O gene em seu ambiente psicologia evolutiva, genética

Propaganda
O gene em seu ambiente
psicologia evolutiva, genética comportamental
e uma afirmação da natureza humana
(Texto produzido para ser apresentado
no seminário temático ST03
da XXVIII Reunião Anual da ANPOC)
Por
Ricardo Waizbort
Pesquisador Associado
Programa de Pós-graduação em História das Ciências da Saúde
Casa de Oswaldo Cruz
FIOCRUZ
Rio de Janeiro
Setembro
2004
O gene em seu ambiente
psicologia evolutiva, genética comportamental
e uma afirmação da natureza humana
-
-
De qualquer forma, não há uma verdade, só pontos
de vista, diz a jornalista Bitsey.
Se você diz que não há verdade, afirma que é
verdade que não há verdade. Isso é uma contradição,
replica seu estagiário, Zack.
Qual é Zack? Está se preparando para concorrer a
uma medalha de filosofia?
Diálogo adaptado a partir do filme A vida de Gale,
de Allan Parker.
1 – Uma longa introdução: Três proposições básicas
Boa tarde.
Antes de mais nada eu gostaria de agradecer a
oportunidade que a ANPOCS nos deu para promover
esse debate. Só esse fato demonstra que os cientistas
sociais estão interessados em investigar os limites e os
diálogos de suas próprias disciplinas. Meu desejo é que
esse nosso encontro dessa semana possa vir a ser uma
ponte para a criação de um GT para o próximo biênio
da ANPOCS.
Vou ler um texto que preparei para essa ocasião, apesar
de não gostar muito de ler em público, pois na maioria
das vezes perdemos o contato com os olhos das pessoas.
Certa vez uma amiga dileta me aconselhou a não olhar
nos olhos dos ouvintes para quem eu ministrasse uma
comunicação como esta, por que muitas vezes podemos
encontrar discordância e, o que é pior, desinteresse e
desprezo.
Ocorre que, no fundo, eu acho que olhar nos olhos é o
melhor de toda a coisa. Bem, eu vou tentar ler e ao
mesmo tempo olhar nos olhos de pelo menos alguns de
vocês, o que naturalmente não vai ser nada fácil. Vocês
podem imaginar que o meu coração, a essa altura, quer
sair pela minha boca.
O que eu quero colocar inicialmente é que estamos aqui
reunidos, justamente, por que não compreendemos de
forma completa, e nem mesmo razoavelmente de modo
parcial, questões existenciais de senso comum como: O
que somos? De onde viemos? Para onde vamos? Eu vou
tentar concluir que com o advento da engenharia
genética nós poderemos introduzir finalmente um
sentido para as espécies de seres vivos antes
inimaginável.
Vivemos em um cenário social em óbvia crise. Fome,
guerras, violência urbana, as situações críticas podem se
multiplicar facilmente. A origem e a manutenção do
sofrimento humano, em muitos casos, têm sido
interpretados como o resultado da aplicação de uma
filosofia de mercado a uma subjetividade plena de
anseios transcendentais e românticos. A crítica feita, por
exemplo, pelos adeptos da Escola de Frankfurt ao
Iluminismo, à ciência e ao conceito de verdade que a
própria ciência reproduziria, procura mostrar como o
conhecimento humano é mais uma prisão do que um
elemento que poderia levar a alguma liberdade e justiça
sociais. Negar a existência de uma natureza humana
significou, do ponto de vista de uma sociologia
socialista, a possibilidade de compreender a mente
humana como uma matéria infinitamente moldável,
aberta à experiência social e cultural, transpondo todos
os limites e coerções de uma herança genética e
biológica ancestral.
Nessa minha apresentação eu vou fazer 3 proposições e
comentá-las muito brevemente. Depois disso eu vou
apresentar rapidamente a genética comportamental e a
psicologia evolutiva como duas linhas de investigação
científicas que tem servido de ponte, nas ultimas
décadas, para ligar estudos biológicos a sociais e
culturais. Finalmente, vou tentar discutir esses assuntos
à luz de um estudo feito pelo psicólogo e psiquiatra
infantil Simon Baron-Cohen, que investigou uma
doença de neuro-desenvolvimento conhecida como
autismo a correlacionou com as diferenças mentais de
gênero entre crianças pequenas (BARON-COHEN,
2004).
Vou tentar mostrar que para compreender o fenômeno
da diferença psicológica entre mulheres e homens - e
lutar para que a diferença não se traduza nem em
discriminação machista, nem em um feminismo do tipo
“o homem é o macho no poder querendo subjugar a
mulher” - devemos acessar tanto elementos de teorias
sociais como elementos de teorias biológicas e
evolutivas (darwinistas).
Mas vou partir de um fato existencial, que é o
nervosismo que me assalta por estar aqui na frente de
vocês, e tentar mostrar que para compreender esse
fenômeno, também devemos acessar elementos tanto de
teorias sociais como de teorias biológicas e evolutivas
(darwinistas).
Para chegar a esse ponto eu parti de um fato que prevejo
há muitos meses. Ou seja, o cenário em que aqui
estamos. Muitos de vocês crêem que esse nervosismo é
o produto do meu desejo de ser compreendido, de
ganhar respeitabilidade, de conquistar parceiros
intelectuais ou até sexuais, de angariar financiamentos,
de me tornar conhecido ou simplesmente de agradar. E
que todos esses objetivos são socialmente construídos,
são o produto de uma sociedade e de uma cultura que
prezam a ciência, a reputação e o dinheiro.
Eu vou defender aqui que esse nervosismo é o produto
de genes em contato com um ambiente específico.
Talvez eu tenha genes que me deixem nervoso para
falar em público. Ou melhor: as diferenças de
nervosismo entre eu e outras pessoas em situações
como essa são parcialmente influenciadas por genes.
Pois há pessoas que lidam muito melhor com isso.
Também há os que lidam pior com isso. Pode-se dizer,
segundo Baron-Cohen, que as mulheres, na média,
lidam melhor com circunstâncias como essa pois seus
cérebros, na média, são sutilmente mais capazes de
empatia do que de sistematização, atributo mais
masculino, também na média. Baron-Cohen chama sua
teoria de “teoria do autismo como um cérebro
extremamente masculino”(BARON-COHEN, 2004).
