Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado Andreas Mehl RESUMO O saber acadêmico relativo à Antiguidade Clássica, com sua forte tradição filológica e literária, associa o registro histórico e a memória muito estreitamente, e por vezes de forma absoluta, à historiografia. Embora isso possa ser apenas um lado da questão, é impossível escrever sobre o tema deste volume, na medida em que se refere aos romanos, sem me deter sobremaneira em sua historiografia e algumas de suas peculiaridades. Minha análise é dividida em três seções, movendo-se da memória social e histórica fora da historiografia para a própria historiografia. A última seção, lidando com o próprio centro do pensamento histórico romano, é, de longe, o mais longo. PALAVRAS-CHAVE Historiografia romana; registros históricos; memória. Sumário | 109 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado N CONTEXTOS SOCIAIS: MEMÓRIA HISTÓRICA E REGISTROS FORA DA HISTORIOGRAFIA uma visão declaradamente simplificada, a sociedade romana sempre se dividiu em dois grupos – mais antigamente, entre patrícios e plebeus; sob a República e o Alto Império, entre nobreza, como classe dominante, e plebeus, como a massa de cidadãos, e, no Baixo Império, entre os honestiores e os humiliores, i.e., entre os homens e mulheres honrados (de alto status) e o povo comum. Em cada um dos três períodos, o registro histórico foi, quase que de forma absoluta, uma preocupação apenas do primeiro grupo. Assim, os patrícios, nobres e homens honrados, faziam história em um duplo sentido, sendo políticos, administradores e generais, eles tomavam parte ativamente nesses eventos que formaram o material da história romana, registravam esses eventos e, por conseguinte, as realizações pessoais dos líderes. Alguns romanos que não pertenciam ao primeiro grupo – como, por exemplo, no tempo de Augusto, os poetas Propércio ou Ovídio – poderiam julgar alguns eventos da história contemporânea de uma maneira que contrastasse com o ponto de vista defendido por Augusto e por seu círculo. Entretanto, os romanos que não pertenciam às classes sociais mais elevadas, senadores ou, ao menos, cavaleiros, e que se preocupavam com o registro histórico não chegavam a formar um grupo independente e identificável, tanto quanto nos é dado conhecê-los e, em todo caso, não se opunham, geralmente, à representação e à interpretação da história dada pelos senadores e cavaleiros. Como, então, as classes superiores lidavam com os registros históricos? Por muitas gerações, os patrícios e os nobres estabeleceram e preservaram o conhecimento de suas próprias realizações e experiências e de eventos que ocorreram antes de seu próprio tempo por meio de uma mistura de procedimentos orais, escritos, pictóricos e performáticos – e a historiografia não estava entre eles.3 Parece irônico que a melhor e mais completa evidência para algumas dessas práticas tenha sobrevivido, precisamente na historiografia, na obra de Políbio, historiador grego que escreveu sobre a ascensão de Roma ao poder mundial. Listo aqui os três mais importantes tipos e situações de registro histórico. O fato de que eles sejam conectados com a morte não deve ser surpreendente, já Sumário | 110 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 que a lembrança de uma pessoa, em geral, começa no momento de seu desaparecimento.4 (1) O funeral oferecia duas oportunidades de memória e registro. Uma era o discurso fúnebre, que não somente se limitava a elogiar o falecido ou a falecida, mas também poderia se referir a membros da família que haviam morrido anteriormente. A outra era a procissão fúnebre (pompa funebris), na qual muitos membros falecidos da família eram representados por escravos portando máscaras dos antepassados e vestes com as insígnias dos cargos exercidos por esses. (2) Uma máscara mortuária do patrício ou nobre falecido era confeccionada e colocada no atrium da casa, juntamente com o titulus, uma pequena inscrição com seu nome, cargos públicos e sacerdócios exercidos e, às vezes, algumas realizações extraordinárias. Essa parte da casa era acessível não somente a membros da família, mas também a outros, especialmente aos clientes. (3) No mausoléu da família, uma inscrição semelhante era gravada na urna cinerária ou em seu sarcófago – muitos sarcófagos de um dos mais famosos clãs romanos, os Cornelii Scipiones, oferecem um excelente exemplo. O mesmo texto, ou uma versão similar, era frequentemente exibido também nas paredes externas do mausoléu ou em uma estela (pedra) erigida na frente desse. Os gregos, os etruscos e