23. Iasminy de Paula Berquó

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A SABEDORIA COMO FORMA DE DIVINIZAÇÃO NA ÍNDIA ANTIGA
Iasminy de Paula Berquó (Universidade Federal de Goiás)
A sabedoria na filosofia indiana se constitui como um saber especializado, cujo
domínio objetiva atingir o ápice do ser. Desta maneira, o indivíduo que possui a
sabedoria tem em si determinado poder. Poder este que é concedido somente às pessoas
preparadas para receber as responsabilidades do saber e qualificadas para instruir as
jīvas, entidades vivas, que as cercam.
Assim, o sábio genuíno é aquele que através do conhecimento atinge alto grau de
realização em sua vida espiritual, e quanto maior for sua auto-realização, mais o seu
poder aumenta na mesma proporção. O termo sânscrito utilizado para designar as
“grandes almas” desses sábios é mahātma, que significa “aquele que a sabedoria
transformou o íntimo do ser”.
Vyāsadeva é tido como um sábio exemplar, ao qual foi atribuída a autoria original
do épico indiano Mahabharata. Esta obra é considerada o maior poema do mundo, com
cerca de duzentos mil versos em sânscrito, e reverenciada por grande parte dos indianos.
Foi compilada por volta do século IV a.C ao século II d.C, mas de acordo com Krishna
Dharma, autor da versão utilizada para determinada pesquisa, a história que compõe o
Mahabharata existe oralmente, desde o quinto século a.C. A narrativa do épico
centraliza-se no conflito ocorrido entre duas famílias fortes e respeitadas socialmente, os
Pândavas, reencarnações diretas de entidades divinas, e seus primos, os Kauravas.
Desta maneira, o épico indiano apresenta-se envolto em uma atmosfera mitológica, com
a constante e ativa presença de seres divinos na vida cotidiana.
Vyāsadeva viveu por volta do terceiro milênio a.C, e foi um importante instrutor
dos descendentes de Bharata, grande rei mitológico. Através de sua vida ascética,
constituída por práticas físicas e psicológicas de meditação, alcançou a consciência
espiritual plena. Deste modo, o respeito que adquiriu a partir de seu conhecimento, e sua
importância nas histórias que compõe a sabedoria da Índia, o fizeram assumir um
caráter de divindade. Portanto, a sabedoria filosófica se constitui na existência de
Vyāsadeva, e de muitos outros sábios indianos, como um mecanismo que os conduziu a
um estado divino, tanto aqui como também nos planetas celestiais.
A Índia sempre defendeu a idéia de que o poder da sabedoria realmente existe e é
verdadeiro. Se ela for interiorizada, pode transformar o indivíduo, ter controle sobre o
ser e modelar a personalidade. Vyāsadeva foi, de acordo com os livros indianos
sagrados, um indivíduo completo em si e divino, apresentando poderes supra-humanos,
como também detentor de uma alta sabedoria e autoridade.
Assim, o indivíduo reconhecido como um sábio exemplar, é aquele que domina o
conhecimento participante de sua vida diária, permitindo a constante conscientização do
que se define como verdadeiro, autorizando-o perante outros indivíduos, bem como
discípulos. A verdade aqui referida, significa o reconhecimento do caráter insubstâncial
do mundo e a aceitação do eu, ātmā, como a verdadeira identidade, e eternamente a
serviço do Supremo. Sendo assim, estar presente no mundo material compõe uma
maneira de se adquirir a sabedoria necessária para ultrapassar os limites do corpo e seus
apegos pérfidos. O sábio se constitui como um indivíduo potencialmente preparado , a
quem a sabedoria secreta foi revelada.
A aquisição da sabedoria, em tempos antigos na Índia, era considerada uma
herança provinda da família. Desta forma, a sabedoria é um fator estruturante do ser e
inseparável do Eu verdadeiro. Aquele que compreende este potencial e exerce a função
de instrutor das jīvas, que ainda se encontram imersas na escuridão da ignorância, são
denominados rishis.
Os rishis são homens santos considerados mais espíritos que carne, uma vez que
transcenderam os modos da natureza humana material (ignorância, paixão e bondade),
situando-se em um outro plano de existência. Vyāsadeva era aceito, e ainda hoje por
alguns seguimentos na Índia como o vaişnavismo, como um jīvamukta, ou seja, uma
alma vivente liberta. Logo, um sábio que dominava o conhecimento transcendental,
jñāna, e detinha total controle dos sentidos, das pessoas e ambientes que o cercavam.
De acordo com as escrituras sagradas da Índia, e principalmente o épico indiano
Mahabharata, Vyāsadeva por qualquer lugar que passasse era reverenciado por todos.
Sua palavra compunha uma força decisiva para a resolução de dilemas que se
apresentavam na corte e na vida pessoal dos que o procuravam. Até mesmo os seres
celestiais, como os semideuses e gandarvas, músicos celestiais, possuíam grande
respeito pelo rishi que havia alcançado a essência da compreensão espiritual, e
conseqüentemente do sentido da vida.
Portanto, a sabedoria de Vyāsadeva fazia de suas ações e conselhos, fatos
inquestionáveis. A confiança estabelecida pelos indivíduos, e a fé cega e absoluta,
śraddhã, desempenhada pelos discípulos, conferia à Vyāsadeva uma posição de
superioridade aos seres humanos e uma respeitabilidade análoga a dos seres divinos.
