Estudos da Língua(gem) Uma breve abordagem histórica da classe dos adjetivos A brief historical approach of the class of adjectives Roberto Santos de Carvalho* Gessilene Silveira Kanthack* Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC RESUMO Este artigo apresenta uma parte da história dos estudos dos adjetivos, ao longo do pensamento ocidental, partindo das reflexões gregas, passando pelas bases romanas e suas ramificações. Descreve o contexto do pensamento filosófico em que os adjetivos foram descritos por Platão e demonstra que, em razão do seu comportamento sintático-semântico bastante peculiar, ocorreram tentativas de agrupá-los em distintas classes, visando melhor conhecer o seu comportamento. O objetivo precípuo do artigo é, pois, apresentar um breve panorama histórico da configuração dos adjetivos, com vistas a demonstrar que o interesse por eles tem longa tradição na investigação linguística ocidental. Palavras-chave: Adjetivo. História. Semântica. Sintaxe. *Sobre os autores ver página 125. Estudos da Língua(gem) Vitória da Conquista v. 9, n. 2 p. 107-125 dezembro de 2011 Roberto Santos de Carvalho e Gessilene Silveira Kanthack 108 ABSTRACT This paper presents an historical overview of adjective study along the western tradition, from the Greek reflections to the Roman roots and their branches. We will describe the context of the philosophical thought in which the adjective categories were described by Plato. Besides, we will demonstrate that, due to the syntactic-semantic behaviour of this grammatical class, many attempts were made in order to group the adjectives in different classes, by aiming at knowing better the fluid behaviour of this category. The main goal of this article is, therefore, to present a general and historical overview of the configuration of the adjective category, and to show that the interest for this grammatical topic follows a long tradition in the western linguistics investigation. KEYWORDS: Adjective. History. Semantics. Syntax. 1 Introdução Neste artigo, apresentaremos uma parte da história dos estudos sobre o adjetivo, ao longo do pensamento ocidental, partindo do pensamento grego, passando pelas bases romanas e suas ramificações. Descreveremos o contexto do pensamento filosófico em que os adjetivos foram descritos por Platão, assim como a oscilação sofrida por eles, ao longo dos séculos, ora incluídos na classe dos nomes, ora na classe dos verbos. Na sequência, apresentaremos a descrição dos adjetivos pelo prisma dos gramáticos de Port-Royal, que distinguiram acidente (substantivo) de atributo (adjetivo), apontando a falta de liberdade sintática desse último. Depois disso, apresentaremos a proposta de classificação empreendida por Bolinger (1967). Por fim, nas considerações finais, destacaremos outras investigações com o intuito de traçar um breve panorama dos estudos empreendidos em torno da temática. 2 O Pensamento Greco-romano e Ramificações Imersa em um contexto filosófico-especulativo, a história registrada da linguística ocidental (cf. WEEDWOOD, 2002) iniciouse com o tratamento binário e antagônico da natureza da faculdade Uma breve abordagem histórica da classe dos adjetivos 109 da linguagem: por um lado, a língua(gem) era compreendida como uma fonte de conhecimento; por outro, como um simples meio de comunicação. As visões dicotômicas1 acerca dessa matéria visavam responder a um problema fundamental: “A língua tem algum vínculo direto e essencial com a realidade, espiritual ou física, ou é puramente arbitrária?”2 O problema da natureza da língua(gem) apareceu em Crátilo de Platão e, sob esse “marco filosófico inaugural”, as propriedades predicadoras dos adjetivos foram discutidas e passaram a ocupar a agenda dos estudiosos gregos, seguindo longa tradição no pensamento ocidental. Platão tratou acerca dos adjetivos e promoveu a divisão da frase em duas unidades fundamentais: um componente verbal, rhêma, e um componente nominal, ónoma. O termo ónoma, no contexto do pensamento platônico, significava designação, sendo posteriormente cunhado como um termo técnico equivalente a nome; rhêma, primeiramente predicado, tornou-se equivalente a verbo, posteriormente. Platão concebeu os adjetivos como pertencentes à classe dos rhêma por serem representantes de um