ROMULO FRÓES www.romulofroes.com.br __________________________________________________________________________ KIKO DINUCCI E RODRIGO CAMPOS_ "Guitarras siamesas" Na música popular brasileira ao longo do século 20, a guitarra elétrica ocupou um lugar de disputa; seja na construção de uma identidade nacional -sendo alvo por exemplo, da anedótica passeata dos artistas da MPB contra a incorporação do instrumento na música brasileira-, seja como agente de ruptura, muitas vezes reivindicada como um símbolo de modernidade por artistas e movimentos que buscavam por renovação em nossa música. Já definitivamente incorporada ao vocabulário da música brasileira no século 21, a guitarra passa a ser utilizadas pelos músicos, menos por suas possibilidades harmônicas e melódicas e mais por suas qualidades timbrísticas. Qualidades estas que definiram uma sonoridade que, em certa medida, identifica a geração de artistas surgida neste século. Entre estes artistas, dois jovens compositores vêm desenvolvendo um trabalho em conjunto que não só está transformando a linguagem da guitarra no Brasil como, a meu ver, a própria canção brasileira. Falo de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos. Nascido em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, autodidata, Kiko Dinucci se envolveu, na adolescência, nos anos 1990, com o movimento Punk, tocando guitarra em bandas como Eletric Sickness e Personal Choice. Um pouco mais tarde, abandonaria a guitarra pelo violão e encontraria no samba, em especial na origem do samba paulista, a inspiração que nortearia toda a sua obra. Assim resumido, parece um percurso um tanto desorientado; mas na verdade ele é muito revelador de sua personalidade artística. Kiko Dinucci percorreu caminhos aparentemente muito desiguais. Do choro ao punk, do jazz ao hardcore, da Vanguarda Paulista ao samba rural, da música africana a música caipira, tudo parece caber em sua música. Da mesma forma, ele se deixou influenciar por artistas tão diferentes entre si quanto Itamar Assumpção, Geraldo Filme, Sonic Youth, Tião Carreiro e Racionais MCs. Junte a isto, suas relações com as artes plásticas e o cinema, além de sua profunda ligação com a cultura afrobrasileira -em especial o candomblé, religião da qual é praticante-, e você terá uma boa pista para compreender seu trabalho. Nascido na cidade de Conchas, no interior paulista, mas criado no bairro de São Mateus em São Paulo, Rodrigo Campos, ao contrário de Kiko Dinucci, teve sólida formação musical, tornando-se um exímio instrumentista, especialmente reconhecido por sua habilidade ao violão e cavaquinho. Desde cedo foi ligado ao samba, particularmente ao trabalho dos artistas oriundos do Cacique de Ramos, histórico bloco de carnaval carioca que revelou grandes nomes, como o grupo Fundo de Quintal, Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho. Mais tarde, influenciado pela cena de pagode de São Paulo, que nos anos 1990 fez estrondoso sucesso nacional, tocou em grupos como o Apoteose do Samba. De personalidade introvertida, não deixa transparecer facilmente seus múltiplos interesses, que vão muito além da música e trafegam por áreas tão diversas quanto a astrologia, os quadrinhos eróticos, o cinema francês e a literatura fantástica, pra citar apenas alguns. Se a música de Kiko se orgulha de escancarar suas influências, o movimento de Rodrigo parece ser o da contenção, como se tentasse organizar tudo o que o afeta em um único pensamento, mas que acaba por fim, rompendo seus limites. Seu primeiro disco é um bom exemplo. São Mateus não é um lugar assim tão longe (2009), ainda que se refira a um lugar e tempo muito específicos, parece nos contar não apenas de sua própria vida no bairro onde cresceu, mas da vida de qualquer um, em qualquer lugar. Embora já se conhecessem e tocassem juntos há mais tempo, foi em 2011, com o lançamento do disco que inaugurou e nomeou o grupo Passo Torto, que Rodrigo e Kiko começaram a desenvolver uma linguagem musical conjunta. Neste primeiro disco, inteiramente acústico, o violão de Kiko já unia sua herança roqueira, com os riffs prevalecendo sobre as harmonias, a um acento rítmico de matriz africana -um modo de tocar amplamente praticado em seus trabalhos anteriores, em especial com o trio Metá Metá, do qual também fazem parte Juçara Marçal e Thiago França. Em Passo Torto Rodrigo também toca violão, mas é seu cavaquinho que se sobressai, alternando momentos mais rítmicos a outros mais melódicos, demonstrando seu vasto repertório no instrumento. Ainda que a identidade como instrumentista de cada um se revelasse, a autonomia artística de ambos foi preservada, sem que um afetasse tanto o outro. É com o lançamento