De qualquer forma, minha hipótese é que esse
nervosismo em parte está programado em uma natureza
humana inscrita em minha mente para situações
análogas a esta; que na realidade tal nervosismo não
representa um descontrole mas uma adaptação, um
instinto (como o ciúmes, segundo David Buss). Tal
disposição para esse nervosismo foi transmitido pelos
genes de meus pais para reagirem assim em ambientes
ancestrais específicos. Homens do sexo masculino
herdam genes, na média, ligeiramente diferentes dos
genes femininos, genes do cromossomos Y (SRY,
SOX9) , por exemplo, que podem contribuir para um
efeito masculinizante. Essas distinções são importantes
na história da espécie Homo sapiens, pois mulheres e
homens
percorreram
percursos
ligeira
mas
sensivelmente diferentes no curso da evolução humana.
Minha boca está seca, meu coração batendo mais
rápido, provavelmente nesse momento tenho uma
midríase, a adrenalina é mais abundante em minha
corrente sangüínea, minhas mãos estão suando frio,
minha concentração na linguagem falada agora é
próxima à máxima que posso dar. Talvez, na média,
uma mulher pudesse lidar melhor com essa situação,
por causa de sua ligeira superioridade em empatia.
Claro que eu não sou essa pessoa.
Argumento que na minha mente há um módulo inato,
modelado pela seleção natural, influenciado por genes
específicos, mas também por hormônios, enzimas,
fatores de crescimento para lidar com situações sociais
análogas a essa em que me encontro. Minha mente não
foi modelada para a situação em que me encontro. Não
aprendi a ficar nervoso. Todavia, muito provavelmente,
minha mente foi selecionada em um ambiente no qual a
habilidade de se comunicar era vital. Obviamente não
existem genes para a mente, mas existem genes que
uma vez modificados podem ter um impacto bastante
profundo sobre isso que chamamos de mente. Os genes
que herdamos são transmitidos para funcionar em um
ambiente molecular específico. Transforme-se esse
ambiente (a temperatura, o pH, a umidade, a
concentração de sais) e os genes podem se expressar
diferentemente ou mesmo nem se expressar.
Como ser humano ante o dilema filosoficamente
intrigante de estar vivo gostaria de alimentar a brasa de
uma compreensão menos fragmentada da vida
psicológica e social do bicho Homo sapiens.
As três proposições que vou fazer a seguir são até certo
ponto básicas e fundamentais, vistas de um referencial
biológico. Julgo que são necessárias para que o debate a
seguir não comece repetindo verdadeiros equívocos a
respeito de objetos, resultados, teorias e métodos
científicos. Descrever não é prescrever. Eu também não
concordo com vários estados de coisas naturais que vou
apontar a seguir. Mas a natureza é! E o que podemos
fazer é modificá-la. Negar a sua existência ao meu ver é
uma estratégia ruim, pois, no mínimo, corre-se o grande
perigo de ignorar uma ou alguma das causas daquilo
que
justamente
procuramos
compreender:
o
comportamento humano.
Antes ainda de proferir as três proposições eu gostaria
de mencionar que quando falo de comportamento
humano estou mencionando uma numerosa lista
compilada pelo antropólogo Donald E. Brown em 1989
e publicada em 1991, que consiste essencialmente em
universais “exteriores” de comportamento e linguagem
manifesta observados por etnógrafos (PINKER, 2004).
A lista, de cerca de trezentas características universais a
todas as culturas humanas, não relaciona universais
mais profundos de estrutura mental revelados por teoria
e experimentação. A seguir cito, um pouco
aleatoriamente, alguns desses universais exteriores:
adorno corporal; brincadeiras para aperfeiçoar
habilidades, classificação (fauna, flora, partes do corpo,
etc.); discurso simbólico; estupro proscrito; folclore;
generosidade admirada; horas para refeições; prevenção
ou abstenção do incesto; luto; machos mais agressivos
que
fêmeas;
narrativa;
idéias
de
passado/presente/futuro; piadas, reparação de ofensas;
sexualidade como foco de interesse; tabus alimentares e
na fala; utensílio para cortar, para fabricar outros
utensílios; vida íntima privada; antevisão; brincar de
fingir; cócegas; fazer comparações; gostos e aversões;
justiça informal; mapas mentais; orgulho; provérbios e
ditados; sentimentos morais; vergonha.
Agora passo diretamente a minhas três proposições e
seus comentários:
Primeira proposição:
O objetivo desse trabalho é argumentar que os genes
são elementos necessários mas não suficientes para a
explicação e a compreensão da vida social e cultural.
Para entendermos melhor temas politicamente delicados
tais como identidade, gênero, raça, violência e
organização social, temas que tradicionalmente são
objetos das ciências sociais, não podemos ignorar a base
biológica sobre a qual esses fenômenos se radicam. Os
fatos sociais tomados como coisa devem reconhecer a
base material sob o qual radicam. O homem é antes de
tudo um animal, um animal social. A relação de cada
indivíduo com seus pais, irmãos, parceiros sexuais e
outros atores faz parte da vida da espécie, e certamente
da vida de muitas outras espécies de seres vivos. Essa
interação do indivíduo com os outros membros de seu
grupo, desde sua concepção, é fonte de inúmeras
perspectivas e sofrimentos que estão radicadas no fato,
mas não rigidamente determinadas por ele, de que cada
indivíduo é construído corporal e mentalmente a partir
de uma base biológica, neuronal e genética herdada de
seus pais.
Argumento que há uma natureza humana comum a
todas as épocas e etnias e não podemos compreende-la
sem levar em conta o nível de explicação dos genes.
Essa natureza é composta de uma grande número de
comportamentos que são universais a todas as culturas
humanas (BROWM apud PINKER, 2004). Mas
necessário não significa suficiente. E nem compreender
significa absolver (PINKER, 2004). Compreender, por
exemplo, por que há violência em outras espécies
diferentes da humana não significa, em hipótese
alguma, que devemos aceitar a violência entre os
homens, presumindo que o natural é bom, que o real é o
racional.
A minha segunda proposição é:
A relação da sociologia e da antropologia com a
biologia evolucionária (a teoria contemporânea da
evolução por seleção natural) é análoga à relação da
biologia com a física e a química, ou seja: a biologia
não pode ser reduzida à física e à química sem
importantes perdas de informação (penso no fenômeno
conhecido como emergência), mas a biologia não pode
prescindir dessas ciências ou ainda, não pode contrariar
o comportamento da matéria estudada nos níveis de
organização subvenientes dos objetos e processos da
física e da química: forças, átomos, massa, etc. Assim
também: a sociologia, a antropologia e mesmo a
psicologia e a filosofia não podem ser reduzidas à
biologia evolucionária sem importantes perdas de
informação (emergência), mas a sociologia, a
antropologia, a psicologia e a filosofia não podem
prescindir dessa ciência ou ainda, não podem ignorar,
por exemplo, o comportamento social de outros
animais, pois esse é provavelmente um exemplar de
como os animais interagem naturalmente.