predicado. Para ele, um adjetivo como leukós (branco), frequentemente, funcionava, em grego, como predicado: Leukòs ho híppos (o cavalo é branco). Como a cópula “é” é suscetível de inserção, Platão afirmava que os adjetivos seriam portadores, também, de uma referência temporal – presente. Mantendo a mesma divisão platônica entre ónoma e rhêma, Aristóteles concebeu, também, os adjetivos como pertencentes à classe dos rhêma, porém acrescentou mais um componente sintático, Sýndesmoi, que não havia sido pensado por Platão. Sýndesmoi viria a ser chamado, nos séculos posteriores, de conjunção, artigo e pronome (ROBINS, 1982). O paradigma aristotélico foi retomado e mais bem articulado pelos estóicos, que, segundo Robins (1982), ampliaram as classes gramaticais inicialmente delineadas, introduzindo definições mais 1 Saussure (1995) retomará essa discussão no início do século XX, dando o tratamento científico a esse problema. No Curso de Linguística Geral, ele explica a arbitrariedade do signo linguístico, por meio da discussão das dicotomias significante x significado. É importante destacar, no entanto, que algumas teorias pós-estruturalistas contestarão a visão saussuriana acerca dessa questão. 2 Ibid., p. 24. 110 Roberto Santos de Carvalho e Gessilene Silveira Kanthack precisas para dar conta da abrangência morfológica e sintática das classes que surgiram como desdobramento progressivo do sistema gramatical anterior. Os estóicos promoveram a separação do Sýndesmoi aristotélico em elementos variáveis (pronomes e artigos) e invariáveis (preposições e conjunções), restringindo o termo Sýndesmos aos elementos invariáveis e árthra, aos elementos variáveis. O ónoma aristotélico, herdado de Platão, foi dividido pelos estóicos em nome próprio, mantendo a nomenclatura ónoma, e nome comum, que passou a receber a designação de prosegoría. Desta última classe (prosegoría), separaram-se os advérbios (mesótes), que significavam aqueles que estão no meio, pois, morfologicamente, estavam mais ligados a termos nominais, mesmo mantendo nítida vinculação sintática com o verbo (cf. ROBINS, 1982). Conforme este autor, a divisão estabelecida pelos estóicos foi aceita por escritores de épocas posteriores, exceto a classe dos prosegoría, que foi reconhecida, apenas, como subclasse de ónoma. Os estóicos3, transitando na classe dos nomes e referindo-se aos adjetivos, promoveram uma distinção semântica de fundamental importância do ponto de vista lógico, a saber: opuseram uma qualidade individual (ser Sócrates) a uma qualidade geral (ser cavalo). Nesse contexto, os adjetivos permaneceram atrelados à classe dos verbos, tal como alocados inicialmente pelo pensamento platônico e aristotélico. As reflexões promovidas pelos estóicos foram retomadas e ganharam continuidade com os filósofos de Alexandria, tendo, em Dionísio da Trácia, seu maior expoente. Os alexandrinos, diferentemente dos estóicos, debruçaram-se sobre questões linguísticas com vistas ao interesse literário. Dionísio continuou o trabalho de ampliação das classes até então existentes, distinguindo oito classes de palavras: Dionísio da Trácia distinguiu oito classes de palavras, cujo número, com uma alteração que se fez necessária por não existir o artigo em latim, permaneceu constante até os fins da 3 A contribuição dos estóicos (334-262 a. C.), no cenário das reflexões linguísticas, segundo Conteratto (2009), representou o marco dos estudos voltados para a regularidade da língua, não se restringindo, apenas, ao problema filosófico, dominante nos séculos anteriores, que discutia a origem da linguagem. Uma breve abordagem histórica da classe dos adjetivos 111 Idade Média na descrição do grego e do latim, e teve grande influência na análise gramatical de diversas línguas modernas da Europa. O sistema de classificação de Dionísio foi considerado uma das suas mais importantes realizações. Os nomes próprios e comuns, distinguidos pelos estóicos, foram reunidos na classe única de ónoma; o particípio (metoche) foi separado do verbo e passou a ser uma classe independente de palavras; as classes estóicas de sýndesmos e árthron foram respectivamente divididas em sýndesmos, “conjunção” e próthesis, “preposição”, e em árthron, “artigo”, e antonymía, “pronome”. O advérbio foi rebatizado com o nome de epirrhema, que substituiu o termo mesótes dos estóicos [...]