O conceito de posição

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Lucas Ciavatta
O CONCEITO DE POSIÇÃO
Há algum tempo, num de meus cursos, uma aluna me disse que estava tocando tamborim num
grupo de percussão. Pedi a ela que tocasse um pouco. Estava muito bom! Pelo menos até quando
peguei um surdo1 e fazendo uma marcação sugeri que tocássemos juntos... Ela simplesmente não
pôde. Como podia ser? Como fazia ela para tocar no seu grupo? “Simples”, disse ela, deixava que o
líder dos tamborins começasse e o seguia. Pedi então a um outro aluno que fizesse a marcação com o
surdo e toquei com outro tamborim para que ela me seguisse como fazia no seu grupo. Também não
foi possível. Assim que eu parava de tocar ela se perdia e também parava. O que estava acontecendo?
A articulação de sua frase com a de outros instrumentos obviamente não lhe era familiar. Mas ela
ouvira esta articulação centenas de vezes! Não. Este era o ponto. Ela não ouvira esta articulação
centenas de vezes. Ela na verdade nunca a ouvira. Ela ouvia apenas os tamborins, e assim tocava em
uníssono enquanto deveria estar numa prática polifônica. Essa era sem dúvida uma falha grave na
sua formação musical. De qualquer forma eu seguia intrigado com o fato dela conseguir tocar junto
com os outros tamborins, mesmo com toda a fragilidade que eu já havia percebido. Pedi a ela que
andasse enquanto tocava e percebi que ela tocava:
Enquanto o líder tocava a frase correta, uma frase bem conhecida no meio do samba chamada
“carreteiro”:
As duas frases se compunham de três batidas e uma virada com o tamborim. O intervalo de
tempo entre uma virada e outra era o mesmo numa e noutra frase.
Outra vez, com alguns músicos, tocando o Alujá, fomos todos chamados a improvisar. Visto
que todos sem exceção tinham experiência com improvisação, não pareceu a ninguém que maiores
problemas pudessem ocorrer. Alguns de fato improvisaram com muita facilidade, outros, no entanto,
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Instrumento de percussão.
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mostraram grande dificuldade e pareciam não entender o ritmo que estavam tocando. Pedi a cada um
que andasse e expressasse corporalmente a pulsação que estava usando. Alguns estavam tocando:
Enquanto outros estavam tocando o Alujá, com a pulsação que culturalmente foi estabelecida
nos terreiros de Candomblé:
Até então eu tinha certeza de que estas situações aconteciam desta forma por estarem num
contexto musical baseado na oralidade. Eu confiava que dentro da Academia, com o auxilio da
escrita, tudo se passaria de forma diferente. Comecei a desconfiar de que a coisa não seria tão simples
assim quando num curso para regentes e integrantes de coros pedi a um dos participantes que
utilizasse as ferramentas de que dispusesse para levar os outros participantes a conseguir cantar uma
pequena peça para três vozes que eu havia composto. Era um desafio. Ele sabia disso e bravamente
decidiu pesquisar junto comigo. A primeira voz entrava no tempo e não foi difícil levar a cantar o
grupo que havia se disposto a cantá-la. A segunda voz entrava no contratempo e tampouco
apresentou maiores dificuldades. A terceira voz, no entanto, entrava entre o tempo e o contratempo.
Foi impossível. Por mais gestos que o regente fizesse. Por mais que se explicasse, que se escrevesse,
que se lesse, os integrantes do grupo que tentava realizar esta voz não conseguiam entrar todos
juntos como os outros grupos haviam conseguido. Mudamos o grupo que deveria tentar e de nada
adiantou. Nos perguntamos sobre a possibilidade de que a maioria ali simplesmente não tivesse
experiência musical suficiente para encarar este desafio. Não parecia ser o caso. Reunimos apenas os
que conseguiam e assim parecia que havíamos encontrado um caminho. Ledo engano. Ao tentar a
realização com as três vozes soando, o grupo que cantava a tal frase difícil ou migrava para o tempo
ou migrava para o contratempo, inviabilizando nossa realização.
Decidi investigar mais profundamente esta questão e, por diversas vezes, dentro e fora do
Brasil, em grupos que dominavam o sistema de figuras rítmicas, propus a seguinte realização rítmica
a duas vozes:
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Sempre. Repito. Sempre, o grupo que executava a segunda voz acabava por migrar para a
primeira. Normalmente lhes era simplesmente impossível começar sem minha ajuda, mas, mesmo
quando havia uma pessoa que entendia o desafio, conseguia a realização correta e desesperadamente
tentava manter a articulação entre as duas vozes, o grupo acabava por arrastá-la para a primeira voz e
o uníssono acabava com a riqueza polifônica momentaneamente conquistada.
