Universidade do Porto vai formar especialistas em gestão da fraude «A corrupção é uma doença contagiosa, e alguma é mesmo muito contagiosa» A «economia sombra» em Portugal atinge quase 22 % do PIB. «A complacência com a fraude degenera a tessitura ética da sociedade». E quem «não adoptar medidas eficazes de combate à fraude arrisca-se a ser espaço de atracção de capitais especulativos e fraudulentos». O DIABO falou com os responsáveis pela pós-graduação pioneira na Europa, que arranca já no próximo mês Isabel Guerreiro O custo económico e social do crime tem crescido dramaticamente, a economia «sombra» intensifica-se à escala mundial e a fraude e abuso ampliam-se. Consciente do fenómeno, um grupo de professores da Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP) decidiu criar o primeiro curso da Europa em Gestão da Fraude, que arranca já no início do próximo mês. A pós-graduação visa formar especialistas em detecção, controlo e prevenção da fraude nas instituições e destina-se a ser um «pequeno contributo» para «uma fotografia mais realista da sociedade em que vivemos, e que desejamos melhor». Esta é a expectativa dos responsáveis pela formação, a quem «O DIABO» colocou várias questões sobre o flagelo da corrupção. O risco de atracção de capitais fraudulentos Os universitários começam por dizer que a corrupção é apenas uma das formas de fraude. «Toda a complacência com esta cria condições propícias à sua prática, degenera a tessitura ética da sociedade, das instituições e dos indivíduos, enfraquece a credibilidade das estruturas políticas, agrava as desigualdades e depaupera a democracia. Esta é uma possibilidade de evolução, mas nem é inevitável nem é a mais plausível», já que entendem que «é possível e necessário» combater a fraude. Inspirados na Lei «SarbanesOxley» aprovada em 2002 nos EUA – intitulada oficialmente como «Public Company Accounting Reform and Investor Protection Act» e classificada por alguns, como uma das leis mais importantes desde Roosevelt — a referência para a pertinência do curso é, no entanto, a União Europeia. Carlos Pimenta, coordenador da pós-graduação explica que os cuidados com a transparência manifestados nos EUA aconselham atitude similar na UE. «A unificação dos mercados e a livre circulação dos capitais exige atitudes similares no contexto internacional, quem não adoptar medidas eficazes de combate à fraude arrisca-se a ser espaço de atracção de capitais especulativos e fraudulentos, o que não ajuda ao eficiente funcionamento da economia, à responsabilidade social das empresas e à democracia», sublinha. Portugal no 25º lugar em corrupção Nos Estados Unidos, a ACFE («Association of Certified Fraud Examiners») publica periodicamente estudos estatísticos sobre o fenómeno, os quais são o resultado da actividade de milhares de especialistas certificados por aquela instituição que actuam no país. Em Portugal, só há um português certificado pela ACFE. Chama-se José Andrade e é membro da direcção científica da pós-graduação. Apesar da realidade da fraude ser pouco conhecida a nível europeu, o responsável refere alguns estudos que abordaram a economia paralela. Schneider estima que a «economia sombra» em Portugal, em anos recentes, é de 21,9 por cento do PIB (num leque entre 8,4 por cento nos EUA, e 68,0 por cento na Geórgia). Dreher, Kotsogiannis e McCorriston estimam que o nosso País se encontra em 25º lugar em corrupção, num conjunto de 98 Estados, sendo o primeiro e segundo lugares preenchidos pela Suíça e o Japão, e os penúltimo e último pela Nigéria e a Guiné-Bissau, respectivamente. «Todos nós estamos rodeados por todos os lados de “economia não registada”, para utilizar a terminologia da OCDE», refere José Andrade para acrescentar que «não podemos nem ignorar essa realidade nem encará-la como se estivéssemos perante algo de surpreendente, é uma situação que existe à escala mundial, que tende a aumentar, que atinge todos os países em proporções desiguais» «A salvaguarda da democracia e dos seus valores essenciais exige Curso pioneiro na Europa n Na sequência da crescente necessidade de combate à fraude, o novo curso da Faculdade de Economia da UP pretende formar especialistas em Gestão de Fraude («Fraud Management»). A Pós-Graduação destina-se a profissionais ligados à auditoria e inspecção nas empresas (interna ou independente), dirigentes e