Cap5 - USP

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Capítulo 5
Braços espirais
A estranha natureza dos braços espirais
Ao olharmos para fotos de galáxias espirais, como a da figura 5.1, ficamos
impressionados com a proeminência dos braços; temos a sensação de que quase não
existem estrelas entre um braço e outro. Estaria errada a descrição do disco dada no
capítulo anterior, na qual a densidade de estrelas varia de forma suave com a distância ao
centro, igualmente em todas as direções? De alguma forma, somos vítimas de uma ilusão
de óptica. O que enxergamos nas fotos é a quantidade de luz emitida, e esta não é
simplesmente proporcional à quantidade de estrelas. Sabemos que existem estrelas que
emitem muito mais luz do que as outras. Pelo fato de emitirem tanta energia, seu
combustível acaba logo, e elas vivem pouco tempo. Estamos falando de vida de alguns
milhões de anos, comparados com a idade da Galáxia, da ordem de 10 bilhões de anos, ou
mesmo com o tempo de uma volta em torno do centro galáctico, da ordem de 250 milhões
de anos (para estrelas próximas do Sol). As estrelas massivas não têm sequer tempo de se
afastar de seu local de nascimento, os braços espirais, antes de se extinguir. É por isso que
conseguimos “ver” tão claramente os braços. No entanto, a grande maioria das estrelas
possui vida bastante longa, e têm todo o tempo de percorrer sua trajetória em torno do
centro galáctico, saindo do braço onde nasceram, e transitando no espaço entre os braços.
Este espaço está repleto de estrelas, só que são estrelas pouco brilhantes.
Figura 5-1: NGC 1232
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Resumindo, os braços são um local de nascimento de estrelas; nascem estrelas
desde muito brilhantes até pouco brilhantes, mas as muito brilhantes não chegam a sair dos
braços. Além disto, o efeito das estrelas luminosas é amplificado pelo fato delas darem
origem a regiões HII, que são os objetos mais brilhantes observados nos braços espirais. A
natureza destas regiões foi discutida no capítulo 3. As regiões HII agem de alguma forma
como amplificadores de luz, pois boa parte da radiação emitida pela estrela excitadora
acaba sendo convertida para a faixa visível do espectro.
Em termos de número de estrelas ou densidade de matéria, os braços representam
muito pouco. A densidade de estrelas é um pouco maior nos braços, mas trata-se de uma
flutuação que, em termos de massa, representa apenas cerca de 5%, muito menos que o
efeito aparente na luz visível.
Para entender os braços espirais, temos que descobrir se eles são tão efêmeros
quanto as estrelas brilhantes, ou se constituem uma estrutura mais duradoura. A maioria
das galáxias espirais apresenta uma curva de rotação parecida com a de nossa Galáxia,
relativamente plana. Portanto, nelas também ocorre rotação diferencial, fenômeno
discutido no capítulo anterior (figura 4-7). Em algumas centenas de milhões de anos, as
estrelas das partes internas dão mais voltas em torno do centro do que as estrelas das
partes externas. Ou seja, as estruturas espirais deveriam ter ficado muito mais “enroladas”
do que eram no início, como ilustrado na figura 5-2. No entanto, o número de voltas que
os braços observados apresentam é bem menor do que se esperaria de um tal processo de
enrolamento. Isto nos leva a concluir que os braços não podem estar “amarrados” ao gás e
às estrelas que estão orbitando na galáxia. Mas então, como os braços conseguem
sobreviver, se as estrelas entram e saem, e lá não permanecem?
Figura 5-2 : Efeito de enrolamento que se esperaria se os braços
girassem como as estrelas. À esquerda, no início, à direita, depois
de algumas centenas de milhões de anos.
Uma resposta que nos vem à mente, é que os braços podem ser algo como uma
onda de densidade. Um exemplo deste tipo de onda é o som se propagando no ar. O som é
constituído de um pequeno aumento de densidade, ou uma “perturbação” na densidade das
moléculas, que se desloca, sem que o ar tenha que “acompanhar” o som. Um outro
exemplo de perturbação de densidade seria um ligeiro engarrafamento de veículos numa
auto-estrada. Os carros entram no engarrafamento e saem do engarrafamento, o
engarrafamento permanece, mas os carros do qual ele é constituído se renovam
constantemente. Nenhum destes dois exemplos, no entanto, é suficientemente parecido
com o que acontece nos braços espirais, para explicar a física dos mesmos. Existe uma
enorme diferença entre as ondas espirais e as ondas sonoras, porque as estrelas são tão
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rarefeitas que não colidem entre si; não existe o equivalente de “pressão” de estrelas como
a pressão do gás. No caso do engarrafamento, os veículos freiam, e depois aceleram de
novo. As estrelas não freiam nem aceleram, pelo menos não num trecho curto de suas
trajetórias, como são os braços.
Vamos mostrar com um exemplo mais próximo da realidade um resultado
extraordinário: é possível em principio manter regiões com excesso de densidade de
estrelas, em posições quase fixas numa galáxia, mesmo sem que haja qualquer interação
entre estrelas vizinhas, estando todas elas apenas girando no campo gravitacional comum
da galáxia. Para isto, bastam as seguintes condições: 1) que as órbitas não sejam
exatamente circulares, mas aproximadamente elípticas, e 2) que exista uma certa
organização das órbitas no disco galáctico: todas as estrelas que passam num ponto
seguem a mesma órbita fechada, e 3) que órbitas sucessivas (com raios crescentes) tenham
orientação que varia lentamente, de uma para outra. Mais tarde, cuidaremos de descobrir
como uma tal organização pode ser criada ou mantida.
Figura 5-3: Série de órbitas
fechadas com pequeno ângulo
entre si, formando uma
estrutura espiral.
Esta situação, idealizada por Agris J. Kanaljs em 1972, é ilustrada na figura 5-3.
Existem lugares onde as órbitas se aproximam, e outros onde ficam mais distantes.
Podemos comparar as órbitas a auto-estradas, onde automóveis regularmente espaçados
trafegam. Num determinado lugar, quando duas auto-estradas se juntam numa só, a
densidade de automóveis aumenta. Depois, as auto-estradas se separam, e a densidade de
automóveis volta ao que era. Da mesma forma, a densidade de estrelas que trafegam num
local é maior quando as órbitas se aproximam, e menor quando se afastam. A figura
mostra uma “estrutura” espiral fixa no espaço, que é a região de maior densidade de
estrelas. As estrelas entram nesta estrutura e saem, viajando em suas órbitas elípticas.
Podemos nos perguntar se esta estrutura que estamos vendo se comporta como uma onda,
já que ela está fixa no espaço. Uma onda não teria necessariamente que se propagar? Mas
pelo menos com relação às estrelas e ao gás, que formam o material do disco no qual a
estrutura está apoiada, existe uma velocidade de deslocamento.
O modelo de Kalnajs é muito útil para entender o conceito básico de “onda”
espiral. Temos no entanto que verificar até que ponto este exemplo reflete a realidade, se
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existem mesmo órbitas com este formato, e se a organização de órbitas sucessivas que
descrevemos poderia se manter.
Órbitas de estrelas
As órbitas de estrelas em torno do centro da Galáxia podem ser calculadas
facilmente uma vez que se conhece a curva de rotação, discutida no capítulo anterior, e
que basicamente representa a velocidade de estrelas em órbitas circulares, em função do
raio da órbita. Tipicamente, órbitas não circulares têm o aspecto mostrado no lado
esquerdo da figura 5-4, que resulta do fato delas não serem fechadas. O que chamamos
aqui de órbita fechada é uma órbita tal que depois de completar uma volta, a estrela passa
novamente pelos mesmos pontos. Ou seja, a estrela nunca sai desta trajetória; uma órbita
Figura 5-4: Órbitas reais de estrela típica da vizinhança solar, e ilustração do conceito
de órbitas abertas (figura central) e fechada (figura da direita).
fechada é fixa no espaço. As órbitas dos planetas em volta do Sol são fechadas (deixando
de lado a precessão da órbita de Mercúrio). Isto é uma particularidade do “potencial”
gravitacional produzido por uma massa central, com força de atração que depende do
quadrado da distância, como é o caso do sistema solar. As leis de Kepler valem apenas
para este tipo de potencial. No entanto, uma característica comum entre o potencial do Sol
e o da Galáxia (para esta, em primeira aproximação) é o fato de ambos serem do tipo
“central”. Isto significa que a força de atração é sempre dirigida para o centro, e diminui
da mesma forma com a distância ao centro, em qualquer direção, ou seja, a intensidade da
força só depende da distância ao centro. Num potencial central, órbitas circulares sempre
são possíveis, pois em tais órbitas a força que atua sobre a estrela é constante.
Para uma estrela se deslocando no campo gravitacional da Galáxia, a órbita
geralmente não é fechada. Claro, se a órbita for circular, ela será fechada. Mas se dermos
um empurrãozinho numa estrela que estava numa órbita circular, o que acontece? É fácil
mostrar, mas não o faremos aqui, que a estrela continua aproximadamente numa órbita
circular, mas com uma pequena oscilação em torno desta. É um resultado bastante comum,
em física, do qual o pêndulo é um exemplo, que quando um sistema é deslocado de seu
ponto de equilíbrio, ele tende a voltar, mas acaba ultrapassando o ponto de equilíbrio e
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adquirindo um deslocamento do lado oposto, resultando numa oscilação periódica. O raio
da órbita fica ora um pouco maior, ora um pouco menor, do que o raio da órbita não
perturbada. Além disso, quando a estrela está num raio maior que o raio de equilíbrio, ela
se atrasa, em sua órbita, com relação ao ponto de equilíbrio; ao contrário, quando está num
raio menor, ela se adianta. Aparece portanto, além da oscilação radial, também uma
oscilação na direção do movimento circular em torno da Galáxia. O movimento final da
estrela pode ser representado como a soma do movimento circular normal mais um
pequeno movimento numa trajetória elíptica em torno do ponto que está na trajetória
circular (figura 5-5). Um tal movimento é chamado de epicicloidal. Seria possível
visualizar um movimento epicicloidal no escuro, por exemplo, fixando uma luz na borda
de uma roda, estando o eixo desta preso numa outra roda maior, e pondo as duas rodas a
girar. No passado, quando não se sabia que os planetas giravam em torno do Sol, suas
trajetórias no céu eram descritas como sendo epiciclos.
Figura 5-5: Movimento epicicloidal em
torno de um ponto que percorre uma
órbita circular. No caso da
representação habitual de órbitas na
Galáxia, o movimento orbital é no
sentido horário e o movimento
epicicloidal no sentido anti-horário.