Nas duas primeiras situações, situadas na esfera da cultura popular, há um fenômeno que me
parece extremamente problemático dentro de um processo de ensino-aprendizagem de ritmos:
alguém estar tocando uma coisa julgando estar tocando outra. A aluna do primeiro exemplo achava
que estava tocando o “carreteiro” do samba, mas o que ela realizava jamais se encaixaria com
qualquer frase de samba. Os músicos do segundo exemplo achavam que um ritmo, que está
organizado em compassos quaternários compostos (em ciclos de quatro tempos, sendo cada tempo
dividido em três partes) era organizado em compassos ternários simples (em ciclos de três tempos,
sendo cada tempo dividido em quatro). Todos podiam tocar “errado”, junto com quem estava
tocando “certo”. Todos tinham suas deficiências camufladas – alguns deles nem sequer identificavam
estas deficiências. E, o pior: nenhum deles tinha, mesmo que quisesse, uma maneira de resolver estas
deficiências.
Nas duas outras situações, estas localizadas num contexto acadêmico, há um impasse, uma
impossibilidade, a meu ver, gerada por uma aproximação equivocada com a música e, mais
especificamente, com a partitura tradicional. Esta última, normalmente, quando ensinada, é
apresentada através do conceito de duração. Assim, muitas pessoas que conseguem tocar...
... veem a fragilidade dos seus conhecimentos exposta quando se deparam com uma
pequeníssima e “insignificante” pausa:
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Quem tem esse tipo de aproximação com a partitura tradicional, uma aproximação totalmente
baseada nas durações, pode ser levado a acreditar ou levar alguém a acreditar que para aprender uma
frase como esta:
... basta apenas aprender esta:
... e depois “deslocar tudo um pouquinho para o lado”.
Se isso fosse verdade, para aprender a realizar um contratempo com precisão seria preciso
apenas aprender a tocar com precisão nos tempos e depois “deslocar tudo um pouquinho para o
lado”.
O conceito de duração está na base de todos estes problemas e dificuldades. Não que ele não
deva ser utilizado, mas sua insuficiência para esclarecer aspectos fundamentais do ensinoaprendizagem de ritmos é gritante. Ele simplesmente não tem como nos levar até onde precisamos
ir. Para isso, para dar conta dessa complexidade, elaborei, e a partir desse momento pretendo
introduzir, o conceito de posição. Ele se utiliza de ferramentas diferentes daquelas utilizadas pelo
conceito de duração. Ele se constrói a partir de outros conceitos, tais como espaço musical e
movimento musical, e assim tem sido extremamente útil para a compreensão de todas estas questões.
Glen Haydon (apud Thurmond, 1991, p. 36) afirma que:
“Em psicologia, o ritmo musical depende do fato de que tons apresentados numa
sequência temporal são percebidos como tendo não somente altura, intensidade, timbre e
duração, mas também movimento.”
A proposição, feita por Thurmond, de uma “quinta propriedade” para o som, revela uma
preocupação, semelhante à minha, de explicitar na definição de qualquer evento musical o
movimento que compõe sua definição – algo que, tradicionalmente, não parece ser uma
preocupação2. No entanto, este movimento tem uma característica que o diferencia dos que ocorrem
fora do âmbito musical: ele acontece não num espaço real, concreto, mas num espaço representado,
um intervalo de tempo que ganha uma forma ao ser representado a partir de um fazer musical, um
“Com efeito, sendo a Música a arte do Som, toda a teoria elementar da mesma há de referir-se,
forçosamente, às quatro propriedades do som: duração, intensidade, altura e timbre.” (Oswaldo Lacerda apud
Paz, 2000, p. 162)
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espaço musical. Um espaço que pode ser visto quando fechamos os olhos e utilizamos a capacidade
que, segundo Gardner (apud Costa 1995, p. 13), uma pessoa tem “(...) de imaginar no seu ‘olho da
mente’ vários objetos, cenas e experiências”; quando internamente “vemos” imagens, que segundo
Costa são:
“... imitações interiorizadas de objetos, sons, imagens, odores, tato e outros aspectos
vivenciáveis pelos órgãos dos sentidos. Essas imagens podem ser de situações vivenciadas
no passado ou podem, no período operatório, prever transformações futuras.