de Passo Elétrico (2013), segundo disco do Passo Torto, que o diálogo entre os dois se aprofunda. Como o próprio título do disco parece entregar, Kiko e Rodrigo trocam seus instrumentos acústicos por guitarras, e aqui cabe salientar os caminhos que os levaram a essa escolha. Kiko havia retornado a guitarra justamente na gravação de Bahia Fantástica (2012), segundo disco de Rodrigo, fato este que se repetiu na gravação do segundo disco do Metá Metá, não por acaso intitulado Metal Metal (2012). Rodrigo por sua vez, influenciado por Kiko, mas também por todo o grupo que, à sua volta, vinha pesquisando novos timbres para seus instrumentos -caso de Marcelo Cabral com o baixo acústico e Thiago França com o saxofone-, passa a tocar guitarra pela primeira vez em sua carreira. Tanto o retorno de Kiko quanto a chegada de Rodrigo ao instrumento apresentam "falhas". No caso de Kiko, a falta de uma formação musical mais consistente, pré-requisito para o adolescente punk que era. Formação que não faltou a Rodrigo, mas que por outro lado, prescindia de um vocabulário próprio do instrumento muito devedor do rock, gênero que pouco havia escutado até então. Para mim, reside aí uma das forças deste encontro: o que falta pra um, sobra no outro. A linguagem que vêm desenvolvendo, mais do que um caminho anteriormente imaginado, foi desencadeada principalmente pelas diferenças de cada um. Diferença já determinada desde a escolha dos pedais de efeito que utilizam em suas guitarras. Kiko opta basicamente por pedais de distorção, não só para reforçar sua pegada roqueira, mas porque são pedais que funcionam melhor com sua técnica mais percussiva. O som de sua guitarra tem duração mais curta, predominam os staccatos, o que a torna mais ruidosa e agressiva. Já o som da guitarra de Rodrigo, por conta de sua técnica violonística, muito apoiada em arpejos, tem duração mais longa, por isso prefere os pedais de reverb e delay, que prolongam o som, facilitando a construção de suas melodias mais fluídas e elaboradas, quase barrocas, se comparadas às linhas mais diretas de Kiko. Esse embate entre vozes tão diferentes e a polifonia gerada por ele provocam uma ruptura na estrutura da própria canção, que se desequilibra sobre uma base movediça. No Passo Torto, o baixo acústico de Marcelo Cabral -que poderia pavimentar essa base informe, dada a característica própria de seu instrumento-, ainda que ponha a canção um pouco mais em seu trilho, a mantém em suspensão, pois o modo como interage com as guitarras de Kiko e Rodrigo é mais um elemento desagregador a interferir na construção dos arranjos. Comentar as conquistas de Kiko e Rodrigo com o Passo Torto encerr, para mim, riscos e dificuldades, pelo fato de eu também ser um integrante do grupo. Ao mesmo tempo que a proximidade propicia um entendimento mais minucioso do trabalho dos dois, poderia ser apontado como obstáculo a uma visão crítica mais “objetiva” -se é que isso existe. Sinto-me, contudo, à vontade para reconhecer que as conquistas da dupla alcançaram um outro patamar com Encarnado (2014), o disco solo de Juçara Marçal -do qual nem eu nem Marcelo Cabral fazemos parte. Fato incomum em um disco de uma cantora, em Encarnado, Kiko e Rodrigo ocupam o mesmo plano de Juçara, interferindo diretamente em sua interpretação, que ora se mostra mais precisa e elegante como a guitarra de Rodrigo, ora, mais acidentada e agressiva, como a guitarra de Kiko. Em Ciranda do Aborto, por exemplo, Juçara se deixa atravessar pelo arranjo pontiagudo da canção, transformando sua voz em lâmina. Juçara rasga, mais do que canta, os versos agudos da violenta ciranda composta por Kiko. O modo como Kiko e Rodrigo interferem com seus arranjos na estrutura das composições, mesmo quando estas não são de sua autoria, sobrepondo novas e improváveis melodias à melodia principal, se deve ao fato de serem além de ótimos instrumentistas, grandes compositores, entre os melhores de sua geração. Suas guitarras não são apenas parte do arranjo: são elas mesmas outras canções dentro da canção. A sensação de vertigem é enorme; somos arremessados pra dentro de um redemoinho melódico, como se a canção estivesse em estado permanente de composição. É algo parecido com o que faz João Gilberto -mas diferente deste, que parte do núcleo já estruturado de uma canção para então, com seu canto e seu violão, deslocar, desmembrar, desconstruir e recompor sua estrutura, Kiko e Rodrigo parecem ignorar esse núcleo, abrindo novos núcleos, tornando quase impossível se distinguir figura e fundo da canção, no que me parece ser este também, um modo novo de abordar a canção no Brasil. Publicado no jornal "Folha de S. Paulo", Ilustríssima, 21/12/2014.