A SABEDORIA COMO FORMA DE DIVINIZAÇÃO NA ÍNDIA ANTIGA Iasminy de Paula Berquó (Universidade Federal de Goiás) A sabedoria na filosofia indiana se constitui como um saber especializado, cujo domínio objetiva atingir o ápice do ser. Desta maneira, o indivíduo que possui a sabedoria tem em si determinado poder. Poder este que é concedido somente às pessoas preparadas para receber as responsabilidades do saber e qualificadas para instruir as jīvas, entidades vivas, que as cercam. Assim, o sábio genuíno é aquele que através do conhecimento atinge alto grau de realização em sua vida espiritual, e quanto maior for sua auto-realização, mais o seu poder aumenta na mesma proporção. O termo sânscrito utilizado para designar as “grandes almas” desses sábios é mahātma, que significa “aquele que a sabedoria transformou o íntimo do ser”. Vyāsadeva é tido como um sábio exemplar, ao qual foi atribuída a autoria original do épico indiano Mahabharata. Esta obra é considerada o maior poema do mundo, com cerca de duzentos mil versos em sânscrito, e reverenciada por grande parte dos indianos. Foi compilada por volta do século IV a.C ao século II d.C, mas de acordo com Krishna Dharma, autor da versão utilizada para determinada pesquisa, a história que compõe o Mahabharata existe oralmente, desde o quinto século a.C. A narrativa do épico centraliza-se no conflito ocorrido entre duas famílias fortes e respeitadas socialmente, os Pândavas, reencarnações diretas de entidades divinas, e seus primos, os Kauravas. Desta maneira, o épico indiano apresenta-se envolto em uma atmosfera mitológica, com a constante e ativa presença de seres divinos na vida cotidiana. Vyāsadeva viveu por volta do terceiro milênio a.C, e foi um importante instrutor dos descendentes de Bharata, grande rei mitológico. Através de sua vida ascética, constituída por práticas físicas e psicológicas de meditação, alcançou a consciência espiritual plena. Deste modo, o respeito que adquiriu a partir de seu conhecimento, e sua importância nas histórias que compõe a sabedoria da Índia, o fizeram assumir um caráter de divindade. Portanto, a sabedoria filosófica se constitui na existência de Vyāsadeva, e de muitos outros sábios indianos, como um mecanismo que os conduziu a um estado divino, tanto aqui como também nos planetas celestiais. A Índia sempre defendeu a idéia de que o poder da sabedoria realmente existe e é verdadeiro. Se ela for interiorizada, pode transformar o indivíduo, ter controle sobre o ser e modelar a personalidade. Vyāsadeva foi, de acordo com os livros indianos sagrados, um indivíduo completo em si e divino, apresentando poderes supra-humanos, como também detentor de uma alta sabedoria e autoridade. Assim, o indivíduo reconhecido como um sábio exemplar, é aquele que domina o conhecimento participante de sua vida diária, permitindo a constante conscientização do que se define como verdadeiro, autorizando-o perante outros indivíduos, bem como discípulos. A verdade aqui referida, significa o reconhecimento do caráter insubstâncial do mundo e a aceitação do eu, ātmā, como a verdadeira identidade, e eternamente a serviço do Supremo. Sendo assim, estar presente no mundo material compõe uma maneira de se adquirir a sabedoria necessária para ultrapassar os limites do corpo e seus apegos pérfidos. O sábio se constitui como um indivíduo potencialmente preparado , a quem a sabedoria secreta foi revelada. A aquisição da sabedoria, em tempos antigos na Índia, era considerada uma herança provinda da família. Desta forma, a sabedoria é um fator estruturante do ser e inseparável do Eu verdadeiro. Aquele que compreende este potencial e exerce a função de instrutor das jīvas, que ainda se encontram imersas na escuridão da ignorância, são denominados rishis. Os rishis são homens santos considerados mais espíritos que carne, uma vez que transcenderam os modos da natureza humana material (ignorância, paixão e bondade), situando-se em um outro plano de existência. Vyāsadeva era aceito, e ainda hoje por alguns seguimentos na Índia como o vaişnavismo, como um jīvamukta, ou seja, uma alma vivente liberta. Logo, um sábio que dominava o conhecimento transcendental, jñāna, e detinha total controle dos sentidos, das pessoas e ambientes que o cercavam. De acordo com as escrituras sagradas da Índia, e principalmente o épico indiano Mahabharata, Vyāsadeva por qualquer lugar que passasse era reverenciado por todos. Sua palavra compunha uma força decisiva para a resolução de dilemas que se apresentavam na corte e na vida pessoal dos que o procuravam. Até mesmo os seres celestiais, como os semideuses e gandarvas, músicos celestiais, possuíam grande respeito pelo rishi que havia alcançado a essência da compreensão espiritual, e conseqüentemente do sentido da vida. Portanto, a sabedoria de Vyāsadeva fazia de suas ações e conselhos, fatos inquestionáveis. A confiança estabelecida pelos indivíduos, e a fé cega e absoluta, śraddhã, desempenhada pelos discípulos, conferia à Vyāsadeva uma posição de superioridade aos seres humanos e uma respeitabilidade análoga