Correspondentes aos aspectos figurativos das funções cognitivas, as imagens mentais são
instrumentos do conhecimento. Nesse sentido, elas não são cópias exatas do real, mas a
compreensão que o indivíduo tem dele.” (Costa, 1995, p. 18)
Imagens que formam estruturas onde aparecem justapostas e que não pretendem uma
fidelidade com a realidade que as originaram. No entanto, é através delas que esta realidade
multifacetada se torna para nós compreensível. Johnson (apud Reiner, 2000, p. 166), denomina estas
estruturas de “esquemas de imagens” e explica que:
“(...) eles funcionam primeiramente como estruturas abstratas de imagens... Eles são
estruturas gestálticas que se constituem de partes que se relacionam e se organizam em
todos unificados, através dos quais nossa experiência manifesta uma ordem discernível.”
São estes esquemas de imagens que compõem internamente o espaço musical. Neste espaço
ocorre o movimento que, seguindo a orientação de Thurmond, pode ser listado como a quinta
propriedade do som e que denomino movimento musical.
O conceito de movimento musical é utilizado por Dalcroze (1967, p. 42) (“movimento da
música”) e por Thurmond (1991, p. 18) (“imagem de movimento”). Segundo este último, que o
utiliza a partir de Mursell:
“Esta imagem de movimento presente na mente quando alguém está ouvindo música (...),
verdadeiramente afeta o sistema nervoso sinestésico e pode fazer com que o pé bata, ou
incitar em alguém a vontade de dançar.”
A relação estreita sugerida acima, entre movimento musical e movimento corporal me leva a
mencionar dois outros conceitos que nos remetem à origem do conceito de pulsação: o de “arsis”
(“upbeat”, suspensão) e o de “thesis” (“downbeat”, repouso).
“Os termos arsis e thesis originados na tragédia Grega onde o líder do coro marcava o
tempo para a dança com um pé que calçava um sapato ao qual era atado um tipo de
chocalho.” (Thurmond, 1991, p. 27)
Para estes dois termos o dicionário Grove (citado por Thurmond, 1991, p. 28) apresenta as
seguintes definições:
“Os gregos chamavam o tempo fraco arsis e o forte thesis. Isto fica claro a partir do
Catechism de Baccheios (Meibom, p. 24):
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Q. O que devemos dizer que é arsis?
A. O momento em que o pé é levantado quando vamos dar um passo.
Q. E o que é thesis?
A. O momento em que ele está no chão.”
Ainda que a definição do que se entende por “tempo fraco” e “tempo forte” possa ser
levantada como uma questão, o importante é que os conceitos de arsis e thesis não nascem para
expressar acento pura e simplesmente. Suas origens estão ligadas principalmente à necessidade dos
Gregos de lidar com uma diferença; uma diferença musical, subjetiva, mas real. Tocar uma nota no
tempo é inegavelmente mais fácil do que tocar a mesma nota no contratempo. Por quê?
Uma resposta deveria vir necessariamente da duração, o único dos quatro parâmetros
sonoros que está relacionado ao ritmo. No entanto, assim como a intensidade e a altura, a duração é
um valor absoluto – a duração pode ser medida em segundos, a intensidade em decibéis e a altura em
hertz. Estes valores são absolutos, independem da música que se faça, como um metro é um metro,
independente do objeto que se meça. O timbre tem outra natureza, ele não é um valor, ele é uma
qualidade que pode ser identificada através do formato de onda. Um instrumento pode emitir um
som longo ou curto, forte ou fraco, alto ou baixo, mas possui apenas um único timbre3. Poderia ser
argumentado que a duração de um tempo é relativa ao andamento, mas, uma vez definido o
andamento, a duração de um tempo se torna absoluta. Tomando como exemplo uma música com
andamento 60, cada tempo durará um segundo, independente de onde na música um tempo
começar.
Na verdade, quando falamos de tempo e contratempo, não estamos nos referindo ao
conceito de “tempo” em termos absolutos, esse que pode ser medido em segundos, mas sim ao
conceito de “tempo” em termos relativos que quer localizar posições no espaço musical.
A duração vê o espaço musical como sendo bidimensional e, nesse caso, a expressão
“deslocar um pouco” faz sentido, pois não importa se a nota vai daqui até ali ou dali até acolá. Em
termos de duração, não há diferença se um som começar no tempo e for até o contratempo ou se o
mesmo som começar no contratempo e for até o tempo. Nos dois casos ele durará meio tempo
(absoluto), no caso do andamento 60, meio segundo.