os romanos cremavam seus mortos fora de suas cidades, especialmente nas estradas que conduziam ao interior ou a outras cidades: eles queriam que as pessoas que passassem por esses lugares lembrassem e honrassem seus mortos. Por isso, as inscrições e, talvez, também as estátuas dos mortos tinham de se fazer visíveis fora do mausoléu. Novamente, não faltam exemplos — inclusive os pilares de bronze inscritos com o relatório feito por Augusto sobre os seus próprios feitos, as Res gestae, à frente do mausoléu da família no Campus Martius. Depois de poucas gerações, tais registros individuais logravam produzir histórias familiares orais que tinham significância para a comunidade cívica de Roma ou nela se inscreviam. Obviamente, nenhuma história familiar isolada nem tampouco uma justaposição de algumas delas, ou mesmo de todas elas, podiam produzir uma história de Roma, porque todas permaneciam focadas em famílias isoladas. Entretanto, elas podiam ser utilizadas para escrever a história de Roma – e, sob essa perspectiva, elas também se poderiam revelar problemáticas. Por exemplo, uma família poderia sentir-se obrigada a melhorar a reputação de um ancestral que havia falecido muito jovem, Sumário | 111 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado ou que não tivesse sido muito importante durante uma vida longa, ou que tivesse sido uma ovelha negra. Há evidências de que esse “melhoramento” aconteceu realmente, mas a suspeita de que ele pode ter acontecido em larga escala pode ser refutada pelo fato de que as tradições históricas e as alegações de cada família poderiam ser confrontadas com o conhecimento armazenado por outras famílias nobres e patrícias e, além disso, pelas recordações de todos os cidadãos romanos, na medida em que esses tomavam parte na vida pública e política, incluindo-se nela o serviço militar. Como clientes, eles visitavam seus patronos nos átrios das casas nobres e viam as inscrições próximas às máscaras mortuárias, participavam em massa nos funerais e, como todos os demais cidadãos, passavam à frente dos mausoléus, olhavam as estátuas e liam as inscrições funerárias ao longo das estradas. Já que ambos os grupos eram receptores dos registros produzidos pela classe dominante, eles exerciam um duplo controle social sobre a verdade das histórias das famílias romanas. Contudo, a memória histórica romana não se baseava, somente, nas tradições familiares. A própria comunidade cívica e seus representantes tinham oportunidades de lembrar a seus membros, os cidadãos de Roma, os eventos históricos, e eles o faziam de várias maneiras. As crônicas, ou fasti, escritas pelo sacerdote supremo, o pontifex maximus (sempre um cidadão de origem patrícia), podem ter fornecido algum material, embora, aparentemente, elas fossem resumidas e concentradas em eventos de importância religiosa para a comunidade, que necessitasse de expiação.5 Logo, somente a sua ordem cronológica será discutida aqui. De muito maior importância são os memoriais e os monumentos, entre eles as tabulae pictae, pinturas em geral de batalhas e de feitos memoráveis de pessoas famosas, expostas em edifícios públicos. É incerto quando esse hábito tenha começado, embora ele seja amplamente atestado desde o início do séc. III a.C. De qualquer maneira, os romanos logo se tornaram especialistas em representar eventos históricos por meio de imagens, pintadas, gravadas ou esculpidas, geralmente combinadas com um breve comentário escrito. E, em toda a Antiguidade, não havia outro Estado que pudesse competir com Roma na intensidade com que ideias políticas, projetos e realizações fossem comunicados ao público por meio de moedas, representando ao mesmo tempo imagens selecionadas para esse fim e curtas inscrições.6 Sumário | 112 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 Nas cidades-estado antigas, a comunidade cívica era responsável pelo culto dos deuses e os sacerdotes eram, geralmente, cidadãos. O calendário comum, regulando tanto a vida cívica como a religiosa, marcava dias específicos do ano como sendo relevantes tanto na esfera religiosa, como na política e, assim, lembrava os cidadãos de eventos históricos. Por exemplo, 18 de julho era devotado à memória da desastrosa derrota para um exército gaulês perto de Roma, às margens do pequeno rio Allia, no início do séc. IV a.C. Com o tempo, o número de dias comemorando experiências históricas boas e más cresceu consideravelmente. No tempo dos imperadores, a começar com Augusto, foram acrescentados dias relacionados à vida pessoal e aos empreendimentos dos imperadores, imperatrizes