Pierre Monbeig – O nascimento da Geografia científica no

Propaganda
D I S C I P L I N A
Introdução à Ciência Geográfica
Pierre Monbeig – O nascimento da
Geografia científica no Brasil
Autores
Aldo Dantas
Tásia Hortêncio de Lima Medeiros
aula
14
Governo Federal
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Educação
Fernando Haddad
Secretário de Educação a Distância – SEED
Carlos Eduardo Bielschowsky
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Universidade Estadual da Paraíba
Reitor
José Ivonildo do Rêgo
Reitora
Marlene Alves Sousa Luna
Vice-Reitora
Ângela Maria Paiva Cruz
Vice-Reitor
Aldo Bezerra Maciel
Secretária de Educação a Distância
Vera Lúcia do Amaral
Coordenadora Institucional de Programas Especiais - CIPE
Eliane de Moura Silva
Coordenadora da Produção dos Materiais
Marta Maria Castanho Almeida Pernambuco
Revisor Técnico
Leonardo Chagas da Silva (UFRN)
Coordenador de Edição
Ary Sergio Braga Olinisky
Revisora Tipográfica
Nouraide Queiroz (UFRN)
Projeto Gráfico
Ivana Lima (UFRN)
Ilustradora
Carolina Costa (UFRN)
Revisores de Estrutura e Linguagem
Eugenio Tavares Borges (UFRN)
Janio Gustavo Barbosa (UFRN)
Thalyta Mabel Nobre Barbosa (UFRN)
Editoração de Imagens
Adauto Harley (UFRN)
Carolina Costa (UFRN)
Diagramadores
Revisora das Normas da ABNT
Bruno de Souza Melo (UFRN)
Dimetrius de Carvalho Ferreira (UFRN)
Ivana Lima (UFRN)
Johann Jean Evangelista de Melo (UFRN)
Verônica Pinheiro da Silva (UFRN)
Revisoras de Língua Portuguesa
Janaina Tomaz Capistrano (UFRN)
Sandra Cristinne Xavier da Câmara (UFRN)
Divisão de Serviços Técnicos
Catalogação da publicação na Fonte. UFRN/Biblioteca Central “Zila Mamede”
Dantas, Aldo.
Introdução à ciência geográfica: geografia / Aldo Dantas, Tásia Hortêncio de Lima Medeiros. –
Natal, RN : EDUFRN, 2008.
176 p.
1. Geografia – Brasil. 2. Geografia - teoria. 3. Geografia científica – Brasil. 4. Sociedade.
5. Prática pedagógica. I. Medeiros, Tásia Hortência de Lima. II. Título.
RN/UF/BCZM
2008/35
CDD 910
CDU 918.1
Copyright © 2008 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização expressa da
UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte e da UEPB - Universidade Estadual da Paraíba.
Apresentação
E
m 2008, faz 74 anos de institucionalização da universidade brasileira e também da
Geografia, que teve na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de
São Paulo o seu embrião. Em seu nascedouro, a Geografia tem a tutela da universidade
francesa através de dois jovens geógrafos: Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig. Deffontaines
volta logo para a França, Monbeig permanece no Brasil durante 11 anos. É sobre esse
geógrafo e sua obra que trata esta aula, o qual, fiel discípulo da Geografia francesa, recolhe
a concepção de “paisagem” do mestre Vidal, no sentido em que a mesma reflete no espaço
uma fisionomia de algo essencialmente dinâmico e que se amplia na região, dotada de
personalidade. Entretanto, a sua análise vai mais longe ao acrescentar a esse conceito o
jogo das combinações dos diversos elementos que compõem a paisagem. Considerando
a multidimensionalidade do homem, Monbeig agrega ao seu pensamento a dimensão da
cultura. Foi um geógrafo sério, modesto, mas firme em suas convicções. Nunca se arvorou
revolucionário nem criador de “novas geografias”, entretanto, soube muito bem aproveitar o
que de essencial havia sido deixado pelos mestres do passado e, em seus trabalhos, soube
introduzir novas propostas.
Objetivos
1
2
3
Compreender a importância da formação
Universidades para a institucionalização
Geografia brasileira.
das
da
Entender como professores estrangeiros contribuíram
para a afirmação da Geografia científica no Brasil.