Um dos grandes problemas que se coloca aqui é que a
biologia evolutiva é uma ciência muito mal
compreendida fora dos círculos mais estritos (GOULD,
1977). Ernst Mayr, por exemplo, critica aqueles que
interpretam a teoria da evolução de Darwin como
apenas uma teoria. Mayr assinala que o arcabouço
darwinista deve ser decomposto, no mínimo, em cinco
teorias, com graus de evidência e testabilidade
diferentes: 1) A teoria da evolução como fato; 2) A
teoria da origem comum; 3) A teoria do gradualismo; 4)
A teoria da especiação; 5) A teoria da seleção natural.
Além disso Mayr demonstra como o pensamento
populacional de Darwin refuta de vez qualquer
pensamento essencialista, que interpreta as variações
que existem entre os indivíduos como um afastamento
acidental de um tipo ideal, o espécime-tipo (HULL,
1985). No pensamento de populações, a variação é uma
evidência. É sobre os indivíduos que variam que a
seleção natural opera, como que peneirando aqueles que
na média apresentem maior sucesso reprodutivo em
relação a outros indivíduos da mesma espécie, que
competem pelos mesmos recursos do ambiente,
modelando assim, como um escultor, as populações
(MAYR, 1998).
De todas as teorias que compõe o darwinismo e o
neodarwinismo sem dúvida a teoria da seleção natural é
a mais controvertida. Há verdadeiras e encarniçadas
batalhas acerca da questão de se a seleção natural é
necessária e/ou suficiente para explicar a evolução
como um todo e sobretudo o comportamento humano.
Ela é talvez melhor conhecida pela polêmica causada
por um conhecido biólogo evolucionista, S.J.Gould e
sua polêmica contra a teoria do gene egoísta. Podemos
discutir um pouco mais isso depois no debate.
Minha terceira proposição é:
Em 1973 Dobzhansky argumentou: “Nada faz sentido
em
biologia
senão
à
luz
da
evolução”
(DOBZHANSKY, 1973). Eu pergunto: Algo faz
sentido em sociologia senão à luz da história? Algo faz
sentido na história senão à luz de reflexões metahistóricas, e portanto filosóficas? (FREITAS, 2003).
Para que os genes tenham sentido na história da vida, os
genes devem ser considerados em sua relação com a
teoria contemporânea da evolução por seleção natural, o
darwinismo ou neodarwinismo.
Como muitos aqui sabem, historicamente falando, o
mundo em que Darwin viveu não produziu nenhum tipo
de teoria da hereditariedade aceitável. Só com a
redescoberta dos trabalhos de Mendel em 1900 os
cientistas puderam começar a investigar realisticamente
a relação entre a evolução dos seres vivos e a
transmissão das características hereditárias. Dito de
outra forma: somente a partir de 1900 começou a se
pensar qual a base genética para a história das espécies
de seres vivos e de sua fantástica diversidade. Em fins
da década de 1930 e inícios de 1940 vários biólogos de
formação
diferentes,
mas
conhecedores
dos
desenvolvimentos na teoria da evolução e na teoria
genética, produziram a assim chamada Teoria Sintética
da Evolução. Tal teoria seria a síntese entre a teoria da
evolução por seleção natural, desenvolvida inicialmente
por Darwin e Wallace, e a teoria da herança particulada
de Mendel, em que as características hereditárias eram
transmitidas por partículas que se combinam mas não se
misturam, de geração à geração. Tais partículas, seriam
bastante imunes às vicissitudes da experiência,
fenômeno da separação entre os soma e o genoma,
descoberto por Weissman, considerado o primeiro
neodarwinista (Bowler). Weissman descobriu que as
células somáticas e as reprodutivas têm destinos
completamente separados. O que acontece ao corpo de
cada indivíduo não é incorporado ao patrimônio
genético da espécie.
A estrutura química e física
desvendada em 1953, quando
descobriram a estrutura molecular
um modelo para a replicação
dos genes só foi
Watson e Crick
do DNA, sugeriram
da dupla-hélice, e
insinuaram que a mensagem genética poderia ser
composta pela seqüência de bases nitrogenadas que
forma, por assim dizer, os degraus internos do DNA, no
famoso modelo de escada de corda torcida. Quase dez
anos se passaram até que a comunidade científica
aceitasse que o gene era composto de DNA (OLBY), e
que surgisse de fato um teste experimental provando
que a seqüência de bases representava um código para a
síntese de proteínas e um modelo para a replicação dos
genes (JUDISON).
Mas não foi preciso esperar o decifrar da estrutura
fisico-química dos genes para que os cientistas
pudessem desenvolver modelos de como os genes
afetam traços físicos e comportamentais, afetam traços
de desempenho, nas mais variadas espécies. A genética
de populações, por exemplo, em meados da década de
1920, definia a evolução como “mudança na freqüência
de genes de uma população”, sem precisar fazer
qualquer referência à estrutura fisico-química dos
genes. Assim, desde o início, pode-se entrever que há
pelo menos dois conceitos de gene distintos: o gene
evolutivo da genética populações e o gene molecular
oriundo da descoberta da estrutura fisico-química do
DNA.
Qualquer um que esteja um pouco familiarizado com a
genética de populações sabe que a mudança de
freqüência no genes significa que, em uma dada
população, um gene qualquer, por exemplo, o gene para
cor de olhos, ocorre em mais de uma forma, os
chamados alelos. Há um alelo para olho castanho e
outro para olho azul. Há evolução quando ocorre uma
nova e estatisticamente significativa proporção entre os
alelos dentro de populações ou entre elas.
Analogamente, quando um cientista fala que um
comportamento
humano
tem um importante
componente genético ele NÃO está querendo dizer
necessariamente que há um gene que determina tal
comportamento, mas que na população há variações de
comportamento, e que essas variações podem ser
causadas por diferentes alelos, por distintas versões dos
genes.
Com essa proposição eu chego ao ponto que quero
realmente discutir, ou seja, se as diferenças de gênero
são socialmente construídas ou se são atribuíveis aos
genes e à biologia. E se é possível resolver essa querela
assumindo uma solução do tipo “tudo é natureza” ou
“tudo é cultura”.
