E ISSO É COISA DE HOMEM? Uma Análise sobre as Masculinidades no Campo da Moda em Maceió Milane Costa1 RESUMO Gênero, como categoria de análise, nos remete a processos de diferenciação social entre os dois sexos. Nesse processo, é possível perceber que os papeis sexuais tem sido tradicionalmente concebidos como resultado de uma divisão natural do trabalho que atribui responsabilidades que demandam investimentos racionais, físicos, estéticos e emocionais diferenciados para homens e mulheres. Quando se pensa no campo da moda, dada a demanda de sensibilidade, criatividade e refinamento, na distribuição de papeis específicos desse campo, com frequência se pensa em mulheres ou homossexuais. Mediante o uso de um instrumental metodológico de ordem qualitativo e partindo dessa constatação, nesta pesquisa assumo o desafio de problematizar o conceito de habitus do campo da moda para perceber a vivência de valores atribuídos à masculinidade por homens heterossexuais que atuam nesse campo. Palavras-chave: masculinidades; trabalho; moda; gênero. INTRODUÇÃO: Essa pesquisa de mestrado tem por objetivo geral construir uma representação da auto percepção de homens que trabalham no setor de moda quanto ao exercício de sua masculinidade. A relação moda/exercício das masculinidades suscita uma série de inquietações. Entre outras, nesta pesquisa procuro responder as seguintes questões: Como homens que trabalham no mercado da moda em Maceió pensam, sentem e exercem sua masculinidade? Quais os desdobramentos que são gerados a partir do Grande “confronto” entre modelos de “masculinidades alternativas”2 com o modelo de “masculinidade 1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande – PPGCS/UFCG. Financiadora Capes. [email protected] 2 Ver: Kimmel, Michael. A produção Simultânea das masculinidades Hegemônica e Subalterna (1998). Kimmel propõe a existência de masculinidades múltiplas, onde numa sociedade há múltiplas significações do que é ser homem. 2771 hegemônico” ainda tão forte no contexto nordestino e especialmente em Maceió-AL? A transformação de mercado de trabalho, tão característica da sociedade moderna, criou demandas profissionais que levaram a uma reconfiguração dos papeis de gênero nos mercados de trabalho em vários setores. No campo da moda não foi diferente, um espaço entendido como tipicamente feminino vem paulatinamente sendo transformado por homens nas mais diversas atividades. No processo de atribuições e formas de subjetivação segundo os sexos, o conceito de patriarcado é fundamental para a construção e reconstrução das demandas dos papeis sociais. Nesse sentido, o sociólogo espanhol Manuel Castells irá assim definir o patriarcado e sua função nas sociedades contemporâneas: O patriarcalismo é uma das estruturas sobre as quais se assentam todas as sociedades contemporâneas. Caracteriza-se pela autoridade, imposta institucionalmente, do homem sobre a mulher e filhos no âmbito familiar. Para que essa autoridade possa ser exercida, é necessário que o patriarcalismo permeie toda a organização da sociedade, da produção e do consumo à política, à legislação e à cultura. Os relacionamentos interpessoais, também são marcados pela dominação e violência que tem sua origem na cultura e instituições do patriarcalismo (CASTELLS, 1999: 169). O patriarcalismo, conforme apontado por Castells, é afetado pelo enfraquecimento da heteronormatividade, por isso elegi a moda como um campo fértil para se pensar masculinidades a partir dos mercados de moda, desse espaço de sociabilidade onde circulam não apenas tendências, mas também formas de subjetividade e identificação, além de repensar a mudança dos papeis atribuídos ao gênero que vem se desenvolvendo mais acentuadamente nos últimos anos. As interfaces que surgem na realização de atividades por homens heterossexuais num campo socialmente demarcado pelo feminino - como é o campo de produção de moda - são de fato relevantes por suscitar questões de 2772 gênero mais específicas, tais como as da divisão sexual do trabalho e os modelos de masculinidades alternativos e suas representações. Pensar o exercício das masculinidades nos convida a pensar também os estudos feministas, os temas da homossexualidade e homofobia, além das práticas e reprodução dessas práticas heterossexuais