Perceber a importância de Pierre Monbeig na formação
de professores e no desenvolvimento da pesquisa
geográfica nacional.
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
Notas biográficas
P
ierre Monbeig nasceu no norte da França, em Marissel, em 15 de setembro de 1908, era
filho de professores. Logo cedo foi com os pais para Paris, onde passou sua infância
e juventude. Viveu na Paris da Belle Epoque e conviveu com os infortúnios da Primeira
Grande Guerra. Foi nesse período de grandes agitações políticas e de ameaças sofridas pelo
seu país que realizou seus estudos primários no Liceu Montaigne e o secundário no Luis le
Grand, na capital francesa. Viveu na margem esquerda do rio Sena, conhecendo bem os bairros
de Saint Michel e de Saint Germain, onde havia, nesse período, grande agitação intelectual e
onde se situavam as escolas e institutos de ensino superior.
Suas inquietações intelectuais desde cedo o levaram para os estudos humanísticos. Fez
seus estudos superiores na Universidade de Paris. Em 1927, com apenas 19 anos, concluiu o
curso de História e Geografia e em 1929 obteve o título de “Agregé” (título acadêmico francês
no qual se “agregam” cursos), preparando-se para a carreira de professor do ensino superior.
Entre 1929 e 1931 estudou na Escola de Autos Estudos Hispânicos, onde desenvolve
trabalho de pós-graduação, o que contribui para o seu desempenho como professor, carreira
que se inicia em 1931 no Liceu Malherbe, em Caen, na Normandia. Com a experiência
adquirida através dos estudos desenvolvidos na Espanha e com a atividade do magistério,
Monbeig qualifica-se profissional e intelectualmente. Essa qualificação lhe credencia para
ser convidado a fazer parte da missão de grandes nomes franceses que viriam para o Brasil
trabalhar na recém fundada Universidade de São Paulo-USP. Aqui, ele viveria a sua grande
aventura intelectual, pois vem para uma Universidade que foi a primeira pensada e estruturada
de forma moderna e aberta à formação profissional e intelectual das novas lideranças que
surgiram no Brasil a partir daquele momento.
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
Contexto geral de implantação
da USP e da Geografia
A Revolução de Trinta abriu perspectivas de expansão e diferenciação da
economia brasileira colocando em xeque as velhas estruturas, entre elas as do
ensino baseadas em faculdades isoladas e com preocupação apenas de formação
profissional. As reflexões científicas, o desenvolvimento da pesquisa, a procura
de novos rumos científicos e sociais vão encontrar guarita nas Universidades,
principalmente a partir das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras.
As lideranças paulistas, sobretudo após o insucesso da Revolução de 1932,
procuraram implantar as sementes da renovação educacional, visando a uma
transformação modernizadora da mentalidade e dos objetivos das lideranças
das classes mais favorecidas. Daí a fundação da Universidade, no estado
mais rico da federação, e a contratação de professores estrangeiros para
ministrarem as disciplinas em um país que não dispunha de quadros suficientes
e qualificados.
Na nova Universidade a disciplina Geografia foi inicialmente confiada a
Pierre Deffontaines, geógrafo francês que teve uma grande influência no
desenvolvimento do ensino desta disciplina no Brasil e que permaneceria
apenas um anão na Universidade, transferindo-se em seguida para o Rio de
Janeiro. Pierre Deffontaines, brilhante e comunicativo, não só exerceu influência
sobre seus alunos como também, reunindo-se a intelectuais paulistas como
Caio Prado Júnior e Rubens Borba de Morais, fundou uma Associação dos
Geógrafos Brasileiros, inicialmente paulista, por atuar apenas naquele estado.
Através de viagens, de pesquisas e de conferências Deffontaines despertou
o interesse pela geografia e preparou o terreno para o trabalho que seria
desempenhado, a partir de 1935, por seu colega e compatriota Pierre Monbeig.