O conceito de posição, que desenvolvi no trabalho com O Passo, vê o espaço musical como
sendo tridimensional, como tendo um relevo, e se dedica a identificar as características de cada um
destes lugares dentro deste relevo. Seguindo o caminho proposto pelos Gregos, o conceito de
Obviamente a variação de timbre existe, mas quando feita sem o auxílio de meios eletrônicos a identidade do
instrumento que a faz é sempre preservada.
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posição relaciona espaço musical e movimento corporal e assim revela lugares que estão “no alto” ou
“em suspensão” e lugares que estão “embaixo” ou “em repouso”, e que por isso geram movimentos
musicais distintos. Assim, é possível entender porque a expressão “deslocar”, apesar de largamente
utilizada, não consegue explicar e, pior, não consegue ensinar a ninguém a diferença entre tempo e
contratempo. Segundo o conceito de posição, se o som é “deslocado”, ele não vai simplesmente mais
para frente ou mais para trás, ele vai mais para cima ou mais para baixo, e, desse modo, ele mantém
suas características sonoras, mas muda inteiramente suas características musicais. Uma posição
diferente significa necessariamente um movimento musical diferente, um som diferente.
Bamberger (1990,p. 106) utiliza o conceito de “posição na série”. Um conceito relacionado ao
que proponho, mas que com ele não se confunde. Uma coisa é localizar um evento musical em
função de outro, como o faz o conceito proposto por Bamberger, outra é localizá-lo em função do
espaço musical onde os dois ocorrem.
Tomemos como exemplo o ritmo abaixo.
Uma representação gráfica deste ritmo a partir do conceito de duração poderia ser a seguinte:
Segundo o conceito de posição a representação gráfica procuraria evidenciar o relevo do
espaço musical onde este ritmo acontece.
Nas duas representações é possível ver a sequência de eventos, que de fato ocorre. No entanto,
pense a diferença entre elas como uma mudança de perspectiva. Realizar um ritmo sem um
movimento corporal é como olhar esta sequência de cima, como uma planta baixa, guiando-se
apenas pelas durações. O Passo propõe que olhemos esta sequência de um outro ângulo, onde seja
possível ver os relevos do espaço musical, guiando-se então pelas posições.
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Tomemos como exemplo a célula rítmica...
... representada segundo as durações de seus eventos...
... e segundo suas posições.
Quando seus eventos são isolados a partir das durações...
... sugerem uma igualdade entre eles que musicalmente não existe.
O que pode ser constatado quando os isolamos a partir de suas posições.
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É exatamente por esta desigualdade entre cada uma das divisões de um tempo que não me
parece possível a “analogia” sugerida por Dalcroze (1967, p.33):
“(...) uma vez que a regularidade do andar e a correta acentuação foi desenvolvida, restará
apenas mostrar aos alunos as relações entre elas e a divisão do tempo musical em partes
iguais, acentuadas de acordo com certas regras. A analogia rapidamente se estabelecerá.”
O que, inclusive, a prática tem me indicado, é que, ao tentar realizar ritmos cuja articulação
com a pulsação seja complexa, ou não familiar ao executante, sua tendência é alterar a própria
marcação e mesmo abandonar a regularidade inicial que se julgava conquistada.
Um outro aspecto da mesma questão diz respeito ao fato de que a definição da posição de um
evento passa tanto pela sua localização no espaço musical de um tempo quanto pela sua localização
no espaço musical de uma determinada quantidade de tempos. Em outras palavras, um evento que
está sobre o primeiro tempo de uma música é diferente de um outro que também está sobre um
tempo, mas localizado mais à frente. A noção de ciclos de tempo, formalizada no conceito de
compasso, nasce exatamente para marcar esta diferença e nos auxiliar nesta definição. O exemplo a
seguir fala especificamente disso.
A realização do ritmo...
... irá variar em função:
1) da quantidade de tempos utilizada para definir o compasso;
3 tempos
4 tempos
2) da posição dos eventos dentro do compasso.
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A variação em função da quantidade de tempos por compasso é simples de ser compreendida.
Mas, para que se tenha uma ideia da diferença criada a partir da mudança de posição dos eventos
dentro do compasso, basta saber que a primeira possibilidade só pode estar presente numa realização
musical onde o ritmo tocado seja o Samba, como um complemento para a segunda, que é
exatamente a base para esta realização.