e príncipes. A maioria desses dias de celebração pessoal foi abolida após a morte da pessoa em questão, mas alguns deles foram mantidos por um período, ora mais curto, ora mais longo, e, assim, tiveram chance de entrar para a memória histórica.7 Além disso, todas as pessoas, mesmo os escravos, podiam ver os monumentos e ficar cientes dos dias e festas de significado histórico. E isso não se limitava à cidade de Roma – onde quer que houvesse um monumento no Império, uma porção da história romana podia ser aprendida e lembrada. Desde o início do séc. III a.C. até o período imperial, inclusive, a historiografia foi usada como o principal meio para registrar o passado. Entretanto, os meios tradicionais para preservar e registrar a memória histórica, cujos objetivos e cujas vantagens diferiam daqueles da historiografia, não se tornaram obsoletos. Sob as novas condições sociais e políticas do império, entretanto, os métodos de registro e de rememoração da história sofreram mudanças, embora os vários modelos tenham sido afetados em diferentes graus. Essas mudanças eram causadas pela posição do imperador, que foi elevado acima de todos os demais, e por seu papel de patrono de todos os cidadãos. Os funerais públicos, assim como outras honras públicas para senadores, como o triunfo, doravante dependiam da permissão do imperador; os contatos dos senadores com o conjunto dos cidadãos foram reduzidos a um mínimo, ou mesmo suprimidos, porque o imperador invocava exclusiva responsabilidade pelo bem estar do povo; monumentos públicos, na cidade de Roma, foram planejados e projetados pela equipe de governo do imperador, e, nos outros lugares do Império, sua construção estava sujeita a uma permissão Sumário | 113 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado dada pelo imperador ao governador provincial. Assim, as possibilidades de influenciar a opinião pública, especialmente por meio das artes e da cunhagem de moedas, e com essas a formação da memória pública – pelo menos do passado recente – era monopolizada pelo mandatário supremo.8 Mas o que acontecia com a historiografia? MEIO SOCIAL, OBJETO E FOCO DA HISTORIOGRAFIA ROMANA Como os outros métodos de registro histórico, a historiografia estava nas mãos dos nobres romanos – os que faziam a história também a escreviam. Como uma atividade limitada à esfera privada, ela era menos afetada pelas mudanças que o estado e a sociedade sofreram durante o Império do que os mecanismos públicos de registro histórico – embora, como nos diz o historiador Dion Cássio (História Romana 53.19) em palavras muito claras, a partir do tempo de Augusto, o monopólio do governo imperial sobre a informação relativa ao que acontecera limitasse o conhecimento de todos, incluindo o daqueles que escreviam sobre a história de Roma.9 É sabido que os imperadores podiam ordenar que livros de história fossem queimados e que seus autores fossem processados e até condenados à morte, como aconteceu, por exemplo, com Cremúcio Cordo sob o principado de Tibério (Tácito, Anais, 4.34-35), e, pelo menos, alguns imperadores estavam interessados em serem retratados por historiadores ou mestres de retórica, como foi o caso de Lúcio Vero, retratado por Frontão, professor de retórica, que descreveu a vitoriosa campanha contra os partos em 166 d.C. Em geral, contudo, a historiografia não era uma preocupação do imperador e de seu círculo mais próximo. Por esse motivo, os nobres romanos continuaram, até a Antiguidade tardia, a escrever história.10 Escrevê-la, entretanto, não era mais seu monopólio. Genuínos homines litterati (especialistas que escreviam literatura) agora também escreviam livros sobre a história romana. O primeiro deles foi Tito Lívio, no tempo de Augusto, outro foi Frontão, mencionado acima. Esses autores precisavam da ajuda de homens com experiência política, ou seja, de membros das famílias senatoriais, ou mesmo, como era o caso de Tito Lívio, da família imperial – e tal ajuda deixaria sua marca em sua obra. Nos Principia historiae, de Frontão, a evidência Sumário | 114 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 dessa dependência do conhecimento alheio é óbvia. Já o caso de Tito Lívio é mais complicado. Por um lado, é bastante claro que ele não estava familiarizado com o funcionamento do sistema político da República. Por outro lado, ainda que os livros de sua monumental História Romana, que cobriam o delicado período das guerras civis e das décadas do principado de Augusto até o ano 9 a.C. (Livro 142 – o último livro de Tito Lívio) não tenham sido preservados, há uma evidência indireta, e ele conta uma outra história, que não permite uma conclusão simples. Quando o jovem príncipe Cláudio (posteriormente imperador) começou a escrever a história dos eventos que se seguiram ao assassinato de Júlio César, ele foi severamente censurado por sua mãe, Antônia, e pela sua avó, Lívia, a influente esposa de Augusto, então viúva. 