Burne – Jones: Um pintor esquecido (Expresso: 27 -02-1999) Conta a lenda que os deuses imortalizaram a aventura dos grandes heróis colocando-os nos céus sob a forma de grupos de estrelas. Assim, teriam aparecido as constelações de Andrómeda e de Perseu, tal como a de Pégaso, de Cefeu, Cassiopeia ou Cetus. &o final do século passado, o pintor inglês Edward BurneJones representou, numa série de dez quadros, o mito de Perseu, ajudando a compreender a complicada saga de um dos filhos de Júpiter. &uma retrospectiva, patente em Paris, é possível conhecer a obra de Burne-Jones, enquanto, nos céus portugueses, a constelação de Perseu está visível antes das três da manhã. Mas, por pouco tempo, porque as estrelas estão prestes a desaparecer do nosso horizonte... ABRE na próxima semana em Paris, no Musée d'Orsay, uma retrospectiva do pintor vitoriano Burne-Jones. A exposição, que foi inaugurada em Nova Iorque no ano passado, é constituída por 170 trabalhos daquele que foi, à época, o mais celebrado dos pintores ingleses. Trata-se duma primeira grande retrospectiva, organizada por ocasião do centenário da sua morte. Apresentam-se aí praticamente todas as suas obras maiores, incluindo algumas das séries de quadros, nomeadamente a célebre série de Perseu. «A chamada de Perseu», pintura a Edward Coley Burne-Jones nasceu em óleo de Edward Burne-Jones Birmingham, Inglaterra, em 1833 e aí faleceu em 1898. Foi um pintor polémico, seguidor das ideias do esteticismo e da filosofia da arte pela arte. Opôs-se a vários movimentos artísticos que apareceram no dobrar do século, nomeadamente aos impressionistas, que dizia retratarem «apenas paisagens e prostitutas». Talvez por isso, Burne-Jones foi esquecido durante grande parte deste século pois, em certa medida, representava valores estéticos postos em causa pela pintura moderna. Passados cem anos, a sua arte pode ser apreciada com outros olhos, como de um grande pintor. Burne-Jones é parte importante de um largo movimento artístico por vezes designado como «a revolta romântica» e aparece no seguimento de uma escola que hoje volta a despertar as atenções, a escola dos pré-rafaelitas. Como todas as tendências artísticas e intelectuais, os pré-rafaelitas não constituem um movimento único, mas englobam sensibilidades e motivações diversas. O termo foi originado pela «Irmandade PréRafaelita» (Pre-Raphaelite Brotherhood), um grupo de sete poetas e pintores ingleses, fundado por William Holman Hunt (1827-1910), Dante Gabriel Rossetti (1828-82) e outros artistas. Um dos objectivos do grupo era a prática simultânea das letras e artes plásticas, o que, no entanto, apenas Dante Gabriel Rossetti conseguiu realizar. No campo da pintura, o grupo propunha-se regressar ao estilo e espírito dos pintores que apareceram antes de Rafael (1483-1520), rompendo abertamente com a tradição artística da Academia Real Inglesa. Assim, por exemplo, enquanto a Academia Real ensinava a compor as figuras numa pirâmide central, com iluminação proveniente de um lado e ênfase nas sombras, destacando o relevo, os pré-rafaelitas utilizavam cores vivas e iluminadas em todo o quadro, que aparecia quase plano. Enquanto a Academia ensinava a destacar os elementos centrais, que apareciam com muito mais pormenor do que o que os circundava, a irmandade prérafaelita admitia que todos os elementos, muitas vezes mesmo os laterais e de pano de fundo, podiam merecer ser tratados com grande pormenor e precisão. «Perseu e as Graias», o segundo quadro da série e aquele em que Burne-Jones descreve, em latim, o mito grego de Perseu Os pré-rafaelitas inspiraram-se na técnica de William Dyce (1806-1864), de quem já falámos a propósito da pintura realista dos céus («Cíntia, Vénus e Francesca», na Revista do EXPRESSO de 12 de Setembro de 1998). Contudo, a sua atitude ideológica e social, a sua técnica e, sobretudo, os seus motivos, afastam-nos deste outro pintor. O novo grupo artístico misturava um certo realismo figurativo com um simbolismo tipológico, procurando temas do passado heróico e mítico. Nesse aspecto, os pré-rafaelitas aproximavam-se de muitas outras correntes da revolta romântica, procurando estilizar tipos heróicos. Tal como Wagner compunha óperas sobre temas