se foros inteligentes podemos construir esses significado. Isso se parece muito com o que Jorge Luis Borges atribui a Bernard Shaw “God is in the making”, “Deus está se fazendo”: “Si nosostros somos magnánimos, incluso si somos inteligentes, si somos lúcidos, estaremos ayudando a construir a Dios”. Ajudar a construir a Deus. A idéia em si mesma parece blasfêmia. Gostaria também de enfatizar minha crença na inexistência de qualquer força sobrenatural, vida após a morte, etc. Borges e Shaw, assim como o autor destas palavras, são ateus. O que está em jogo aqui, no texto de Borges, é o futuro da literatura e da humanidade, e a construção de seu sentido. Vimos que Dozhansky afirma que “nada em biologia faz sentido senão à luz da evolução”. Que sentido a biologia faz quando vista sob o holofote da evolução, ou seja, da história? Há quatro anos, na ANPOCS de 2000, em Petrópolis, o Dr. Wanderley Guilheme dos Santos afirmava que pela primeira veza na história a biologia estava interferindo diretamente sobre a matéria da qual a vida é feita e alterando de uma vez por todas não só a vida em sociedade mas a própria idéia de que o homem faz de si. Podemos agora sonhar que com a biotecnolgia do DNA recombinante (que leva por uma dispendiosa e árdua história da técnicas moleculares) podemos inventar o futuro. A velha teoria de Lamarck pode enfim ser revivida, pois podemos introduzir em animais, plantas e em nós mesmos os genes de nosso interesse. Mas o método básico continua sendo o de selecionar, entre inúmeras variações, aquele futuro que mais atenda aos interesses em jogo. BIBLIOGRAFIA AUNGER, Robert. Darwinizing Culture: the State of Memetics as a Science. Oxford: Oxford University Press, 2001. BARON-COHEN, Simon. 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