a dos seres divinos. A filosofia indiana conduz à obtenção de poder, a partir do domínio dos materiais respectivos ao saber específico. Assim, como os kşatriyas, guerreiros, detêm a sabedoria da guerra, os brāmanes o saber do sacerdócio, dentre outros, todos eles devem possuir total controle de suas armas e materiais próprios. Desta forma, a sabedoria no Oriente, devia ser guardada com muito cuidado e transmitida com muita cautela, somente para indivíduos capazes de absorverem com perfeição o seu conteúdo. Devido ao fato, de a sabedoria trazer consigo um poder quase mágico, e ser transformadora da natureza do indivíduo que a encerra. O sábio na Índia, não é aquele que memoriza todos os ensinamentos, rituais e hinos, mas sim um indivíduo que absorveu a sabedoria filosófica e a converteu em sua própria vida, e mais do que isso em sua alma. Este ser espiritual ultrapassou todas as limitações que obstruem o estado humano vulgar, e os obstáculos que acabam por deformar a visão do homem e sua aproximação à verdade divina. Penetrando então, em um estado de consciência pura, ou seja, distante das ilusórias necessidades do mundo material, mas consciente de sua real identidade como alma espiritual em constante sintonia com o Ser Supremo, objetivo último e verdade absoluta. O conhecimento de Vyāsadeva ultrapassa, de acordo com as escrituras sagradas, o mundo objetivo e subjetivo que se encontra limitado pelo que somente é observado e conhecido. Esta totalidade limitada do que se apreende do mundo é denominada nāmarūpa. Logo, o conhecimento do sábio se situa além de nāmarūpa, e por isso uma sabedoria transcendente do mundo em si, um saber divino que atinge o objetivo final da existência. Deste modo, Vyāsadeva é um ser respeitado e adorado por sua vida exemplar. Aquele que compreendeu a realidade fundamental, na qual os sentidos e acontecimentos diários já não entorpecem sua mente, atingindo assim a mokşa, a redenção ou liberação espiritual, permanecendo em constante identificação com a realidade atemporal. A psicologia clássica hindu explicita as cinco faculdades de percepção do homem (audição, tato, visão, paladar, e olfato), e as faculdades de ação (fala, apreensão, locomoção, evacuação e procriação), além de um “órgão interno” denominado antahkarana, e que se divide em: ego (ahaṁkāra), memória (cittam), compreesão (buddhi) e o pensamento (manas). O autodomínio de todas essas faculdades, possibilita a formação de uma conduta impecável, e conseqüente ascensão na vida espiritual. Desta maneira, o discípulo qualificado busca afastar constantemente essas estruturas determinadas do mundo exterior. Para que a mente alcance um estado de concentração grandiosa, a ponto de o indivíduo ser indiferente ao que se apresenta como desfrute, e consciente da distinção entre as coisas permanentes e as transitórias. A formação psicológica do sábio no terceiro milênio a.C, previa todas essas condutas, que na Índia após o aparecimento de Cristo, ainda permaneceu a grande maioria dos valores pregados anteriormente. Isto ocorre, devido ao fato de existir o parampara, sucessão discipular que almeja preservar os valores e princípios de cada seguimento religioso indiano, visando perpetuar a sabedoria ditada a milênios. Assim, a filosofia indiana permaneceu tradicional. Desta forma, Vyāsadeva continuou o processo da sucessão discipular, transmitindo o conhecimento atemporal da espiritualidade. Assumindo então, importante posição entre os indivíduos participantes do período, como também por todos aqueles que acreditam e seguem os ensinamentos védicos. Mircea Eliade em seu livro Imagens e Símbolos, inicia uma discussão sobre a transcendência na concepção indiana. De acordo com o autor, transcender significa chegar a um estado, em que a noção de dualidade da vida (bem e mau, doce e amargo, noite e dia, dentre outros) é eliminada, deixando de existir na mente, a idéia de opostos. Assim, o iogue atinge o equilíbrio, não se deixando contaminar pelas vicissitudes do cotidiano, reconhecendo a existência da eternidade e a irrealidade limitante do tempo histórico. A sabedoria de Vyāsadeva, o fez transcender tanto o espaço cósmico, como o tempo cíclico. Deixando de ser um indivíduo participante da roda de nascimentos e mortes (samsara), mas sim uma alma que se caracterizou como asceta na Índia, temporariamente, para auxiliar as jīvas no caminho da bem aventurança espiritual, ānanda. Desta maneira, Vyāsadeva carregava consigo o sentido da vida, fato almejado por muitas almas que se situavam no “oceano de misérias” do mundo material. O alcance de um objetivo espiritual verdadeiro, na concepção indiana, traz ao sábio realizado, a dignidade de reverências e adorações ilimitadas. Assim, a essência divina da alma, compunha todo o ser de Vyāsadeva, o constituindo como um indivíduo de existência pura e completa. Obtendo então, a superioridade de uma entidade divina, como também a veneração dos seres celestiais, fazendo de sua figura pessoal um objeto de adoração tanto no terceiro milênio a.C, quanto nos períodos posteriores.