DOR E CULTURA

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DOR E CULTURA
PIMENTA, C. A. M. & PORTNOI, A. G. Dor
e Cultura. In: CARVALHO, M. M. Dor: um
Estudo Multidisciplinar. Summus, São
Paulo, 1999, p.159-73
“A quantidade e a qualidade da dor que
sentimos é determinada pelas nossas
experiências prévias e de quanto bem nos
lembramos delas; pela capacidade de
entender suas causas e compreender suas
conseqüências. Ainda, a cultura em que
estamos inseridos tem papel essencial em
como sentimos e respondemos à dor”.
(Melzack & Wall, 1991)
Dor no Processo de Socialização
Dor foi considerada como uma emoção por
Aristóteles e como uma sensação por
Descartes. A dor enquanto experiência
culturalmente aprendida, embora incluída
na definição atualmente aceita sobre dor,
não tem sido enfatizada pelos estudiosos
do tema.
Cultura pode ser definida como “um
complexo de conhecimentos, crenças,
artes, moral, leis, costumes e quaisquer
outras habilidades ou hábitos adquiridos
pelo homem enquanto membro de uma
sociedade”. As culturas são “sistemas de
idéias
compartilhadas,
sistemas
de
conceitos, regras e significados que
subjazem e são expressos nas maneiras
pelas quais os seres humanos vivem”. Este
conjunto de princípios, implícitos e
explícitos, ensina ao indivíduo o modo de
“ver” os fatos, como percebê-los, como
vivenciá-los emocionalmente, como lhes
atribuir significados e como se conduzir
diante deles. A cultura é como uma “lente”
através da qual se vê o mundo. A aquisição
desta “lente” é gradual e deve-se
principalmente à família, ao sistema
educacional, às instituições religiosas, aos
modos de produção e às instituições de
trabalho (Helman, 1994).
Grande parte dos valores, crenças e
atitudes relativos à saúde é adquirida
durante a infância no processo de
socialização, que é quando os padrões de
comportamento característicos de um grupo
são aprendidos.
Valores são objetivos sociais considerados
como desejáveis de obtenção; são também
as normas, princípios ou padrões sociais
aceitos e mantidos pelo indivíduo e pela
sociedade. Valor é algo cuja importância foi
estabelecida ou arbitrada de antemão.
Crenças
são
convicções
íntimas
culturalmente compartilhadas, são noções
pré-existentes sobre a realidade, são
formas de assentimento que, embora
objetivamente insuficientes, subjetivamente
se impõem com grande evidência. Atitudes
são disposições estáveis e duradouras que
implicam na tendência a responder às
pessoas, instituições ou eventos tanto
positiva quanto negativamente, isto é,
envolvem a necessidade de classificar e
categorizar. Comportamento pode ser
definido como respostas observáveis
objetiva e publicamente. Em síntese,
valores são os objetivos e princípios de
uma sociedade, crenças são noções
prévias
e
convicções
íntimas
compartilhadas culturalmente e atitudes são
disposições organizadas para a ação que
se refletem diretamente no comportamento
de indivíduos e grupos. (Chaplin, 1986;
Lazarus & Folkman, 1984; Ferreira, 1986).
O processo de socialização é essencial ao
desenvolvimento de valores, crenças,
atitudes e comportamentos relativos à dor.
A internali-zação destes elementos culturais
inicia-se na infância e é denominada
socialização primária. O processo de
internalização de aspectos do mundo
familiar é realizado como “único mundo
possível” e não como “um dos mundos
possíveis”. Disto resulta que os aspectos
1
culturais internalizados na infância são
muito mais arraigados do que os que se
originam da socialização secundária.
Socialização secundária é a internalização
dos “outros mundos possíveis”, isto é das
diversas subculturas institucionais tais
como escolas, profissões, trabalhos, etc.