No exemplo das duas rodas, é possível construir sistemas em que a trajetória
aparente da luz é fechada. Para isto basta que enquanto a roda maior complete uma volta, a
menor dê um número inteiro de voltas. Depois de um ciclo de rotação da roda maior, a luz
estará exatamente na mesma posição do início, recomeçando outro ciclo idêntico. Um caso
particularmente interessante acontece quando a roda pequena dá duas voltas enquanto a
grande dá uma. Em um ciclo, a luz vai passar duas vezes pela situação de maior distância
ao centro ou máxima elongação, e duas vezes pela mínima elongação. Um círculo que é
ligeiramente alongado para fora em duas extremidades é uma figura parecida com uma
elipse, como a trajetória fechada apresentada na figura 5-6 (lado direito). Em linguagem
um pouco mais científica, diríamos que se a freqüência epiciclica for o dobro da
freqüência de rotação em torno do centro galáctico, teremos uma órbita fechada com
aspecto de elipse. Habitualmente, é usada a letra Ω (Omega) para designar a freqüência de
rotação (2π x número de voltas galácticas por unidade de tempo, o que é também
velocidade angular ) e κ (kappa) para a freqüência epicícloidal (2π x número de oscilações
por unidade de tempo). Para o caso que acabamos de discutir de órbitas de aspecto
elíptico, Ω = κ/2. Lembremos que a freqüência é o inverso do período; temos duas voltas
epicicloidais para uma rotação galáctica.
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Figura 5-6: Caso em que a oscilação epicicloidal tem uma freqüência igual ao dobro da
freqüência de rotação (direita) e quatro vezes esta (esquerda), resultando em órbita final
(indicada por linha tracejada) de aspecto elíptico (direita) ou quase quadrada (esquerda).
Um conceito muito interessante permite entender porque a estrutura espiral, ou
seja, os braços, também podem apresentar uma certa velocidade de rotação, ao contrário
do que nossa primeira interpretação da figura 5-3 parecia indicar. Examinemos um caso
em que o tempo necessário para duas oscilações epicícloidais é um pouco menor que o
tempo de uma rotação (caso Ω menor do que κ/2). Neste caso, começando a contar de um
máximo de elongação, o máximo seguinte vai acontecer um pouco antes de uma meia
volta galáctica, e o segundo máximo acontece pouco antes da volta galáctica estar
completa; assim, teremos uma órbita aberta como a ilustrada na figura 5-4 (centro). Como
já dissemos, órbitas abertas são as mais comuns no disco galáctico. O grande truque é
imaginar que uma órbita aberta como a da figura 5-4 pode ser considerada como uma
órbita fechada que está girando lentamente. Se o leitor tentar desenhar uma elipse numa
folha de papel, de olhos fechados, enquanto alguém gira o papel lentamente, o resultado
vai ser o desenho de uma curva aberta. Poderíamos imaginar um exercício inverso, em que
ao desenhar uma curva aberta, alguém girasse o papel numa velocidade tal que a curva
resultante fosse fechada. A velocidade com a qual temos que girar o referencial de uma
órbita ligeiramente aberta, para ela se tornar fechada, é a velocidade de “precessão” da
órbita. Podemos fazer agora o seguinte raciocínio: a série de órbitas fechadas encaixadas
umas nas outras, que apresentamos na figura 5-3, poderiam não ser, na realidade, órbitas
fechadas, mas órbitas ligeiramente abertas, observadas a partir de um referencial em
rotação. A rotação do referencial teria a mesma função da rotação do papel no segundo
exemplo do desenho, que é de fechar as órbitas. Se todas elas estiverem precessionando
com a mesma velocidade angular, então o pequeno ângulo entre uma órbita e a seguinte de
raio maior que aparece na figura 5-3 não mudaria com o tempo, e a figura em forma de
braços espirais persistiria, no referencial em rotação. Isto quer dizer que para quem
observa de um referencial externo, os braços espirais estariam em rotação.
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Tudo isso parece um pouco complicado, mas fizemos um grande progresso.
Enquanto os braços espirais fixos no espaço dependiam da existência de órbitas fechadas,
conseguimos relaxar as condições e fazer com que os braços possam persistir, mesmo com
órbitas estelares abertas, que são muito mais comuns. Para sermos um pouco mais
precisos, gostaríamos de estar na situação Ω = κ/2 para termos órbitas fechadas, mas esta
relação normalmente não é satisfeita. No entanto, para forçar esta condição, bastaria
aplicar uma precessão com freqüência Ω - κ/2.
O que determina, afinal, estas freqüências Ω e κ, que passaram a ter tanta
importância? Como dissemos, Ω é a freqüência de rotação ou velocidade angular de uma
estrela em torno do centro. Se conhecemos a curva de rotação V(r), em km/s, a distância a
ser percorrida para uma volta completa de raio r é 2π r, e a velocidade angular é Ω =
V(r)/r. Ou seja, conhecendo a curva de rotação V(r) temos também Ω(r). Como V(r) é uma
velocidade que quase não varia com r, Ω decresce com r. A mesma coisa acontece com κ:
conhecendo V(r), podemos deduzir κ(r) por meio de uma relação matemática simples (κ é
uma função de V(r) e de sua derivada dV(r)/dr). Uma vez que a distribuição de matéria na
Galáxia determina a curva de rotação, ela determina também estas duas principais funções
que definem a estrutura espiral. O comportamento destas freqüências com raio galáctico é
mostrado na figura 5-7.
Figura 5-7: A curva de rotação em velocidade angular Ω, a freqüência epicícloidal κ, e as curvas
Ω - κ/2 e Ω + κ/2, em função do raio galáctico. A reta horizontal representa Ωp, a velocidade de
rotação do padrão espiral.; é uma velocidade angular que não depende do raio, como a de um
disco rígido.
Na verdade, continuamos a enfrentar um problema; como Ω e κ variam com o raio
galáctico, a diferença Ω - κ/2 também varia. Então como poderíamos ter uma velocidade
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angular de rotação dos braços (ou de precessão das órbitas) que não dependa do raio?
Lembrando novamente a figura 5-3, gostaríamos que todas as elipses tivessem uma
precessão com a mesma velocidade angular, para que a figura se mantenha. Uma
velocidade de precessão independente do raio nos parece ser a única forma de evitar o
problema do “enrolamento” dos braços. Pelo menos, estamos falando agora do
inconveniente de enrolamento, devido a eventualidade dos braços não girarem com a
mesma velocidade angular em todos os raios. Este enrolamento seria bem mais lento do
que aquele que discutimos antes, quando estávamos imaginando braços girando com a
mesma velocidade das estrelas. Mas o problema do “enrolamento” remanescente acaba
sendo também resolvido, quando se consideram as pequenas alterações nas órbitas
provocadas pela própria existência dos braços, como veremos a seguir.
Auto-consistência da estrutura espiral
Até agora estávamos tratando da existência dos braços como se eles mesmos não
tivessem qualquer efeito sobre as órbitas estelares. No modelo considerado acima, os
braços apareceram em decorrência de uma certa organização das órbitas. Explicamos a
forma das órbitas, e em conseqüência, a permanência dos braços, utilizando a freqüência
epicicloidal e a freqüência de rotação, que são obtidas a partir da curva de rotação, e
portanto só dependem do raio galáctico. Em outras palavras, as órbitas foram calculadas
sem levar em conta os braços. No entanto, um braço é um local onde há uma densidade
um pouco maior de estrelas, e por isso ele produz uma perturbação no potencial
gravitacional. Uma estrela será atraída pelo braço, quando estiver chegando perto dele, e
depois será freada, quando estiver se afastando. As perturbações provocam pequenas
alterações na trajetória das estrelas, que deveriam ser tomadas em conta.
O significado de uma “solução auto-consistente” para os braços espirais é a
apresentado a seguir. Sabemos que existem máximos de densidade superficial1 (locais com
maior número de estrelas por unidade de área) em algumas regiões do disco, produzidos
pela forma das órbitas estelares, como foi discutido anteriormente e ilustrado na figura 53. Estas variações de densidade, por sua vez, afetam as trajetórias das estrelas. Temos
portanto que re-estudar a forma das órbitas, levando em conta estas pequenas
perturbações. Para saber se continuam existindo braços espirais nestas condições, temos
primeiro que encontrar órbitas fechadas, em algum referencial em rotação, para as estrelas
submetidas ao potencial geral da Galáxia adicionado das perturbações de densidade. Se
descobrirmos uma série de órbitas fechadas que dão origem a variações de densidade
justamente iguais àquelas que foram usadas inicialmente no cálculo das órbitas, então
tanto as órbitas quanto as perturbações terão existência longa. A causa produz um efeito
que vira de novo a causa.
Mostramos na figura 5-8 uma série de órbitas auto-consistentes calculadas por L.
H. Amaral , onde podemos notar regiões onde elas se aproximam e formam braços. Os
braços se comportam como se fossem um desenho traçado sobre um disco rígido que gira
lentamente, sendo que o desenho não sofre deformação ou enrolamento devido à rotação
diferencial das estrelas. No modelo apresentado, o padrão espiral (o desenho traçado no
1
Uma vêz que o disco é muito fino, e como estamos tratando das órbitas como se estivessem confinadas no
plano galáctico, preferimos falar em densidade por unidade de área do disco (densidade superficial) do que
em densidades volumétricas.
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disco rígido, do exemplo) gira com uma velocidade angular Ωp de 20 km/s/kpc (unidade
conveniente para velocidades angulares, na Galáxia), e existem 4 braços principais.
Um resultado um pouco surpreendente é que a velocidade de rotação do padrão
espiral não é imposta pelas soluções matemáticas acima. Nós escolhemos um valor para
Ωp, e daí encontramos as órbitas estáveis fechadas neste sistema. Com um outro valor de
Ωp obteríamos outras soluções. Isto significa que não sabemos o que determina Ωp. Por
outro lado, o sistema é auto-consistente, mas podemos nos perguntar como ele foi
Figura 5-8: Exemplo de
órbitas auto-consistentes
calculadas para o potencial
da Galáxia
(L.H. Amaral)
estabelecido pela primeira vez. No fundo, gostaríamos de encontrar algo que fosse mais
que do que auto-consistente, mas auto-organizado; isso seria uma forma pela qual as
órbitas se organizariam sozinhas para chegar a uma estrutura estável.
Ressonâncias
Nos exemplos discutidos anteriormente (mas não no caso da figura 5-8), demos
ênfase à situação em que uma volta galáctica correspondia a duas voltas epicíclicas,
porque esta circunstância consegue explicar uma estrutura com dois braços, que é
observada em muitas galáxias. No entanto, se uma volta galáctica corresponder a 4 voltas
epicicloidais (figura 5-6, lado direito), a órbita final tomará o aspecto de uma figura com 4
elongações máximas. Com uma série de órbitas deste tipo, com raios crescentes e
pequeno ângulo entre elas, podemos construir uma figura com 4 braços. O mesmo
raciocínio vale para qualquer número inteiro de períodos epicicloidais por período
galáctico.