2 - Corpo, mente e ambiente
Biologicamente falando, nosso corpo é construído para
ser sensível ao meio ambiente. O desenvolvimento do
corpo depende de uma série de processos celulares e
moleculares que não ocorreriam se não existissem os
genes. Igualmente os genes não existiriam se não fosse
pela existência sobretudo de proteínas, mas também, de
modo necessário, de água, de íons, de gorduras, de
açucares e de uma população imensa de outros tipos de
moléculas. De qualquer forma são os genes que
transmitem de geração à geração a informação biológica
necessária para que o corpo dos indivíduos se forme, da
célula-ovo ao embrião ao bebê à criaça ao adolescente
até o organismo adulto.
Embora talvez aqui todos concordem que nosso corpo é
biologicamente estruturado, diferentes são as opiniões
quando se trata de saber como a mente se desenvolve,
tanto ontogenética como filogenéticamente, quer dizer,
tanto de modo individual, como de modo histórico.
Filósofos, cientistas sociais e antropólogos como Boas,
Geertz, Mead, Foucault, Ingold, Gadamer, Montagu (a
lista poderia se estender por muitas páginas) e seus
seguidores, pensam que a mente é uma espécie de
substância amorfa, papel em branco ou tábula rasa na
qual a cultura e a experiência imprimem todo o
conteúdo psicológico e social. Alguns desses autores
sustentam também que só no homem há uma
subjetividade imaterial habitando o corpo material,
como um fantasma na máquina. Essa subjetividade nos
separaria de todo o resto do mundo animal, em termos
mentais. Conseqüentemente, os métodos das ciências
que estudam a subjetividade devem ser necessariamente
diferentes dos métodos das ciências que estudam a
matéria objetiva. Além disso, ainda há os que acreditam
que é a vida social que corrompe o homem, que o
estado selvagem é sem malícia e violência, que o
natural é necessariamente bom, proposição conhecida
filosoficamente como falácia naturalista. Associadas
das mais diversas formas, as doutrinas da tabula rasa
(ou papel em branco), do bom selvagem e do fantasma
na máquina formam o núcleo do abismo entre as assim
chamadas humanidades e as ciências biológicas
(PINKER, 2004).
Para muitos cientistas sociais o que chamamos de mente
psicológica, subjetiva e individual é o resultado de um
longo processo de aprendizagem social, cultural e
lingüística, no qual tradições sociais e culturais
imprimem seu caráter na argila amorfa da mente. Eles
consideram que o cérebro pode ser até compreendido
como a base física da mente, mas a mente viria ao
mundo como um papel em branco. Nascemos com um
cérebro livre de conteúdos e nosso caráter,
personalidade, inteligência, identidate, o que chamamos
de “eu”, é impresso por meio de linguagens e símbolos
no qual somos imersos desde os primeiros instantes da
vida.
Entretanto, desde o momento de nossa concepção a
célula que se divide e se divide até se tornar o adulto
que somos está a sujeita a transmissão de informação
genética de uma célula para outra, em um processo
chamado de mitose. O que chamamos de cérebro se
desenvolve assim. Note-se que o cérebro é formado
basicamente por proteínas que são produtos de células
que se diferenciaram justamente nos tipos de células
mais característico dos cérebros (neurônios, células
glias, etc). Enzimas e hormônios são tipos de proteínas
cujas as mais diversas funções que executam no corpo e
no cérebro, nos níveis celular e molecular, estão
envolvidas com o que chamamos de comportamento.
Do ponto de vista cognitivo o cérebro é um processador
extremamente complexo para extrair e computar
informações do ambiente. Os autores que tenho
estudado enfatizam que a mente surge de processos
físico-químicos do cérebro, o que não significa que
estejamos completamente determinados por esse nível
de organização. A base física não se confunde com o
que somos, com esse sentimento de subjetividade viva e
sensível: o “problema difícil” das investigações acerca
da consciência (CHALMERS, 2004). Mas a informação
sobre o que somos passa inexoravelmente pelo fato de
que somos produtos milenares de outras gerações de
mulheres e homens. Mulheres e homens, por sua vez,
são o produto de um processo genealógico que não se
extingue na fronteira da nossa espécie com a de outros
animais. É a teoria da origem comum, que está viva
desde antes de Darwin, que garante que nosso corpo e
nossos genes fazem parte de um rio que se bifurca e se
bifurca, no qual alguns braços se extinguem, mas que
muitos outros permanecem correndo desde uns quatro
bilhões de anos.
3 – Duas mentes
A diferença entre o comportamento social feminino e
masculino é um dos temas em que mais se afirma o
caráter social e não biológico do comportamento
humano. Psicologicamente falando as mentes de
mulheres e homens seriam socialmente construídas.
Entretanto, nas últimas décadas estudos têm mostrado
que certas diferenças entre os comportamentos de
homens e mulheres são universais (BUSS, RIDLEY,
PINKER, ), e se evidenciam desde o início da vida de
cada vida (Baron-Cohen, 2004), contrariando o mito
dos três anos. Esses estudos mostram que há durante o
processo de desenvolvimento físico e mental de
mulheres e homens, processos fisiológicos que ocorrem
de forma diferente entre os dois gêneros.
Antes de tudo enfatizo que Baron-Cohen assinala que se
deve pensar no sexo em cinco níveis diferentes:
1. Sexo genético: você é mulher se tem dois
cromossomos X (XX) e é homem se tem um
cromossomo X e um Y (XY).
2. Sexo gonádico: você é mulher se tem um conjunto
normal de ovários (produzindo hormônios
femininos), e é homem se tem um conjunto normal
de testículos (produzindo hormônios masculinos).
3. Sexo genital: você é mulher se tem uma vagina
normal, e é homem se tem pênis normal.
4. Tipo de cérebro: você é mulher se a sua empatia é
melhor que a sua sistematização, e é homem se a
sua sistematização é mais forte do que a sua
empatia.
5. Comportamento típico do sexo: Está ligado ao tipo
de cérebro (4.). Você é mulher se os seus interesses
envolvem atenção aos amigos, o cuidado com os
sentimentos deles e a conquista de intimidade e é
homem se os seus interesses envolvem aparelhos,
coleções de CD e estatísticas de competições
esportivas, etc. (BARON-COHEN, 2004)
Segundo BARON-COHEN, boa parte da diferença
entre os comportamentos de mulheres e homens em
sociedades são devidos a componentes genéticos. Ele
não está querendo dizer que toda mulher é melhor para
determinadas tarefas que qualquer homem, que ela têm
genes para isso e nós não. Ao contrário, está querendo
mostrar que as diferenças que existem em certas
disposições mentais são devidas, em boa parte, ao fato
de que as mulheres herdam uma estrutura mental de
seus pais que, na média, se parece mais entre elas do
que entre os homens.