Estas subculturas constituem realidades
parciais que contrastam com o “único
mundo possível” da cultura familiar e da
socialização primária, o que implica que
certos conteúdos, para serem devidamente
internalizados, deverão se sobrepuser a
outros já existentes (Berger, Luckman,
1996). É importante ressaltar que fatores
como genéticos, a idade, o sexo, a
aparência, a personalidade, a inteligência,
entre outros, interferem, de modo crucial,
na internalização da realidade objetiva. No
entanto, “a cultura exerce importante
influência em muitos aspectos da vida das
pessoas,
incluindo
suas
crenças,
comportamentos, percepções, emoções,
língua e linguagem, religiões, estrutura
familiar, alimentação, vestuário, imagem
corporal, conceitos de espaço e tempo,
além das atitudes em relação à doença, dor
e outras formas de infortúnio” (Helman,
1994).
Enquanto unidade social básica, a família
possui função mediadora entre as
demandas individuais e as normas sociais.
Para o indivíduo, representa o grupo
primário e a primeira fonte significativa de
comparação e aprendizado, passíveis de
influenciar a atenção dada aos estímulos
dolorosos e às lembranças de experiências
anteriores. Para a sociedade, a família
responde
pela
formação
dos
comportamentos precoces relativos à dor
permitindo que certas respostas sejam
reforçadas e outras ignoradas ou mesmo
punidas.
Os métodos de educação infantil das
diferentes culturas influenciam ativamente a
formação de condutas e expectativas frente
à dor na idade adulta. O estoicismo diante
da dor em meninos e homens é um
componente cultural associado a valores
como coragem e virilidade, enquanto que a
expressão de dor em meninas e mulheres é
mais tolerada por representar fragilidade e
vulnerabilidade (Meinhart; McCaffery, 1983;
Bates, 1987). A dor é parte integrante de
todos os relacionamentos precoces e se
associa a sentimentos de acolhimento e
conforto, punição e culpa. Desde a infância
o choro induzido pela dor provoca
respostas de ajuda na mãe ou em terceiros.
Crianças quando se machucam e
expressam sua dor costumam ser levadas
ao colo, acariciadas e consoladas e,
quando se “comportam mal”, costumam ser
castigadas, taxadas de “más” e induzidas a
sentimentos de culpa e arrependimento.
Cabe ressaltar que a dor infligida pelo
“castigo” corporal representa uma forma de
expiação da culpa (Engel, 1959).
Tolerância à Dor e Cultura
A bagagem cultural tem um poderoso efeito
na tolerância à dor, uma vez que estímulos
que produzem dor insuportável para uma
pessoa podem ser perfeitamente toleráveis
por outra.
O conceito de dor atualmente aceito
compreende três componentes: o sensitivodiscriminativo (sensação física), o afetivomotivacional (emocional) e o cognitivoavaliativo (pensamento). A informação
dolorosa é transmitida da periferia para o
sistema nervoso central e, ao atingir as
estruturas encefálicas, interage com fatores
emocionais e culturais que podem interferir
e modificar a percepção da informação
inicial. A experiência dolorosa resulta da
interpretação do aspecto físico-químico do
estímulo nocivo e da sua interação com
fatores emocionais e culturais individuais
que estejam de alguma forma relacionados
à dor tais como o humor, experiências
anteriores, crenças, atitudes, conhecimento,
significado simbólico atribuído à queixa
dolorosa, entre outros. A apreciação da dor
é uma experiência privada e subjetiva que,
como descrito anteriormente, não resulta
apenas das características da lesão
tecidual (Melzack; Wall, 1991).
2
As variações na experiência dolorosa entre
as pessoas se devem, entre outros fatores,
a diferenças nos limiares de dor. Os
limiares de dor são medidos através da
aplicação de estímulos (choque, calor,
pressão) de intensidade crescente, a uma
pequena área da pele. O limiar de
percepção à dor representa a menor
intensidade em que o estímulo passa a ser
percebido como doloroso. A tolerância à dor
é a menor intensidade em que o estímulo
passa a ser percebido como desconfortável
a ponto do indivíduo se retrair e/ou solicitar
sua interrupção. Embora o limiar de
percepção à dor seja muito semelhante
entre os indivíduos, a tolerância à dor varia
muito e está relacionada a fatores
sensoriais (extensão e localização da lesão
tecidual, fatores genéticos (relativos ao
sistema nociceptivo e de modulação da
dor), emocionais (medo, raiva, ansiedade,
depressão),
culturais
(aprendizagem,
experiências
anteriores,
significado
simbólico da dor) e sociais (possíveis
ganhos secundários de ordem econômica,
social e afetiva). Frente à ampla gama de
fatores envolvidos na apreciação e
expressão da dor, a sensação de
desconforto resultante da estimulação
nociceptiva tende a variar muito entre os
indivíduos. Os profissionais, cientes do
caráter multidimensional, individual e
privado da experiência dolorosa, devem
atentar que os doentes sejam vistos como
autoridades sobre sua dor).