da mitologia germânica, assim os pré-rafaelitas reviviam os heróis e mitos do passado da Inglaterra, nomeadamente as lendas arturianas. Na inspiração dos pré-rafaelitas está, aliás, um grupo de pintores alemães conhecidos como «os nazarenos». Tratava-se de um grupo semi-religioso, que adoptou o nome de «Irmandade de São Lucas» e que se propunha renovar a arte sacra alemã, imitando o estilo de pintores como Dürer (14711528), Perugino (1445-1523) e Rafael (1483-1520). Imagina-se que grande parte do público e dos críticos se possa ter desinteressado da ideologia e do trabalho destes pintores. E que grande parte deste século tenha passado sem que Burne-Jones fosse frequentemente citado e considerado. Se há hoje um renovado interesse pelo seu trabalho, isso deve-se certamente à pintura e ao que ela nos transmite de misterioso e de único. A arte deste grande pintor vitoriano consegue traduzir o estado de alma de uma época e de uma corrente, de uma forma «A Morte de Medusa I» que transcende a sua motivação histórica directa. Mais que nenhum outro pintor da época, a arte de Burne-Jones era «escapista», levando o público a um mundo de sonho povoado por almas em corpos estilizados. A nostalgia por um passado heróico associa-se a um mundo alternativo em que reina a perfeição e a beleza. Burne-Jones considerava a vida moderna repugnante e queria construir um mundo em que a beleza reinasse. As figuras de Burne-Jones reflectem seres idealizados, que atingiram uma espécie de perfeição genética andrógina. As figuras femininas revelam uma sexualidade ambígua e até os guerreiros em armadura aparecem com uma juventude pré-púbere, exibindo uma espécie de indiferença enfastiada, mesmo quando em riscos de serem devorados por monstros diabólicos. Há quem diga que Burne-Jones é pintor de um erotismo assexuado. As suas figuras são tipos idealizados, facilmente reconhecíveis como tendo saído do seu hábil pincel. Por vezes, parecem enfermas e sem vida, o que levou muitos críticos a censurar o estilo de Burne-Jones como um estereotipo vazio e desinteressante. Henry James, contudo, notou que é «absurdo dizer que as suas jovens estão enfermas, pois elas não estão nem doentes nem saudáveis: vivem num mundo diferente do nosso». E acrescentou que «é uma questão de graça, delicadeza, ternura». Entre os trabalhos mais importantes de Burne-Jones destaca-se a série de Perseu, uma sequência de dez quadros que retrata a lenda grega. A série foi encomendada em 1875 por lorde Arthur Balfour, que dez anos mais tarde haveria de ser primeiro-ministro britânico. Os quadros foram concebidos para decorar um salão da casa londrina de Balfour e demoraram mais de dez anos a ser pintados. Nunca vieram a ocupar o seu destino e pertencem hoje à City Art Gallery de Southampton. Fazem parte da retrospectiva de Burne-Jones e podem ser apreciados agora no Musée d'Orsay, onde se encontram até dia 6 de Junho, altura em que esta grande retrospectiva se encerra e as pinturas regressam aos seus locais de exposição permanente. A lenda de Perseu, como todas as lendas gregas, aparece na literatura antiga em versões muito variadas. Tal como tantas outras personagens da mitologia grecoromana, Perseu é filho de Zeus (Júpiter para os romanos) e dos seus amores ilegítimos com uma bela jovem, neste caso Dánae, filha do rei Acrísio de Argos. A princesa tinha sido encerrada numa torre pelo «Condenação Cumprida» pai, temeroso das paixões que a filha poderia despertar. Mas o rei de Argos foi surpreendido com o aparecimento de um neto… «Ao saber do misterioso nascimento», escreveu Maria Lamas em O Mundo dos Deuses e dos Heróis, «Acrísio meteu a mãe e o filho num cofre e lançou-os ao mar. Depois de andar muito tempo ao sabor das ondas, o cofre foi dar à ilha de Serifos, onde Dánae e Perseu foram recolhidos pelo rei Polidectes, que casou, mais tarde, com a princesa argiva. Para se desembaraçar do enteado, Polidectes ordenou-lhe que fosse cortar a cabeça de Medusa (uma das três Górgones, em princípio de uma formosura rara e com magníficos cabelos, que Atena (Minerva), a quem ela ofendeu, transformou, por vingança, em horríveis serpentes, ao mesmo tempo que deu ao seu olhar a força de petrificar todos aqueles que fitava).» É