11 Em consequência, Cláudio, “percebendo que não teria a oportunidade de escrever de uma maneira livre e verdadeira” sobre esses eventos, renunciou a seu projeto e escolheu o período menos problemático da paz, após o final das guerras civis (Suetônio, Claudio, 41). Como, de acordo com Suetônio, Tito Lívio era o mestre de Cláudio na arte da historiografia, também Tito Lívio pode ter sido – ou antes, deve mesmo ter sido – afetado por esse obstáculo ao escrever a história de Roma e, por consequência, seus próprios julgamentos históricos podem não ter sido completamente coincidentes com os do círculo do poder do primeiro Principado. Entretanto, embora Tito Lívio e Augusto tivessem diferentes pontos de vista a respeito de duas pessoas de importância capital no final das guerras civis – Pompeu e César – nós sabemos que isso não destruiu ou mesmo abalou o relacionamento e a amizade entre ambos.12 Desde o início, a história romana, escrita por senadores e magistrados envolvidos nos negócios do Estado, embora ainda inseridos nas tradições familiares, ultrapassou o ponto de vista limitado de uma família ou clã e, assim, realmente representava a história de Roma. De fato, todos esses autores escreviam de um ponto de vista distinto – o de senador e de magistrado. Por esse motivo, os eruditos atualmente se referem a uma “historiografia senatorial”. A história romana escrita por nobres romanos centrava-se no governo de Roma e na política externa – em decisões e ações que eram compreendidas como o resultado e a virtude de homens definidos por seu status político e social e como a soma da experiência concentrada na Sumário | 115 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado coletividade do Senado romano. Embora houvesse espaço para o registro de realizações pessoais, era também possível remover inteiramente traços pessoais da história e representar um ator histórico simplesmente como um magistrado, um soldado ou um cidadão. Era esse, precisamente, o modo pelo qual Catão o Antigo se relacionava com a história de Roma ao final da segunda metade do séc. II a.C., já que ele omitia todos os nomes pessoais em suas Origines e, assim, escrevia de uma for ma deliberadamente despersonalizada.13 Embora Catão tenha permanecido como uma exceção, sua postura extremista define uma característica da historiografia romana – o historiador republicano entendia-se não como um scriptor personarum, centrado em pessoas e em suas realizações (e, em um caso extremo, escrevendo uma biografia), mas como um scriptor rerum (gestarum), ou seja, um autor de uma narrativa de “feitos”e de “negócios públicos”, isto é, eventos, ações e interações entre Estados.14 Apesar da pouca informação sobre história política, as inscrições conhecidas por fasti, mencionados acima, devem ter ajudado os romanos a entenderem sua história como uma sucessão de eventos e de ações.15 Em breves notas na tabula (o quadro branco) mantida pelo pontifex maximus (o sacerdote supremo), eventos e ações estavam listadas juntamente com títulos e nomes dos magistrados responsáveis pelas ações. Cada ano, datado pelos magistrados epônimos, era separado do posterior e, no período relativo ao ano, os registros sucediam-se uns aos outros, de acordo com a sucessão de eventos e de ações.16 Daí, tanto a narrativa sequencial de eventos e ações quanto o esquema analista, tão típico da historiografia romana, devem ter sido influenciados não somente pela prática política da magistratura anual, mas também, e sobretudo, pelos fasti.17 O esquema de anais, com todas suas vantagens e deficiências – sobretudo a necessidade de atribuir eventos e realizações, de forma inequívoca, aos magistrados de um determinado ano e de dividir em várias partes os eventos que se estendiam por mais de um ano, ou que não podiam ser datados em um ano precisamente – foi usado por muitos séculos. Entretanto, ele foi complementado e, finalmente, substituído por outro padrão. No tempo dos imperadores, o pensamento historiográfico deixou de se concentrar em eventos e ações narradas em ordem cronológica e passou a apresentar a história Sumário | 116 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 dos romanos e de seu Império de uma forma cada