Os fatores culturais parecem interferir de
maneira determinante sobre os limiares de
dor. Existe uma estreita relação entre as
reações fisiológicas dos indivíduos e as
atitudes relacionadas à dor desenvolvidas
durante o processo de socialização. A
comparação de limiares de percepção à
dor, tolerância à dor e resposta galvânica
da pele de donas de casa pertencentes a
diferentes
grupos
étnicos
(pioneiros
americanos, judeus, italianos e irlandeses)
revelou que as diferenças de limiar de
percepção à dor não foram significativas,
mas a tolerância à dor e as respostas
galvânicas da pele apresentaram diferenças
significativas.
Essas
diferenças
se
mostraram compatíveis com a diversidade
atitudinal frente à experiência dolorosa,
previamente conhecida nesses grupos. As
mulheres descendentes de italianos
apresentaram menor tolerância à dor do
que as americanas e as de origem judaica
(Sternbach; Tursky, 1965). Em população
semelhante à descrita anteriormente, a
comparação
de
outros
parâmetros
fisiológicos (batimentos cardíacos, potencial
e resistência galvânica da pele, temperatura
facial e respiração) reforçou o achado de
que as diferenças fisiológicas entre os
grupos étnicos estudados se comportavam
de maneira paralela às suas atitudes com
relação à dor (Tursky; Sternbach, 1967).
Diferentes grupos étnicos podem se
assemelhar na maneira como expressam a
dor, entretanto, os fatores que influenciam a
expressão individual podem ser bastante
distintos. Quando as expressões de dor de
pacientes com dores faciais pertencentes a
diferentes
grupos
culturais
(negros,
irlandeses, italianos, judeus e portoriquenhos) foram comparadas, a análise
dos resultados demonstrou que, para a
maioria dos aspectos da comunicação da
dor, existia uma homogeneidade entre os
grupos. No entanto, os fatores que
influenciam a expressão apresentavam-se
heterogêneos dentro de cada grupo (Lipton;
Marbach, 1984).
O efeito cultural passa a ser mais evidente
no que se refere aos limiares de tolerância
à dor. Os indivíduos tendem a mudar
significativamente
seus
padrões
de
comportamento de acordo com sua
associação a diferentes grupos A tolerância
à dor de mulheres judias e protestantes foi
comparada em dois estudos distintos. No
primeiro estudo as pessoas foram tratadas
como estudantes voluntárias para participar
de uma investigação científica e eram
informadas que seu grupo religioso tolerava
menos a dor que outros grupos religiosos.
No segundo estudo, foram tratadas como
membros de um grupo religioso e, em
subgrupos, foram informadas que seu
grupo tinha como característica tolerar mais
3
ou menos dor do que outros grupos
religiosos,
deixando
claro
que
a
comparação
era
entre
judeus
e
protestantes. No primeiro estudo apenas as
mulheres judias revelaram aumento nas
médias de tolerância à dor, e, no segundo,
tanto as judias como as protestantes
aumentaram sua tolerância à dor (Lambert;
Libman; Poser, 1960).
Comparações entre grupos tendem a
aumentar a tolerância à dor. Os limiares de
tolerância à dor induzida por choque
elétrico foram comparados entre homens
agrupados por diferentes graus de
identificação
de
acordo
com
a
nacionalidade, sexo, religião, vocação,
idade, etc. Os limiares foram avaliados
através de duas séries de choques, sendo
que entre a primeira e a segunda série, os
indivíduos recebiam informações falsas
sobre o nível de tolerância à dor de seu
grupo de referência. Estas informações
aumentaram os limiares de tolerância na
segunda avaliação, sendo que, quanto
maior o grau de identificação maior foi o
aumento na tolerância à dor (Buss; Portnoy,
1967).