neste momento da narrativa que a ilustração de Burne-Jones começa. O primeiro quadro da série mostra Perseu nas margens de um ribeiro, pouco depois de ter abandonado a cidade. Curiosamente, Burne-Jones pinta duas cenas no mesmo quadro. Na primeira, à esquerda, vê-se o jovem, pensativo e desconsolado, a ser abordado por uma figura encapuçada. Na segunda, à direita, essa figura revela-se como a deusa Atena, que o aconselha quanto à sua viagem, o adverte sobre o poderoso olhar da Medusa e lhe oferece um espelho para poder ver o monstro sem com isso ficar petrificado. No segundo quadro, Burne-Jones pinta uma descrição, em latim, de toda a história, o que lhe permite, na parte de baixo, fazer uma pintura alongada da cena. Aí aparecem três irmãs das Górgones, as Graias, que viviam numa região recôndita, uma terra das trevas, tão perto do leste como do oeste. As três criaturas tinham apenas um olho e um dente, que partilhavam e trocavam entre si, conforme fosse necessário. Perseu abordou-as perguntando pela localização da Medusa mas elas recusaram-se a colaborar. O quadro mostra o momento em que o herói lhes retira o olho único, aproveitando um momento em que uma das Graias o passava a outra. Ficando na posse do único instrumento de visão das três irmãs, Perseu facilmente as convenceu a colaborar e a «Cabeça Maligna», onde se retrata a luta entre Perseu e a terrível deusa Medusa, capaz de transformar em pedra cada ser que a olhasse indicar-lhe o almejado paradeiro da Medusa. Este quadro é um dos mais notáveis da série, tanto pelo conjunto colorido e pelo conseguido retrato sombrio, como pelo pormenor com que o olho é pintado - claramente destacável na pintura original. A cena seguinte, que aqui não reproduzimos, mostra Perseu com as ninfas marinhas, que lhe emprestam o capacete de invisibilidade de Hades e as sandálias de Hermes (Mercúrio). Uma outra cena, também aqui omissa, revela Perseu aproximandose da Medusa e observando-a com o espelho que Atena lhe tinha oferecido. O quinto quadro da série pinta o momento em que Perseu decepa a Medusa e lhe arranca a cabeça. Do pescoço do monstro saem Crisaor e Pégaso, o cavalo alado, que em algumas versões da lenda é depois montado por Perseu. Sem que Perseu o soubesse, ao matar a Medusa tinha cumprido uma vingança da deusa, que odiava a criatura por ter violado o seu templo e aí ter concebido estes seus dois estranhos filhos. A riqueza de pormenor deste quadro é notável: algumas das serpentes caídas da cabeça da Medusa aparecem no chão contorcendo-se, o cavalo é desenhado com grande rigor anatómico e a vestimenta de Perseu é pintada com atenção ao mais pequeno adereço. Igualmente curioso é o aparecimento dos nomes das personagens. Na sua globalidade, o quadro revela-se de uma grande modernidade, parecendo ter inspirado directamente alguma da banda desenhada que circula entre nós no final deste século. O sexto quadro, aqui omisso, mostra as outras Górgones procurando castigar o vencedor da Medusa, enquanto este se escapa graças ao capacete de Hermes, que o torna invisível. O sétimo quadro mostra Perseu de regresso, passando por Atlas, que segura o céu sobre os ombros. O oitavo quadro descreve uma das cenas capitais da história de Perseu: o momento em que este encontra a «A Pedra da Condenação», princesa Andrómeda acorrentada a uma rocha à espera de de Edward Burne-Jones ser devorada pelo monstro enviado por Poseidon (Neptuno). Conta a história que Cassiopeia, a vaidosa rainha da Etiópia, se tinha sido vangloriado de ser mais bela do que as próprias ninfas do mar, pelo que Poseidon, o deus dos oceanos, se tinha vingado enviando tempestades que devastavam o reino. Cassiopeia e o marido, o rei Cefeu, queriam a todo o custo apaziguar a divindade. Quanto Poseidon reclamou a vida de Andrómeda, os reis cederam e prenderam-na a um rochedo para ser devorada por um monstro marinho. É nesse momento que Perseu passa sobre as costas da Etiópia e se surpreende por ver a bela jovem em posição tão insólita. Aproxima-se, ainda invisível, e retira o capacete mágico para se revelar a Andrómeda. No retrato de Burne-Jones, a princesa encontra-se numa pose estranhamente calma para quem se encontra em situação tão desesperada. Inclina