Estas situações que ocorrem na natureza, em que duas freqüências que convivem
num mesmo ambiente são quase iguais, ou uma é praticamente um múltiplo inteiro da
outra, são chamadas de ressonâncias. Nestas freqüências ocorrem em geral amplitudes
maiores das oscilações, porque a força que provoca a oscilação é aplicada no momento
certo. Nossa experiência nos diz que quando uma criança que está num balanço precisa de
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ajuda para balançar mais fortemente, temos que empurrar o balanço na hora certa. Um
exemplo de ressonância ocorre nos vidros de janelas, que podem vibrar fortemente quando
passa um ônibus na rua, porque a freqüência própria da janela é próxima das freqüências
dos ruídos gerados pelo ônibus.
No disco galáctico ocorrem ressonâncias para determinados raios de órbitas, para
as quais durante uma volta completa de uma estrela, no referencial em rotação com
velocidade angular Ωp, estas apresentam um número inteiro de máximos de elongação,
devido ao movimento epicicloidal. Existem duas ressonâncias que são de particular
interesse: a “ressonância interna de Lindblad”, onde Ωp = Ω – κ/2, e a “ressonância externa
de Lindblad”, onde Ωp = Ω + κ/2. Mencionamos no capítulo introdutório o trabalho de
Bertil Lindblad, que estudou as órbitas estelares no potencial galáctico. No local destas
ressonâncias, observando de um referencial em rotação junto com o padrão espiral, ou
seja, no qual Ωp = 0, teríamos Ω = κ/2 ou -Ω = κ/2, para uma e outra ressonância de
Lindblad. O significado do sinal negativo é que, para as regiões mais externas da Galáxia,
as estrelas giram mais devagar do que os braços espirais. Então, num referencial com
velocidade Ωp, as estrelas são vistas girando em sentido contrário. Nos dois casos, a
freqüência epicíclica é o dobro da freqüência de rotação. Note-se que os raios galácticos
onde ocorrem as ressonâncias internas e externas de Lindblad dependem do valor
escolhido de Ωp, como ilustrado na figura 5-7.
As órbitas com dimensões diferentes mostradas na figura 5-3 foram apresentadas
como se correspondessem todas a uma ressonância de Lindblad, sendo todas exatamente
fechadas. Como já discutimos, isto não deveria ser possível, pois Ω - κ/2 não é constante
com o raio, então, cada órbita deveria precessionar num ritmo diferente. No entanto, na
região situada entre as duas ressonâncias (a interna e a externa), é possível encontrar
órbitas fechadas, graças à ajuda das pequenas perturbações comentadas na seção anterior.
Em outras palavras, entre estas ressonâncias, existem soluções auto-consistentes que
permitem a existência de braços estáveis; fora do intervalo das ressonâncias, não
encontramos soluções, portanto não devem existir braços. Podemos ver, na figura 5-7, que
o intervalo permitido para os braços vai de 2,5 a 11 kpc.
Esta noção de que só existem braços entre as duas ressonâncias de Lindblad, é
cheia de conseqüências. Consideramos os braços como os grandes formadores de estrelas;
portanto, em princípio, não deve haver formação de estrelas em quantidade apreciável
além das ressonâncias de Lindblad. Então, deveríamos observar neste ponto uma queda
abrupta na densidade de estrelas jovens. Esta variação poderia afetar as estrelas em geral, e
não apenas as jovens, caso o mesmo mecanismo que mantém os braços tenha funcionado
durante bilhões de anos. No entanto, não é impossível que o valor de Ωp (e em
conseqüência, o lugar onde terminam os braços) tenha mudado com o tempo.
Uma ressonância especial: a co-rotação e o cinturão verde da Galáxia
O raio no qual Ωp = Ω não deixa de ser também uma ressonância, pois temos
igualdade entre a freqüência de rotação das estrelas e a freqüência de rotação dos braços
espirais. Trata-se de um raio galáctico muito especial, no qual acontecem fenômenos
interessantes. Em princípio, nesse raio, uma estrela que se encontra num braço vai
permanecer nele por muito tempo, já que ambos giram com velocidade igual. Da mesma
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forma, uma estrela que está fora do braço também ficará sempre fora. Uma nuvem de gás
situada neste raio galáctico não vai penetrar no braço, logo não vai sofrer a violenta
compressão que desencadeia a formação estelar na travessia de um braço. Portanto, é
esperado um mínimo na taxa de formação estelar, neste raio.
Pelo que podemos constatar da figura 5-7, o raio de co-rotação (raio no qual a
curva de rotação Ω cruza a linha Ωp) situa-se a cerca de 7,5 kpc do centro galáctico. Isto é
perto de onde vivemos, na Galáxia (as curvas da figura 5-7 foram construídas supondo que
a distância do Sol ao centro é de 7.5 kpc). É claro que o raio de co-rotação depende do
valor adotado para Ωp . W. Dias e J. Lépine fizeram uma medida de Ωp baseada no estudo
de uma amostra de aglomerados abertos. Separando estes aglomerados por faixas de idade,
e supondo que os aglomerados são formados nos braços, foi possível observar como os
braços se deslocavam com o tempo. O valor obtido foi uma rotação de um ângulo de 1,5o
por milhão de ano, ou, em outras unidades, 25 km/s/kpc, como indicado pela linha
horizontal na figura 5-7.
Outros estudos confirmam nossa proximidade da co-rotação. Trata-se de um raio
galáctico dos mais seguros para se viver; poderíamos até especular que a existência da
vida na Terra foi favorecida por esta posição particular do sistema solar na Galáxia.
Havendo pouca formação de estrelas, não corremos o risco de ter explosões freqüentes de
supernovas na nossa vizinhança, que poderiam ameaçar a vida na Terra. Devemos lembrar
que as supernovas de tipo II se originam de estrelas muito massivas, que explodem pouco
tempo depois de se formar, e estão associadas às regiões de formação estelar.
Por outro lado, numa ressonância, o movimento de uma estrela não pode ser
predito de forma tão simples, como quando se encontra longe da mesma. Nas
ressonâncias, pequenos efeitos se acumulam. Podemos facilmente imaginar que uma
estrela que se encontra próxima de um braço, no qual existe uma densidade um pouco
maior de matéria, será atraída por este braço, e portanto ela não ficará a uma distância
constante do mesmo. Esta aceleração da estrela acaba produzindo alteração de sua órbita.
Como conseqüência, estrelas situadas próximas da co-rotação podem migrar tanto para
raios galácticos menores quanto para raios maiores. Estas migrações estelares na corotação foram estudadas por J. Lépine, Yu. Mishurov e I. Acharova, que mostraram que
as estrelas podem ser afetadas por variações de 1 a 2 kpc no raio de suas órbitas. É bem
provável, por exemplo, que o Sol não tenha nascido no mesmo raio galáctico em que se
encontra atualmente. A possível migração de estrelas já tinha sido aventada por outros
autores, mas estes não tinham apontado uma causa eficiente de migração.
Outro efeito interessante da co-rotação é que ela funciona como um divisor de
águas, para o meio interestelar. Devido a interação com os braços espirais, o gás que se
encontra em raios maiores que a co-rotação tenderá a fluir para fora, e o que se encontra
em raios menores, fluirá para dentro. É um efeito de hidrodinâmica da interação do gás
com os braços, que pode ser demonstrado analiticamente e também verificado por meio de
simulações por computador. No próximo capítulo discutiremos outra propriedade da corotação: trata-se de uma região onde deve existir um mínimo de enriquecimento em
metais.
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Outras maneiras de entender a estrutura espiral
Até o momento, explicamos os braços espirais através de perturbações nas órbitas
estelares, analisando desvios das trajetórias com relação a órbitas circulares. No entanto,
não foi este o caminho usado por Chiao Chi Lin e Frank Shu, autores do primeiro trabalho
que conseguiu explicar a estrutura espiral, na década de 1960. Estes autores escreveram as
equações de hidrodinâmica para o fluido de gás e de estrelas. As estrelas foram
consideradas de forma estatística, como se elas se comportassem como um fluido. Este
fluido deve obedecer a várias leis de conservação. Uma delas (vamos dizer: a primeira, por
ser a mais simples) expressa a conservação da quantidade de matéria; é chamada de
equação de continuidade de massa. A lei diz que se existe um fluxo médio para fora de um
lugar, a densidade está diminuindo naquele local. A segunda lei é a que expressa as
variações de momentum ou quantidade de movimento como sendo o resultado das forças
que atuam sobre o meio; esta lei é o equivalente da lei de Newton força = massa x
aceleração, para o gás. Finalmente, a terceira lei, a de Poisson, relaciona as flutuações do
potencial gravitacional com as flutuações de densidade de matéria. Ela descreve por
exemplo o fato de que se existe um excesso de densidade em algum local, este excesso vai
produzir forças de atração a sua volta.
Estamos diante de um problema realmente complicado: o fluxo (ou transporte) de
matéria produz alterações na densidade da mesma em diversos pontos do disco galáctico;
estas variações de densidade alteram o potencial gravitacional, fazendo que surjam novas
forças, que alteram o fluxo de matéria. Parece uma espécie de círculo vicioso, em que a
variação de uma grandeza causa variação de outra, até se voltar para a primeira. As leis
acima buscam descrever em conjunto os fenômenos físicos envolvidos na formação e
manutenção dos braços espirais. A semelhança de um sistema de equações ordinárias, em
que uma equação fornece a solução para resolver outra e assim, da inter-relação entre as
equações, obtemos todas as incógnitas do sistema de equações, as leis acima se combinam
num conjunto de equações conhecidas como equações diferenciais (pois elas envolvem
funções e suas derivadas). Pela sua natureza matemática, as equações diferencias são mais
difíceis de serem resolvidas que equações ordinárias, mas, conservando a analogia,
resolver um sistema de equações diferencias é o equivalente a obter as incógnitas do
sistema de equações ordinárias. Entretanto, ao contrário das equações ordinárias, em que
os resultados são valores numéricos, no caso das equações diferenciais, normalmente as
soluções são funções que descrevem a variação das grandezas físicas envolvidas em
função do tempo. Um exemplo de sistema físico simples descrito por equações
diferenciais é o pêndulo, cuja solução é um movimento oscilatório.
As equações diferenciais que nos interessam aqui, descritas acima, parecem
insolúveis à primeira vista. Lin e Shu tiveram grande mérito de persistir diante destas
dificuldades. Tentaremos a seguir explicar de forma resumida o caminho que eles
seguiram. O objetivo é ilustrar uma forma de raciocínio que aparece com freqüência em
astrofísica.