vez mais biográfica. A história romana, assim, tornou-se a história dos imperadores e de suas famílias. Essa mudança não ocorreu porque os imperadores romanos deram ordens para que se escrevesse uma história biográfica, que se concentrassem neles mesmos e em suas famílias, mas sim porque a própria existência e hegemonia dos imperadores tornava quase inevitável escrever história com um foco nos líderes, ou mesmo sob a forma de biografias. A historiografia romana imperial que nos alcançou ilustra esse desenvolvimento. As Histórias e os Anais de Tácito ainda seguem o padrão analista, mas o imperador é quase onipresente e cada ano consular começa com um relatório detalhado de eventos envolvendo o imperador e sua corte. Em períodos posteriores, completamente habituados a pensar a história romana como uma história dos imperadores, considerava-se que as descrições de Tácito da história do Alto Império eram não mais uma composição analista, ou uma combinação dessa com elementos biográficos, mas sim como biografias de imperadores. De forma análoga, percebia-se o biógrafo Suetônio como um historiador (Jerônimo, Commentarius ad Zachariam, 3.14 e Cronicon, Prólogo, p. 6 Helm). Em concordância com esse entendimento específico, alguns autores (como aqueles dentre os Scriptores historiae Augustae), seguindo o modelo de Suetônio, escreviam a história do período imperial como uma série de biografias de imperadores. Ao escreverem a história da Roma republicana, os senadores narravam eventos tanto internos, como externos. Eles começaram a escrever história perto do fim do séc. III a.C., durante a segunda Guerra Púnica, quando o talento militar e diplomático de Aníbal, combinado com os erros estratégicos e táticos dos romanos, conduziram Roma à beira de uma derrota.18 Nesse tempo, a área do Mediterrâneo era como um teatro, em que os espectadores, muitos deles gregos ou falantes do grego, assistiam com fascínio ao drama encenado por romanos e cartagineses. Essa situação excepcional possibilitou o surgimento de obras históricas escritas por nobres romanos que, naquele tempo, já estavam imersos na cultura grega e que podiam usar a língua grega para escreverem literatura. Suas obras destinavam-se a leitores gregos (por nacionalidade ou por linguagem) e a explicar a eles a natureza de Roma, sua história e sua política externa por ocasião da guerra contra Cartago. Eis porque os dois primeiros relatos históricos de Sumário | 117 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado Roma, o de Quinto Fábio Pictor e o de Lúcio Cíncio Alimento, foram escritos em grego. Mas, ao oferecer um relato da história de Roma que cobrisse não somente a segunda Guerra Púnica, mas também o período precedente, a primeira Guerra Púnica e o desenvolvimento de Roma desde suas origens, ambos os autores devem ter-se dirigido a seus compatriotas romanos também – mais precisamente a seus colegas senadores, que estavam habituados à língua e à literatura gregas. Ainda assim, episódios da história mais antiga de Roma, especialmente aqueles ligados à sua fundação e à sua pré-história, devem ter interessado tanto aos gregos, quanto aos romanos. Desde o séc. V a.C., a história mítica tinha sido já registrada, passo a passo, por historiadores gregos. E quando foi inteiramente desenvolvida, ela transformou o fundador de Roma em descendente não só de homens, mas também de dois deuses, e os romanos não somente descendentes dos troianos, mas também dos gregos que se haviam estabelecido no Lácio e, ainda, no mesmo solo ocupado mais tarde pela cidade de Roma. Durante a difícil luta pela sobrevivência, na segunda Guerra Púnica, essa história da origem de Roma poderia – e era essa a intenção – servir como um argumento de apoio à pretensão, dirigida ao mundo romano, de que Roma era grega e, assim, quando Roma foi atacada por Cartago, os gregos haviam sido atacados por não-gregos – um argumento para se contrapor ao esforço de Aníbal de ganhar simpatia no mundo helênico com a ajuda de autores gregos, escrevendo para ele e apresentando o seu ponto de vista. Isso explica porque a história das origens de Roma, tal como contada pelos primeiros historiadores romanos, não foi baseada no passado, mas sim em parte do presente, com o propósito de ajudar Roma a vencer seus sérios problemas. Esse início peculiar da historiografia romana teve suas consequências. O terceiro historiador romano, Catão, o velho, embora tenha sido o primeiro a usar a língua latina e, dessa forma, tenha-se recusado a escrever para os gregos (que, em geral, falavam, escreviam e liam somente