a cabeça, como que a mostrar pudor pela sua nudez, mas esta nudez é uma nudez ideal e casta, como a de uma estátua de mármore. Depois de libertar Andrómeda das suas cadeias, Perseu enfrenta o monstro marinho que entretanto se aproximara. Segundo as versões mais populares da lenda, o herói petrifica-o e derrota-o mostrando-lhe a cabeça da Medusa, que trazia no seu saco. Na versão de Burne-Jones, que aqui mostramos no nono quadro da série, Perseu prefere destruir o monstro com a força dos seus braços e o poder da sua espada, como que para exibir a sua valentia frente à jovem, de quem logo se tinha enamorado. No quadro, a figura graciosa de Andrómeda aparece estranhamente indiferente ao perigo e confiante na valentia do seu apaixonado. Em contraste, o monstro agita-se para esmagar o herói. As suas cores sombrias contrastam com a alvura da donzela. No décimo quadro, Burne-Jones termina a série. Perseu mostra a cabeça de Medusa a Andrómeda, com quem viria a casar-se. Não a olham directamente, mas sim através do reflexo das águas paradas de um bebedouro. É o triunfo final do heroísmo e da juventude contra os inúmeros inimigos que Perseu derrotou. O quadro é, finalmente, idílico. O jardim é luxuriante, como o jardim Exemplo da utilização da estética do pintor na publicidade actual do paraíso. Nada perturba os jovens apaixonados, que aparecem em lugar central, junto à fonte e enquadrados pela vegetação. O quadro é primorosamente trabalhado, providenciando um final triunfante. Conta a lenda que os deuses imortalizaram a aventura dos nossos heróis, colocando-os nos céus sob a forma de grupos de estrelas. Assim teriam aparecido as constelações de Andrómeda e de Perseu, tal como a de Pégaso, o cavalo alado, as dos pais da heroína, Cefeu e Cassiopeia, e a do monstro Cetus, a Baleia. As constelações dos reis da Etiópia, Cefeu e Cassiopeia são visíveis durante todo o ano. Rodam em torno do pólo, a uma declinação tal que nunca desaparecem no nosso horizonte. Para observadores à latitude de Portugal continental e dos Açores, são o que se chama constelações circumpolares. Já as restantes constelações aparecem no Outono e Inverno e começam a mergulhar muito cedo nos horizontes da Primavera. Esta noite, uma hora depois do pôr-do-Sol, ainda são todas visíveis acima do horizonte oeste. Poucas horas mais tarde, já Pégaso e a Baleia terão mergulhado no horizonte. Pela meianoite é a vez de Andrómeda, pelas três da manhã, a de Perseu. Dentro de poucas semanas, todas estas constelações começarão a desaparecer no horizonte de oeste e noroeste muito mais cedo, pelo que temos agora uma última oportunidade para ler nos céus toda a lenda de Perseu. Se a princípio da noite olharmos para os céus de noroeste, deve ser fácil identificar a Cassiopeia, destacável como um «M» ou um «W», perto do pólo norte celeste. À sua direita e quase por debaixo da estrela Polar, vê-se Cefeu, constelação mais difícil de reconhecer, pois é constituída por estrelas menos brilhantes e não reproduz nenhum padrão geométrico nítido. Abaixo da Cassiopeia e um pouco à sua esquerda aparece a princesa Andrómeda. Abaixo desta e já muito perto do horizonte, aparece Pégaso e o grande quadrado. O quadrado de Pégaso costuma ser fácil de identificar, mas está agora muito perto do horizonte, o que dificulta a sua observação. A ajudar a localização destas constelações, aparecem agora três planetas brilhantes, alinhados quase na vertical sobre o ponto cardeal oeste. Mais perto do horizonte vê-se Júpiter, logo seguido de Vénus. Quem, no dia 23, observou a espectacular conjugação destes dois planetas - que tivemos oportunidade de assinalar no artigo «O Céu de Inverno», na Revista do EXPRESSO de 23 de Janeiro - terá reparado que Vénus, movendo-se muito rapidamente sob o fundo estelar, passou para trás de Júpiter, desaparecendo agora mais tarde no horizonte do que o planeta gigante. Bastante acima destes dois planetas e muito menos brilhante, aparece Saturno. Tomando os três planetas como referência e olhando para a esquerda, pode-se localizar a Baleia, um outro conjunto de estrelas pouco conspícuas. Todas as outras constelações desta lenda aparecem entre os planetas e a Polar. Texto de ,U,O CRATO, em ,ova Iorque