A presença de modelos pode influenciar os
limiares de dor. A avaliação de indivíduos
expostos a modelos que simulavam
diferentes níveis de desconforto e
susceptibilidade à dor demonstrou que
sujeitos expostos a modelos tolerantes à
dor aceitavam mais choques do que
aqueles
que
observavam
modelos
intolerantes, não tinham modelo ou
possuíam um modelo controle. Os registros
de medidas autonômicas como resposta
galvânica da pele e batimentos cardíacos,
entretanto, não revelaram diferenças
significativas entre os grupos. Se esses
registros forem considerados índices de
desconforto, esse estudo mostrou que os
indivíduos que aceitaram choques de maior
e menor intensidade experimentaram o
mesmo nível de desconforto (Craig;
Neidermayer, 1974).
Significado Cultural da Dor
O aprendizado social é essencial no
desenvolvimento dos significados atribuídos
à dor dentro do contexto cultural. Este
aprendizado se inicia na unidade familiar e
se modifica, integra e mantém, na
convivência social mais ampla. Em grande
parte das culturas, a dor é considerada
como uma das possíveis fatalidades que
podem ocorrer a seus membros. Diante de
uma experiência dolorosa os indivíduos
costumam se perguntar: “Porque isto
aconteceu comigo?” ou “O que eu fiz para
merecer isto?” Em busca de respostas para
estas questões recorrerem não apenas à
ciência, mas às religiões, às crenças e aos
valores morais de sua cultura.
As religiões desempenham um papel
importante no processo de socialização.
Elas representam um conjunto organizado
de crenças e práticas, cuja finalidade é a de
responder pela orientação ética, filosófica e
ideológica de um determinado grupo. As
religiões moldam a percepção que o
indivíduo tem de si mesmo e também sua
resposta à dor. A fé religiosa pode auxiliar
muito na tolerância à dor, mas pode,
também, levar o indivíduo a interpretar a
dor como punição e procurar, em preces e
rituais, o perdão para possíveis erros (Wolff;
Langley, 1968; Meinhart; McCaffery, 1983).
Essas concepções sobre dor foram
observadas em estudo realizado em nosso
meio, onde cerca de 10% das 800 pessoas
entrevistadas considerou, entre outras
possibilidades, a vivência de dor como um
meio de purificar a alma (Teixeira; Shibata,
Pimenta, Corrêa, 1996).
Se a dor for vista como punição divina, os
indivíduos tentarão experimentá-la sem
queixas para que se transforme numa
forma de expiação para aliviar sentimentos
de culpa. Se for interpretada como
conseqüência de transgressões morais,
procurarão a cura através de penitências,
jejuns ou preces. Se for atribuída à
malevolência de terceiros (através de
feitiçaria ou encantamentos) tentarão alívio
4
de maneira indireta, através de rituais ou
exorcismo (Helman, 1994).
Para determinadas culturas a dor possui um
conteúdo sagrado. Em algumas regiões da
Índia, ainda hoje, existe um ritual onde se
escolhe um indivíduo como representante
do poder dos deuses para abençoar as
crianças e os campos de cultivo. Para a
realização deste ritual, ganchos de aço são
presos por cordas sob a pele e músculos
das costas do escolhido, que é então
alçado ao alto de um veículo especial que o
leva de aldeia em aldeia, balançado-o em
grandes giros, sustentado apenas pelos
ganchos. Durante todo o ritual ele não
demonstra o menor sinal de estar sentindo
dor, ao contrário, parece estar em estado
de exaltação. Ao final do período
cerimonial, os ganchos são retirados e o
indivíduo é tratado com as cinzas que se
encontram nos altares das aldeias
(Kosambi, 1967).