masculinas para a compreensão de como homens e mulheres se relacionam e como essa prática produz sentido em torno da sexualidade. No campo das ciências sociais, mais especificamente na antropologia, esses estudos também estão ligados às discussões sobre corpo, sexualidade e, mais recentemente, aos temas da moda e do consumo. Os estudos sobre homens e masculinidades surgem como subgrupo dos estudos feministas emergidos a partir dos anos 90, das provocações iniciadas pelos estudos sobre diversidade sexual. As mudanças no conceito de masculinidades são provocadas pelo movimento feminista. O primeiro deles foi organizado em meados do século XIX, como um instrumento de debate que busca pautar a revisão cultural estabelecida no modelo falocêntrico, na luta pela quebra do padrão cultural predominante. No período de 1970, a recusa feminista pela participação dos homens na discussão justifica o fato de a maioria dos trabalhos sobre gênero ser realizada por mulheres pesquisadoras. A entrada de homens nos debates no campo do gênero foi significativa visto que foram introduzidos na discussão os problemas dos homens e também pôr à discussão o preço que estes têm a pagar por historicamente estarem na posição de dominadores. É nesse bojo que o tema da masculinidade vai se ampliando. Por outro lado, os movimentos gay e lésbico, na luta por visibilidade, também contribuíram para a reflexão sobre as identidades sexuais. Nesse sentido, esses movimentos propõem repensar o modelo de masculinidade hegemônica: branca, heterossexual e dominante. Essa reflexão serviu de influência para a construção do debate em torno das masculinidades ao longo 2773 das últimas décadas. A Teoria Queer também deu grande contribuição para os estudos de gênero e sexualidade. Desenvolvida a partir dos anos oitenta por pesquisadores e militantes da causa gay, em especial nos Estados Unidos, a Teoria Queer busca resignificar o termo (que em sua tradução pode ser entendido por estranho, excêntrico ou mesmo ridículo) usado num sentido pejorativo nos insultos aos homossexuais, de modo a positivá-lo. Judith Butler, filósofa estadunidense, vista como uma das percussoras da Teoria Queer, em Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade (1990) desenvolveu a teoria de performatividade. Nessa obra, Butler afirma: O gênero é performativo por que é resultante de um regime que regula as diferenças de gênero. Neste regime os gêneros se dividem e se hierarquizam de forma coercitiva (Apud COLLING, p. 01). Isto significa dizer que a repetição de normas, na maioria das vezes feita de forma ritual, produz sujeitos resultantes dessa repetição e quem se comporta em desacordo com as normas estabelecidas está sujeito a sofrer determinadas consequências. Butler historiciza o corpo e o sexo ao procurar o que há de ontológico nessas categorias, rompendo com a dicotomia entre sexo e gênero. Sua proposta é a da subversão da ordem e assim abrir espaço para outras formas de ser, dado o dinamismo do ser humano. Sua crítica recai sobre toda e qualquer singularidade, essencialismo do feminino e a noção de identidade3. Segundo Butler: A noção binária de masculino/feminino constitui não só a estrutura exclusiva em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a ‘especificidade’ do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada, analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de relações de poder, os quais tanto constituem a ‘identidade’ como tornam equívoca a noção singular de identidade (BUTLER, 2008: 21). Só após a inserção do gênero como objeto de análise surge o tema das masculinidades como campo de investigação. Ao criar a categoria gênero 3 Sobre a superação do essencialismo feminino Butler afirma: “Se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo que esse alguém é (BUTLER, 2008:21)”. 