A fim de dirimir algumas dúvidas eu queria dar voz a
uma passagem do livro Nature via nurture, de Matt
Ridley, pois o que ele fala a respeito da herdabilidade
das características hereditárias vai nos importar não só
para discutir as diferenças de comportamento entre
homem e mulher, mas também entre pais e filhos, entre
irmãos, entre amigos e outros atores sociais.
4 – Genes para comportamento
A genética de comportamento é o estudo do
comportamento de gêmeos. Ela é uma é uma forma de
investigar em que proporções o que chamamos
identidade - que pode ser analisável em termos de
personalidade, inteligência, caráter e outros atributos
mentais ou subjetivos – é determinado pelos genes, em
que medida é transmitido pelos pais, e em que medida é
determinado pelos ambientes sociais compartilhado e
estrito. Usando uma metodologia muito sofisticada. Não
é mais uma ciência anedótica que assinalava as
surpreendentes semelhanças entre dois irmãos
univitelinos que foram separados ao nascer e que se
reencontram depois de décadas. Mas a comparação de
milhares de pares de gêmeos espalhados por todo o
mundo. Isso produziu uma base para compreender o
quanto da personalidade (OCEAN) e da inteligência,
por exemplo, está influenciada pelos genes e pelas
estruturas mentais modulares que herdamos do
patrimônio genético da espécie a partir da reprodução
de nossos pais.
A genética comportamental é uma maneira simples de medir
quão similares são os gêmeos idênticos, quão diferentes são os
gêmeos fraternos, e como os gêmeos idênticos e fraternos se
comportam se adotados separadamente por diferentes famílias,
em diferentes sociedades. O resultado é uma estimativa da
herdabilidade para qualquer traço.
Entretanto, herdabilidade é um conceito traiçoeiro, muito mal
compreendido. Ele é uma média populacional, sem sentido
para qualquer pessoa individual. Matt Rildey mostra que
Shakespeare criou em “Sonhos de uma noite de verão” a idéia
de “gêmeos virtuais”. Gêmeos virtuais são um par de pessoas
que, desde a mais tenra idade viveram juntos e foram tratados
igualmente (aproximadamente a mesma alimentação, as
mesmas escolas, etc.) uma situação bastante propícia para
testar a hipótese de que o ambiente é que cria a identidade,
pois seria de se esperar, nesse caso, que essas duas pessoas se
parecessem extremamente entre si. Não é o caso das gêmeas
virtuais Hérmia e Helena, da peça do bardo inglês. Apesar de
terem sido criadas juntas, sem discriminações, elas
discordavam em tudo. Entretanto, seria absurdo dizer, segundo
Ridley, que Hermia tem mais inteligência (ou traços de
personalidade) herdável que Helena, ou vice-versa.
Quando um geneticista diz, por exemplo, que a herdabilidade
da altura é de 90% isso não significa que 90% dos centímetros
de Hérmia vem seus genes, e 10% da sua alimentação ou dos
exercícios que fez. Isso significa que a variação na altura em
uma amostra particular é atribuível 90% aos genes e 10% ao
ambiente. Não existe variabilidade na altura para um
indivíduo; não há herdabilidade em sentido individual.
A herdabilidade pode medir somente variações, não absolutos.
A maioria das pessoas nasce com dez dedos. Aquelas com
menos dedos usualmente os perderam em algum acidente –
através dos efeitos do ambiente. A herdabilidade para o
número de dedos é portanto próxima de zero, pois quase não
há variações. Todavia, seria absurdo argumentar que o
ambiente é a causa de termos dez dedos. Nós desenvolvemos
dez dedos porque nós somos geneticamente programados para
desenvolver dez dedos. É a variação no número de dedos que é
ambientalmente determinada; o fato de temos dez dedos é
genético. Paradoxalmente, portanto, as características menos
herdáveis da natureza humana podem ser as mais
geneticamente determinadas.
Assim também com a inteligência. Não seria certo dizer que a
inteligência de Hermia é causada pelos seus genes: é óbvio que
não se pode tornar inteligente sem comida, sem cuidado
parental, sem aprendizagem ou sem livros. Entretanto, em uma
amostra de pessoas que possuem todas essas vantagens, a
variação entre os que vão bem nas provas e aqueles que não
vão pode ser uma questão de genes. Nesse sentido, a variação
na inteligência pode ser genética (ver tabela de QI em Genoma
de Ridley).
Por acidente geográfico, classe ou dinheiro, a maioria das
escolas têm alunos com um background similar. Por definição,
tais escolas dão a esses alunos uma ensino similar. Ridley
argumenta que, tendo minimizado as diferenças nas influências
ambientais, as escolas inconscientemente têm maximizado o
papel da hereditariedade genética: é inevitável que as
diferenças entre as notas altas e as notas baixas dos alunos
devam ser devidas aos seus genes, por que foi apenas isso que
se deixou variar. De novo, herdabilidade é uma medida do que
está variando, não do que é determinante.
Da mesma forma, em uma verdadeira meritocracia, continua
Ridley, onde todos têm oportunidades e treinamentos iguais, os
melhores atletas serão aqueles com os melhores genes. A
herdabilidade da habilidade atlética se aproximaria de 100%.
No tipo oposto de sociedade, onde somente poucos
privilegiados obtêm comida e chance para treinar suficientes, o
background e a oportunidade vai determinar quem vence a
corrida. A herdabilidade vai ser zero. Paradoxalmente,
portanto, quanto mais igual [em termos de oportunidade] nós
fizermos a sociedade, maior será a herdabilidade, e mais os
genes irão importar (RIDLEY, 2002, p 76-77).
5 – A psicologia evolutiva
A psicologia evolucionária é um afastamento da visão
dominante da mente humana. John Tobby e Leda Cosmides
batizaram a tradição ocidental que domina as humanidades, a
hermenêutica, a sociologia, a antropologia social e cultural e
até a filosofia, como Modelo Clássico das Ciências Sociais
(MCCS) (SSSM, standard social science model). O MCCS
postula uma divisão fundamental entre biologia e cultura A
biologia dotaria os seres humanos com os cinco sentidos,
alguns impulsos como a fome e o medo e uma capacidade
geral para o aprendizado (TOBBY E COSMIDES, 1992;
PINKER 1998). O cérebro é compreendido como um aparato
de resolução geral de problemas sem áreas ou regiões
especializadas. A evolução biológica, segundo os adeptos de
um MCCS, tem sido suplantada pela evolução cultural.