Em outras culturas, a tolerância à dor se
inclui nos valores morais que fundamentam
a identidade de seus membros. Os bariba,
um pequeno grupo étnico na África Oeste,
são conhecidos por não manifestarem
comportamentos de dor, mesmo quando
sujeitos a ferimentos, rituais de iniciação e
trabalhos de parto. A base da identidade
bariba reside na adequação da resposta à
dor, isto é, no estoicismo. Quando
questionados, evitam falar sobre a dor
preferindo discorrer sobre honra e coragem,
valores que são enfatizados ao longo do
processo de socialização, especialmente
durante a circuncisão e a clitoridectomia
(Sargent, 1984).
Existem culturas onde as crenças em
determinadas
práticas
relacionam-se
diretamente com a percepção da dor. Na
África Leste, existem indivíduos que, sem
anestesia ou outras drogas, submetem-se a
uma operação, chamada “trepanação” na
qual o couro cabeludo e músculos
subjacentes são cortados para expor uma
grande área do crânio. Enquanto o crânio é
raspado
o
indivíduo
fica
sentado
calmamente segurando uma vasilha sob o
queixo para aparar as gotas de sangue.
Esta operação é culturalmente aceita como
um procedimento que produz alívio de
dores crônicas (Melzack; Wall, 1991).
Comunicação da Dor e Cultura
A comunicação é parte essencial do
processo de socialização. A dor, embora
experiência
solitária,
só
pode
ser
comunicada e assim compartilhada, através
de comportamentos manifestos (incluindose a ausência de reações). A reação inicial
à dor, em geral, é involuntária e instintiva,
manifestando-se
através
de
um
distanciamento súbito da fonte de dor. As
reações voluntárias envolvem a remoção da
causa da dor, o tratamento dos sintomas e
a intervenção de terceiros, sendo que,
justamente por envolverem outras pessoas,
são estes os comportamentos que têm,
entre outras, a função de comunicação da
experiência dolorosa e são susceptíveis à
influência de fatores sociais e culturais
(Helmann, 1994).
A dor pode ser comunicada1 através
comportamentos motores (retorcer-se, bater
os dentes, etc.); verbais (gritar, gemer,
queixar-se, etc.) sociais (retração do
contato social, alteração no desempenho de
papéis, etc.) e mesmo pela ausência de
comportamento manifesto, ocultando ou
suprimindo sinais de dor
extrema
(Zborowski, 1969).
A comunicação da dor varia de acordo com
a bagagem cultural. A avaliação das
diferenças nas respostas à dor entre
pioneiros americanos, judeus, italianos e
irlandeses revelaram que cada grupo
apresenta sua própria configuração de
atitudes em relação a estímulos dolorosos e
à expressão da dor. Os pioneiros
americanos tendem a apresentar uma
orientação mais fleumática, centrada no
problema e na ajuda do médico; os judeus
1
Manifestações neurovegetativas, tais como
taquicardia, palidez, suor, etc. embora úteis na
comunicação da dor, não são aqui incluídas por
serem involuntárias (nota das autoras).
5
costumam manifestar preocupação com as
implicações da dor e descrédito nas
medidas paliativas; os italianos expressam,
geralmente, desejo de alívio imediato e os
irlandeses tendem a inibir expressões de
sofrimento e de preocupação com as
conseqüências da dor (Zborowski, 1952).
A compreensão da dor comunicada
também sofre a influência dos fatores
culturais. A comparação de descritores
verbais de dor entre orientais (chineses) e
ocidentais (americanos e escandinavos)
revelou que existem dimensões da dor que
são compartilhadas por estas culturas:
tempo, intensidade, localização, qualidade
e potencial de cura. Entretanto, os
conceitos contrastantes de dor “real” e dor
“imaginada”
(enquanto
conflitos
psicológicos que se converteriam em dor
percebida) são específicos das culturas
ocidentais, enquanto que o conceito de
“suantong” que engloba dores ósseas,
musculares, articulares e odontológicas é
tipicamente chinês (Moore; Dworkin, 1988).