2774 como campo de estudo, amplia-se o leque e possibilita-se a inserção dos homens na problemática da condição feminina. Propor a categoria gênero implica romper com o binarismo masculino-feminino, criticado tanto pelo feminismo quanto pelas Teorias Queer. A grande contribuição dos primeiros trabalhos neste campo é a tentativa de desconstrução crítica dos elementos constitutivos dos papeis masculino e feminino. Partindo da perspectiva sociológica, a abordagem das masculinidades e sua relação com a moda possibilita a problematização da relação entre natureza e cultura nas representações dos papeis de gênero e, no caso específico desta pesquisa, das masculinidades. Pensar a produção teórica sobre o tema, desde a perspectiva sociológica, auxilia a problematizar um tipo de masculinidade específico: aquele produzido no nordeste brasileiro, mais especificamente na cidade de Maceió-AL, fortemente marcado pelo modelo de “masculinidade hegemônica”4. Nessa introdução do gênero como categoria analítica, são importantes as reflexões de Joan Scott, apresentadas em Gênero: uma Categoria Útil de Análise Histórica (1990). Nessa obra, Scott propõe a eliminação do binarismo sexual, que tem o sexo biológico como determinante na construção das relações de gênero. Ao romper com essa ordem binária, Scott dá ênfase à cultura como elemento que engendra essas relações. Dessa forma, a autora irá superar a ideia de que o estudo de gênero é um estudo apenas sobre mulheres: 4 “O conceito de masculinidade hegemônica foi primeiro proposto em relatórios de um estudo de campo sobre desigualdade social nas escolas australianas, em uma discussão conceitual relacionada à construção das masculinidades e à experiência dos corpos dos homens; e em um debate sobre o papel dos homens na política sindical australiana. Os estudos pioneiros foram sistematizados no artigo ‘Towards a New Sociology of Masculinity’, que criticou extensivamente a literatura sobre o ‘papel sexual masculino’ e propôs um modelo de masculinidades em múltiplas relações de poder. Por sua vez, o modelo foi sistematicamente integrado a uma teoria de gênero sociológica. As seis páginas resultantes em Gender and Power sobre ‘masculinidade hegemônica e feminilidade enfatizada’ se tornaram a fonte mais citada para o conceito de masculinidade hegemônica” (CONNELL, 2013: 242-243). 2775 O termo “gênero”, além de um substituto para o termo mulheres, é também utilizado para sugerir qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um implica o estudo do outro [...]. Além disso, o termo “gênero” também é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita explicitamente explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum, para as diversas formas de subordinação feminina, nos fatos de que as mulheres tem a capacidade de dar à luz e de que os homens tem uma força muscular superior. Em vez disso, o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais” – a criação inteiramente social de ideias sobre os papeis adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mulheres. “Gênero” é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. Com a proliferação de estudos sobre sexo e sexualidade, “gênero” tornou-se uma palavra particularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papeis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens (SCOTT, 1990: 75). A entrada dos estudos sobre homens no campo do gênero foi significativa visto que foram introduzidos na discussão os problemas e o preço que estes têm a pagar por historicamente estarem na posição de dominadores. É nesse bojo que o tema da masculinidade vai se ampliando. Partindo da perspectiva sociológica, a abordagem das masculinidades e sua relação com a moda possibilita a problematização da relação entre natureza e cultura nas representações dos papeis de gênero e, no caso específico desta pesquisa, das masculinidades. Pensar a produção teórica sobre o tema, desde a perspectiva sociológica, auxilia a problematizar um tipo de masculinidade específico: aquele produzido no nordeste brasileiro, mais especificamente na cidade de Maceió-AL, fortemente marcado pelo modelo de “masculinidade hegemônica”5. 5 “O conceito de masculinidade hegemônica foi primeiro proposto em relatórios de um estudo de campo sobre desigualdade social nas escolas australianas, em uma discussão conceitual relacionada à construção das masculinidades e à experiência dos corpos dos homens; e em um debate sobre o papel dos homens na política sindical australiana. Os estudos pioneiros foram sistematizados no artigo ‘Towards a New Sociology of Masculinity’, que criticou extensivamente a literatura sobre o ‘papel sexual masculino’ e propôs um modelo de masculinidades em múltiplas relações de poder. Por sua vez, o modelo foi sistematicamente integrado a uma teoria de gênero sociológica. As seis páginas resultantes em Gender and Power sobre ‘masculinidade hegemônica e feminilidade enfatizada’ se tornaram a fonte mais citada para o conceito de masculinidade hegemônica” (CONNELL, 2013: 242-243). 