Um dos elementos mais importantes da revolução que a
psicologia evolucionária trouxe foi a consideração de que o
cérebro e a mente são modulares e que já nascemos préprogramados com instintos para vários comportamentos
considerados sociais. Para nos relacionarmos com nossos pais,
comer o alimento certo, engatinhar, andar, evitar predadores,
formar alianças e amizades, prover ajuda aos filhos e outros
parentes, ler as mentes alheias, comunicar-se com outras
pessoas, selecionar parceiros sociais, a seleção natural
desenvolveu módulos específicos. Tobby e Cosmides
conjecturam que o cérebro humano poderia ter cerca de mil
módulos diferentes. O que chamamos de cultura poderia ser
interpretado como um caminho instintivo aberto pelos módulos
do cérebro com o intuito de tirar vantagens do ambiente a
partir da experiência, explorando ontogenética e
filogeneticamente o arcabouço físico que a vida nos ofertou.
Na segunda metade da década de 1960 e inícios de 1970
Robert Trivers, psicólogo social com fortes inclinações
evolucionárias, fez uso da teoria de Williams do gene
como nível fundamental da seleção (mais tarde mal
conhecida como a teoria do gene egoísta) para tentar
interpretar de um ponto de vista biológico várias fontes
do sofrimento humano. Antes de tudo é preciso
esclarecer que o egoísmo no nível dos genes não
significa a determinação de um necessário egoísmo no
nível psicológico (SOBER). Há muito lugar para o
altruísmo.
Trivers percebe que as grandes origens de sofrimento
para os indivíduos são conflitos com outros indivíduos
da espécie: parceiros sexuais, filhos, irmãos, primos e
outros atores sociais.
No filme Colcha de retalhos a personagem Winona
Ryder é uma mulher de 26 anos que se retira de sua
cidade para a casa de sua avó a fim de terminar de
escrever sua tese de doutorado. Ela também vive um
certo conflito com o noivo e ao ir para a casa da avó,
acaba por conhecer um outro homem que lhe é bastante
atraente. Enquanto escreve com penar seu trabalho de
doutorado dialoga com as amigas de sua avó que
estavam se reunindo para construir uma colcha de
retalhos. Conversando com elas acaba descobrindo que
várias tinham narrativas de um passado no qual homens
as deixaram sozinhas com seus filhos pequenos ou
ainda no ventre.
O fato de que a reprodução humana depende de um
longo período de gestação que ocorre dentro do corpo
da mulher, permite ao homem uma liberdade
escandalosa para decidir abandonar a gravidez, a
mulher e o filho. O investimento parental da fêmea é
incrivelmente maior. Isso talvez esteja de alguma forma
incorporada na lei que costuma dar a guarda do filho
para a mãe. Para ter um filho a mãe, quer queira ou não,
muda seu corpo (e seu cérebro). O investimento inicial
do macho é fisicamente o esperma, o que permite que o
macho tenha inúmeros filhos quase ao mesmo tempo.
Paralelos desse tipo de comportamento distinto entre
fêmea e macho, entre mãe e pai biológicos, se
encontram em muitas espécies de mamíferos, por
exemplo, nos haréns de elefantes e lobos marinhos,
gorilas, leões, etc. Ao contrário, muitas aves se
comportam em relação à prole de uma maneira
diferente, pois o ovo depende de cuidados que somente
ambos os pais podem oferecer. Há casos que os machos
são abandonados e as fêmeas buscam outros parceiros
para se acasalar. Entre os peixes há espécies em que as
fêmeas comem seus próprios filhotes se não estes forem
defendidos pelos pais, que fazem ninhos de bolha de ar,
expulsam a fêmea de seu território e passam o dia
pegando seus filhotes na boca e os trazendo para sua
toca. Há também o incrível caso do cavalo-marinho, um
peixe cujo macho guarda em uma bolsa os filhotes, e,
mais uma vez, nesse caso, é a fêmea que tende à
poligamia. No seio de toda essa diversidade de sistemas
sexuais encontra-se também alguns casos de espécies,
incluindo espécies de mamíferos, que são
verdadeiramente monogâmicas. Isso parece estar ligado
em alguns casos não só com a produção de um
hormônio chamado oxicitocina (a substância do amor)
mas também com receptores celulares para esse
hormônio. Hormônios e receptores estão naturalmente
codificados nos genes.
Do ponto de vista antropológico também parece haver
em todas as culturas uma marcada diferença
psicológica entre os dois sexos (BUSS, RIDLEY,
PINKER, MILLER). Mas antropólgos e cientista
sociais famosos, influenciados pelos trabalhos de Mead,
Boas, entre outros, insistem que a menina brinca de
boneca e o menino de carrinho e espada (a menina
ajuda nas tarefas da oca, os meninos acompanham os
pais em caçadas) por que a sociedade (ou a tribo)
constrói os papéis sociais para o homem e a mulher e
trata de encontrar mecanismos para solidificá-los, como
no caso do brinquedo das crianças e da vida social dos
indiozinhos. Isso significa que os pais, o ambiente
familiar (e o escolar, no caso de uma cidade-Nação)
contribuem socialmente para a determinar a formação
da diferenciada psiquê entre filhos e filhas,
desenvolvendo atributos de meninas em uns e de
meninos nos outros. Os seres humanos seriam
investidos de papéis sociais, como se fosse um script
impresso na folha em branco da mente pela sociedade e
pela cultura.
Eu me disponho a defender que as diferenças entre os
machos e as fêmeas são biologica e/ou genticamente
influencidas, de modo profundo. A diferença de
comportamento entre machos e fêmeas da espécie
humana muito possivelmente representa o resultado
(parcial e aberto) de nossa história evolutiva. Nós fomos
selecionados para, na média, sermos melhores
sistematizadores; elas, melhores empatizadoras. Até
agora nossa sociedade valorizou economicamente muito
mais os produtos das sistematizações. Mas as coisas
parece que estão mudando. Veja-se a importância cada
vez maior que se dá à formação de recursos humanos e
pode-se vislumbrar que a função empática deve ocupar
um lugar fundamental nas próximas décadas.