Este chegou a São Paulo muito jovem, com a experiência apenas do ensino
secundário, deparando-se com a responsabilidade de substituir um mestre
bem mais experiente e dinâmico. Não desanimou e continuou o trabalho do
seu antecessor, tendo a oportunidade de contribuir para a sistematização e
consolidação da geografia brasileira, por um longo período de 11 anos, já que
a Segunda Guerra, rebentando na Europa, forçou-o a permanecer no Brasil,
podendo consolidar o curso de Geografia da Universidade de São Paulo e
expandir em dimensões nacionais a Associação dos Geógrafos Brasileiros
(ANDRADE,1994).
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
A Geografia de Monbeig
A matriz regional
A
Geografia regional, à qual Monbeig se vincula, nasce do quadro propiciado pelo Tableau
de la Géographie de la France (1903), de Paul Vidal de la Blache e das primeiras teses
de doutoramento (Doctorat d’Etat), orientadas por ele mesmo. Essas teses fizeram
grande sucesso entre 1919 e 1945 e correspondiam à necessidade de se dar uma dimensão
concreta ao inventário do espaço através de uma descrição minuciosa e tão exaustiva quanto
possível dos fatos observados sobre o terreno.
A Geografia regional “à francesa” retrata perfeitamente a sua época, a de uma França
majoritariamente rural e estável, onde as regiões parecem imutáveis e congeladas pelo
tempo. A primazia dada à Geografia regional faz com que outros quadros de estudo, em
escalas diversas, não sejam desenvolvidos pelos geógrafos desse período.
Considerada como uma individualidade, como uma personalidade geográfica, como
alguma coisa única, e até mesmo excepcional, a região leva a Geografia a ser vista apenas
como uma disciplina pouco preocupada em fazer generalizações e sem instrumental capaz
de agrupar as similitudes espaciais a fim de criar princípios gerais.
A França do entre-guerras é um país ainda rural: em 1931, a população rural francesa
representa 49% do conjunto da população do país e apenas 17 cidades ultrapassam os
100.000 habitantes. Com um conjunto de cidades pouco extensas e com crescimento lento,
não é espantoso que os geógrafos franceses dessa época tenham desenvolvido a Geografia
rural como especialidade dominante da Geografia francesa.
Nos anos 1920 e 30, essa Geografia é feita de maneira multidirecional: formas de
utilização do solo, habitat rural, gêneros de vida, sistemas de cultura etc. Depois, sob a
influência de historiadores como Marc Bloch, a análise da formação das paisagens agrárias
vai constituir abordagem central da Geografia rural e abrir a via de uma outra especialidade:
a Geografia histórica.
Os geógrafos franceses têm o sentimento de que dispõem de dois instrumentos com
os quais seriam capazes de tratar de todos os problemas que se pode encontrar: a análise
regional, para tomar contato com as realidades em nível mais local e mais modesto; e a
análise de situação, que permite assinalar as relações existentes entre um ponto ou uma
região e os espaços que a cercam.
É com esses instrumentos que eles exploram novos domínios: a Geografia agrária, a
Geografia urbana, a Geografia política e, em certa medida, a Geografia econômica e tropical.
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
Através da análise de situação, a consideração das dimensões sociais e políticas das
distribuições geográficas progridem, mas sem grandes rupturas. A Segunda Guerra Mundial
constitui uma ruptura essencial. As questões com as quais a sociedade francesa se depara
passam a ser as da reconstrução do país, da modernização de uma economia que se retardou
com relação às dos países vizinhos, da descolonização e dos problemas do desenvolvimento
do Terceiro Mundo.
A vinda para o Brasil
Como afirmamos anteriormente, Monbeig, por sua formação, pertence à geração do
entre-guerras. Ele vem para o Brasil com a bagagem simples que os geógrafos, naquele
momento, sabiam manejar – o trabalho de campo, a análise regional, a análise de situação
– e aplica esses conhecimentos no intuito de conhecer e estudar o Brasil. O tema de sua
tese inscreve-se na tradição regional. Ele ensina os jovens geógrafos brasileiros a fazerem
pesquisa de campo e tenta compreender o país analisando sua situação sob o tabuleiro
político e econômico mundial.