. (ROBINS, 1982, p. 26). Nesse contexto, os adjetivos sofreram um radical deslocamento da classe em que haviam sido alocados pelos antecessores de Dionísio. Originalmente pensados como um tipo de rhêma por Platão, Aristóteles e os estóicos, foram removidos, por Dionísio, para a classe dos ónoma, uma vez que sua morfologia e sintaxe eram mais parecidas com as dos nomes gregos e latinos. Dionísio definiu ainda um tipo de “atributo consequente”, denominado por ele de parepómena, que se referia a diferenças gramaticais relevantes das formas das palavras em que se incluíam as categorias flexionais e derivacionais. Os cinco parepómena aplicados à classe do nome, segundo Dionísio da Trácia, eram: Génos (gênero): masculino, feminino e neutro; Eîdos (tipo): primitivo e derivado; Schema (forma): simples e composta – Mémnon é simples, Philódemos é composto (Philo + demos); Arithmós (número): singular, plural e dual; Ptôsis (caso): nominativo, vocativo, acusativo, genitivo e dativo. (ROBINS, 1982, p. 27-28). Sendo as propriedades dos parepómena inerentes aos nomes, não é de se estranhar que os adjetivos também compartilhem das mesmas prerrogativas. Robins (1982), comentando acerca do Eîdos do adjetivo gaieios, afirmou: 112 Roberto Santos de Carvalho e Gessilene Silveira Kanthack O adjetivo gaieios (terrestre) é apresentado como um nome derivado, relacionando-se com o nome primitivo gê (também gaîa), “terra”. Entre as subclasses de nomes derivados são arroladas formas do adjetivo no grau comparativo e superlativo (andreióteros, “mais valente”, e andreiótatos, “o mais valente”). Desse modo, as formas que poderiam ter servido de critério para distinguir os adjetivos como classe independente tiveram apenas um lugar específico dentro da classe dos nomes. (p. 2728). Conteratto (2009) acrescentou que Dionísio denominou o adjetivo como epíteto, porque “o epíteto é tido por ele como um atribuidor que pode indicar elogio ou censura como, por exemplo, sábio, rápido, tímido etc.” (p. 27). Dionísio atrelou a tal definição questões atinentes às diferentes relações representadas pelo adjetivo: da alma (ser sábio), do corpo (ser rápido) e do extrínseco (ser rico) (cf. NEVES, 1987). É nítida a contribuição de Dionísio no aprimoramento das classes de palavras, particularmente no que se refere aos adjetivos. Nenhum dos pensadores que o precedeu havia tão bem refinado conceitos e propriedades das “partes do discurso”, como eram chamadas as classes de palavras. Embora a obra de Dionísio da Trácia tenha recebido críticas por não ter reservado um capítulo específico para tratar da sintaxe, mesmo empregando o termo sýntaxis ao longo de sua obra, suas observações possibilitaram o amplo tratamento da sintaxe por autores posteriores, como Apolônio Díscolo. Este autor operacionalizou com as oito classes de palavras existentes e imprimiu à sintaxe o tratamento que havia faltado na Téchne grammatike4. Assim como fez Dionísio, Apolônio Díscolo atrelou os adjetivos à classe dos nomes, ressalvando que eles indicavam, também, além de elogio e censura, conforme defendia Dionísio, uma atribuição qualquer (ideia de grandeza, de quantidade, de disposição da alma etc.). Ao conceber os adjetivos como pertencentes à classe dos nomes, Díscolo ressaltou que eles, sozinhos, não teriam sentido completo. Com 4 A obra gramatical de Dionísio da Trácia. Uma breve abordagem histórica da classe dos adjetivos 113 isso, defendeu a falta de “liberdade sintática” do adjetivo, uma vez que, para ter sentido completo, ele (o adjetivo) deveria estar atrelado ao substantivo. Para sustentar a ideia da dependência sintática do adjetivo, o autor valeu-se do argumento de que, à semelhança do advérbio – que não tem sentido completo sem a presença de um verbo –, o adjetivo também é desprovido de sentido completo, sem o substantivo para acompanhá-lo. Os gramáticos medievais, conhecidos como modistas, compartilhavam da mesma noção de dependência do adjetivo. Foram eles que separaram substantivos e adjetivos em duas classes distintas, demonstrando a independência sintática do substantivo (portador de sentido completo) e a dependência do adjetivo em relação ao substantivo. Os gramáticos romanos, inspirados nas gramáticas gregas, sobretudo na Téchne de Dionísio, mantiveram as oito classes de palavras existentes e não promoveram qualquer mudança em relação aos adjetivos. Varrão concebia os adjetivos como pertencentes à classe dos nomes, por terem a flexão de caso; Prisciano concebia a classe dos nomem como “indicador de substância ou qualidade, atribuindo uma propriedade comum ou particular a todo objeto corpóreo ou coisa” (ROBINS, 1982, p. 45). Logicamente, outras discussões atravessaram as obras de Varrão e Prisciano, mas, para os adjetivos, foram mantidas as mesmas propriedades descritas pelos gramáticos gregos. 