a sua própria língua), ainda assim contou a protohistória de Roma em detalhe e com todos os seus adornos gregos. Suas Origines estabeleceram o prólogo da história de Roma, ou seja, a longa pré-história que resultou na fundação de Roma, como uma indiscutível parte da autorrepresentação e autorrepresentação Sumário | 118 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 histórica dos romanos. Assim, autores romanos posteriores se sentiram obrigados quer a escrever a história “desde o início da cidade de Roma” (ab urbe condita), como Tito Lívio o fez, ou a continuar uma história já publicada, na qual outro autor já houvesse tratado das origens da Cidade. O mínimo que um historiador romano se sentiria obrigado a fazer era o que Tácito fez no primeiro capítulo dos seus Anais – sumarizar, em algumas frases, a história primitiva de Roma: “No princípio, os reis dominavam Roma”.19 Mesmo o autor de uma monografia histórica, recontando um evento específico ou uma combinação de eventos com um curto intervalo entre eles, poderia considerar necessário retroceder às origens de Roma, como Salústio fez na Conspiração de Catilina. Ao fazer remontar a história de Roma até sua fundação, ou mesmo a um tempo anterior a ela, os historiadores romanos seguiam, novamente, um modelo grego, que era seguido em um gênero específico de sua historiografia. O objeto desse gênero não era a história, em larga escala, de nações, ma sim a história regional e local, especialmente a do sul da Itália, com suas colônias gregas. Nesse gênero histórico específico, a Itália central e mesmo Roma haviam sido incluídas já pelo seu primeiro autor, Antíoco de Siracusa, no tempo de Heródoto. Uma parte indispensável dessas histórias gregas locais e regionais era a fundação de uma cidade ou de uma tribo por um herói que lhes dera o nome. Outra característica típica era a inclusão dos assim chamados thaumasia ou mirabilia (eventos miraculosos, admiráveis). Tudo isso pode ser achado até nas Origines de Catão, apesar de sua mentalidade sóbria e seu senso crítico a respeito dos gregos. Como resultado, a história romana escrita por romanos era narrada de maneira que se assemelhava às histórias gregas locais ou regionais. Na verdade, como as histórias gregas locais, a história romana também era, em suas origens, a de uma cidade com um horizonte local ou, no máximo, regional. E a história romana permaneceu a história da cidade de Roma. Embora, desde o tempo dos primeiros historiadores romanos até a morte de Catão, Roma tenha alcançado a supremacia sobre a maior parte do Mediterrâneo e, ao longo das gerações posteriores, essa região tenha sido crescentemente unificada em um Império romano emergente, na perspectiva política e histórica romana, o mundo continuava a ser visto, exclusivamente a partir da Sumário | 119 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado cidade de Roma, e a ser dividido entre Roma e o restante. Como mesmo Tácito mostra, no padrão analista, cada relatório anual começa com os magistrados romanos e os eventos da cidade de Roma e termina com as províncias e as regiões de fronteira; e, ao passar da cidade aos confins do mundo, o detalhamento e o empenho do autor decrescem gradualmente. Mesmo na Antiguidade tardia, quando a cidade de Roma tinha perdido toda sua significância, a cidadania romana, agora generalizada, e a ideia da hegemonia de Roma eram ainda ligadas à cidade de Roma, e não ao Império. EXEMPLOS, PESSOAS E LIÇÕES DO PASSADO A bem conhecida sentença de Cícero, historia magistra uitae, a história é a professora da vida, pode ser interpretada de diferentes maneiras, mas, para um romano instruído, ela tinha um sentido preciso: a história conecta passado e presente, não apenas informando os leitores sobre o passado – em um vago sentido de que a história poderia ser, de uma maneira geral, útil para eles – porém, mais precisamente, oferecendo exemplos de comportamento que podem ser aplicados em situações iguais ou similares aos eventos históricos.20 Assim, Tito Lívio escreve em sua Ab urbe condita: O que faz do estudo da história (res) algo sadio e proveitoso é o fato de que se apreendem as lições de cada tipo de experiência (exemplum) apresentado como em um monumento público à vista de todos. Dentre esses, podese escolher para si mesmo e para o Estado o que imitar e, igualmente, assinalar o que deve ser evitado, por ter sido vergonhoso em sua concepção ou em seu resultado. Com essas palavras, às quais ele imediatamente acrescenta que “nenhum Estado era mais rico em bons exemplos do que Roma”, Tito-Lívio assinala uma