99
Uma aproximação que ajuda muito, para encontrar soluções de equações
diferenciais, é “linearizar” estas equações, e usar a teoria das pequenas perturbações. Isto
significa que consideramos que qualquer uma das funções que aparecem nas equações
(densidade, velocidade, potencial) pode ser representada como a soma de uma função
conhecida mais uma pequena perturbação. Por exemplo, σ (sigma), a densidade
superficial de matéria no disco, pode ser escrita como σ = σ0 + σ1, onde σ0 , termo “de
ordem zero”, é a densidade de equilíbrio, aquela que existe na ausência perturbações, e σ1
é uma perturbação variável no tempo, muito menor que σ0. Em todas as equações
substituímos σ por σ0 + σ1 , e agimos de forma equivalente para outras funções. Como a
situação sem perturbação tem uma solução bem conhecida, é possível subtrair das
equações boa parte dos termos de ordem zero. Desprezam-se também os termos que
envolvem produtos de quantidades pequenas. Depois deste trabalho árduo, chega-se a
uma equação “linearizada” que parece bem mais simples. Mesmo assim, a solução não
“sai” por si só, como no caso de uma equação algébrica que fornece um valor para a
incógnita. Como acontece geralmente na solução de equações diferenciais, o matemático
tem que usar sua intuição e propor uma solução tentativa. No presente caso, podemos
imaginar que solução para σ1 deve ter, por exemplo, a forma de um braço espiral, no plano
galáctico, e variar no tempo de forma periódica. É uma solução tentativa, que ainda
contém alguns parâmetros não determinados; por exemplo, a equação representando uma
variação espiral de densidade contém uma amplitude, o ângulo de inclinação dos braços, e
a freqüência de variação da densidade.
Interromperemos brevemente a descrição da teoria de Lin e Shu para esclarecer a
natureza da função espiral. Uma espiral “logarítmica”, como a representada mais adiante
na figura 5.10, tem uma equação do tipo r = r0 exp[tg(i)*(θ- θ0)] , onde r0 e θ0 são raio e
ângulo iniciais. Podemos ver que quando o ângulo θ aumenta (a medida que damos volta
em torno do centro), o raio aumenta exponencialmente. O termo tg(i) é uma constante que
representa a tangente do ângulo de inclinação, que é o ângulo com o qual a espiral corta
qualquer círculo com centro na origem. Quanto maior i, mais rapidamente r cresce quando
θ cresce, e mais aberta a espiral. Podemos inverter a equação e escrever θ em função de r,
da forma θ = θ0 + [1/tg(i)] ln (r/r0), onde ln é o logaritmo natural. Assim entende-se
melhor o nome “espiral logarítmica”. A solução tentativa proposta por Lin e Shu para a
perturbação do potencial gravitacional no disco é do tipo φ = A cos{m [cot(i) ln (r/r0) –θ
+ θ0 + Ωp t ]}, onde A é a amplitude (intensidade) da perturbação. Podemos constatar que
num dado instante (t = constante), a linha ao longo da qual o potencial φ é mínimo (coseno igual a -1, ou argumento do co-seno igual a π) tem a forma de uma espiral. O mínimo
de potencial é o lugar de máxima densidade de matéria.
Voltando a procura de uma solução para as equações de hidrodinâmica,
substituindo a solução tentativa no conjunto de equações diferenciais já devidamente
linearizadas, encontra-se uma relação entre os parâmetros mencionados (amplitude,
inclinação, freqüência de variação). Chega-se a uma relação entre o comprimento de onda
λ (distância entre máximos de densidade, ao longo de uma direção radial) e a freqüência,
que é chamada de equação de dispersão.
O leitor tem toda razão de estar impaciente: depois de tanto trabalho, ainda temos
uma equação para resolver! Mas tenham calma, a natureza da solução para as equações
diferenciais que descrevem o disco galáctico já tinha sido decidida no passo anterior:
100
fizemos a hipótese de que as perturbações de densidade (ou de potencial e dos outros
parâmetros), têm uma forma espiral. A nova equação a que chegamos só tem por
finalidade nos mostrar em que condições a solução espiral realmente existe. Da mesma
forma que uma equação do segundo grau pode não ter solução, a função matemática que
imaginamos pode levar a valores impossíveis para algumas grandezas. A equação de
dispersão nos traz várias informações úteis2. Por exemplo, ela nos diz que só existem
soluções na região entre as duas ressonâncias de Lindblad. Isto significa que os braços
espirais só podem existir nesta região, que segundo a figura 5-7, seria entre 2,5 e 11 kpc,
para nossa galáxia.. Além disto, esta equação inclui um termo com a dispersão de
velocidades das estrelas. A dispersão de velocidades é uma medida de quanto as
velocidades se afastam, em média, da velocidade normal de rotação perfeitamente circular.
Em outras palavras, é uma medida da largura da distribuição de velocidades. Por
semelhança com a velocidade dos átomos de um gás, diz-se às vezes que a dispersão de
velocidades mostra a “temperatura” do disco da galáxia. A equação de dispersão nos
indica que as galáxias com maior dispersão de velocidade tendem a ter comprimentos de
onda (ou espaçamento entre braços) maiores, ou seja, braços mais abertos. Na figura 5-2
temos exemplos do que seriam braços abertos ou fechados; na última figura da seqüência a
separação entre os braços ao longo de uma direção radial (comprimento de onda) é
pequena. A conexão com temperatura levou a pesquisadora E. Athanasoula a propor uma
brincadeira para lembrarmos da relação que acabamos de discutir: as galáxias que sentem
calor ficam com os braços abertos.
Apesar de partirem de princípios diferentes, as soluções encontradas por Lin e Shu
têm muitas semelhanças com as dos estudos de órbitas estelares que descrevemos
anteriormente. Lin e Shu lançaram as bases da teoria de estrutura espiral. Mas, como na
década de 60 a curva de rotação da Galáxia ainda era mal conhecida, acabaram propondo
uma solução não muito realista para a estrutura galáctica, com dois braços muito apertados
(esta era mais uma aproximação necessária para resolver as equações), e com a co-rotação
muito distante do centro, a cerca de 16 kpc.
Os descrentes
Existem pesquisadores bastante descrentes com relação às formas clássicas de
tratar os braços espirais. Assim, P. Seiden e H. Gerola propuseram um modelo de
formação estelar estocástica auto-propagadora. Eles consideram que qualquer forte
perturbação do meio interestelar, normalmente associada à formação de estrelas massivas,
como é o caso de explosões de supernovas ou ventos de regiões HII, por exemplo,
apresenta inicialmente uma expansão com forma esférica (ou circular, pois estamos nos
interessando apenas à projeção no plano galáctico). Em seguida, a região é deformada pela
rotação diferencial da Galáxia, e acaba tendo uma forma de aspecto espiral. Isto é fácil de
entender: a parte desta zona em expansão mais distante do centro da Galáxia vai girar mais
devagar do que a mais próxima, e região tende a ficar alongada. Embora estas formações
2
Para quem gosta de equações: a relação de dispersão se escreve, em sua versão mais simples, m2(Ωp-Ω)2 =
κ + k 2 a2 -2π G|k| σ, onde k é o número de onda dos braços espirais (= 2π/λ, onde λ é o comprimento de
onda ), a a dispersão de velocidade das estrelas na direção radial, σ a densidade superficial de matéria no
disco, G a constante gravitacional. O lado esquerdo representa a freqüência com a qual uma estrela encontra
com um braço espiral, ao quadrado. Como o lado esquerdo é positivo, o direito também tem que ser, para
que haja solução.
2
101
alongadas tenham vida curta, elas seriam constantemente renovadas pelo estouro de novas
regiões de formação estelar. Estes pseudo-braços não teriam relação com ondas de
densidade, e não teriam portanto compromisso com as ressonâncias de Lindblad, podendo
existir em qualquer raio (figura 5-9). Talvez este mecanismo seja responsável pela
estrutura observada em algumas galáxias chamadas floculentas, nas quais aparece grande
número de pequenas estruturas mal definidas (ver exemplo na figura 5-10), mas,
certamente, não explica as grandes estruturas observadas na maioria das galáxias espirais.
Figura 5-9: Simulação
resultante do modelo de
formação estocástica de
estrelas em galáxias, de
Seiden e Gerola
Figura 5-10: Exemplo
de galáxia floculenta:
NGC4414
Outros autores, como J.A. Sellwood e J.J. Binney, são um pouco menos
descrentes; consideram válida a teoria clássica dos braços espirais, mas no entanto,
consideram que ocorre uma sucessão de ondas com valores diferentes de Ωp . Isto significa
que as ressonâncias interna e externa de Lindblad, e a co-rotação, teriam raios variáveis.
Em princípio, isto poderia ser verificado, pois como comentamos anteriormente, uma
102
posição permanente da ressonância externa de Lindblad deveria produzir uma
descontinuidade na densidade de estrelas em função do raio, naquele local.
Finalmente, vale a pena mencionar a teoria de “ondas corrugadas” de A.H. Nelson
e T. Matsuda. Estes autores consideram que a onda espiral não pode ser tratada apenas em
duas dimensões, dentro do plano galáctico . Segundo eles, o gás sofre deslocamentos para
cima e para baixo do plano, lembrando uma onda na superfície de um líquido ou um papel
ondulado. A corrugação observada em função do raio galáctico, segundo R.J. Quiroga e
W. Schlosser (1977), é mostrada na figura 5.11. De fato, numa pequena escala (da ordem
de 100 pc), a distribuição de gás não é perfeitamente plana. Isto é mais facilmente
observado na vizinhança solar, como no caso do cinturão de Gould, que será comentado
mais adiante.
Figura 5-11: “Corrugação” da distribuição de gás no plano galáctico, segundo
Quiroga e Schlosser. A distância zero corresponde à posição do Sol, e os números
crescentes correspondem a raios galácticos menores. Note-se que as escalas não são
as mesmas nos dois eixos, o que exagera a amplitude da ondulação..
Braços magnéticos
Como discutimos no capítulo 3, a polarização da luz de estrelas é geralmente
devida ao alinhamento dos grãos de poeira com o campo magnético que permeia a galáxia.