As pesquisas de Baron-Cohen sobre as diferenças
sexuais e sobre o autismo, doença mental que afeta
sobretudo crianças masculinas, parecem estar
correlacionadas (mas ainda não causalmente assocaidas)
com um input natural do hormônio testosterona, que os
fetos do sexo masculino recebem no útero entre a sexta
e a oitava semana de gestação. Sabe-se que nos
humanos, como em outros mamíferos, a caracterização
do sexo está primeiramente relacionada ao fato de que
todas as mulheres portam dois cromossomos X em sua
células (daí XX), enquanto os homens possuem um X e
um Y (XY). O novo ser que está se formando, antes de
seis semanas, pode ser XX ou XY mas até então o
padrão básico do desenvolvimento é feminino. Matt
Ridley mostra como historicamente o problema da
emergência do sexo masculino (é, no mundo biológico,
o sexo feminino aparece primeiro, ontogentica e
filogeneticamente) é chamado de a rainha dos
problemas da biologia (RIDLEY, 1995).
A partir de seis semanas o corpo e o cérebro masculino
começam a se diferenciar sob a ação da testosterona. A
hipótese é que um excesso desse hormônio poderia
levar ao autismo.
As habilidades mentais e comportamentais entre
meninos e meninas diferem desde os primeiros meses
ou mesmo dias de idade. Enquanto os bebês do sexo
feminino demonstram maior interesse pelo som das
vozes e conversas, os meninos demonstram mais
interesse no movimento físico de objetos no espaço.
Isso está de acordo com o fato de que mulheres, na
média, são melhores em suas habilidades comunicativas
e os homens em suas habilidades com objetos no espaço
em com números. Creio que não preciso ressaltar que
isso é uma média estatística e não uma determinação
rígida. Há mulheres cientistas, conheço muitas na
biologia, de primeira linha, e homens que se destacam
por seu alto poder de comunicação social.
Descrever as diferenças biológicas e psicológicos entre
os dois sexos não significa que devemos utilizar tais
procedimentos para justificar qualquer tipo de
discriminação ou privilégios perante à lei ou o mercado.
Tais diferenças, como assinala Baron-Cohen, não são
traduzíveis, por exemplo, em maior inteligência. Tanto
a empatia quanto a sistematização são variáveis na
equação da inteligência. Assim também não servem
como medida de caráter, como juízo de valor. São
diferenças que devemos respeitar.
Além disso, mulheres e homens em todo o mundo e
todas as épocas são reconhecidos por uma série de
características de fundo psicológico que são comuns aos
dois sexos. Por exemplo, todos os seres humanos
conhecidos são capazes de adquirir linguagens. Na
década de 1950 Chomsky e outros lingüistas estavam
assoberbados com o salto lingüístico de crianças de
cerca de 3 anos que passam da repetição quase
mecânica de palavras para sentenças quase perfeitas do
ponto de vista sintático (e semântico). Por isso
Chomsky imaginou que para adquirir uma linguagem é
preciso herdar uma gramática universal (CHOMSKY),
uma aptidão para, a partir de informações fragmentadas,
e bastante desordenadas (como as que as crianças
recebem), construir sentido. Herdamos um instinto de
linguagem que compartilhamos com outros animais,
mas que desenvolvemos inimaginavelmente mais do
que qualquer outra das milhares de espécies de bichos
com um sistema nervoso bem desenvolvido. Tal instinto
para a linguagem, que é geneticamente herdado, se
desenvolve durante a vida do animal humano em sua
história social, cultural, econômica e política.
Além de um instinto para a linguagem, um bebê
humano quando nasce vem equipado também com um
instinto para enxergar o mundo exterior, um instinto
para engatinhar e depois desenvolver a postura bípede e
o andar ereto, um instinto para segurar objetos, um
instinto para desenvolver relações sociais, um instinto
para formar amizades e inimizades, um instinto para
procurar parceiros sociais, um instinto para se
comportar como mulher ou homem, um instinto talvez
para detectar trapaceiros. Todos esses instintos e muitos
outros são equipamentos mentais, transmitidos de
geração a geração por genes, ou melhor por equipes de
genes, que tenderam a ser selecionadas, e efetivamente
foram, em um passado e em um ambiente ecológico e
social específicos.
Por certo biologia não é destino. Penso até que o que foi
selecionado pela natureza é aquilo que podemos
também, até certo ponto, modificar. Édipo pôde
arrancar seus olhos, que foram um bem que a natureza
de seus maiores lhe legou. Podemos evitar ou contornar
doenças genéticas, podemos desenvolver habilidades
com exercícios ou estudo, pois existe uma base material
sobre a qual o mundo pode operar.
Assim também o ambiente (ou a sociedade ou a cultura
ou as tradições) não nos determinam completamente.
Nosso comportamento é o produto do que herdamos
socialmente pelo que herdamos geneticamente. Para o
que o gene possa se expressar, possa ganhar a luz da
vida, é preciso que esteja em um ambiente específico.
Os genes são estratégias para interagir com o ambiente,
para extrair informação do meio em que está a fim de
promover sua própria expressão e replicação. Mude-se
o meio muda a expressão do gene. Aliás, esse parece ser
a forma que a natureza encontrou para, usando
praticamente os mesmos genes, construir espécies tão
distintas quanto a dos elefantes, dos camundongos e dos
humanos. Mude-se o gene muda a relação com o meio.
O que parece estar em jogo são diversas formas de
regular o tempo (o timing) de expressão dos genes.
Quando perguntado o que contribuiria mais para o
comportamento humano, o gene ou o ambiente, Steven
Pinker replicou: “A pergunta em si mesma é absurda. É
o mesmo que perguntar o que contribui mais para a área
de um retângulo: sua largura ou sua altura?”
Mais uma vez: descrever não é prescrever. Separar fatos
e valores é um imperativo crítico que muitos cientistas
sociais têm desrespeitado quando imputam a certas
teorias darwinsitas intenções ideológicas escusas de
manutenção do competitivo status quo capitalista.
Todavia o darwinismo tem colocado justamente
questões relativas às interpretações sempre valorativas
dos fatos. O que queremos fazer com os fatos? O fato
de mulheres e homens terem mentes diferentes na
média significa que de um modo geral uns são melhores
que os outros? Ou justamente aquilo que os genes nos
dá (ou empresta) é a base sobre a qual se pode erigir
alguma liberdade?
6 - Considerações finais
Eu gostaria de concluir essa apresentação retomando
àquelas três questões existenciais de senso comum que
coloquei no início: O que somos? De onde viemos?
Para onde vamos?
