Texto de Chris Impey em "O universo vivo" (editora Larousse). Tradução de Henrique Monteiro. As notas ao final são minhas. A física contém alguns números persistentes e importantes – a massa do próton, a massa do elétron, a carga elétrica das partículas subatômicas, a energia das forças fundamentais da natureza e assim por diante [1]. Se muitos desses números fossem ligeiramente diferentes, não estaríamos aqui. Em outras palavras, torcer a base fundamental e a física ainda seria funcional, mas as conseqüências dessas leis agindo sobre o universo não incluiriam formas de vida baseadas no carbono como nós. Os átomos são mantidos unidos por uma força nuclear forte, que tem um raio de ação muito curto e age como cola, e uma força nuclear fraca, responsável pela desintegração radioativa [2]. Se a força forte fosse um pouco mais intensa, a reação nuclear seria tão eficiente que as estrelas rapidamente transformariam quase todo o hidrogênio do universo em hélio e até em ferro. Sem nenhum hidrogênio, não existe água. Se, ao contrário, ela fosse um pouco mais fraca, a repulsão elétrica entre os prótons impediria a formação de todos os núcleos complexos, portanto não seria criado nenhum tipo de carbono [3]. Se a força fraca fosse um pouco mais forte, os nêutrons se desintegrariam tão rapidamente que os núcleos se desfariam antes que se produzissem quaisquer elementos pesados. Se ela fosse um pouco menos intensa, haveria grande quantidade de nêutrons disponíveis, com o resultado de que novamente todo o hidrogênio seria convertido em hélio e até em elementos mais pesados, sem que nada restasse para produzir água. Não estamos falando sobre nenhuma grande mudança; “um pouco” aqui significa de 5% a 10% [4]. E tem mais. A força eletromagnética controla as maneiras como os átomos interagem e explica a luz. Se essa força fosse ligeiramente mais forte, os átomos se tornariam egoístas e não partilhariam elétrons, e não seria possível nenhuma reação química. Se ela fosse ligeiramente mais fraca, os átomos não prenderiam os seus elétrons, e o universo se tornaria um mar de partículas soltas, sem nenhuma química possível. Não havendo química, nada de vida. Ainda não acabou. A gravidade é a força mais fraca da natureza [5], mas de muitas maneiras ela é a mais importante, uma vez que esculpe tudo, desde planetas até a expansão cósmica. Uma gravidade forte faria com que se formassem estrelas maiores, as quais queimariam rapidamente e se tornariam instáveis; isso provavelmente não seria nada bom para a vida nos planetas nas proximidades de tais estrelas. Uma gravidade mais fraca seria pior, porque as estrelas não teriam massa suficiente para morrer explosivamente. As supernovas são necessárias para criar alguns elementos fundamentais para a vida e para dispersas o carbono e outros elementos pesados para regiões onde novas estrelas e planetas possam se formar [6]. A cosmologia nos presenteia com mais quebra-cabeças. Em grande parte da sua história, a expansão universal perdeu velocidade em decorrência da gravidade da matéria escura. No entanto, alguns bilhões de anos atrás, entrou em uma fase de aceleração quando a energia escura se impôs à gravidade mais fraca de toda aquela matéria altamente dispersa. A história desde o big bang é movida pela quantidade de matéria escura e de energia escura. As partículas comuns das quais você e eu e o nosso mundo familiar somos feitos são insignificantes nas suas conseqüências sobre a expansão [7]. Um universo com muito menos matéria teria se expandido mais rapidamente na fase inicial – tão rápido que a gravidade não teria tido tempo de exercer sua influência antes que tudo se transformasse em um gás frio e difuso. Se nenhuma estrela ou galáxia se formassem, não haveria vida. Um universo com muito mais matéria teria atingido um tamanho máximo e desmoronado totalmente sob o peso da própria gravidade [8]. Considerando que achamos que a biologia precisa de muito tempo – talvez 1 bilhão de anos – para se desenvolver, um universo bebê com este seria natimorto. O mesmo se aplica à energia escura; se ela fosse muito forte, o universo se destroçaria antes que a vida tivesse alguma possibilidade de se formar. Acontece que a energia escura faz as galáxias se separarem com velocidade crescente. Isso acaba com a idéia das