Por serem alongados, os grãos absorvem mais a luz polarizada na direção do alongamento
do que na direção perpendicular a esta. Observações da direção de polarização da luz de
milhares de estrelas permitem mapear o campo magnético. A figura 5-12 mostra o céu em
coordenadas galácticas, com dados compilados por P. Fosalba em 2001. Somente no plano
galáctico, onde estão concentradas as nuvens de gás, é que se observa polarização. Os
mapas foram separados em duas escalas de distâncias: um obtido com estrelas situadas até
1 kpc, e outro para as estrelas mais distantes que 1 kpc. Por efeito de perspectiva, as
estruturas situadas mais próximas nos parecem maiores. Com exceção de algumas
estruturas próximas que podem ser associadas a estruturas também vistas nos mapas de
CO ( ver a figura 5-27), vemos claramente que a direção preferencial do campo magnético
é paralela ao plano galáctico.
103
Figura 5-12: Direção do campo magnético ao longo do plano galáctico, obtido da orientação dos
planos de polarização de um grande número de estrelas. O painel superior mostra as regiões
próximas ( até 1 kpc ) e o painel debaixo faz uso de estrelas mais distantes que 1 kpc.
A técnica de polarização de luz de estrelas não nos permite visualizar a distribuição
do campo magnético no disco da galáxia, como seria visto de fora do plano. Foi
mencionado no capitulo 3 que através do tempo de chegada dos pulsos dos pulsares em
distintas freqüências radio, e da polarização da radiação também em várias freqüências,
consegue-se avaliar a intensidade média do campo magnético ao longo da linha de visada.
Essa técnica permitiu verificar que a direção média do campo magnético sofre inversões
de direção, em regiões separadas de aproximadamente 3 kpc, como está ilustrado na
figura 5-13. A comparação com a figura 5-15 (lado esquerdo), que mostra a posição dos
braços da vizinhança solar, sugere que a orientação do campo magnético muda de braço
para braço. Notemos no entanto que as distâncias dos pulsares podem conter erros tanto
aleatórios quanto sistemáticos, pois são deduzidas da medida de emissão, que é uma
grandeza integrada ao longo da linha de visada, algo não muito preciso.
104
Figura 5-13:
Distribuição no plano
galáctico de pulsares
cujas “medidas de
rotação” estão
disponíveis, segundo J.L.
Han e G.J. Qiao (1994).
A dimensão dos símbolos
é proporcional a medida
de rotação; valores
positivos são indicados
por + , e negativos por
círculos. O Sol está no
centro das coordenadas
A teoria da interação do campo magnético com as nuvens de gás interestelar nos
ensina que as linhas de campo ficam “congeladas” ou amarradas às nuvens, pelo fato das
nuvens sempre conterem partículas carregadas que interagem com o campo magnético.
Mesmo as nuvens densas supostamente neutras contém elétrons livres e íons positivos,
devido à penetração dos raios cósmicos. Entre as conseqüências desta lei, torna-se mais
difícil comprimir uma nuvem na presença de campo magnético, porque temos que
comprimir o campo magnético junto, ou seja, existe uma pressão magnética que resiste à
compressão. Num primeiro momento, isto pode ser um fator que inibe a formação de
estrelas. Se uma nuvem de gás se encontra numa região do espaço em que as linhas de
campo magnético se apresentam bem alinhadas e comportadas, nada impede a nuvem de
deslizar ao longo das mesmas, como se estas fossem linhas de trem. Por outro lado, se
existem forças externas suficientes para forçar as nuvens a ir numa determinada direção, o
campo magnético será arrastado junto. O resultado, em qualquer das duas situações, é que
as linhas de campo tenderão a ter a mesma direção do movimento das nuvens.
O que se observa, em galáxias externas, é que o campo magnético se encontra
alinhado com os braços espirais. Isto pode ser visto, por exemplo, em M51 (figura 5-14).
Se a causa da existência dos braços se encontra no arranjo das órbitas estelares, como
argumentamos nas seções anteriores, tendo em vista que o campo magnético não consegue
interferir nas órbitas estelares, ele certamente não é o ator principal que vai definir a forma
dos braços. No entanto, o fato do campo magnético mostrar a existência de movimento de
nuvens ao longo dos braços sugere que talvez as estrelas que se formam nestas nuvens são
colocadas em órbita galáctica numa direção preferencial. Esta consideração talvez seja
importante para o estudo da auto-consistência dos braços.
105
Figura 5-14: Direção do campo
magnético na galáxia M51,
sobreposta ao mapa em 6 cm,
obtidos com o VLA e com o
radiotelescópio de Effelsberg
por A. Fletcher e R. Beck (2004)
Algumas conclusões sobre a teoria dos bracos
Nossa impressão é que a teoria dos braços espirais ainda não atingiu sua
maturidade, e apesar disso andou sendo deixada um pouco de lado, talvez porque é
complexa, e porque os descrentes conseguiram lançar dúvidas sobre os próprios
fundamentos da teoria. Até hoje, não ficou claro o que determina a velocidade de rotação
do padrão espiral. Alguns autores sugerem que as ondas espirais são geradas pela rotação
da barra ou do bojo. Mas por outro lado, ainda nos falta uma teoria que trate as estrelas e o
gás de forma integrada, levando em conta a interação entre estas duas componentes e a
formação de estrelas. Possivelmente, devido à dinâmica do gás, as estrelas recémformadas nos braços da galáxia são colocadas em órbitas que tendem a perpetuar estes
braços. Seria uma teoria auto-consistente mais complexa do que aquela que apresentamos
anteriormente, que só levava em conta as estrelas.
Qual a razão profunda da existência dos braços espirais? Não podemos nos
contentar com uma demonstração matemática de que eles podem existir. A razão básica da
existência de braços espirais parece ser a competição entre a força gravitacional, que tenta
levar toda a matéria para o centro, e a conservação do momento angular, que se opõe a
isto. A rotação diferencial provoca “atrito” ou efeitos de viscosidade no gás do disco. Os
braços propiciam uma forma de conduzir matéria para as regiões centrais, conservando no
entanto o momento angular total, já que as partes mais externas da Galáxia acabam sendo
aceleradas. Se esta interpretação estiver correta, os braços teriam tendência em se auto-
106
organizar, e não dependeriam de influências externas para sua criação; poderiam,
inclusive, determinar o valor de Ωp que mais convém para sua finalidade.
Onde estão, afinal, os braços da Galáxia?
Chega de especulações sobre as razões da existência dos braços. Vamos nos
dedicar a uma tarefa que deveria ser anterior, que é a de descrevê-los. A maior dificuldade
que enfrentamos para desvendar a estrutura espiral da Galáxia é que vivemos dentro do
disco, no qual os braços se encontram. Para saber como seriam os braços, se fossem vistos
de fora da Galáxia, temos que fazer um levantamento de objetos traçadores de braços,
como estrelas luminosas e regiões HII. Mostramos por exemplo na Figura 5-15 (lado
esquerdo), a posição dos aglomerados jovens de estrelas, com idades inferiores a 12
milhões de anos. O primeiro sucesso em evidenciar os braços espirais locais desta forma
foi publicado em 1951, por W.W. Morgan. Na figura atualizada apresentada aqui, os
objetos foram extraídos do catálogo recente compilado por Wilton Dias e colaboradores3.
A partir das distâncias ao Sol e das direções observadas no céu foram calculadas as
posições dos aglomerados no plano galáctico, que são apresentadas em escala. O método é
parecido com o dos geógrafos do passado, que conheciam as distâncias das cidades e dos
acidentes geográficos, e produziam um mapa de uma região, sem dispor de fotos aéreas.
Note-se que só é possível distinguir aglomerados jovens até uma distância relativamente
pequena (alguns kiloparsecs), o que representa apenas uma fração do disco galáctico. Esta
limitação é devida à poeira interestelar, que absorve a luz. É por isto que as figuras só
mostram aglomerados em torno do Sol. Mas, mesmo assim, conseguimos perceber a
existência de alinhamentos de aglomerados, que são os braços espirais, na amostra mais
jovem. Em cerca de 30 milhões de anos os aglomerados se afastam dos braços e por isto a
figura do lado direito não mostra nenhuma estrutura4.
Os melhores traçadores: as regiões HII
Para irmos mais longe no mapeamento da estrutura espiral, temos que contornar o
efeito da poeira. As regiões HII são excelentes candidatas para este estudo, porque são
fortes emissoras de radiação na região rádio do espectro, que não é afetada pela poeira.
Através dos mapeamentos sistemáticos que foram efetuados com radiotelescópios, estes
objetos foram descobertos e identificados, mesmo aqueles que encontram na outra
extremidade da Galáxia. Além da emissão intensa no contínuo (fora das linhas), as regiões
HII apresentam linhas espectrais em rádio-freqüências. São chamadas de linhas de
recombinação, porque correspondem aos fótons de baixa energia emitidos no instante em
que um íon de hidrogênio se recombina com um elétron . Estas linhas nos permitem medir
a velocidade radial das regiões HII (velocidade de aproximação ou de afastamento).
Como foi ilustrado na figura 4-5, a velocidade observada do gás varia ao longo de uma
3
Disponível no endereço eletrônico http://www.astro.iag.usp/~wilton
Alertamos aqueles que forem aprofundar os estudos que geralmente os especialistas da área representam o
eixo Y na horizontal (direção de rotação da galáxia) e o eixo X na vertical.
4
107
Figura 5-15: Posições dos aglomerados abertos no plano galáctico. À esquerda, os
aglomerados mais jovens que 12 milhões de anos; eles delineiam braços espirais, indicados
por linhas. À direita, os aglomerados mais velhos que 30 milhões de anos ; neste caso não
conseguimos ver nenhuma estrutura. Nos dois casos o Sol se encontra no centro dos gráficos
( y = 0, x=7,5,) e o centro da galáxia, na parte inferior da figura (0,0).
linha de visada, dentro do plano galáctico. Isto vale igualmente para as regiões HII, que
também seguem a rotação galáctica. Inversamente, sabendo a velocidade, em princípio,
podemos obter a distância. Este método, muito usado para determinação de distância de
objetos galácticos de velocidade conhecida, é chamado de método cinemático. Um
problema deste método é que para as partes internas da Galáxia, ele costuma dar duas
soluções (existem duas distâncias que apresentam a mesma velocidade) e, muitas vezes, é
difícil saber qual das duas é a correta. As duas soluções correspondem a pontos
eqüidistantes do centro galáctico. Por exemplo, na figura 4-6, o ponto situado mais
próximo do Sol, simétrico do ponto B com relação ao ponto A, terá a mesma velocidade
observada que o ponto B.
Entre os trabalhos de mapeamento dos braços da galáxia através de regiões HII,
um dos mais conhecidos é o de Y.M. Georgelin e Y.P. Georgelin (1976), cujo resultado é
apresentado na figura 5-16. Eles deram mais peso às regiões HII de grande dimensões, e
não tiveram muitos problemas com a ambigüidade de distâncias, porque escolheram um
bom número de regiões HII visíveis (na região óptica do espectro), para as quais era
possível escolher a distância correta com base em outros critérios. Chegaram a conclusão
de que existe uma estrutura espiral com 4 braços, bem definidos principalmente para a
região de longitudes de 270o a 360o. Do outro lado do centro, com relação a nossa posição,
a estrutura é muito incerta. Embora este trabalho seja relativamente antigo, ele é uma
referência, e não houve muito progresso desde então.