A filosofia indiana conduz à obtenção de poder, a partir do domínio dos materiais
respectivos ao saber específico. Assim, como os kşatriyas, guerreiros, detêm a sabedoria
da guerra, os brāmanes o saber do sacerdócio, dentre outros, todos eles devem possuir
total controle de suas armas e materiais próprios. Desta forma, a sabedoria no Oriente,
devia ser guardada com muito cuidado e transmitida com muita cautela, somente para
indivíduos capazes de absorverem com perfeição o seu conteúdo. Devido ao fato, de a
sabedoria trazer consigo um poder quase mágico, e ser transformadora da natureza do
indivíduo que a encerra.
O sábio na Índia, não é aquele que memoriza todos os ensinamentos, rituais e
hinos, mas sim um indivíduo que absorveu a sabedoria filosófica e a converteu em sua
própria vida, e mais do que isso em sua alma. Este ser espiritual ultrapassou todas as
limitações que obstruem o estado humano vulgar, e os obstáculos que acabam por
deformar a visão do homem e sua aproximação à verdade divina. Penetrando então, em
um estado de consciência pura, ou seja, distante das ilusórias necessidades do mundo
material, mas consciente de sua real identidade como alma espiritual em constante
sintonia com o Ser Supremo, objetivo último e verdade absoluta.
O conhecimento de Vyāsadeva ultrapassa, de acordo com as escrituras sagradas, o
mundo objetivo e subjetivo que se encontra limitado pelo que somente é observado e
conhecido. Esta totalidade limitada do que se apreende do mundo é denominada
nāmarūpa. Logo, o conhecimento do sábio se situa além de nāmarūpa, e por isso uma
sabedoria transcendente do mundo em si, um saber divino que atinge o objetivo final da
existência. Deste modo, Vyāsadeva é um ser respeitado e adorado por sua vida
exemplar. Aquele que compreendeu a realidade fundamental, na qual os sentidos e
acontecimentos diários já não entorpecem sua mente, atingindo assim a mokşa, a
redenção ou liberação espiritual, permanecendo em constante identificação com a
realidade atemporal.
A psicologia clássica hindu explicita as cinco faculdades de percepção do homem
(audição, tato, visão, paladar, e olfato), e as faculdades de ação (fala, apreensão,
locomoção, evacuação e procriação), além de um “órgão interno” denominado
antahkarana, e que se divide em: ego (ahaṁkāra), memória (cittam), compreesão
(buddhi) e o pensamento (manas). O autodomínio de todas essas faculdades, possibilita
a formação de uma conduta impecável, e conseqüente ascensão na vida espiritual. Desta
maneira, o discípulo qualificado busca afastar constantemente essas estruturas
determinadas do mundo exterior. Para que a mente alcance um estado de concentração
grandiosa, a ponto de o indivíduo ser indiferente ao que se apresenta como desfrute, e
consciente da distinção entre as coisas permanentes e as transitórias.
A formação psicológica do sábio no terceiro milênio a.C, previa todas essas
condutas, que na Índia após o aparecimento de Cristo, ainda permaneceu a grande
maioria dos valores pregados anteriormente. Isto ocorre, devido ao fato de existir o
parampara, sucessão discipular que almeja preservar os valores e princípios de cada
seguimento religioso indiano, visando perpetuar a sabedoria ditada a milênios. Assim, a
filosofia indiana permaneceu tradicional.
Desta forma, Vyāsadeva continuou o processo da sucessão discipular,
transmitindo o conhecimento atemporal da espiritualidade. Assumindo então,
importante posição entre os indivíduos participantes do período, como também por
todos aqueles que acreditam e seguem os ensinamentos védicos.
Mircea Eliade em seu livro Imagens e Símbolos, inicia uma discussão sobre a
transcendência na concepção indiana. De acordo com o autor, transcender significa
chegar a um estado, em que a noção de dualidade da vida (bem e mau, doce e amargo,
noite e dia, dentre outros) é eliminada, deixando de existir na mente, a idéia de opostos.
Assim, o iogue atinge o equilíbrio, não se deixando contaminar pelas vicissitudes
do cotidiano, reconhecendo a existência da eternidade e a irrealidade limitante do tempo
histórico.
A sabedoria de Vyāsadeva, o fez transcender tanto o espaço cósmico, como o
tempo cíclico. Deixando de ser um indivíduo participante da roda de nascimentos e
mortes (samsara), mas sim uma alma que se caracterizou como asceta na Índia,
temporariamente, para auxiliar as jīvas no caminho da bem aventurança espiritual,
ānanda.
Desta maneira, Vyāsadeva carregava consigo o sentido da vida, fato almejado por
muitas almas que se situavam no “oceano de misérias” do mundo material. O alcance de
um objetivo espiritual verdadeiro, na concepção indiana, traz ao sábio realizado, a
dignidade de reverências e adorações ilimitadas. Assim, a essência divina da alma,
compunha todo o ser de Vyāsadeva, o constituindo como um indivíduo de existência
pura e completa. Obtendo então, a superioridade de uma entidade divina, como também
a veneração dos seres celestiais, fazendo de sua figura pessoal um objeto de adoração
tanto no terceiro milênio a.C, quanto nos períodos posteriores.
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