3 A Descrição de Port-Royal A noção de dependência dos adjetivos, como descrita inicialmente em Díscolo, era compartilhada por Arnauld e Lancelot, na Gramática Geral e Razoada ou, simplesmente, Gramática de Port-Royal. Os autores dedicaram um capítulo para tratar dos substantivos e adjetivos, pensados, por eles, como pertencentes à classe dos nomes. Inicialmente, distinguiram substância (substantivo) e acidente (adjetivo) como os objetos dos pensamentos humanos: 114 Roberto Santos de Carvalho e Gessilene Silveira Kanthack Os objetos de nossos pensamentos são ou coisas, como a terra, o sol, a água, a madeira, o que comumente é chamado substância; ou a maneira das coisas, como ser redondo, vermelho, sábio, etc. o que é denominado acidente. Existe a seguinte diferença entre as coisas e as substâncias, e a maneira das coisas ou dos acidentes: as substâncias subsistem por elas mesmas, enquanto os acidentes só existem pelas substâncias. É isso que fez a principal diferença entre as palavras que significam os objetos dos pensamentos: pois, os que significam as substâncias foram denominados nomes substantivos; e os que significam os acidentes, designando o sujeito ao qual esses acidentes convêm, nomes adjetivo. (ARNAULD; LANCELOT, 1992, p. 31). A distinção entre substância e acidente consubstanciou-se como uma dicotomia fundamental para os seguidos argumentos de que os substantivos possuíam independência (sentido completo), o que não ocorria com os adjetivos: Já que a substância é aquilo que subsiste por si mesmo, chamaram nomes substantivos todos aqueles que subsistem por si mesmos no discurso, sem que tenham necessidade de um outro nome, ainda que significam acidentes. E ao contrário, foram chamados adjetivos mesmo aqueles que significam substâncias, quando por sua maneira de significar devem estar junto a outros nomes no discurso. (ARNAULD ; LANCELOT, 1992, p. 31). Os sábios de Port-Royal observaram que o adjetivo não tinha sentido completo, não subsistia por si só, quando apresentava, além de sua significação denotativa (chamada por eles de distinta), uma significação “confusa”, conotativa. O argumento foi ilustrado com a palavra rouge (vermelho): A significação distinta de rouge (vermelho) é rougeur (vermelhidão); mas o termo significa, designando o sujeito dessa qualidade de modo confuso, donde se vê que ele não Uma breve abordagem histórica da classe dos adjetivos 115 subsiste por si só no discurso, porque é preciso expressar ou subentender a palavra que indica esse sujeito. (ARNAULD; LANCELOT, 1992, p. 32). A possibilidade de se criarem substantivos a partir de adjetivos, e vice-versa, foi observada pelos gramáticos de Port-Royal. Para tanto, era necessário operacionalizar com os conceitos de denotação e conotação. A conotação, segundo eles, perfazia o adjetivo, e, ao se “retirar” o traço conotativo dos acidentes, poder-se-iam criar substantivos. A operação inversa, ou seja, acrescentar conotação às substâncias possibilitava a criação de adjetivos: Como, pois, a conotação perfaz o adjetivo, quando é retirado dentre as palavras que significam os acidentes, deles se fazem substantivos, como de coloré (colorido), couleur (cor); de rouge, rougeur; de dur (duro), dureté (dureza); de prudent (prudente), prudence (prudência), etc. E, ao contrário, quando se acrescenta aos termos que significam as substâncias essa conotação ou significação confusa de uma coisa à qual essas substâncias se referem, deles se fazem adjetivos, como de homme (homem), humain (humano), genre humain (gênero humano), vertu humaine (virtude humana) etc. (ARNAULD; LANCELOT, 1992, p. 32). Os gramáticos de Port-Royal perceberam que muitas palavras derivadas da relação