2776 Nessa introdução do gênero como categoria analítica, são importantes as reflexões de Joan Scott, apresentadas em Gênero: uma Categoria Útil de Análise Histórica (1990). Nessa obra, Scott propõe a eliminação do binarismo sexual, que tem o sexo biológico como determinante na construção das relações de gênero. Ao romper com essa ordem binária, Scott dá ênfase à cultura como elemento que engendra essas 5 relações. Dessa forma, a autora irá superar a ideia de que o estudo de gênero é um estudo apenas sobre mulheres. Para compreender o exercício das masculinidades, recorro ao pensamento de Giddens (2003), mediante o uso do conceito de agência. Na Teoria da Estruturação, Giddens desenvolveu todo um raciocínio orientado a facilitar uma melhor compreensão do desenvolvimento da constituição da sociedade e da dinâmica internas dos atores, e se concentrou nas formas profundas, mas sutis pelas quais o mundo exterior afeta os indivíduos ou agentes sociais. Segundo Giddens, todo agente social possui uma “consciência prática” que emerge de uma “dualidade” social constituída pela tensão entre estrutura e agência. Nesse sentido, “dualidade” significa que a constituição interna dos próprios atores já envolve a marca, fenomenologicamente mediada, das estruturas sociais externas. Em outras palavras, todo o processo de interação social produz e demanda um estoque de conhecimentos que habilita os agentes para executar suas ações em sintonia com a estrutura social onde estão inseridos. Dessa sorte, esse estoque de conhecimentos tem sua origem na dimensão social e fornece instruções e disposições gerais aos atores sociais, recursos esses que Giddens os expressa sob o conceito de agência. Esses recursos são tudo aquilo que o indivíduo dispõe para agir livremente dentro dos diferentes tipos de contextos dentro do processo de interação, funcionando como elemento sine qua non a ação dos indivíduos. Segundo Giddens: 2777 “Agência” não se refere às intenções que as pessoas tem ao fazer as coisas, mas à capacidade delas para realizar essa coisas em primeiro lugar (sendo por isso que “agência” subentende poder: cf. uma definição de agente do Oxford English Dictionary como ‘alguém que exerce poder ou produz um efeito’). ‘Agência’ diz respeito a eventos dos quais um indivíduo é o perpetrador, no sentido de que ele poderia, em qualquer fase de uma dada sequência de conduta, ter atuado de modo diferente (GIDDENS, 2003: 10-11). Assim, Giddens está integrando o conhecimento das subjetividades através do conceito da agência. O indivíduo, segundo ele, estará em sintonia com o conhecimento estabelecido dentro da estrutura que ele identifica como agência. Podemos dizer, então, que a agência é uma matriz de conhecimento que habilita o indivíduo para agir em sintonia com a estrutura social onde ele está inserido. A partir de Giddens será possível verificar como se processa a masculinidade dentro e fora desses espaços (de moda), onde é mais fluida a circulação de masculinidades várias, se elas mudam conforme o local, alternando entre “masculinidades alternativas” e “masculinidade hegemônica”. Nesse tocante, a pesquisa perpassa a discussão acerca dos papeis sociais e da essencialização do feminino e do masculino. Esse tema é central nesse debate também suscitado em Butler. Nessa linha de pensamento, Bourdieu afirma: É, sem dúvida, a família que cabe o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem (BOURDIEU, 2009). Bourdieu, ao problematizar a dominação masculina dirá que o saber social incorporado pelos indivíduos funciona como sistema de percepção, pensamento e ação, dados no plano das estruturas cognitivas e objetivas verificadas, assentadas e realizadas no mundo social e suas divisões, sendo a principal delas a divisão dos sexos, que é socialmente construída, reconhecida e legitimada. Partindo das ideias de Bourdieu identificamos duas matrizes explicativas, as quais serão apontadas para a conformação da condição social da mulher. A primeira é de ordem