Estando no Brasil, Monbeig toma consciência dos desafios que se colocam à Geografia
mais cedo do que se permanecesse na Europa. Sendo sensível à exigência de desenvolvimento
que se apresenta no Brasil do Estado Novo, ele: mensura o papel das cidades na exploração
do espaço brasileiro e é tocado pela rapidez do desenvolvimento desse espaço; percebe que
o instrumento que constitui a análise dos gêneros de vida não dá conta do essencial num
país de povoamento recente, onde a economia está em reconstrução permanente.
Antes da Segunda Guerra Mundial, o método regional quase não havia sido aplicado fora da
Europa e do mundo mediterrâneo, onde alguns geógrafos haviam produzido excelentes teses.
Por volta da Segunda Guerra Mundial, dois geógrafos franceses tentam aplicar a
démarche regional no Novo Mundo: Pierre Monbeig, no Brasil, e Jean Gottmann, nos Estados
Unidos. Virginia at mid-century é o resultado da tentativa de Gottmann, que é bastante
consciente das insuficiências dos métodos que havia aprendido na França, um meio tão
industrializado, urbanizado e com economia tão flexível quanto a do lado leste dos Estados
Unidos. Ele continua, pois, a se interessar pela abordagem regional, no sentido mais amplo
do termo aplicado ao Novo Mundo. Publica, então, em 1958, Megalopolis, que é o resultado
dessa reflexão.
Pierre Monbeig se dá conta muito rapidamente da insuficiência das ferramentas de
que dispõe e toma emprestado da Geografia americana a idéia de front pioneiro, zonas
de expansão de fronteira agrícola, e constata que ela permite compreender uma parte da
dinâmica brasileira, mas que o povoamento que caracteriza o front pioneiro é geralmente
apenas provisório.
É através da evidência do papel da rede ferroviária – a rede ferroviária que ainda
não existia, e começa efetivamente por São Paulo, no Brasil teve papel fundamental para
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
a circulação de pessoas e mercadorias – e das cidades de São Paulo, em particular, que
Monbeig chega a fazer sentir a especificidade desse espaço brasileiro. Ele permanece, em
certo sentido, fiel ao espírito regional, mas apelando para um arsenal de métodos que ele
teve de improvisar durante sua estada no Brasil.
Trabalho de campo e paisagem
Uma das originalidades das geografias da primeira metade do século XX é demarcada
pelo trabalho de campo.
Em uma época em que os estudos de Letras e de Ciências Sociais eram exclusivamente
livrescos, o contato com o campo dava à Geografia uma forte especificidade. O romancista
Julien Gracq, que era inicialmente – sob seu verdadeiro nome, Jean Poirier – um geógrafo,
conta com emoção suas primeiras experiências de campo, sob a batuta de Martonne, por
volta dos anos 1930.
Para geógrafos como Monbeig, o campo constituía verdadeiramente uma das
especificidades essenciais da disciplina. Poderíamos mesmo falar, em relação aos geógrafos
de sua geração, de uma verdadeira mística do campo – não existiria trabalho científico em
Geografia sem trabalho de campo. A mística do campo caminhava junto com a da unidade da
Geografia. Sobre o terreno, o que a paisagem revela é uma mistura de traços físicos, de traços
ligados à vida, à vegetação, à vida animal e, numa certa medida, aos solos e às marcas da ação
humana. O geógrafo deveria, idealmente, ser capaz de abordar todos esses aspectos.
Monbeig distingue-se dos geógrafos que trabalham então na França pela atenção que
dá ao meio como realidade viva. Ele insiste no papel da floresta e no cortejo de doenças que
lhe são associadas e sublinha, ainda, os problemas que causa o esgotamento dos solos. É
um dos primeiros a compreender que, se os geógrafos podem continuar a fazer pesquisa,
ao mesmo tempo, no domínio físico e no domínio humano, eles devem guardar presente no
espírito o papel que o meio tem na vida dos homens.
A exemplo de seus mestres e dos geógrafos de sua época, Monbeig perseguia dois
objetivos: encontrar um “terrain” e ensinar Geografia. Inicialmente, ele acreditava que o seu
“terrain” seria a Espanha, mais especificamente as ilhas Baleares, no entanto, as circunstâncias
o trouxeram ao Brasil, país que lhe abria várias possibilidades para o trabalho de campo e para
a implantação de uma Geografia “científica” numa Faculdade em processo de criação.