substantivo/adjetivo, e vice-versa, eram abundantes em grego e latim e chegaram a afirmar que o hebraico e o francês eram pobres nesse aspecto5. Observaram, também, que algumas palavras que designam profissão, como rei, filósofo, pintor e soldado, adjetivos, de fato, se passavam por substantivos por terem, como sujeito implícito, o homem, subentendido sem maiores esforços: O que faz com que esses nomes passem por substantivos é o fato de que, não podendo ter como sujeito senão o homem, pelo menos ordinariamente e segundo a primeira imposição 5 Os gramáticos de Port-Royal inovaram ao comparar várias línguas, além do grego e latim, com vistas a observar regularidades universais. Desse modo, demonstraram interesse em questões que seriam retomadas futuramente pela teoria gerativa. 116 Roberto Santos de Carvalho e Gessilene Silveira Kanthack dos nomes, não foi necessário acrescentar-lhe o substantivo, que pode ser subentendido sem qualquer confusão, já que a relação não pode ser estabelecida com nenhum outro. Por isso, esses nomes assumiram no uso aquilo que é peculiar aos substantivos, que é subsistir sozinhos no discurso. (ARNAULD; LANCELOT, 1992, p. 33). O adjetivo era tratado pelos gramáticos de Port-Royal como um nome, encerrando, aparentemente, a discussão acerca da classe a que deveria pertencer6. Em Port-Royal nasceu, também, a ideia de que a sequência NOME ADJETIVO (ex. Deus invisível) configurava-se como o resultado de uma sequência anterior (implícita) da forma NOME É ADJETIVO (ex. Deus é invisível). Para tanto, os estudiosos de Port-Royal apresentaram o exemplo clássico, ilustrado em 1: (1) Deus invisível criou o mundo visível. Segundo eles, existiam implícitas em 1 três sequências, quais sejam: (i) Deus é invisível. (ii) O mundo é visível. (iii) Deus criou o mundo. Em 1, há os adjetivos em posição atributiva, ou seja, adjetivos ligados ao nome sem intermédio de um verbo de ligação. O adjetivo em posição de atributo era considerado, inicialmente, como fruto de transformações generalizadas ou de transformações de orações relativas; tal noção, já advogada em Port-Royal, dominou as reflexões chomskyanas iniciais. Chomsky (1957) postulou que 1 era o resultado de uma transformação generalizada que reunia as sequências (i), (ii) e (iii). Tais explicações, no entanto, foram abandonadas posteriormente pelas inadequações contidas frente aos exemplos que iam sendo estudados. 6 Conteratto (2009) afirma que, a partir do século XVIII, Harris (1751) voltou a incluir os adjetivos na classe dos verbos e reiniciar as discussões em função do comportamento muito peculiar dessa classe gramatical. Uma breve abordagem histórica da classe dos adjetivos 117 Chomsky (1957) concebeu os adjetivos atributivos não mais como fruto de transformações generalizadas, mas como o resultado de transformações de orações relativas. Desse modo, 1 teria 2 como forma implícita: (2) Deus que é invisível criou o mundo que é visível. A derivação via cláusula relativa encontrou diversas críticas pela impossibilidade de muitos adjetivos atributos poderem ser gerados a partir da relação predicativa ou atributiva (cf. TEYSSIER, 1968; LUCAS, 1975; BOLINGER, 1967). Compartilhando da mesma opinião, Borges Neto (1979) apresentou estes exemplos para demonstrar a impossibilidade da derivação de um adjetivo predicativo (3b-c) e (4b-c) a partir de um adjetivo atributivo (3a) e (4a): (3)a. Um suposto comunista. b. *Um comunista suposto. c. *Um comunista que é suposto. (4) a. O físico nuclear. b. *O físico é nuclear. c. *O físico que é nuclear. As observações advindas desses fatos apontaram para a questão fundamental de que os adjetivos apresentavam propriedades sintáticosemânticas distintas; sendo assim, os modos de derivação deveriam obedecer, também, a diferentes regras. Decorreu dessa posição a necessidade imediata de se estabelecerem classes de adjetivos, haja vista o comportamento peculiar de palavras agrupadas sob esse rótulo gramatical. Muitos estudos defluíram diretamente de tais observações, dentre eles, destacamos a proposta clássica de Bolinger (1967), embora outras também caminhem nesta direção7. 