função proeminente no conceito de história – ela é fornecedora de bons exemplos e, mais precisamente, de exemplos de moral.21 Ainda além, o autor coloca o texto aqui citado na introdução de sua obra, onde ele lida com assuntos gerais; assim, ele confere a essa ideia um significado programático. Enquanto isso possa ser uma característica isolada de Tito Lívio, era muito normal que historiadores romanos enfatizassem a importância da história Sumário | 120 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 como uma fonte de exemplos, em épocas posteriores. Eu só irei comentar, brevemente, o caso de feriados e monumentos históricos, dois artifícios frequentes para preservar a memória histórica. Como eles são ligados a eventos específicos, eles são úteis como representação do continuum histórico, mas podem fornecer exemplos históricos e, de fato, eram usados para isso. Daí, o próprio conceito de exemplum e seu uso contínuo podem ser encarados como tipicamente romanos.22 Essa última assertiva pode ser entendida em dois modos diferentes. Primeiramente, cada historiador romano parece ter usado o passado para o propósito de educar os seus leitores por meio de exemplos. Pelo menos, desde Catão, na primeira metade do séc. II a.C. até os idos do Império Romano, não se encontra sequer um autor que não forneça exemplos em sua história. Em segundo lugar, o fenômeno do historiador que ensina seus leitores por meio de exemplos históricos parece ser quase que exclusivamente romano. Essa observação requer uma breve incursão na historiografia e na retórica gregas. Tucídides estava convencido de que sua história da Guerra do Peloponeso como um todo seria um “tesouro para todos os tempos” – em outras palavras, que ela seria útil para leitores em qualquer tempo no futuro. Xenofonte, o primeiro a dar continuação ao trabalho de Tucídides, elaborou, em seu Helenica (História Grega), cenas de comportamento e ações exemplares e, assim, de fato, forneceu exemplos. Enquanto a observação de Tucídides sobre a qualidade de sua história como um instrumento para ensinar gerações futuras refere-se, geralmente, a situações políticas passadas e futuras, mas não a exemplos morais, Xenofonte relata exemplos de virtude e vício individuais e aproxima-se do conceito de Tito Lívio.23 Ainda assim, Xenofonte teve poucos sucessores na historiografia grega e não deu origem a uma tendência geral. Obviamente, é possível encontrar exemplos históricos na literatura grega fora da historiografia: a retórica grega usava-os, mas não do modo como a historiografia e a retórica romanas o faziam, ou seja, não como uma prescrição direta de comportamento moral, que poderia ou não ser seguido, mas que não era aberta à discussão. As observações anteriores já lançaram luzes sobre o uso tipicamente romano dos exemplos históricos. É, agora, necessário explorar mais de perto as características de tal uso e definir as Sumário | 121 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado condições de aplicabilidade de tais exemplos. Isso permitir-nos-á entender um aspecto central do pensamento histórico romano. Em Roma, os exemplos históricos certamente eram usados muito tempo antes do surgimento da historiografia e eles nunca foram monopolizados por ela, mas continuaram a ter sua importância em outros gêneros da literatura ou das artes plásticas. Contudo, à medida que os romanos pensavam sua história quase que como uma sequência de exemplos, sua historiografia fornece a melhor e mais rica evidência deles. Os exempla históricos eram considerados úteis particularmente na esfera pública, servindo ao interesse publico. É necessário, portanto, explicar que esses exemplos se focavam no comportamento de homens e mulheres como indivíduos e que eram escritos para indivíduos, que poderiam lê-los e imitá-los. A chave para essa questão é que o comportamento exemplar que se provava benéfico na esfera comunal, e todas as demais ações de indivíduos emulando os exemplos tinham o efeito de integrar indivíduos à sua sociedade e a seu estado. Um romano que seguia o exemplo positivo de – é claro – outro romano mostra-se um verdadeiro romano e sua ação pode servir de exemplo para que as gerações futuras lidem, de forma bem sucedida, com o mesmo tipo de desafio. Todo evento histórico representa uma ação em uma determinada situação, ou ainda, uma reação a essa situação. Tanto a situação e a reação a essa são categorizadas de forma que situações futuras e ações possam ser assimiladas a ela. Somente esse processo de categorização transforma um evento único em um exemplo. Para um