Não há qualquer dúvida de que esse estudioso foi formado na tradição das grandes teses
regionais da Escola Francesa de Geografia. No entanto, devemos reconhecer que sua obra
vai além da simples descrição empírica: chega a um nível explicativo geral e constantemente
enriquece a disciplina introduzindo elementos novos para a discussão geográfica, como foi o
caso, em sua tese, da pequena discussão que fez sobre a psicologia bandeirante, a qual passou
quase despercebida (ou foi propositadamente deixada de lado) pela banca examinadora, o que
provocou certa indignação por parte do examinado. Monbeig considera que as “atitudes do
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
espírito” constituem um elemento fundamental e essencial para se compreender os modos de
ocupação do espaço e, nesse sentido, devem ser objeto de pesquisa na Geografia. Para ele,
os modos de pensar e os modos de vida caminham juntos, portanto, devem ser estudados
como um par. Monbeig escapa, assim, da crítica feita à tradição das monografias regionais,
acusadas de negligenciar a interação dos elementos explicativos.
Com o passar do tempo e com a influência que sofre do “terrain” que adota para
desenvolver as suas pesquisas, a sua inserção na tradição da Escola Francesa exprime-se
não somente na importância que dá à história como elemento explicativo, mas também pela
descrição minuciosa da paisagem e dos homens, chamando a atenção, principalmente, para
o fato de que a caracterização dos tipos e personagens da sociedade local é de fundamental
importância para a análise geográfica.
Para Monbeig, “o campo de estudo do geógrafo é a paisagem”. O domínio do geógrafo
é, primeiramente, o que se pode ver na superfície da Terra: as rochas, os solos, as águas, o
relevo, os vegetais, os animais, os homens. Mas paisagem é também o que se pode sentir:
a atmosfera, os ventos, os cheiros e odores. O geógrafo é aquele que ama viajar, olhar em
torno dele mesmo, farejar odores, sentir a atmosfera; é também o homem do “corpo-acorpo”, sempre pronto para interrogar as pessoas e para ouvi-las.
Indiscutivelmente, a noção de paisagem comporta pontos frágeis. Costuma-se reduzir
a paisagem à análise do visível. Sabemos que algumas realidades escapam à visão, mas
cabe ao geógrafo perceber na paisagem fatos da subjetividade e da cultura, assim como as
estruturas sociais. Para Monbeig, a paisagem é o reflexo das civilizações e evolui com estas.
Como a cultura de um grupo evolui, sua paisagem também evolui: o mesmo suporte
natural viu sucederem-se paisagens diferentes, sendo cada uma reflexo da civilização
do grupo em dado momento de sua história. Assim a paisagem não é mais considerada
como produto da geologia e do clima, mas como reflexo da técnica agrícola ou industrial,
da estrutura econômica ou social [...] (MONBEIG, 1940, p. 238-239).
O entendimento do autor é de que o geógrafo deve desenvolver a visão de observador
face à paisagem. Essa observação dar-se-ia através da escolha que ele faz entre os
objetos presentes na superfície do globo. Sua atenção deve voltar-se, por exemplo, na
direção daqueles elementos que são bastante grandes para serem claramente visíveis: os
movimentos do terreno, córregos e riachos, rios etc.; ele leva em consideração as plantas
– mas percebidas em seu conjunto –, estepes, pradarias, florestas, charneca, matagal e
outras formas de vegetação silvestre. Uma grande árvore chama sua atenção apenas se
estiver isolada e servir de sinal na paisagem. O geógrafo nota as culturas, as fazendas e suas
construções, as vilas e as cidades.
Como sabemos, a especificidade da Geografia é caracterizada pela tensão entre as
ciências da natureza e as ciências humanas. A Geografia que se constitui no fim do século
XIX e que é praticada durante cerca de 60 anos sob o modelo da Escola Francesa de Geografia
desenvolve uma estratégia epistemológica do misto, ou melhor, do entre-dois, da passagem,
entre o físico e o social.