7 Além de Boliger, autores como Vendler (1967) e Zuber (1973) também propuseram classes para os adjetivos. Por questões de espaço, não abordamos aqui tais propostas. Roberto Santos de Carvalho e Gessilene Silveira Kanthack 118 4 A Classificação de Bolinger (1967) Sob um viés semântico, analisando o inglês, Bolinger (1967) objetivou criticar a ideia de que os adjetivos, em posição de atributo, eram frutos de transformações via cláusula relativa, conforme propôs Chomsky (1957). Segundo o autor, não se poderiam considerar atributos como resultado de transformações de predicados e, para isso, ele se valeu de exemplos como 5 e 68: (5) a. A total stranger. (Um estranho total). b. *The stranger is total. (O estranho é total). (6) a. *An asleep man. (Um homem adormecido). b. The man is asleep. (O homem está dormindo). O que Bolinger queria demonstrar era que, em 5a, o adjetivo total liga-se ao substantivo stranger diretamente, sem o auxílio de um verbo de ligação (a chamada posição de atributo), e que jamais seria possível derivar uma sentença predicativa (5b) a partir de um atributo, pois, nesse caso, uma derivação como essa violaria alguma restrição sintático-semântica, gerando uma sentença agramatical. Esse tipo de restrição ocorria, segundo Bolinger, ao se derivar um adjetivo em posição predicativa (6b) resultando numa sentença agramatical. Por meio desses exemplos, Bolinger sustentou a ideia da impossibilidade de derivação de atributo via cláusula relativa. No entanto, existem adjetivos que parecem, a princípio, admitir a derivação desses dois modos, ou seja, um predicado permitindo a derivação a partir de um atributo, e vice-versa, como se pode observar em 7: (7) a. The jewels are stolen. (As jóias são roubadas). b. The jewels stolen. (As jóias roubadas). 8 As sentenças traduzidas são, apenas, um recurso de auxílio ao leitor. As traduções para o português, em alguns casos, alteram as propriedades discutidas. Uma breve abordagem histórica da classe dos adjetivos 119 O adjetivo stolen poderia, desse modo, contrariar a tese inicial de Bolinger (1967), de que não há possibilidade de adjetivos em posição de atributo serem derivados via cláusula relativa; porém, o autor destacou que, mesmo nesses casos, a passagem de um ao outro uso, permeado por transformações, carecia de regularidade. Para ele, uma sentença como 7a seria de natureza ambígua, isto é, apresenta duas possibilidades de interpretação. Na primeira, denominada por Bolinger de ação, estaríamos diante de um caso de sentença passiva; na segunda, chamada de característica, teríamos não mais uma sentença passiva, mas um adjetivo qualificativo. Todavia, havendo a derivação The stolen jewels diretamente de The jewels are (were) stolen, derivaríamos uma sentença não-ambígua de uma sentença ambígua, como também estaríamos diante de uma sequência ilógica, como indicam estes exemplos9: The jewels are stolen (+ característica) The jewels stolen (- característica) The stolen jewels (+ característica) Para solucionar as restrições que impossibilitavam alguns adjetivos aparecerem nas posições de atributo e predicativo, Bolinger (1967) propôs dois tipos de be-predications10. Segundo ele, apenas os adjetivos bepredications seriam derivados de transformação de apagamento de oração relativa. Com as investigações que promoveu, Bolinger demonstrou que havia nítida diferença entre a modificação exercida pelo predicativo e a modificação exercida pelo atributo. O argumento usado por Bolinger para justificar o uso atributivo de certos adjetivos e a impossibilidade de uso, nessa mesma posição, por outros, estava fundamentada na noção de adjetivos temporários (betemp) e não-temporários (bentemp), diferenciando, assim, dois tipos de be. Para Bolinger, somente os adjetivos não-temporários (bentemp) poderiam ser usados atributivamente e, na defesa dessa tese, ele apresentou os seguintes exemplos: O exemplo é esquematizado por Borges Neto (1979, p. 8). Distintamente do inglês, o português apresenta duas marcas formais para o be-pedications de Bolinger: ser e estar. 