As articulações entre as diversas frases de um arranjo dependem então, inteiramente, de uma
clareza com relação às formas através das quais cada uma de suas frases se articula com uma
determinada pulsação e seus ciclos. Quem não possui esta clareza, e que para uma realização solitária
utiliza uma pulsação diferente ou um início de ciclo diferente daquele que o resto do grupo está
utilizando, não tem como participar de uma prática coletiva, pois, como exemplificado nas duas
primeiras situações, toca uma coisa pensando estar tocando outra. Sem um movimento corporal que
deixe clara a pulsação durante uma realização qualquer, é impossível para quem escuta esta realização
dizer que articulação está sendo utilizada, e prever se este realizador será ou não bem sucedido em
sua tentativa de articular sua frase com outras.
Para melhor entender porque mesmo tocando “errado” é possível tocar junto com quem toca
“certo”, imaginemos uma sequência de batidas localizadas nos tempos e uma sequência de batidas
localizadas nos contratempos. O intervalo de tempo entre cada batida da primeira sequência é igual
àquele entre cada batida da segunda sequência. Segundo o conceito de duração as duas sequências
são rigorosamente iguais, mas segundo o conceito de posição, que considera onde, num espaço
musical, está localizada cada uma das batidas, as duas sequências são profundamente diferentes.
Assim, é possível (e bem mais comum do que se imagina) ter duas pessoas tocando juntas o que
parece ser a mesma frase, sendo que uma está tocando uma frase e a outra uma outra frase. As duas
frases são iguais em termos de duração, mas completamente diferentes em termos de posição. E não
há nenhuma forma de saber quem está tocando o quê a não ser que destas pessoas seja pedido um
movimento corporal qualquer que indique como elas estão entendendo a pulsação.
N’O Passo há a presença constante, durante qualquer realização, de um movimento corporal –
admitindo que, em função de necessidades específicas de performance, a utilização deste movimento
corporal fique restrita a uma fase de estudo. Tenho trabalhado com a hipótese de que o movimento
corporal, na definição da posição de um evento, não é apenas importante, mas imprescindível.
Thurmond (1991, p. 37), citando Dom Joseph Gajard, relata que: “é sabido que os Gregos
precisavam ver os movimentos corporais dos dançarinos ao ouvir uma música para sentir o ritmo.”
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Poderia ser argumentado que há vários músicos ligados à Academia, alguns bastante contidos
corporalmente, que parecem não ter precisado utilizar seus corpos para chegar a ser excelentes
músicos. Todos parecem ter prescindido, em suas formações musicais, do movimento corporal. No
entanto, como jamais puderam prescindir de seus corpos, visto que seus corpos sempre estiveram,
cabe perguntar: o que faziam seus corpos enquanto eles não os utilizavam? Obviamente há aí uma
impossibilidade e certamente o que houve foi uma desatenção, por parte destes músicos, ao
comportamento de seus corpos durante suas formações, até porque não se tem notícia de um único
músico que toque ou cante sem para isso utilizar seu corpo. A hipótese que meu trabalho me levou a
formular é a de que estes músicos utilizaram, ainda que sem consciência disto, sistematicamente o
movimento corporal em suas aprendizagens, mas o fizeram com movimentos de diferentes
qualidades, alguns quase imperceptíveis, e, por isso, não lhes é possível dimensionar a importância
desta ferramenta. Algo que me parece claro é que, de alguma forma, todos estes músicos entraram
em contato com o movimento musical e conseguiram compreendê-lo através de movimentos
corporais mínimos, movimentos estes que ainda hoje guiam suas performances.
A capacidade de compreender os movimentos musicais está diretamente relacionada às
habilidades de um músico. Compreender ou não um movimento musical é, por exemplo, o que
explica a aquisição ou não do que poderíamos chamar de suingue, um conceito impreciso, mas cuja
existência é impossível negar. A falta dele indica (entrando no terreno pantanoso e fascinante da
subjetividade) que não há vida em uma determinada realização musical; indica que ela não é capaz de
criar movimento, externo, ou interno, em quem quer que seja, em quem ouve e mesmo em quem
toca. A respeito dele Rocca (s/data, p. 15) comenta:
“[Um] problema que acontece em interpretações de ritmos é o da falta do que chamamos
de ‘balanço’, ‘suingue’ etc. Em alguns casos, o ritmo soa precipitado, nervoso, indeciso...
em outros, ele soa como um robô, com suas respostas frias e rígidas.”