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
Monbeig, sem nenhuma dúvida, entende a Geografia como essa tensão, como esse
misto entre sociedade e natureza/entre senso comum e ciência, como é possível perceber
no trecho que segue:
Ver como a paisagem é reflexo da civilização, tal é uma das principais tarefas do
geógrafo; é um trabalho de análise que ele precisa fazer para distinguir o que provém
do solo, do clima e também da técnica agrícola, da organização social. A análise da
paisagem apresenta-se como um jogo de quebra-cabeças; mas, enquanto o jogo se
torna logo fastidioso, é apaixonante o estudo da paisagem: apaixonante porque nos
põe em contato com a humilde tarefa quotidiana e milenar das sociedades humanas; ela
mostra o homem lutando sem cessar para aperfeiçoar-se (MONBEIG, 1940, p. 248).
A prática vidaliana de trabalho de campo e a incorporação em suas pesquisas mostram
muito bem como o “terrain”, em certa medida, substitui o livro, o texto e, até mesmo, o arquivo
histórico. Ele adquire um valor heurístico fundamental, visto que constitui o substrato no qual
se lê a relação homem/meio, que se torna, a partir do início do século XX, a problemática
explícita da Geografia humana francesa. Desde então, as manifestações elementares da vida,
as formas de trabalho, dos deslocamentos, do habitat, da vestimenta e, mesmo, dos lazeres
são consideradas como sinais das interações entre as sociedades locais e o meio ambiente.
São elementos do “gênero de vida”, forma particular de uma ecologia específica, que Vidal
transforma em um conceito fundamental da Geografia humana.
Geografia e cultura
A idéia de que o papel da Geografia é o de localizar, descrever e comparar é um lugar
comum da Geografia da época. Monbeig retoma isso à sua maneira e incorpora à análise os
elementos da cultura. Dessa maneira, caminha em direção à idéia de que a Geografia não
estuda relações de causalidade simples, mas recíprocas.
De maneira geral, a Geografia francesa, tal qual se desenvolveu no início do século
XX, mobilizava instrumentos que se adaptavam bem às realidades do mundo préindustrial, mas não eram capazes de dar conta de formas de organização do espaço que
resultavam da modernidade.
Monbeig é sensível aos limites da abordagem regional e do instrumental de análise
geográfico da época, o que o leva constantemente a buscar respostas em dimensões
não consideradas pela Geografia vidaliana. Uma dessas buscas é o interesse pelas
questões da cultura.
O interesse pelas dimensões culturais da realidade geográfica é tão velho quanto pela
Geografia humana. Na primeira metade do século XX, no entanto, a concepção morfológica
ou naturalista, que prevalecia na disciplina, fazia com que se retivesse da cultura apenas
seus aspectos materiais – lugares de culto, em matéria de religião, e nada de doutrinas, da
fé, das práticas etc. Monbeig, aliás, lastima o fato de não se levar em consideração todas as
dimensões da vida religiosa. É um dos aspectos pelos quais ele se mostra o mais moderno.
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
A curiosidade pelos fatos culturais não deixa de mover os trabalhos desse homem
de ciência e inquieto. Ele parece antecipar o que é idéia dominante hoje: que não há fatos
ecológicos, demográficos, sociais, econômicos, políticos que não estejam situados num
certo contexto cultural. Monbeig parece sempre querer construir uma Geografia a partir
de pressupostos mais críticos que os de seu tempo. A cena geográfica monbeigana não
é concebida como sendo estática; ele a concebe como um feito de uma pluralidade de
indivíduos cujas trajetórias se inscrevem no espaço. O que se apreende não é a paisagem,
mas uma série de paisagens superpostas, uma sucedendo à outra. Para compreender essas
paisagens, essa realidade geográfica, é necessário partir dos dados de base, que constituem
os indivíduos (ou agrupamentos) e as trajetórias que eles descrevem.
Atividade 1
2.
2
Mostre de que maneira a vinda para o Brasil contribui para que
Monbeig mude a sua maneira de fazer Geografia.
sua resposta
1.
1
Qual o contexto em que se desenvolve a Geografia no Brasil e qual a
importância de Pierre Monbeig?