Dois grupos do IAG-USP, A. Damineli e colaboradores, e Z. Abraham e
colaboradores, tem observado no infravermelho próximo estrelas associadas a regiões HII
galácticas. Lembramos que no infravermelho é possível observar melhor através da poeira
108
da galáxia. Com isso, eles têm conseguido melhorar a determinação da distâncias das
regiões HII. Trata-se de uma tarefa árdua, e serão necessários vários anos para se
conseguir uma melhor definição dos braços espirais.
Figura 5-16: Os braços espirais
da Galáxia,baseados na
distribuição de regiões HII, de
acordo com Georgelin e
Georgelin. A posição do Sol é
representada por um círculo. As
linhas que saem desse círculo
indicam direções tangencias aos
braços (conceito ilustrado na
Figura 5-19). As regiões HII são
indicadas por símbolos
diferentes, dependendo de sua
importância e do fato de terem
sido detectadas em freqüências
radio ou no visível.
Para tentar melhorar o traçado dos braços, podemos fazer uso dos diagramas
longitude-velocidade. A idéia é a seguinte, relembrando algumas noções que já foram
passadas ao leitor. Todas as regiões HII, e também o Sol, se encontram no plano galáctico,
ou muito próximo dele. Então podemos raciocinar em termos de 2 dimensões, como se o
disco galáctico fosse um plano, e tomar o Sol como centro de referência, como fizemos na
figura 4-5. Basta um ângulo para descrever a direção em que se encontra uma região HII,
vista do Sol: a longitude galáctica, que vai de 0o a 360o, tomando como 0o a direção do
centro da Galáxia (as coordenadas galácticas foram introduzidas no capítulo 3; ver figura
3-5). Como ilustrado na figura 5-16, a longitude é definida como sendo crescente no
sentido anti-horário, com o Sol representado na parte superior do gráfico; no exemplo as
longitudes estão indicadas na parte externa. Insistimos no fato do Sol ser o centro deste
sistema de coordenadas, apesar do nome coordenadas galácticas poder levar os incautos a
pensarem que a origem é o centro da galáxia Para qualquer região HII, temos apenas duas
informações seguras, vindas das observações: sua direção (ou longitude) e sua velocidade.
A distância, não sabemos com certeza. Então vamos trabalhar com o que temos, e traçar o
gráfico da velocidade em função da longitude, também chamado de diagrama longitudevelocidade ou l-v, apresentado na figura 5-19. As linhas que aparecem nesta figura
representam os braços espirais, como explicado a seguir.
Com um exemplo de apenas um braço, esclareceremos a correspondência entre
braços e suas imagens no diagrama l-v. Na figura 5-17, desenhamos uma espiral perfeita,
que representa um braço, no plano galáctico. Para cada ponto desta espiral, podemos
calcular sua velocidade observada, supondo que seja um objeto galáctico com rotação
109
circular, obedecendo a curva de rotação. Referimo-nos novamente à figura 4-6, que mostra
a relação entre velocidade de rotação e velocidade observada. Também para cada ponto da
espiral da figura 5-17, temos a longitude (angulo entre a direção do ponto e a direção do
centro, vistos do Sol). Tendo uma velocidade e uma longitude, podemos colocar o ponto
correspondente no diagrama l-v, como ilustrado na figura 5-18. Repetindo a operação
ponto a ponto, obtemos a linha desta última figura, que é uma imagem do braço.
Figura 5-17: Espiral logarítmica ideal representada no plano galáctico, para ilustrar a
correspondência entre pontos do plano galáctico e pontos do diagrama longitude-velocidade
(figura 5.18).
Figura 5-18: Imagem do braço espiral da figura 5-13, no diagrama l-v.
Na prática, o que se tem são os dados diretamente observados colocados no
diagrama l-v, e por tentativa e erro ajustam-se os parâmetros que descrevem os braços; isto
é o que foi feito para as regiões HII apresentadas na figura 5-19.
110
Figura 5-19: Diagrama longitude-velocidade para as regiões HII da Galáxia (pontos) e
braços espirais ajustados (imagem no diagrama l-v dos braços mostrados na figura 5.20).
Figura 5-20: Posição no plano galáctico dos braços que resultam do ajuste do diagrama
l-v e do ajuste das direções tangenciais. A numeração dos braços é a mesma das
figuras 5-22 e 5-25.
111
Direções tangenciais
Uma outra forma de descobrir onde estão os braços é através de suas direções
tangenciais. O conceito é ilustrado na figura 5-21. Nestas direções, a linha de visada tem
Figura 5-21: Conceito
de direções tangenciais
a braços
um percurso maior no interior do braço. Por isso, num gráfico da intensidade de um
traçador de estrutura espiral (poeira, CO, etc.) em função da longitude galáctica,
observaremos picos de emissão. Podemos verificar isto na figura 5-22, que mostra o perfil
da emissão da poeira em 100 µm em função da longitude galáctica, dentro do plano
galáctico.
Figura 5-22: Perfil de emissão de poeira da Galáxia no infravermelho distante (100µm),
obtido varrendo o plano galáctico (variando a longitude, com latitude = 0o). Os dados são
do satélite IRAS. Os picos indicam as direções de tangentes a braços (como ilustrado na
figura 5-18), e a numeração permite identificar os braços correspondentes ao modelo da
figura 5-17. A longitude é representada como variando de -180o a 180o, sendo 0o a direção
do centro galáctico.
112
Procurando conciliar da melhor forma os ajustes do diagrama l-v e os das direções
tangenciais, usando os dados disponíveis de CO, H, poeira e regiões HII, E.B. Amores e J.
Lépine obtiveram a configuração de braços no plano galáctico apresentada na figura 5-17.
Podemos ver que o outro lado da galáxia continua menos conhecido que “nosso” lado. O
resultado obtido não difere muito do de Georgelin e Georgelin, apresentado na figura 513; apenas alguns detalhes foram acrescentados pelo estudo mais recente.
Um mito desfeito: o braço em expansão de 3 kpc
A literatura dos anos 60 a 80, principalmente, menciona muito “o braço em
expansão de 3kpc”. Os 3 kpc se referem à distância provável do braço ao centro galáctico.
Nos espectros de HI em 21 cm, obtidos em longitudes até cerca de 30o do centro galáctico,
sempre em latitude 0o (dentro do plano galáctico), se observa um pico de emissão com
velocidade negativa elevada (da ordem de -50 km/s), o que indica gás vindo em nossa
direção. Se o gás da Galáxia tivesse apenas movimento orbital circular em torno do
centro, ao olharmos exatamente na direção do centro, só deveríamos observar gás com
velocidade nula, já que órbitas circulares atravessam perpendicularmente a linha que nos
une ao centro, não existindo portanto componente de velocidade em nossa direção. A
figura 4-5 pode auxiliar na visualização de qual seria a velocidade esperada de um objeto
situado entre nós e o centro galáctico. A velocidade negativa observada foi então
interpretada como a evidência de um braço da Galáxia se afastando do centro, ou “em
expansão”. Não existindo maiores informações quanto a sua distância, esta foi estimada de
maneira aproximada com base na direção tangencial que este braço apresentaria. Um
braço em expansão é algo que não se encaixa nas teorias clássicas dos braços, como a
teoria de Lin e Shu. Alguns autores sugeriram que a existência de gás em expansão seria a
prova de atividade explosiva recorrente, no centro galáctico.
Figura 5. 23: Braço hipotético em expansão. Sua posição aproximada com
relação ao centro galáctico e ao Sol (representado por um círculo) é indicada.
113
Com base no modelo “auto-consistente” de L.H. Amaral, discutido mais acima,
percebe-se que não se trata de um movimento de expansão. As órbitas esperadas na
ressonância interna de Lindblad, situada a cerca de 2,5 kpc do centro, são alongadas (não
circulares), e apresentam uma orientação tal que uma componente de velocidade na nossa
direção é esperada. Portanto, o modelo de Amaral, cuja finalidade não era o estudo da
“expansão”, mas o de órbitas no potencial da Galáxia, explica as velocidades negativas
observadas, dentro de uma visão tradicional da estrutura espiral, sem que haja qualquer
fluxo de gás do centro para fora.
Nossa vizinhança; o cinturão de Gould
Existe na vizinhança do Sol, dentro de um raio de cerca de 200 pc até talvez 500 pc
em algumas direções, uma grande estrutura que não é muito bem entendida. Vamos
dedicar esta seção a uma discussão relativamente detalhada da mesma, porque
provavelmente ela faz parte do braço espiral local, ou é o próprio braço. Se isto for
verdade, entender a dinâmica desta estrutura seria entender como funciona um braço. Se
não compreendemos um braço que é próximo de nós e que pode ser facilmente observado,
com que moral podemos discorrer sobre os braços mais distantes?
Observamos a olho nu um grande número de estrelas brilhantes de tipo espectral
B, que estão um pouco afastadas do plano galáctico, e incluem as estrelas do Escorpião,
do Centauro, e o famoso Cruzeiro do Sul. Esta estrutura não é simétrica com relação ao
plano galáctico, só aparecendo nas direções das constelações mencionadas, situadas em
latitudes positivas (lembramos que a latitude é o ângulo entre a direção de um objeto e o
plano galáctico; vai de -90o a + 90o). Esta estrutura, que pode ser vista na foto da Via
Láctea apresentada no Capítulo 1 (Figura 1-7), foi observada por John Herschell na África
do Sul, e analisada por Benjamin Gould em seu livro Uranometria, em 1879. De origem
americana, Gould foi diretor do Observatório de Córdoba (Argentina). Ele considerou que
essa estrutura bem visível era parte de um grande anel que circunda o Sol, que inclui a
região de Órion e outras associações de estrelas OB, como a de Perseus. O Sol estaria
dentro do anel, mas não exatamente no centro. A projeção do anel no plano galáctico está
indicada na figura 5-24. O anel estaria contido num plano inclinado em cerca de 20o com
relação ao plano galáctico, que coincide com a estrutura marcada com o número 1 na
figura 5-11. Este anel ficou conhecido como o Cinturão de Gould (Gould’s Belt) e vários
seguidores, como o argentino W. Pöppel em trabalho recente de revisão, defenderam e
aperfeiçoaram o modelo de um anel um pouco alongado em expansão, com dimensões da
ordem de 1000 pc × 700 pc. Segundo esse modelo, o Cinturão de Gould teria se originado
há aproximadamente 70 milhões de anos, de uma forte perturbação no centro do atual
anel. O mexicano G. Tenório-Tagle, entre outros, sugeriu que esta perturbação pudesse ser
o impacto de uma nuvem de alta velocidade vindo de fora da galáxia. Mas, na verdade, a
existência de um “cinturão” completo não está nada comprovada, pois existem longos
trechos do mesmo sem associações OB. O que se observa são alguns grupos alinhados de
estrelas jovens, mas o termo cinturão não parece justificado.