Penso que enquanto as duas primeiras perguntas já
estão respondidas, seja pelas ciências sociais ou pelas
ciências naturais, o último problema continuará para
sempre em aberto, pois trata-se de certa forma de
construir um significado, um lugar para onde queremos
ir, ao invés de sermos levados como um barco de papel
pela correnteza.
A questão “o que somos?” parece nos remeter à
pergunta homóloga “o que é?”, que incorre no problema
de definir o que seria a própria essência do ser humano.
De um ponto de vista meramente científico posso
afirmar que não existe um mundo transcendental, onde
a Forma, a Natureza ou a Essência platônica incriada
permaneceria imutável, idêntica a si mesmo, para todo o
sempre. Não há uma essência humana, uma natureza
interna inviolável pelo tempo, uma essência que resista
a todas as pressões de circunstâncias históricas
impredizíveis. Pode até haver uma natureza humana
comum a todas as culturas e épocas, mas essa natureza
está sujeita a variações ao acaso (genético ou não-
genético) e
intencionais.
retenções
seletivas,
naturais
e/ou
Penso que a questão “de onde viemos?” também está
razoavelmente respondida. . No que concerne ao Homo
sapiens a antropologia física ou biológica descobriu que
viemos de um estoque ancestral comum com
populações de outros dos chamados grandes primatas
africanos, como os gorilas e principalmente os
chimpanzés. Se se pergunta de onde veio este estoque
ancestral comum somos obrigados a descer ainda mais
no tempo histórico profundo dos mamíferos, e, a
continuar com perguntas desse tipo, depararemos com
problemas não só da origem dos animais, mas com a
origem das células de que somos feito e da própria vida.
Embora existam muitas interrogações nesse longo
percurso arborescente de mais de quatro bilhões de
anos, a pergunta “de onde viemos?” só pode ser
equacionada e tratada de um ponto de vista histórico,
uma vez que trata-se de descobrir, compreender e
interpretar o passado geológico e biológico (evolutivo).
Para chegar a essa explicação necessito do conceito de
gene, embora ele seja necessário mas não suficiente.
Já a questão “para onde vamos?” é um problema de
como aplicar o conhecimento da história que
descobrimos na construção de um significado que não é
dado de antemão pela natureza bruta. Ao final do
segundo volume de A sociedade aberta e seus inimigos
Karl Popper se pergunta se a história tem significado.
Embora sua resposta seja negativa, no sentido de que
não há um significado pré-dado, pré-destinado, Popper
argumenta que se foros inteligentes podemos construir
esses significado.
Isso se parece muito com o que Jorge Luis Borges
atribui a Bernard Shaw “God is in the making”, “Deus
está se fazendo”: “Si nosostros somos magnánimos,
incluso si somos inteligentes, si somos lúcidos,
estaremos ayudando a construir a Dios”. Ajudar a
construir a Deus. A idéia em si mesma parece
blasfêmia. Gostaria também de enfatizar minha crença
na inexistência de qualquer força sobrenatural, vida
após a morte, etc. Borges e Shaw, assim como o autor
destas palavras, são ateus. O que está em jogo aqui, no
texto de Borges, é o futuro da literatura e da
humanidade, e a construção de seu sentido.
Vimos que Dozhansky afirma que “nada em biologia
faz sentido senão à luz da evolução”. Que sentido a
biologia faz quando vista sob o holofote da evolução,
ou seja, da história? Há quatro anos, na ANPOCS de
2000, em Petrópolis, o Dr. Wanderley Guilheme dos
Santos afirmava que pela primeira veza na história a
biologia estava interferindo diretamente sobre a matéria
da qual a vida é feita e alterando de uma vez por todas
não só a vida em sociedade mas a própria idéia de que o
homem faz de si. Podemos agora sonhar que com a
biotecnolgia do DNA recombinante (que leva por uma
dispendiosa e árdua história da técnicas moleculares)
podemos inventar o futuro. A velha teoria de Lamarck
pode enfim ser revivida, pois podemos introduzir em
animais, plantas e em nós mesmos os genes de nosso
interesse. Mas o método básico continua sendo o de
selecionar, entre inúmeras variações, aquele futuro que
mais atenda aos interesses em jogo.
BIBLIOGRAFIA
AUNGER, Robert. Darwinizing Culture: the State of Memetics as a Science. Oxford:
Oxford University Press, 2001.
BARON-COHEN, Simon. Diferença essencial: a verdade sobre o cérebro de homens e
mulheres. SP: Objetiva, 2004.
COSMIDES, Leda and TOOBY, John . "Evolutionary Psychology: a Primer".
(url: http://www.psych.ucsb.edu/research/cep/primer.html, 1997.
DARWIN, Charles. The Origin of Species. New York: Penguin Books, 1968.
DAWKINS, Richard. The Selfish Gene. Oxford: Oxford University Press, 1976.
DENNETT, Daniel C. Darwin’s Dangerous Idea. New York: Penguin Books, 1995.
DOBZHANSKY, Theodosius. Nothing in biology makes sense except in the light of
evolution. The American Biology Teacher, March 1973 (35:125-129)
HULL, David. “Darwinism as a historical entity: a historiographic proposal”. In: Kohn,
David (ed.). Darwinian Heritage. United Kingdon: University Press, 1985, p 773-812.
-----. "Sujetos centrales y narraciones históricas". Historia y Explicación en Biologia.
Eds. Sergio Martínez and Ana Barahona. México: Fondo de Cultura Economica, 1998.
247 –272.
MARTINÉZ, Sergio; BARAHONA, Ana. (eds.). Historia y Explicación en Biologia.
México: Fondo de Cultura Economica, 1998.
MAYR, Ernest. The Growth of Biological Thought: Diversity, Evolution and
Inheritance. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1982.
PINKER, Steven. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. SP:
Cia das Letras, 2004.
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, São
Paulo: Edusp, 1987.
RIDLEY, Matt (2003). Nature via nurture: genes , experience and waht makes us human.
New York: HarperColins Publisher.
.------. (1995) The red queen: sex and the evolution of human nature. New York: Penguin
Books.
.TOBBY, John; COSMIDES, Leda.(1992) The psychological foundations of culture.
In: BARKOW, J.; COSMIDES, L.; TOBBY, J. The adapted mind: evolutionary
psychology and the generation of culture. New York: Oxford University Press, p 19136.
ZYWICKI, Todd J. "Bibliographic Essay: Evolutionary Biology and the Social
Sciences". HumaneStudies Review, vol 13, 1, 2000.
url: http://www.humanestudiesreview.org/0900second2.html
Download