34 Ética 9. Qual o outro problema da Filosofia que a ciência positiva

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MIGUEL
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Ética
Kant já havia formulado as perguntas acima, de maneira bem clara, destinando a cada série delas uma de suas obras clássicas.
9. Qual o outro problema da Filosofia que a ciência positiva não
resolve, nem está em condições de resolver? É o problema da conduta
ou do valor da ação humana.
A primeira indagação que o grande filósofo fez foi esta: - Que é
que posso conhecer? Como é dado ao homem certificar-se da verdade
das ciências e dos poderes e limites do entendimento e da razão? Para
responder a tais perguntas Immanuel Kant escreveu uma obra fundamental no pensamento moderno, a Crítica da Razão Pura (1781, 2a ed. com
modificações em 1787).
Por mais que o homem descubra e certifique verdades e seja capaz
de atingir leis ou princípios, seus conhecimentos da realidade, sic et
simpliciter, não envolvem a obrigatoriedade da ação. Que devemos fazer?
Como devemos nos conduzir? Que vale o homem no plano da conduta ?
O fato de sermos hoje mais ricos de conhecimentos do que o homem
selvagem terá, porventura, influído na bondade do próprio homem? O
fato de ser portador de maior soma de conhecimentos leva o homem a
reconhecer o caminho de seu dever?
Parece-nos que destas perguntas surgem logo outras; Qual a obrigação do homem diante daquilo que representam as conquistas da ciência? Que dever se põe para o homem em razão do patrimônio da técnica
e da cultura que a humanidade conseguiu acumular através dos tempos?
A ciência pode tomar mais gritante o problema do dever, mas não o
resolve. Os conhecimentos científicos tomam, às vezes, mais urgentes
a necessidade de uma solução sobre o problema da obrigação moral, mas
não implicam qualquer solução, positiva ou negativa. O problema do
valor do homem como ser que age, ou melhor, como o único ser que se
conduz, põe-se de maneira tal que a ciência se mostra incapaz de resolvê-lo. Este problema que a ciência exige, mas não resolve, chama-se
problema ético, e marca momento culminante em toda verdadeira Filosofia, que não pode deixar de exercer uma função teleológica, no sentido do aperfeiçoamento moral da humanidade e na determinação essencial do valor do bem, quer para o indivíduo, quer para a sociedade.
As ciências positivas, com suas leis e teorias, não deixam, é claro,
de exercer influência sobre nosso comportamento, assim como sugerem
caminhos a serem seguidos ou evitados, tanto como fornecem meios
adequados à consecução de fins. Estes resultam, porém, do reconhecimento de valores objetivos que são a razão de ser da conduta. A atitude
do homem perante o homem e o mundo, e a projeção dessa atitude como
atividade social e histórica, eis o tema nuclear e até mesmo dominante
da Filosofia.
Depois de ter escrito esse livro, que revolucionou o pensamento
filosófico e ainda atua poderosamente no bojo da Filosofia de nossos
dias, Kant redigiu um segundo livro, a que chamou Crítica da Razão
Prática (1788), destinado a responder a esta outra perquirição: - Que
devo eu fazer? Como devo comportar-me como homem?
Uma terceira obra fundamental foi escrita por Kant, formando uma
trilogia, a Crítica do Juízo (1791), a qual corresponde às perguntas:Qual a finalidade da natureza? Qual o destino das coisas e qual o destino do homem? Ou, em outras palavras: - Qual o sentido último do
universo e da existência humana??
É por ter escrito essas três obras, buscando os pressupostos da
"razão", da "vontade" e do "sentimento", que a Filosofia de Kant se
chama criticismo transcendental, e o filósofo é geralmente apontado
como sendo o "filósofo das três críticas".
Veremos, no § 20, o significado da palavra transcendental. Por ora,
desejamos que se atente ao especial significado da palavra criticismo, que
será depois sujeita a desenvolvimentos. Aplica-se a todo e qualquer sistema que busque preliminarmente discriminar, com todo rigor, os pressupostos ou condições em geral do conhecer e do agir. Criticar significa
indagar das raízes de um problema, daquilo que condiciona, lógica, axiológica ou historicamente, esse mesmo problema. Toda vez que indagamos
dos pressupostos ou das razões de legitimidade ou da validez de algo,
estamos fazendo sua "crítica". Isto no sentido bastante largo, que será,
aos poucos, esclarecido, e não no sentido estrito e próprio do "criticismo"
de Kant, que é de natureza puramente lógico-transcendental.