As diferenças culturais interferem na
avaliação que a equipe de saúde faz da dor
do paciente. Nos Estados Unidos o modelo
cultural de resposta à dor, isto é, o
comportamento esperado e valorizado
pelos profissionais de saúde, assemelha-se
ao dos americanos de origem européia.
Espera-se que os doentes sejam calmos,
estóicos e que se retraiam quando a dor se
torna intensa. Comparados a estes, os
americanos de origem mexicana são
considerados
como
queixosos,
que
demandam alívio imediato para sua dor. As
diferenças culturais entre os membros da
equipe de saúde e o paciente acabam
induzindo à subestimação da dor do
paciente. (Calvillo; Flaskerud, 1991).
Dor Oncológica e Conceitos Culturais
As crenças, o conhecimento e as atitudes
dos doentes sobre dor e analgesia
influenciam a apreciação, a expressão e
manejo da dor e há, na literatura, diversas
relatos clínicos desse conceito. Informações
errôneas, medos infundados dos doentes
sobre os efeitos colaterais dos analgésicos,
medo do desenvolvimento de tolerância e
de habituação ao fármaco são freqüentes
entre os doentes com dor e câncer e estes
conceitos podem influir desfavoravelmente
na resposta aos regimes terapêuticos,
mesmo que adequadamente propostos.
Estudo sobre o significado atribuído à dor
pelo doente oncológico observou que
doentes que julgavam que a presença de
dor era sinal de avanço da doença
neoplásica, experimentaram dores mais
intensas do que os que não faziam esta
relação (Ahles; Ruckdeschel; Blanchard,
1983).
Em inquérito populacional acerca das
concepções sobre o controle da dor do
câncer, que envolveu 496 indivíduos de
uma cidade da América do Norte, observouse que a dor oncológica foi imaginada como
muito intensa ou extremamente dolorosa
por 48% dos entrevistados. Deles, 72%
concordava com a frase "a dor no câncer
pode se tornar tão forte que a pessoa pode
considerar interromper a vida a prolongar o
tratamento". Mais de 50% da população
demonstrou preocupação com os conceitos
de tolerância, dependência psicológica e
confusão mental oriundas dos opiáceos
(Levin; Cleeland; Dar, 1985). Achados
semelhantes foram descritos por outros
autores. Entre 82 doentes com dor de
origem oncológica 20% tinha preocupação,
de moderada a elevada, com o
desenvolvimento
de
dependência
psicológica
e
23%
apresentava
preocupação
com
a
tolerância
medicamentosa. Encontraram correlação
positiva entre a intensidade da dor e a
preocupação com o desenvolvimento de
tolerância (Jones; Rimer; Levy; Kinman,
1984).
Em estudo com 103 doentes com dor
relacionada ao câncer, em tratamento
domiciliar observou-se que, em 83% dos
doentes, as medicações foram utilizadas
menos
freqüentemente
que
o
recomendado. Em doentes internados em
6
hospitais, isto ocorreu em 60% dos casos.
As razões apontadas para a baixa adesão
ao tratamento foram: sensação de que a
dor não poderia ser tratada, medo de viciar,
ocorrência de tolerância e confusão com as
doses. A família exerceu papel chave no
cuidado ao doente em casa. As atitudes
dos familiares sobre dor e analgesia
influíram no manejo do quadro álgico. É a
família, apoiada nos conhecimentos,
crenças e valores que possui sobre dor e
analgesia, que decide o que dar e quando
medicar. Foi observado que a família tem
dúvidas sobre o conceito de administrar os
remédios antes que a dor apareça, tem
medo de que o doente fique viciado e sente
que é sua obrigação evitar que isto
aconteça.
Suportados
por
essas
concepções os familiares escondem os
remédios e tentam limitar a quantidade da
medicação utilizada (Ferrell; Scheneider,
1988; Ferrell; Ferrell; Rhiner; Grant, 1991;
Ferrell, Cohen, Rhiner, Rozek, 1991;
Ferrell, Ferrell, Ahn, 1994).
