A PROFESSORA MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA E O ESTUDO DOS VASOS GREGOS EM PORTUGAL A Professora Maria Helena da Rocha Pereira tem consagrado a sua investigação sobretudo à cultura helénica. Mas se, na maior parte dos seus mais de seiscentos trabalhos publicados, se tem dedicado a temas de literatura da antiga Grécia ou aos seus ecos (mais discretos nuns casos, mais explícitos em outros) da cultura helénica na literatura portuguesa, tem escrito sobre muitos outros diferentes assuntos. A especialista de vasos gregos, a autora a quem a Bibliotheca Teubneriana confiou a edição crítica da Descrição da Grécia de Pausânias, também traduziu textos latinos medievais como a Vida e Milagres de S. Rosendo ou a Vida de S. Teotónio e editou as Obras Médicas de Pedro Hispano (neste caso, com tanta ciência do latim medieval como da Medicina na Idade Média). E em muitas ocasiões a ouvimos falar, no seu modo discreto de quem não ostenta o saber que tem, de literatura inglesa ou alemã. A autora que escreveu Sobre a Autenticidade do Frg. 44 Diehl de Anacreonte (miúdo problema que só competentes filólogos entendem), publicou os dois volumes de Estudos de História da Cultura Clássica, manuais que, no mais acessível discurso, formaram milhares de estudantes universitários dos mais diversos cursos que se lhe sentaram diante sem nada saberem de Ésquilo ou Ovídio. Ao estudo dos vasos gregos tem a Professora Maria Helena da Rocha Pereira consagrado muito do seu tempo e vários dos seus escritos. Pecou Apeles por ter pintado uma sandália sem saber nada do ofício de sapateiro. Nunca pecou a Professora Maria Helena da Rocha Pereira por ter falado dos pintores de vasos sem saber como, tecnicamente, trabalhavam. Os seus estudos não são os de uma historiadora da literatura ou da cultura grega que, por desfastio ou diversão, escreve à margem da sua principal actividade, mas emparceiram com os dos mais reconhecidos especialistas. Teve, nesta área, um excelente mestre: o Professor John Beazley, cujos cursos frequentou em Oxford na década de 1950. Dois artistas não desenham da mesma forma uma similar figura; e quando compõem um grupo, não articulam as personagens da mesma maneira. Cada 1 artista tem a sua mão – isto é, a sua maneira de desenhar. O mérito de Beazley foi o de, pela arguta observação do desenho, ter distinguido centenas de vasos gregos; e tendo caracterizado cada mão, pôde começar a atribuir a este ou àquele pintor mesmo pequenos fragmentos. O jovem universitário que, no dizer de T. E. Lawrence, parecia mais inclinado à poesia que à investigação tornou-se (depois de ter lido os trabalhos de Adolf Furtwängler, Wilhelm Klein ou Giovanni Morelli), o mais notável connoisseur dos vasos áticos. Maria Helena da Rocha Pereira aprendeu com John Beazley essa connoisseurship que a tornou especialista de vasos gregos. Mas, conhecedora, como ninguém em Portugal, da literatura e da mitologia helénicas, bem como da história da antiga Grécia, tem olhado para os vasos gregos também como ilustrações da cultura literária, da religião, das mentalidades e dos costumes. Lástima é que sejam tão raros os vasos gregos em museus ou colecções particulares em Portugal. Muitas vezes nos temos perguntado que pena sentirá uma investigadora tão competente por não encontrar muitas mais ocasiões de aplicar seu saber, visto lhe faltarem os objectos de estudo. Todos os investigadores se inserem numa geração, com preocupações ou propósitos próprios que caracterizam uma época; outros vêm depois, com outros interesses. Sem minimizarem o contributo da geração anterior, mas por poderem dispor do grande cabedal de conhecimentos adquiridos, os novos investigadores exploram novos caminhos. Muitos dos que hoje investigam vasos gregos fazem-no na perspectiva da história económica ou das relações comerciais, ou servem-se dos fragmentos que encontram nas suas escavações para datarem os sítios e os contextos. Aliás, desde os fins do século XIX que a cerâmica grega encontrada na Europa central ou ocidental serviu para datar os contextos indígenas cuja cronologia não podia estabelecer-se senão por meio de sincronismos. Mas os investigadores que agora se ocupam de relações comerciais não poderiam fazê-lo se a geração anterior não tivesse identificado os pintores e os locais onde trabalharam. Não devem esses investigadores esquecer uma outra lição dos mestres: a de que os vasos gregos são expressão de uma cultura e veículo da sua transmissão. Podemos imaginar uma criança olhando um vaso grego e, 2 apontando uma figura, perguntando: - “Quem é este?” E o pai, identificando Aquiles, contar-lhe-ia uma história que só mais tarde a criança iria ler na Ilíada. Um problema que aos nossos investigadores se põe (e falamos dos arqueólogos portugueses) é o de saber como eram entendidos os vasos gregos que os comerciantes traziam e vendiam a uma população de tão diferentes hábitos e mentalidades como era a da Idade do Ferro em Portugal. Como eram entendidas, por quem não ouvira contar os feitos de Heitor ou Ulisses, as cenas dos poemas homéricos que nos vasos gregos vinham pintadas? E quem, em Olisipo ou Baesuri, comprava um kratêr ou uma hýdria, faria deles o mesmo uso que um cidadão de Atenas ou Corinto? Será que os comerciantes explicavam a quem comprava o sentido do que estava pintado nos vasos que vendiam ou o uso que era próprio se lhes desse? Temos aqui uma versão arqueológica do que, no campo dos estudos literários, se chama “recepção”. Se é interessante estudar como Fernando Pessoa ou Sofia de Mello Breyner “assimilaram” ideias de escritores gregos – e neste campo tem a Professora Maria Helena da Rocha Pereira notáveis ensaios -, não é menos interessante pensar como é que os vasos podem ter influenciado as mentalidades e os hábitos de populações tão distantes (geográfica e culturalmente) da Grécia de onde vinha a cerâmica. Talvez a questão seja tão irrespondível como a pergunta da Esfinge. Ou talvez venha alguém que, tal como Édipo, um dia ache a resposta. Quem, no século XIX, julgaria possível o trabalho de identificação das mãos a que John Beazley procedeu e a Doutora Maria Helena da Rocha Pereira tão exemplarmente tem realizado nos vasos gregos de colecções portuguesas? Só os pretensiosos dispensam os mestres ou os não reconhecem como tais. Os que, sem mestres, se sentem sós ou desamparados, vivem alegrias se praticam (no sentido antigo do termo) com a insigne mestra que é a Professora Maria Helena da Rocha Pereira. Jorge de Alarcão 3