cosmológica ou mítica. Indica que o corpo 2778 feminino é quase sacralizado e, portanto, deve ser resguardado, intocado, proibido e domesticado. A segunda é de ordem biológica, pautada nas diferenciações biológicas dos corpos feminino e masculino. Ela define a função que socialmente é atribuída aos órgãos sexuais – e com isso transfere as imposições sociais para o espaço das necessidades físicas - e retoma os discursos dos anatomistas do século XIX sobre a disposição dos órgãos (o feminino posto de maneira inversa ao masculino) que explicaria o interior feminino (sensibilidade, passividade etc.) e o exterior masculino (razão, ação, força etc.). Esse discurso coloca o princípio masculino como medida para todas as coisas, tomando-o por natural e, portanto, comum, conferindo um status de superioridade em relação ao que é feminino, que é visto por incomum, o avesso e inferior, e é base para corroborar a distribuição de papeis conforme os sexos. Podemos dizer a partir das discussões trazidas por Bourdieu sobre a centralidade do corpo para a dominação, que a relação entre os sexos em suas práticas e representações aparece de forma assimétrica e hierarquizada, tendo o homem por superior e a mulher por inferior. Essa centralidade do corpo para a dominação é refletida nas atividades do mundo social, inclusive no mundo do trabalho, que conforme amplamente discutido por Bourdieu, é distribuída segundo a condição sexual, que essencializa homens e mulheres e que acaba por naturalizar a estrutura da dominação masculina. Essa estrutura é cotidianamente produzida e reproduzida nas instituições da família, Igreja, escola e Estado. Essa essencialização também aparece na discussão de Scott sobre os papeis sociais que assim como Bourdieu vai situar essa discussão no campo das relações sociais sobre o sexo, porém, de forma particular, Scott está problematizando o gênero enquanto categoria analítica, e como exposto em Bourdieu, desloca o discurso do campo biológico para o campo social, definindo gênero como categoria para análise das relações entre os sexos que reverberam nas distribuições e atribuições dos papeis sociais. 2779 Ligada a essa discussão, a reorganização do mundo do trabalho e a nova configuração de sua divisão sexual, é imprescindível para se pensar o campo da moda, demarcado pela ordem dos gêneros como espaço essencialmente feminino, sendo cada vez mais constituído por homens no exercício de diversas funções próprias desse campo. A participação do homem no campo da moda demanda esforço analítico em razão da complexidade que esse campo apresenta. Na tentativa de problematizar esse fenômeno é pertinente começar dizendo que com a ascensão do neoliberalismo houve estagnação do emprego masculino em relação ao feminino, que cada vez mais tem ocupado as vagas de emprego formal e sobretudo como mão de obra especializada. Isso tende a reconfigurar os locais de gênero nos postos de trabalho anteriormente ocupado majoritariamente por homens, “forçando” os homens a ocupar cargos anteriormente atribuídos ao universo feminino, de acordo com a ordem dos gêneros estabelecida socialmente. Esse quadro de forma geral corrobora a ideia de essencialização na abordagem do ser feminino e do ser masculino. A problemática a ser pensada a partir dessas colocações é refletir como se dá essa relação do homem (que por sua essência é forte, desprovido de qualquer delicadeza) no campo da moda, onde são constantemente priorizadas essas qualidades, ditas femininas, e que, no entanto faltam ao homem devido à sua essência, como é socialmente marcado e reproduzido socialmente. A discussão sobre moda na realização desta pesquisa estará apoiada nas obras de alguns autores, entre os quais destacamos Georg Simmel e Gilles Lipovetsky. Simmel ao problematizar os temas da modernidade e da individualização toma a moda como pano de fundo explicativo. O aspecto importante para esse entendimento é a dualidade que atravessa a vida humana e na moda encontra sua representação de forma mais clara, pois ela concatena o efêmero, o transitório e fugidio ao eterno e imutável, ou seja, o movimento e a fixidez. Sendo a vida humana composta por dualismos, o ser humano é 2780 também um ser dualista e numa sociedade cada vez mais complexa a moda serve como dispositivo de