comunicações intergalácticas ou de uma consciência universal porque as galáxias acabarão se afastando mais rapidamente do que a luz pode se deslocar na distância entre elas [9]. O físico Freeman Dyson chamou a isso de universo Carroll, em referência a Lewis Carroll, porque “você precisa correr o máximo que puder, apenas para permanecer no mesmo lugar”. As propriedades “especiais” do nosso universo levam a um princípio antrópico. O princípio antrópico não é uma idéia isolada; é uma rede de conceitos e argumentos lógicos, e tem provocado tanta controvérsia quanto confusão como qualquer outra coisa na ciência. Na sua modalidade mais fraca, o raciocínio antrópico é uma verdade incontestável: só podemos observar um universo que nos permita existir. A modalidade mais forte afirma que o universo precisava ser da maneira como é de modo a permitir que houvesse observadores inteligentes. E o que vem a ser isso? Podemos virar e dizer: É claro que o universo é velho e grande, e as estrelas produziram carbono, e a química é possível. Se tudo isso não fosse verdade, não estaríamos aqui. Ou podemos ficar totalmente perplexos pela sorte inacreditável que levou à nossa existência [10]. *** [1] Alguns cientistas costumam dar nomes curiosos para esse fato: sintonia fina, coincidência cósmica, acaso fortuito, etc. É sempre mais simples “inventar” algum rótulo para evitar pensar sobre o assunto dentro da ciência. [2] Princípios de ação e reação, criação e destruição, existem desde as partículas mais fundamentais do universo. Hermes Trimegisto seria hoje um grande entusiasta da física de partículas... [3] As condições necessárias para se produzir carbono são tão “especiais” que o astrofísico Fred Hoyle chegou a especular, em um artigo intitulado “O universo: reflexões passadas e presentes”, que “um superintelecto está brincando com as leis da física”. Não é muito diferente da idéia básica dos deístas e panteístas. [4] Apenas a título de curiosidade: as chances de você ganhar na megasena ou ser atingido por um raio são incomparavelmente superiores às chances de um universo assim ter surgido “por acaso”. Na verdade, poderia-se até dizer que isso seria impossível; ou para ficar no campo do bom humor, que seria mais fácil alguém ser atingido por um raio todos os dias, precisamente ao meio-dia, enquanto vivesse. [5] Quando aproximamos um pequeno ima de geladeira de um clipe de papel, e ele se desloca em direção ao ima, estamos presenciando a força eletromagnética de um pedaço de ima vencer toda a força gravitacional da Terra. A gravidade é realmente fraca. No entanto, segundo a Teoria M, ela seria uma força atuante em várias dimensões – inclusive dimensões ainda não detectáveis pela tecnologia atual –, e isso explicaria o fato de ser tão fraca “em nossa dimensão”. [6] Vide a nota #2 acima. Só que dessa vez, a lógica é aplicada ao macrocosmos. “O que está em cima é como o que está embaixo” – Hermes continuaria satisfeito. [7] Somos formados pela matéria que preenche cerca de 4% da matéria e energia do Cosmos. O resto (96%) não interage com a luz, e até hoje não foi detectado diretamente em laboratório. [8] O big crunch seria o inverso do big bang, ou mais ou menos como “retroceder” no tempo do universo, de volta ao “bang” inicial. [9] O universo é tão grande que mesmo que nos desloquemos a velocidade da luz em qualquer direção à partir da Terra, existirão galáxias inatingíveis, se afastando a tanto tempo que nem a luz conseguirá vencer a distância. A velocidade da luz delimita nosso horizonte cósmico. [10] Ou seja, o pensamento científico moderno prefere não de “deter” com a questão da “sintonia fina” das forças da natureza. “É assim porque é, se não fosse não estaríamos aqui em todo caso, porque perder tempo especulando a razão disso tudo?” – Mas nem sempre a ciência se fez com tal racionalidade. Em seus primórdios, junto ao logos grego, buscar o Mecanismo e o Sentido do Cosmos eram atividades irmãs, e não distintas. Talvez a ciência moderna tenha perdido a perplexidade dos gregos perante o infinito do Cosmos, ou talvez os cientistas estejam apenas “escondendo o jogo”, com medo de perder certos financiamentos por conta de “idéias heterodoxas”. Depois de conhecer gente como Sagan, Hawking, Greene e outros tantos, a segunda opção me parece a mais provável.