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
Leitura complementar
AB’SÁBER, Aziz. Pierre Monbeig: a herança intelectual de um geógrafo. Estudos Avançados,
v. 8, n. 22, p. 221-232, 1994.
Neste artigo, o também geógrafo Aziz Ab’Sáber faz uma grande homenagem póstuma
ao seu mestre Monbeig, mostrando como ele era um professor diferenciado e que marcou,
além da Geografia brasileira, a memória de seus discípulos: “difícil relembrar a figura do
bom, seguro e inteligente mestre que adotou o Brasil como sua segunda pátria, até o fim
de seus dias”. Além da homenagem, Ab’Sáber faz uma retrospectiva que vai da chegada
de Monbeig ao Brasil, passando por suas atividades extraclasse, sua carreira acadêmica, o
exemplo que foi como intelectual e sua preocupação com os estudos geográficos no Brasil.
SALGUEIRO, Heliana Angotti (Org.). Pierre Monbeig e a geografia humana brasileira.
Bauru: EDUSC, 2006.
Coletânea que reúne ensaios de historiadores e geógrafos brasileiros e franceses de
renome internacional em torno da obra de Pierre Monbeig. Os autores realçam o caráter
fundador e antecipatório da obra de Monbeig que, já em sua época, colocava em evidência
complexos problemas vividos por nós até hoje. Os ensaios trazem ainda inúmeras sugestões
de pesquisas.
Resumo
A aula traz um breve histórico da trajetória pessoal e intelectual de Pierre Monbeig,
mostrando em que contexto este chega ao Brasil; a influência do pensamento
vidaliano em sua formação; e como a sua estada e contato com a Geografia de
um país em formação – o Brasil – influenciaram a sua forma de pensar.
10
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
Auto-avaliação
Elabore um pequeno texto sobre a importância de Pierre Monbeig para a
Geografia brasileira, considerando:
a) que a Geografia no Brasil surge no contexto de implantação das universidades na década
de 1930, permitindo a vinda da missão francesa para a estruturação acadêmica das
mesmas;
b) que, no caso específico da Geografia, a vinda de Pierre Monbeig é um marco;
c) que é fundamental entender que esse geógrafo é filho da Escola Francesa de Geografia e traz
consigo uma bagagem intelectual calcada no pensamento de Paul Vidal de la Blache (veja as
aulas 10 – A Geografia vidaliana e o seu contexto – e 11 – A abordagem regional vidaliana),
mas que ao chegar ao Brasil percebe a insuficiência dessa abordagem e, embasado em
largo trabalho de campo, cria novos conceitos para dar conta da nova realidade.
Referências
ANDRADE, Manuel Correia de. Pierre Monbeig e o pensamento geográfico no Brasil. Boletim
Paulista de Geografia, n. 72, p. 63-82, 1994.
DANTAS, Aldo. Pierre Monbeig: um marco da geografia brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2005.
MONBEIG, Pierre. Ensaios de geografia humana brasileira. São Paulo: Livraria Martins, 1940.
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
11
Anotações
12
Aula 14 Introdução à Ciência Geográfica
Introdução à Ciência Geográfica – GEOGRAFIA
Ementa
A construção do conhecimento geográfico. A institucionalização da geografia como ciência. As escolas do
pensamento geográfico. A relação sociedade/natureza na ciência geográfica. O pensamento geográfico e seu
reflexo no ensino. A geografia brasileira. Atividades práticas voltadas para a aplicação no ensino.
Autores
n Aldo Dantas
n Tásia Hortêncio de Lima Medeiros
Aulas
01 O saber geográfico
02 A ação humana
03 A Geografia na Antiguidade
04 A Geografia na Idade Média
05 Os tempos modernos
06 Espaço e modernidade
07 A institucionalização da Geografia
09 A Geografia ratzeliana e seu contexto
10 A Geografia vidaliana e o seu contexto
11 A abordagem regional vidaliana
12 Os movimentos de renovação
Impresso por: Texform Gráfica
08 A Geografia de Humboldt e Ritter
14 O nascimento da Geografia científica no Brasil
15 Milton Santos: o filósofo da técnica
1º Semestre de 2008
13 A institucionalização da Geografia no Brasil
Download