9 10 120 Roberto Santos de Carvalho e Gessilene Silveira Kanthack (8) a. The girl is foolish. (A menina é tola). b. The foolish girl. (A menina tola). c. The girl is faint. (A menina está desmaiada). d. *The faint girl11. (A menina desmaiada). O be temporário (betemp) é responsável por indicar uma qualidade passageira, conforme se observa em 8c-d, em que o adjetivo “faint” apresenta o estado temporário em que a menina se encontra; já o be não-temporário (bentemp) indica uma qualidade não-temporária da menina, conforme ilustra o adjetivo “foolish” em 8(a-b). Diante das constatações preliminares, Bolinger (1967) alertou que, embora a noção de temporalidade desse conta de explicar um grande número de restrições de uso dos adjetivos, outros tantos casos fugiam a essa explicação. Apresentado o critério pelo qual seria possível justificar o uso atributivo de certos adjetivos e a impossibilidade desse mesmo uso em outros casos, Bolinger, após apresentar os dois tipos de adjetivos, apontou dois tipos de modificações exercidas por eles, a saber: modificação de referente e modificação de referência. Vejamos os exemplos em 9, apresentados pelo autor: (9) a. The boy is a student. (O menino é um estudante). b. The student is eager. (O estudante é ansioso). c. he boy is an eager student. (O menino é um estudante ansioso). A discussão de Bolinger permeou a questão semântica que existe entre “O estudante é ansioso” e “O menino é um estudante ansioso”. Para o autor, em 9a há o destaque da impaciência de um indivíduo que também é estudante; em 9b, centra-se em um indivíduo que só é impaciente enquanto estudante. Bolinger argumentou, então, que os adjetivos predicativos eram, preferencialmente, modificadores de referente, enquanto os atributos eram modificadores de referência, ou seja, a modificação de referente estava para a leitura predicativa enquanto a modificação de referência estava para a leitura atributiva. 11 Diferentemente do inglês, essa sentença é gramatical em português. Conteratto (2009) chama atenção, no entanto, para o fato de que, tanto no inglês quanto no português, o adjetivo “desmaiada” é incompatível com o verbo ser. Uma breve abordagem histórica da classe dos adjetivos 121 Diante dessa discussão, o autor apresentou a noção de transferibilidade. De acordo com ele, adjetivos de referentes tendem a ser transferíveis de um nome a outro, o que não acontece com os adjetivos de referência. Para esclarecer tal noção, apresentou os seguintes exemplos: (10) a. Henry is a drowsy policeman/ man / father (Henry é um policial sonolento / um homem sonolento / um pai sonolento) b. Henry is a smart student. (Henry é um estudante esperto) Para Bolinger, em 10, a ligação que se estabelece entre o adjetivo drowsy e Henry é independente da ligação entre Henry e policeman. Desse modo, policeman poderia ser substituído por qualquer outro nome sem alterar a relação que se estabelece entre drowsy e Henry. Em 10b, nota-se que Henry só é esperto na condição de estudante. Em suma, vimos que Bolinger (1967) se ateve ao estudo dos adjetivos, objetivando criticar a ideia de que eles, em posição de atributo, seriam fruto de transformações via cláusula relativa. Para tanto, propôs dois tipos de be-predications, fundamentado na noção de adjetivos temporários (betemp) e não-temporários (bentemp). 5 Considerações Finais Neste trabalho, problematizamos a fluidez dos adjetivos e os desdobramentos que a classe gramatical em comento passou no decurso do tempo. Para tanto, procuramos apresentar uma parte da história dessa classe, ao longo do pensamento ocidental, partindo das reflexões platônicas e aristotélicas, passando pelas bases romanas e ramificações. Demonstramos que os adjetivos foram objeto de investigação no quadro inicial das reflexões chomskyanas e apresentamos os desdobramentos que se seguiram às noções iniciais de que o adjetivo em posição de atributo era fruto de transformações generalizadas ou de transformações de orações relativas. Tal desdobramento deu-se no âmbito de várias propostas de classificação, visando ratificar ou 122 Roberto Santos de Carvalho e Gessilene Silveira Kanthack refutar tais concepções. Das propostas que versaram sobre esse assunto, destacamos a de Bolinger (1967). A descrição a que nos detivemos, ao longo do trabalho, visou, tão somente, apresentar as primeiras reflexões e propostas de classificação para os adjetivos. Discutir mais profundamente as implicações de uma ou outra classificação, associando a outros estudos posteriores que procuraram, também, distribuir os adjetivos em classes, fugiria aos nossos propósitos. É lícito, no entanto, destacar que um verdadeiro exército de pesquisadores