7. Nilo é dema is lembrar que K ANT, lançando as bases da moderna Antropologia filo-
\o ll t'a. rcs ulIli a aqu clas três perguntas num a só: "Que é o homem ?"
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Daí dizermos que a Filosofia não se reduz à teoria dos valores,
embora o problema do valor esteja no centro da Filosofia.
Como estávamos dizendo, há o problema do valor da conduta ou
do valor da ação, do bem a ser realizado, que constitui capítulo do estudo denominado Ética. Põe-se aqui, de maneira principal, o problema da
experiência jurídica. Não concordamos com aqueles autores que, como
Del Vecchio, bifurcam a Ética em dois ramos - a Moral e o Direito - ,
mas não discordamos deles quanto à visão da experiência jurídica como
um momento da vida ética. O Direito, como experiência humana, situase no plano da Ética, referindo-se a toda a problemática da conduta
humana subordinada a normas de caráter obrigatório.
No que se refere, por exemplo, à Filosofia do Direito, veremos que
o seu problema nuclear é o do valor do justo, de que cuida a Deontologia jurídica; mas o estudo desta matéria envolve também a prévia determinação da consistência da realidade jurídica, suscitando questões relativas às estruturas dos juízos jurídico-normativos, assim como ao
processo histórico de objetivação das exigências axiológicas no plano
da experiência humana.
Axiologia
Metafísica e Concepção do Mundo
10. Analisando o problema da Ética, entendida como doutrina do
valor do bem e da conduta humana que o visa realizar, é preciso saber
que ela não é senão uma das formas de "atualização ou de experiência
de valores", ou, por outras palavras, um dos aspectos da Axiologia ou
Teoria dos Valores, que constitui uma das esferas autônomas de problemas postos pela pesquisa ontognoseológica, pois o ato de conhecer já
implica o problema do valor daquilo que se conhece.
Cada homem é guiado em sua existência pelo primado de determinado valor, pela supremacia de um foco de estimativa que dá sentido à
sua concepção da vida. Para uns, o belo confere significado a tudo quanto existe, de maneira que um poeta ou um escultor, por exemplo, possui
uma concepção estética da existência, enquanto que um outro se subordina a uma concepção ética, e outros ainda são levados a viver segundo
uma concepção utilitária e econômica à qual rigidamente se subordinam.
Segundo o prisma dos valores dominantes, a Axiologia se manifesta,
pois, como Ética, Estética, Filosofia da Religião etc.
Se lembrarmos que toda especulação filosófica é necessariamente
crítica, e que criticar implica valorar, apreciar algo sob prisma de valor,
chegaremos à conclusão de que, nesse sentido especial ou a essa luz, a
Filosofia é Axiologia.
A Axiologia pressupõe, porém, problemas concernentes à essência
de "algo" que se valora e às condiçoes do conhecimento válido, assim
como põe problemas relativos à projeção histórica do que é valorado.
11. Alguns autores pensam que a Filosofia se esgota nas duas
questões fundamentais de ordem lógica e axiológica acima examinadas,
sendo apenas uma teoria do conhecer e uma teoria do agir; porém, o
homem não é um ser que tão-somente conhece e age, mas é também, e
antes de mais nada, um ser, uma "existência", um ente que sabe que
existe entre outros entes, de igualou de diversa categoria: - donde os
problemas radicais do ser e da existência, em uma palavra, da Metafísica,
postos também, de forma autônoma, pela pesquisa ontognoseológica.
Como logo mais se demonstrará, conhecer é conhecer algo donde
a necessidade de determinar-se a natureza daquilo que é conhecido, o
que nos leva a formular perguntas sobre a "coisa em si" ou o absoluto,
mesmo que depois se chegue à conclusão de ser impossível alcançar
respostas dotadas de certeza.