Para esclarecer a natureza desta grande estrutura, temos que visualizá-la em
diversas escalas de dimensão, e projeções em planos diferentes (no plano do céu e no
plano galáctico). Grupos de estrelas jovens estão normalmente associados a nuvens
moleculares, porque afinal, estrelas se formam a partir do gás interestelar. De fato, a
mesma região do céu ocupada pelas associações de estrelas de Sco-Cen contém varias
114
nuvens moleculares, tais como ρ Ophiuchus, Lupus, o Saco de Carvão, etc. Na figura 524 apresentamos a posição relativa destas nuvens, no plano galáctico. Um pouco abaixo do
Sol, situado no centro da figura, vemos um alinhamento de nuvens moleculares, que passa
na longitude zero a cerca de 150 pc do Sol. Este alinhamento coincidiria com a parte
inferior do Cinturão de Gould, que em sua parte superior passaria pelas nuvens de Perseus
e de Orion. Em nossa opinião, esse grande anel envolvendo o Sol não existe; o que existe
são duas linhas de nuvens moleculares que acompanham o braço local (o braço do meio na
figura 5-12). Um destas linhas está indicado na figura 5-24; a outra seria paralela a esta
última, cerca de 500 pc acima na figura, dando a impressão de ser parte de um anel.
Figura 5-24. Posição relativa das principais nuvens escuras situadas num raio de 1 kpc em
torno do Sol, projetadas no plano galáctico, baseado em trabalho de M.T. Dame. O raio dos
círculos são proporcionais às massas das nuvens, conforme indicado na escala ao lado. A
linha pontilhada indica um alinhamento de nuvens que provavelmente acompanha a parte
interna do braço espiral local. A elipse indica a posição do hipotético Cinturão de Gould.
Outra explicação, bastante distinta daquela do Cinturão de Gould, para as
associações estelares do Escorpião e do Centauro (Sco-Cen, seguindo a tradição de nomes
em latim), foi oferecida por A. Blaauw. Este astrônomo holandês, em trabalhos de 1965 e
1991 que tiveram bastante influência, considerou que esta região constituía o melhor
exemplo de “formação seqüencial de estrelas”. Segundo este modelo, um grupo de estrelas
jovens e massivas, recém-nascidas no interior de uma nuvem interestelar, é capaz de
comprimir o gás da nuvem por meio de seu vento estelar, e assim desencadear a formação
de um novo grupo de estrelas. O novo grupo de estrelas repetiria o processo, e assim
115
sucessivamente; desta maneira, a formação estelar se propagaria, consumindo a nuvem
como o fogo consome uma floresta. Um dos argumentos que parecia favorecer este
modelo era o fato das idades dos aglomerados estelares apresentarem um “gradiente”, ou
seja, uma seqüência decrescente de idades seguindo uma direção no espaço (a direção que
teria sido seguida pelo incêndio). Esta teoria não prevê a formação de um cinturão, mas de
grupos alinhados de aglomerados jovens de estrelas. Dados mais recentes mostram que a
história de Sco-Cen não pode ser a de formação seqüencial. O gradiente de idades não foi
confirmado, e as velocidades individuais das estrelas no espaço, estudadas por Marília
Sartori, não indicam a presença de sucessivos “centros” formadores de estrelas. A
velocidade de propagação da onda de formação estelar foi estimada por B. Elmegreen
como sendo da ordem de 5 km/s. Tal velocidade resultaria em tempo longo (da ordem de
30 milhões de anos) para percorrer a extensão total da região estudada por Blaauw, de
cerca de 150 pc; este tempo de propagação produziria grande diferença de idade entre
grupos estelares das duas extremidades da região, que não é observada. Portanto, não se
sustentou aquilo que era tido como o melhor exemplo de formação seqüencial de estrelas.
O interessante é que mesmo que existam, em algumas direções da Galáxia, grupos de
estrelas com idades crescendo numa direção, isto poderia ser explicado por vários outros
mecanismos, tais como colisão de nuvens de gás, ou penetração do gás em braços espirais.
Por outro lado, num modelo de formação seqüencial, no qual a formação de um
aglomerado de estrelas é desencadeada pelo aglomerado anterior, a formação do primeiro
aglomerado teria que ser explicada por um outro mecanismo (pois não haveria aglomerado
anterior). Então, já que um outro mecanismo tem que existir, porque os grupos
subseqüentes também não poderiam ser explicados por ele? Existem argumentos teóricos
para se afirmar que explosões de supernovas inibem a formação estelar ao seu redor em
vez de estimulá-la. Apesar de não haver nenhum exemplo realmente comprovado do
funcionamento do processo de “formação seqüencial”, o conceito se enraizou, e é citado
como se fosse uma verdade estabelecida.
Discutiremos algumas características das nuvens moleculares já mencionadas, ρ
Ophiuchus, Lupus, e Saco de Carvão. As duas primeiras são regiões de formação estelar,
repletas de estrelas T Tauri (estrelas de relativamente pequena massa, como a do Sol, mas
que acabaram de se formar e ainda não atingiram a seqüência principal) e também de
objetos infravermelhos ainda totalmente embebidos em regiões densas das nuvens, que
indicam que a formação estelar continua ocorrendo. A estas nuvens devemos acrescentar
as da região do Camaleão (Cha), que embora apareçam no alinhamento da figura 5-24,
eram consideradas sem relação com as primeiras, por estarem do outro lado do plano
galáctico (latitudes negativas). Sabemos hoje, em grande parte graças ao trabalho de
Marília Sartori, que estudou a distribuição espacial das estrelas jovens associadas a esta
regiões, que as nuvens do Cha fazem parte do mesmo conjunto que aquelas associadas aos
grupos estelares de Sco-Cen. As nuvens moleculares que se estendem de Oph até Cha
foram objeto de inúmeros estudos. Por exemplo, Jane Gregório-Hetem efetuou
mapeamento das nuvens de Cha, usando a técnica de contagem de estrelas. As nuvens
densas, por conterem poeira, bloqueiam a luz das estrelas que estão situadas atrás.
Somente estrelas muito brilhantes conseguem ser vistas através das nuvens, logo o numero
aparente de estrelas, por unidade de área do céu, diminui muito, na direção de uma nuvem.
Por meio da contagem de estrelas, é possível calcular a extinção e até a massa das nuvens.
Massas típicas são da ordem de cem mil massas solares. Um grupo de Belo Horizonte
(Gabriel Franco, Wagner Corradi), efetuou medidas fotométricas (índices de cor) de um
116
grande número de estrelas nessas regiões, conseguindo distinguir as estrelas que estão na
frente ou atrás de nuvens, cercando, desta forma, a distância destas (figura 5-25). Estes
pesquisadores mostraram que existe algo como um paredão de poeira a cerca de 150 pc de
nós, do qual as nuvens de Cha e o Saco do Carvão são apenas manifestações mais densas.
Mesmo fora destas nuvens bem conhecidas, numa grande extensão, existe um acréscimo
súbito na extinção da luz das estrelas, na distância do paredão.
Figura 5-25. Avermelhamento de estrelas em função da distância, numa direção próxima
do Saco de Carvão, mas não coincidente com qualquer nuvem molecular, segundo o
grupo de Belo Horizonte. Vê-se que a partir de uma distância de 150 pc ( linha vertical)
todas as estrelas apresentam um índice de cor superior ao valor indicado pela linha
horizontal. O índice de cor não aumenta com a distância; ele é atribuído a uma parede
fina de poeira a cerca de 150 pc.
O grupo de Belo Horizonte interpretou este paredão como sendo a fronteira entre duas
grandes bolhas mais vazias de meio interestelar. Se tentarmos localizar o “paredão” no
mapa visto “de cima” do plano galáctico na vizinhança solar (figura 5-24), vemos que ele
coincide com o alinhamento de nuvens já discutido. Ou seja, em alguns lugares o paredão
é mais denso e toma o aspecto de nuvem. O alinhamento de nuvens e o paredão de poeira
estão na borda interna do braço espiral local delineado por aglomerados abertos na figura
5-15 (por borda interna entendemos aquela situada do mesmo lado que o centro da
Galáxia). Note-se que na escala da figura 5-15 a distância do alinhamento de nuvens ao
Sol (150 pc) é algo muito pequeno. É tentador, portanto, imaginar que o alinhamento de
nuvens e o paredão são a mesma coisa que as faixas escuras que são vistas nas bordas
internas de braços em imagens de outras galáxias (figura 5-26). O gás do disco galáctico,
ao alcançar um braço, devido a diferença de velocidade de rotação entre eles, acaba
sofrendo freamento e condensação em nuvens moleculares, o primeiro passo para a
formação de estrelas.
117
Figura 5-26: Galáxia
espiral M51 (foto
distribuída pela
NASA). Vêem-se
nuvens escuras nas
bordas internas dos
braços espirais
Vamos agora examinar as mesmas nuvens sob um outro ângulo, que permite ver
sua dimensão na direção perpendicular ao plano galáctico. Algumas nuvens como ρ Oph,
por exemplo, que se encontra um pouco “fora” do plano galáctico, em quase 20o de
latitude, apresentam filamentos bastante alongados, que as unem ao plano galáctico. Isto
pode ser visto na figura 5-27, que em sua parte superior mostra uma imagem da Galáxia
no visível com as coordenadas galácticas, e na parte inferior a mesma região mapeada em
rádio numa linha da molécula CO. A nuvem ρ Oph fica na parte superior das duas
imagens, na longitude de 355o aproximadamente. A impressão que se tem é que ρ Oph foi
ejetada de uma região próxima ao plano da Galáxia, por ter deixado um rastro de
filamentos.
Figura 5-27: As nuvens moleculares próximas, (a) no visível, com a luz do bojo da Galáxia
servindo de fundo, e (b) em mapa da linha da molécula CO em 115 GHz (survey efetuado por
M.T. Dame). Podem ser vistos a nuvem ρ Oph em aproximadamente l=355o e b= +18o, um
filamento que a interliga com o plano galáctico e outros filamentos paralelos a este.