se debruçou em torno dessa temática. Alguns autores trilharam caminhos paralelos, parcialmente opostos, ou totalmente opostos às propostas de Bolinger. Entre as muitas investigações, listamos algumas com o objetivo de indicar um primeiro caminho de leituras para aqueles que vierem a se interessar pela temática. Os trabalhos citados remetem a outras investigações, estabelecendo, assim, uma teia de referências que pode servir de base de pesquisa, o que poderá poupar o trabalho de “arqueologia” àqueles que trilharem os caminhos dos estudos dos adjetivos. Analisando outras línguas, que não o português, encontramos trabalhos como os de: Siegel (1976), que trata, entre outros aspectos, da questão da ambiguidade; Carlson (1977), que retomou as reflexões aristotélicas no que tange à noção de referência temporal dos adjetivos, entre outros assuntos; Levi (1978), que continuou focado no emprego das duas formas dos adjetivos: atributiva e predicativa; Dixon (1982), que tratou da classificação dos adjetivos pelo viés da noção de campo semântico. Analisando o português, muitos estudos investigaram os mais diversos aspectos dos adjetivos; questões como ergatividade, gradação, categorias vazias, posição dos adjetivos no sintagma nominal, Processamento Automático das Línguas Naturais (PLN) foram objeto de investigação. Dos principais trabalhos que trataram dessas e outras perspectivas, destacam-se os de Alkmin (1975), Vannucchi (1977), Pazini (1978), Lemle (1979), Borges Neto (1979), Kato (1989, 1990), Boff Uma breve abordagem histórica da classe dos adjetivos 123 (1991), Silva e Pria (2001, 2002), Di Felippo (2004), Rio-Torto (2006), Silva (2008), Conteratto (2009). O quadro que mostramos não conseguiria reunir todas as investigações empreendidas em torno da temática. Esperamos que o breve panorama apresentado possa demonstrar que as indagações acerca dos adjetivos seguem longa trajetória no pensamento ocidental. REFERÊNCIAS ALKMIN, T. M. A classe difícil de predicados adjetivais do português. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1975 ARNAULD, A.; LANCELOT, C. Gramática de Port-Royal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BOFF, A. M. A Posição dos Adjetivos no Interior do Sintagma Nominal: perspectivas sincrônica e diacrônica. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1991. BOLINGER, D. Adjectives in English: Attribution and Predication. Língua, n. 18, p. 1-34, 1967. BORGES NETO, J. Adjetivos: predicados extensionais e predicados intensionais. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1979. CARLSON, G. Reference to Kinds in English. Tese (Doutorado). University of Massachusetts, Amherst, 1977. CHOMSKY, N. A. Syntactic Structures. Haia: Mouton., 1957. ______. Aspectos da teoria da Sintaxe. Coimbra: Armênio Amado, 1975. CONTERATTO, G. B. H. 2009. Adjetivos: uma representação linguístico-computacional. Tese (Doutorado em Linguística) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. 124 Roberto Santos de Carvalho e Gessilene Silveira Kanthack PLATÃO. Crátilo. Diálogo sobre a Justeza dos Nomes. Trad. Pe. Dias Palmeira. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1994. DI FELIPPO, A. 2004. Representação lingüístico-computacional dos adjetivos valenciais do português. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, São Paulo, 2004. DIXON, R. M. W. Where Have All the Adjectives Gone? Berlin: Walter de Gruyter, 1982. KATO, M. A seqüência ADJ+N em português e o princípio da harmonia transcategorial. Letras & Letras, n. 4, v. 1 e 2, p. 205-213, 1989. ______. A ergatividade dos adjetivos. Comunicação apresentada no II Encontro da ANPOLL, Recife, 1990. LEMLE, M. 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São Paulo: Parábola Editorial, 2002. Recebido em agosto de 2011. Aprovado novembro de 201 SOBRE OS AUTORES Roberto Santos de Carvalho é graduado em Letras e mestre em Letras: Linguagens e Representações, pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Email: [email protected] Gessilene Silveira Kanthack é mestre e doutora em Linguística, pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente é professora titular da Universidade Estadual de Santa Cruz, atuando na graduação e no Mestrado em Letras, Linguagens e Representações. Email: [email protected]