técnicos dos organismos públicos de auditoria, inspecção e fiscalização, e responsáveis pelas funções de supervisão e controlo das actividades de intermediação financeira, em instituições bancárias ou seguradoras. A formação interessa igualmente às instituições que pretendem preservar a sua imagem e evitar a delapidação de recursos a que a fraude conduz. Reconhecendo que um gestor de fraude deve ter uma sensibilidade e formação interdisciplinar — jurídica, criminal, informática e tecnológica, psicológica, económica, financeira e contabilística — o curso concentra a sua atenção nas vertentes económicas e de gestão das empresas, em particular, e das instituições, em geral. Todos os que lidam com as problemáticas do crime económico, da economia «sombra», da corrupção, fraude e abuso, têm agora uma oportunidade para aprofundar os seus conhecimentos num curso pioneiro e único em toda a Europa. Os especialistas em gestão de fraude (detecção, prevenção, controlo e acção) vão ser reconhecidos mundialmente ao serem certificados pela ACFE — Association of Certified Fraud Examiners — com sede nos EUA. Desta forma os exames para a ACFE poderão passar a ser realizados em Portugal. Com início no próximo mês de Março, o curso tem a duração de 270 horas de formação presencial, distribuídas por três trimestres, com 15 disciplinas e seminários temáticos. A Pós-Graduação irá funcionar às sextas-feiras, das 18h00 às 22h00 e sábados, das 9h00 às 13h00. O primeiro trimestre tem início a 7 de Março e acaba a 7 de Junho. De 13 de Junho a 4 de Outubro decorre o segundo trimestre e o terceiro e último começa a 10 de Outubro e termina a 17 de Janeiro de 2009. «Curiosamente, ou não, é em anos de crise, de dificuldades acrescidas para a generalidade dos cidadãos portugueses, que surgem mais milionários no nosso país», referem os responsáveis pela pós-graduação em Gestão da Fraude, Carlos Pimenta e José Andrade estarmos atentos – “Estado”, “Sociedade Civil” e “Mercado” – e apetrechados com conhecimentos científicos, com enquadramentos jurídico-institucionais, com normas éticas e deontológicas que nos permitam combater e prevenir a fraude», frisa. Ao referir outros estudos sobre a matéria, José Andrade lembra ainda que «a corrupção, e provavelmente a fraude, é uma doença contagiosa, e alguma é mesmo muito contagiosa». Desigualdades abissais «Quando se parte para funcionários de nível superior, a investigação fica mais difícil», reconheceu recentemente José Mouraz Lopes, ex-director do combate ao crime económico da Polícia Judiciária. Sobre esta questão e à pergunta — haverá razão para dizer que existem duas justiças «uma para os ricos», «outra para os pobres»? — Carlos Pimenta responde com o seguinte enquadramento: As desigualdades económicas e sociais são abismais a nível mundial e tendem a aumentar. Na UE, Portugal é um dos países com maiores desigualdades. No indicador do «Eurostat», Portugal é o segundo país com mais intensa desigualdade na distribuição do rendimento. Estudos recentes apontam para uma taxa de analfabetismo próxima dos 9 por cento entre a população que já deveria ter sido escolarizada. O trabalho, a habitação, a sobrevivência são precárias para muitos dos cidadãos, ao mesmo tempo que outros não têm qualquer tipo de limitações e acumulam riqueza. «Curiosamente, ou não, é em anos de crise, de dificuldades acrescidas para a generalidade dos cidadãos portugueses, que surgem mais milionários no nosso país», destaca o coordenador. Carlos Pimenta e José Andrade concluem ainda que aquele enquadramento cria condições muito diferentes no usufruto da liberdade e na acessibilidade a uma cidadania plena. «A financeirização da economia reforça a importância simbólica do dinheiro e do crédito enquanto estandartes da felicidade. A nudez do quotidiano de milhões de cidadão esfuma-se, com o mundo virtual da informação, nas futilidades da política do imediatismo acéfalo e da deusificação do empreendedorismo. O económico reproduz-se criando uma imagem deformada da sua existência como elemento constituinte da reprodução do sistema», acrescentam. Por fim, os professores dizem que «esta ideologia da globalização reforça a tendência para olharse com benevolência e elogio para a genialidade dos que enriquecem a partir do nada e com forte censura para os que atenuam a sua luta pela sobrevivência». 26 de Fevereiro de 2008 17