diferenciação ou homogeneização social. No momento em que o indivíduo se distancia do grupo, ela opera processos de individualização com a negação da imitação, promovendo a invenção; e ao passo que o indivíduo busca assemelhar-se ao grupo, a moda opera processos de homogeneização, de inserção e assimilação do indivíduo ao grupo, inclusive como forma subjetiva de pertencimento a ele, a conformação de uma identidade coletiva. Como bem aponta Waizbort: A imitação é ‘uma das direções básicas de nossa essência’ e possibilita a ‘fusão do singular na universidade’, ou seja, ‘enfatiza em meio à mudança aquilo que permanece’. Mas se fizermos o contrário e, em meio ao que permanece, enfatizamos a mudança, o que aflora são as tendências individualizantes, que procuram a diferenciação do individualizantes, que procuram a diferenciação do indivíduo ante o grupo, a emersão do singular em meio à universalidade (WAIZBORT, 2008: 09). Fica claro que o caráter duplo da moda de inclusão/exclusão, aproximação/afastamento, fixidez/movimento é a condição sine qua non para a existência da moda. Lipovetsky (2009) elabora uma reflexão que vai além da diferenciação social. A moda é antes de tudo signo das transformações que antecedem o surgimento das sociedades modernas, conferindo-lhe dessa forma um caráter libertário. Foi o autor que melhor analisou o fenômeno da moda, desde seu surgimento, descrevendo seu desenvolvimento até seu estabelecimento enquanto um sistema. Essa problematização servirá de base para pensar a relação homem/moda, onde as representações de gênero sofrem modificações no vestuário tendo por fator determinante dessa mudança o capitalismo nascente. Nesse sentido, o vestuário é tomado como dispositivo explicativo/demonstrativo de configurações de ordem comportamental e que demarcam territórios de classe e gênero de acordo com os papeis socialmente marcados. 2781 Algumas considerações: Essa pesquisa de mestrado tem por proposta de investigação tem por objetivo geral construir uma representação da auto percepção de homens que trabalham no setor de moda quanto ao exercício de sua masculinidade. O recorte a ser trabalhado é o de homens heterossexuais de camadas médias urbanas que constroem (trabalham) esses nichos de moda na cidade de Maceió, exercendo atividades de modelos, produtores, estilistas, scouters, designers de moda, costureiros, cabelereiros e outras tantas práticas próprias do campo da moda. Procuro identificar como homens que trabalham nesses setores se auto percebem enquanto homens no exercício de sua masculinidade. A pesquisa ainda está em processo de incursão a campo e levantamento de dados, portanto ainda não apresenta resultados finais. Essa problematização servirá de base para pensar a relação homem/moda, onde as representações de gênero sofrem modificações no vestuário tendo por fator determinante dessa mudança o capitalismo nascente. Nesse sentido, o vestuário é tomado como dispositivo explicativo/demonstrativo de configurações de ordem comportamental e que demarcam territórios de classe e gênero de acordo com os papeis socialmente marcados. O texto que trago aqui se dá no sentido de apresentar o aporte teórico em que se ampara a pesquisa para a abordagem do objeto e de como pode ser instrumentalizado nos diferentes aspectos em que essa pesquisa gira em torno – trabalho, moda, masculinidades e gênero. Aspectos esses que serão atravessados ainda por outras discussões acerca do corpo, imagem e identidade, por exemplo, importantes dentro das ciências sociais e que aparecem aqui como elementos subsidiários para uma análise mais ampla nas discussões que compõem os quatro aspectos fundamentais da pesquisa. REFERÊNCIAS 2782 ALCÂNTARA, Sonia de. Igualdade de Gênero: uma (Des)Construção Cotidiana. ARAÚJO, Lucélia Nárjera e DANTAS, Pollyana Cardoso. A Máscara de Dissimulação Masculina: Crise do Machismo e Diluição da Fronteira entre os Gêneros. ARILHA, Margareth; RIDENTI, Sandra Unbehaun e MEDRADO, Benedito (orgs.). Homens e Masculinidades: Outras Palavras – São Paulo: ECOS; Editora 34, 1998. BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo; tradução de Sérgio Milliet. – 2ª ed. – São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. BUTLER, Judith. 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