É, a meu ver, o suingue, ou “swing”, em inglês, ou ainda, “balanço” - termos que, não por
mero acaso, estão associados ao movimento corporal – que leva Thurmond (1991, p. 13) a se
perguntar sobre as:
“(...) possibilidades de determinar exatamente o que faz com que a execução de um artista
seja emocionante e cheia de vigor, e a de um outro, apática e mecânica.”
E é ainda Thurmond (1991, p.17) quem aponta para a falta de material a esse respeito:
“Embora vários volumes possam ser encontrados na história, teoria e apreciação da
música, relativamente poucos autores tentaram colocar em preto e branco qualquer regra
ou instrução para sua execução ou performance. As razões para esta anomalia são difíceis
de achar. Desde tempos remotos grandes músicos têm sido olhados como gênios tanto
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por músicos quanto por não-músicos, e suas habilidades de comover plateias com seu
tocar ou cantar têm sido, com excessiva frequência, atribuídas a seus dons ou talentos
mais do que a sua maestria dos princípios ou técnicas da performance artística.”
N’O Passo, esta questão é abordada desde o início através de três habilidades para o fazer
musical, que se apresentam inteiramente imbricadas: precisão
clareza em termos corporais e em
termos de representação a respeito da articulação de um ritmo com sua pulsação (qualquer realização
musical, por mais livre que possa parecer, vive de sua precisão); fluência
familiaridade com a
articulação de um ritmo com sua pulsação (a precisão possibilita, mas não garante a fluência, e é
grande o risco de mecanizar uma realização onde tudo parece estar no seu devido lugar); e intenção
conhecimento da cultura que originou uma determinada música (uma realização só se completa
quando o realizador sabe de onde vem e para onde vai sua música).
Apesar da subjetividade envolvida, a definição de quem tem ou não suingue parece ser quase
sempre uma unanimidade no grupo que realiza esta definição, e acontece, invariavelmente, tanto
num ensaio de uma escola de samba quanto na mais austera das salas de concerto.
Independente de estar ligado à Academia ou à cultura popular, de ter se formado num
ambiente de leitura e escrita ou num ambiente de oralidade, um músico só pode perceber a diferença
entre um tempo e um contratempo se tem uma imagem clara do que é um ou outro. Todo músico,
sem exceção, que precise iniciar uma frase no contratempo, vai marcar, mesmo que de forma quase
imperceptível, o tempo com o corpo.
A esse respeito, Sodré (1998, p. 11) expõe uma interessante teoria que une Jazz e Samba e nos
remete, mais uma vez, à estreita relação entre o corpo em movimento e os fazeres musicais que esta
relação possibilita:
“Duke Ellington disse certa vez que o blues é sempre cantado por uma terceira pessoa,
‘aquela que não está ali’. A canção, entenda-se, não seria acionada pelos dois amantes
(falante e ouvinte ou falante e referente implícitos no texto), mas por um terceiro que falta
e que os arrasta e fascina.
A frase do famoso band-leader norte-americano é uma metáfora para a causa fascinante
do jazz, a síncope, a batida que falta. Síncope, sabe-se, é a ausência no compasso da
marcação de um tempo (fraco) que, no entanto, repercute noutro mais forte. A missingbeat pode ser o missing-link explicativo do poder mobilizador da música negra nas
Américas. De fato, tanto no jazz quanto no samba, atua de modo especial a síncope,
incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcação corporal palmas, meneios,
balanços, danças. É o corpo que também falta no apelo da síncope. Sua força magnética,
compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se completar a
ausência do tempo com a dinâmica do movimento no espaço.”
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Parece-me difícil definir quem originou quem, se foi a síncope que chamou o corpo a se
movimentar ou se foi o corpo em movimento que permitiu uma execução precisa e um
desenvolvimento da síncope. De qualquer forma, o mais importante, é que Sodré propõe uma
identidade musical baseada na relação entre movimento musical, no caso a síncope, e movimento
corporal. Uma identidade que está inteiramente condicionada à presença do suingue, inteiramente
associada à capacidade de realizar um ritmo de forma suingada, à capacidade de perceber o
movimento musical específico proposto pela a articulação de um determinado ritmo com sua
pulsação.
É fundamental ter em mente que o conceito de posição pressupõe uma tomada de consciência,
pressupõe necessariamente a utilização de uma forma de notação que possibilite dar um nome à
localização de um determinado evento num espaço musical. Neste sentido, ser capaz de realizar um
ritmo e andar simultaneamente é um passo importante, mas dar um nome a este evento, notá-lo
corporal e oralmente, conhecer sua posição, é o passo seguinte e fundamental.
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