Depois de estabelecermos as condições do conhecimento, assim
como as da vida prática, surge em nosso espírito o desejo ou a tendência
irretorquível de atingir uma compreensão universal da realidade. Não se
trata de perguntar apenas sobre o que vale o pensamento ou o que vale
a conduta, mas sim de considerar o valor de nós mesmos e de tudo aquilo que nos cerca. Que vale a existência? Que vale ou representa o universo? Que vale o homem inserido no universo? Que ser é o homem?
Que é ser Existe algo como suporte do "objeto" do conhecimento?
A tais indagações sobre a estrutura e o significado do ser em si e
da vida, ou sobre o valor essencial do homem e do cosmos, têm sido
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dadas várias denominações. Muitos conservam a denominação tradicional, a nosso ver insubstituível, de Metafísica, para indicar o perene esforço do homem no sentido de atingir umafundação racional válida para
a totalidade de seu existir histórico. Consoante expomos em Verdade e
Conjetura, a fundação metafísica transcende o âmbito ontognoseológico,
não podendo deixar de valer-se de todos os elementos que compõem o
que denominamos "razão conjetural".
Outros autores limitam, porém, a tarefa ou a missão final da Filosofia a apresentar as bases de uma "concepção do universo e da vida",
sem cuidar dos problemas do ser, que seriam incognoscíveis ou inverificáveis. Sustentam que o homem não pode resolver os problemas do ser
em si ou do absoluto, por ser este insuscetível de compreensão racional,
mas que podemos alcançar uma concepção total dos problemas, passando, assim, a Metafísica a ser vista apenas como "fato histórico" inevitável, como uma das "experiências" indeclináveis do homem, não obstante o seu repetido insucesso. Apresentam, pois, o terceiro problema
fundamental da Filosofia como uma cosmovisão ou Weltanschauung,
palavra que se emprega usualmente em Filosofia, para definir exatamente a tendência ou inclinação no sentido de uma concepção geral do
universo e da vida, que situa o homem perante si mesmo, os demais
homens e o cosmos, segundo diversos tipos, historicamente identificáveis.
A Filosofia, que culmina em uma concepção do universo e da vida,
é contestada por aqueles que dizem que toda cosmovisão pressupõe
sempre a pesquisa sobre a realidade em si mesma, constituindo o estudo
específico da Metafísica. Se logramos formar uma teoria geral do cosmos
e da existência, é porque temos, efetivamente, a respeito dos problemas
últimos do ser determinada compreensão que a condiciona. Não raro os
que mais deblateram contra a Metafísica são metafísicos que se ignoram ...
12. AMPLITUDE DA EsPECULAÇÃO FILOSÓFICA - As considerações
ora desenvolvidas estão a demonstrar quão variadas são as questões de
que cuida a Filosofia.
Reconhecida a impossibilidade de discriminações rígidas, que o
trato da matéria revelaria artificiais, poderíamos concluir resumindo as
tarefas da Filosofia nestas três ordens de pesquisas, desdobradas em
campos especiais de indagação:
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a) Teoria do Conhecimento, ou da validade do pensamento em
sua es~utura e com relação aos objetos (Lógica e OntognoseologIa);
b) Teo:i~_ dos .Valores ou Axiologia (Ética, Estética, Filosofia da
RelIgiao, Filosofia Política, Filosofia Econômica etc.);
c) Me~afísic~, como teoria primordial do ser ou, numa com pree~sao maIS atual, como fundação originária do universo e da
vida.
~ara os objetivos de nosso Curso, dada a exigüidade de tempo e
atendidas as perspectivas dominantes da realidade jurídica, destacaremos
do grande todo apen~s alguns problemas de Ontognoseologia e de Ética,
p:e~supondo conheCidas as noções fundamentais de Lógica, pedindo
v.ema par~ r~meter ~ leitor, interessado no estudo de problemas metafíSICOS, ao, ~l:imo capitulo de nossa obra Introdução à Filosofia (Saraiva,
1988) e aja lembrada Verdade e Conjetura.
~omeçaremos o estudo pela Gnoseologia, ou seja, pela Ontognoseologia <ta parte, s~bjecti", não deixando de esclarecer este ou aquele
oU,t~o pont?, de Logica, em que pese o justificado desejo de rigor sistematlco. A!Ias, .os problemas da Filosofia são de tal ordem que tratar de
um deles ImplIca, no fundo, a consideração dos demais.
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