Estudo realizado em nosso meio tinha
como hipótese que os doentes possuíam
lacunas de informação e crenças errôneas
sobre dor oncológica e analgesia e que isto
poderia interferir na vivência de dor, o que
de fato pôde ser observado (Pimenta,
1995). Foram avaliados 57 doentes com dor
neoplásica
utilizando-se
inventário
composto por oito assertivas que visou
identificar a opinião dos doentes sobre as
questões: a dor oncológica pode ser
aliviada; os remédios só devem ser
tomados em casos de dores intensas; com
tempo, o vício é inevitável; deve-se tomar a
menor dose possível para deixar altas
doses para o futuro (tolerância); utilizar
analgésicos de rotina é melhor do que só
quando há dor; as intervenções não
farmacológicas são efetivas e analgésicos
são perigosos pelos efeitos colaterais. A 8a
assertiva avaliou a concepção de que os
doentes são medicados em excesso. A nota
máxima para cada assertiva foi 10 e o total
de pontos 80. Encontrou-se que o
conhecimento sobre dor oncológica e
analgesia foi muito baixo. Os doentes
acreditavam que: deve-se tomar a menor
quantidade possível de remédios para
deixar altas doses para o futuro quando a
dor é pior (média=2,5), que analgésicos só
devem ser tomados quando a dor é muito
forte (média = 3,6) e que os remédios para
dor são perigosos (média=3,7). A crença de
que os indivíduos com câncer que tomam
remédios para dor ficam viciados foi
também muito importante (média = 4,8).
Essas médias indicaram que grande parte
dos doentes entendia a dor no câncer como
incontrolável e que esta seria, fatalmente,
muito mais intensa nas fases finais da
evolução da doença oncológica. Os
doentes julgavam que os remédios
utilizados para controlá-la eram muito fortes
e perigosos e que analgésico só se usa
quando há dor intensa. Analisando-se a
existência de relações entre a intensidade
da dor e o conhecimento e a atitude sobre
dor oncológica e analgesia encontrou-se
correlação negativa. Esta correlação
indicou que quanto menor o conhecimento
sobre dor oncológica e analgesia, foi maior
a intensidade da dor. A confirmação da
hipótese de que as opiniões e a percepção
do doente sobre sua doença e tratamento
repercutem na vivência do quadro doloroso
são de extrema importância para subsidiar
a atuação educativa, visando melhor
controle da dor.
A influência de diferenças culturais e de
linguagem na apreciação da intensidade da
dor oncológica e na interferência desta nas
atividades de vida diária, humor e
relacionamento com outras pessoas, não foi
observada em estudo que envolveu 1106
americanos, 324 franceses, 147 chineses e
267 filipinos. A intensidade da dor e os
prejuízos nas atividades de vida diária
(sono,
atividade
física,
trabalho
e
deambulação),
no
humor,
no
relacionamento
interpessoal
e
na
apreciação da vida, foram avaliados por
meio de instrumento de auto-relato. Não se
observaram diferenças significativas entre
os entrevistados. Estes dados são
surpreendentes. Os autores consideram
que há muito a se investigar sobre em que
7
tipos de dor, em quais domínios da vivência
dolorosa e com que magnitude os aspectos
culturais influenciam a queixa álgica
(Cleeland; Serlin; Nakamura; Mendoza,
1997).
Conclusão
A influência dos aspectos culturais na
vivência e expressão da dor é assunto
inquietante. A compreensão da evolução e
das tendências futuras dos conceitos sobre
a gênese e manutenção da dor é
fundamental para o estabelecimento de
estratégias visando ao controle e prevenção
das queixas álgicas. Dor aguda e crônica
são experiências cotidianas no ambiente
das instituições de saúde, de trabalho e
familiares e, de sua vivência, resultam
alterações biológicas, psíquicas, sofrimento,
incapacidade para o trabalho e para outras
atividades sociais. Dor é um fenômeno cuja
etiologia
e
manifestação
são
multidimensionais, com bases teóricas
advindas de varias ciências. Na apreciação
do fenômeno álgico aspectos sensoriais,
afetivos e sócio-culturais estão imbricados
de modo indissociável. Este modelo
multidimensional nos remete a que as
intervenções para o controle da dor devam
englobar esta multidimensionalidade.
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