118
J. Lépine e G. Duvert (Observatório de Grenoble) propuseram um modelo de
formação estelar por colisão de nuvens de alta velocidade vindas de fora da Galáxia, para
explicar o fato das nuvens estarem deslocadas com relação ao plano galáctico, e para
explicar os filamentos. Embora este modelo fosse convincente na época, acreditamos hoje
que ele merece o mesmo destino dos modelos do cinturão de Gould em expansão, e do de
formação seqüencial de estrelas: parecem todos condenados pelas observações mais
recentes, principalmente as observações das velocidades estelares descritas a seguir.
Examinemos o que as velocidades das estrelas associadas a essas nuvens nos
ensina. Apresentamos na figura 5.28, em coordenadas galácticas (latitude no eixo vertical
e longitude no eixo horizontal) um mapa com movimentos próprios das estrelas jovens da
região do céu que contém Sco-Cen e Cha. A região é ampla, pois cobre 90o em longitude,
¼ de volta do céu, que corresponde à metade direita das figuras 5-27. As estrelas foram
selecionadas com base no fato de serem jovens; todas tem menos de 30 milhões de anos. É
sempre bom lembrar, para efeito de comparação, que o tempo de vida de uma estrela como
o Sol é da ordem de 10 bilhões de anos. As estrelas mais massivas representadas são de
tipo B; estas já tinham sido reconhecidas há muito tempo como fazendo parte de Sco-Cen.
Pelo menos uma, α Sco (Antares) já evoluiu bastante além da Seqüência Principal (SP) e
se transformou numa supergigante vermelha, de tipo M. É comum falar-se em
“associações OB”, porque as estrelas destes tipos espectrais se destacam claramente. Isso
não quer dizer que estas associações não contenham estrelas de todos os tipos espectrais.
As estrelas menos massivas evoluem mais lentamente, e nas associações jovens, muitas
sequer chegaram na SP; são as estrelas T Tauri. Estas, por serem também mais fracas, só
foram identificadas recentemente, já que elas não se distinguem facilmente de milhares de
estrelas avermelhadas que são observadas em qualquer direção do céu, em imagens de
longa exposição. Para saber se uma estrela é uma T Tauri, é necessário obter um espectro,
e verificar se ela apresenta uma linha de lítio, um elemento que desaparece quando a
estrela atinge a seqüência principal. Uma contribuição importante para a descoberta de
novas estrelas T Tauri e estrelas Ae/Be de Herbig (também estrelas pré-SP, mas de massa
um pouco maior que as T Tauri) foi o levantamento sistemático (ou “survey”) do Pico dos
Dias, conduzido por Carlos Alberto Torres e Germano Quast, do Laboratório Nacional de
Astrofísica (Itajubá), Ramiro de la Reza do Observatório Nacional (Rio de Janeiro), Jane
Gregório-Hetem e J. Lépine (IAG-USP).
As flechas na figura 5.27 indicam a direção do movimento próprio das estrelas, que
na verdade, não é 100% “próprio”. Boa parte deste movimento é o reflexo do movimento
do Sol. Da mesma forma que quando estamos andando de automóvel, a paisagem parece
estar andando para trás, a velocidade do sistema solar faz com que as estrelas próximas
pareçam se deslocar em sentido contrário. O fato de não haver uma grande variedade nos
movimentos próprios (ou no tamanho das flechas), nos indica que todas as estrelas estão
aproximadamente à mesma distância. O conceito de movimento próprio foi discutido no
capítulo 2; é bom lembrar que estrelas muito distantes terão movimento próprio nulo. As
estrelas jovens da região que estamos estudando estão concentradas numa pequena faixa
119
de distância, a aproximadamente 150 pc, a mesma distância do alinhamento de nuvens
indicado na figura 5-23 e o paredão de poeira comentados nesta secção.
A direção de Sco-Cen no céu é próxima da direção do centro galáctico. Em termos
relativos, as estrelas de Sco-Cen estão muito perto de nós, entre 100 e 200 pc,
comparando-se com os cerca de 8 kpc do centro galáctico. Mas, mesmo assim, estrelas um
pouco mais próximas do centro galáctico do que nós dão uma volta em torno do centro
em menos tempo. Trata-se da rotação diferencial, que já comentamos. Portanto as estrelas
de Sco-Cen deveriam aparecer, vistas do nosso referencial, se deslocando no sentido da
rotação galáctica. O que vemos na figura 5-28 é um movimento em direção contrária.
Figura 5-28: Posições
das estrelas jovens do
grupo Sco-Cen e Cha, em
coordenadas galácticas, e
a direção de seus
movimentos próprios,
segundo trabalho de M.
Sartori. O comprimento
das flechas indica o
deslocamento esperado em
20 milhões de anos.
Como já dissemos, isto é em grande parte devido ao reflexo do movimento do Sol, com
relação ao Padrão Local de Repouso (PLR). Não apresentaremos aqui a “verdadeira”
velocidade das estrelas jovens, porque as correções a serem feitas são discutíveis, sendo
que diferentes autores recomendam correções distintas; elas dependem da distância das
estrelas, da velocidade adotada do Sol com relação ao PLR, da correção de rotação
diferencial, etc. Se depois de tudo considerado, as estrelas ainda giram em torno do centro
galáctico com velocidade menor do que se esperaria da curva de rotação, como nos parece
ser o caso, isto indica que sofreram um ligeiro freamento em seu processo de formação.
Como conclusão desta última seção, mesmo em nossa vizinhança, num raio de até
algumas centenas de pc, existem estruturas que não são bem entendidas. Temos diversos
modelos para elas, mas nenhum explica a totalidade dos fatos observados. Um bom
modelo tem que explicar, mesmo que de forma qualitativa, a distribuição do gás e das
estrelas, suas velocidades espaciais e seqüência (ou ausência de seqüência) de idades. Um
modelo que explica as observações de objetos projetados no plano galáctico, mas não as
velocidades observadas na direção perpendicular ao plano, é incompleto. Se não explicar a
orientação das estruturas filamentares do gás, o modelo será também incompleto. Alguns
dirão que uma combinação dos modelos disponíveis deve se aproximar da realidade. Isto
em geral não é verdade, pois os modelos são contraditórios. Se o que estamos observando
é um anel em expansão, então não deve existir formação seqüencial de estrelas ao longo
120
do anel; as estrelas nascem simultaneamente em todo o perímetro. Se o que estamos
observando como um paredão de poeira é uma espécie de fronteira entre duas bolhas
quentes e vazias, semelhante à fronteira entre bolhas de sabão, então o gás do paredão não
está sendo constantemente realimentado, como é o caso de um braço espiral. Um braço
espiral não produz velocidades espaciais iguais à de um anel em expansão, nem à do efeito
de uma nuvem de alta velocidade caindo sobre o disco galáctico. O que faltou, na profusão
de modelos propostos nas últimas décadas, foi ir mais afundo em todas as conseqüências
observáveis.
Vamos relembrar alguns argumentos em favor da hipótese de que esta grande
estrutura do Sco-Cen até o Cha é um trecho de um braço espiral. Primeiro, do mapeamento
mais geral dos braços espirais apresentado anteriormente, dá para ver que há um braço que
passa muito perto do Sol, apenas um pouco para dentro do circulo de raio Ro. No diagrama
l-v, por exemplo (figura 5-19, vemos um acúmulo de regiões HII na direção l= 85o (um
pouco menos que 90o ) e outro na direção de -95o. Pensando na figura 5.21, para termos
direções tangenciais formando um ângulo tão aberto, só seria possível com um braço que
passe muito próximo do Sol. Vemos diretamente este braço na figura 5.20. Fazendo um
“zoom” sobre a região, este braço parece ser o mesmo que o alinhamento de nuvens que
discutimos a partir da figura 5-24 A ausência de gradiente importante de idades ao longo
do alinhamento de nuvens indica que o processo de formação estelar foi disparado ao
mesmo tempo em todas as sub-regiões. Inclusive, a impressão que se tem é que todas as
sub-regiões contém desde estrelas muito jovens até estrelas com mais de 30 milhões de
anos, que é o tempo típico para estrelas “saírem” dos braços. Ou seja, há alguma indicação
de que um processo de formação estelar contínuo, de longa duração, esteja ocorrendo. Um
tal processo contínuo é esperado num braço espiral, que é constantemente alimentado por
gás devido à rotação galáctica.
Por outro lado, depois das correções necessárias, a velocidade observada das
estrelas parece apresentar uma ligeira perturbação em direção contrária à rotação galáctica,
o que é esperado da teoria da estrutura espiral. Numa região do disco galáctico interna ao
raio de co-rotação, o gás em órbita galáctica sofre um choque ao penetrar num braço, cujo
primeiro efeito é frear o gás. Conseqüentemente, as estrelas formadas a partir deste gás
também iniciarão sua vida com velocidade inferior à velocidade normal de rotação. No
entanto, como estamos próximos a co-rotação, o efeito tem amplitude pequena. Mas esta
interpretação em termos de braços espirais ainda não está plenamente consolidada. Uma
observação que não é bem explicada é a inclinação das velocidades com relação ao plano
galáctico. Possivelmente, a teoria plana dos braços espirais é simplificada demais, e temos
que analisar melhor as teorias de ondas corrugadas (lembremos a figura 5-14).
Estaríamos então dentro de um braço, ou a uma distância de apenas 150 pc da
borda interna de um braço? O perigo desta situação, com risco de explosões de supernovas
na nossa vizinhança, é diminuído pelo fato de ser um braço “fraco”. Notemos que no mapa
do plano galáctico de Georgelin e Georgelin (figura 5-16), este braço dentro do qual o Sol
estaria nem aparece. Nosso braço provavelmente é “fraco” devido a proximidade da corotação, que como comentamos, é uma inibidora da formação estelar. (se o gás não penetra
nos braços porque gira com a mesma velocidade que eles, a formação estelar não é
alimentada). Segundo W. Dias e J. Lépine, supondo que o raio galáctico do Sol seja 7,5
121
kpc, o raio de co-rotação seria aproximadamente 8 kpc. Isto não seria incompatível com o
fato de haver uma região de formação estelar (Sco-Cen) em um raio galáctico um pouco
menor do que o do Sol.
Sabendo a posição exata da co-rotação, poderíamos calcular quanto tempo atrás
estávamos na região mais ativa do braço (o alinhamento de nuvens e regiões de formação
estelar). Para isto bastaria analisar o movimento do Sol dentro do referencial ligado aos
braços espirais. De forma ainda incerta estima-se que isso ocorreu a algumas dezenas de
milhões de anos atrás. Existem especulações ainda pouco investigadas, procurando
associar os fenômenos de extinção em massa de espécies à travessia dos braços pelo
sistema solar. A extinção dos dinossauros, há 65 milhões de anos, por exemplo, poderia
ser o resultado de uma última travessia deste tipo.
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