romano, a transição de um caso individual para uma categoria de casos não era de todo estranho: a teoria e a prática do Direito Romano, com seu conhecido método casuístico, funcionavam exatamente da mesma maneira. Porém, enquanto o método casuístico não causava dificuldades na jurisprudência, o historiador pode ter tido problemas com isso, e os historiadores romanos tiveram essa experiência durante o principado, quando a ação política não era mais concentrada nas coletividades do Senado e das assembleias populares, mas sim na corte imperial. Quando os eventos históricos são descritos por meio de exempla, os atores sociais, suas ações e as situações em que elas agem formam unidades literárias e lógicas dentro da narrativa do historiador, ao passo que não se exige uma consistência com outras partes da narrativa e, especialmente, com outras ações da mesma Sumário | 122 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 pessoa. Daí, o comportamento de uma mesma pessoa pode ser encarado como bom, em uma situação, e mau, em outra. Consistência na descrição das pessoas não era exigível em Roma enquanto os líderes, os magistrados, mudavam de ano a ano. Mas isso começou a mudar no final da República e tornou-se definitivamente diferente no tempo dos imperadores. Se a mesma pessoa era objeto de uma narrativa por um espaço temporal mais longo, a simples caracterização de uma ação como boa ou má podia destruir a unidade da personagem. As consequências são visíveis nos Anais e nas Histórias, de Tácito. Tácito – e talvez já os seus predecessores entre os historiados do inicio do principado – descrevia seus protagonistas e, especialmente, os imperadores, como personagens fixos, e mesmo como de maneira tipológica: o cruel e ambíguo Tibério, ou o cruel, mas estúpido, Cláudio. Contudo, quando Cláudio propõe ao Senado conceder aos nobres gauleses a possibilidade de se tornarem senadores, Tácito faz com que ele se pronuncie e que se comporte à maneira de um grande líder.24 Em uma questão que o historiador encara como crucial, na qual o imperador defende um pleito positivo e necessário, ele apresenta Cláudio como um exemplo positivo – em chocante contradição com o imbecil que ele costuma ser na historiografia e na biografia histórica. O fato de Cláudio ter sido apresentado, nesse episódio, como um imperador ideal causa ainda mais espanto, quando se considera que as partes do seu discurso original, que estão preservadas de forma epigráfica, refletem não só sua erudição histórica, mas também uma significativa falta de consistência argumentativa e, assim, precisamente, uma faceta do comportamento costumeiro do imperador, que o levou a ser considerado como um tolo. Quando confrontado com um conflito entre manter a consistência da personagem e adaptar a ação da pessoa a uma determinada situação, de maneira que ela pudesse tornar-se um exemplum, os historiadores romanos costumeiramente decidiam pela ultima alternativa. Eles continuaram a agir assim mesmo quando a historiografia evoluiu para a história (ou mesmo para uma série de biografias) dos lideres políticos. Mesmo as biografias dos imperadores de Suetônio adotam o princípio de dividir os feitos de um imperador em bons e maus, e, assim, demonstram que a consistência não era o primeiro dos objetivos na descrição das pessoas. Destarte, um Sumário | 123 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado historiador romano poderia sentir-se livre para adaptar uma ação de uma pessoa, de maneira a transformá-la em um exemplo, sem dar muita atenção à personagem relativa a essa pessoa, que ele poderia ter descrito em alguma outra parte de sua obra. Já que um romano deveria imitar um exemplo histórico adequado quando fosse confrontado com um desafio específico, seu dever moral e intelectual era conhecer tantos exemplos quantos pudesse, de maneira a escolher o mais apropriado ao caso. Daí, advinha a necessidade do conhecimento histórico. O meio mais eficiente, embora não o único, de adquirir tal conhecimento era ler obras de historiadores – romanos, obviamente – que oferecessem uma grande quantidade de exemplos. A obrigação de fornecer a concidadãos – e, sobretudo, a colegas do Senado – exemplos históricos fazia da tarefa do historiador, além de um empreendimento privado, um serviço público e uma realização para o estado. Isso era extremamente importante, porque o conceito republicano romano de contraste entre otium (lazer) e negotium (não lazer), quer dizer, entre vida privada e lazer, de um lado, e, de outro, vida pública e a serviço do Estado, ligava qualquer atividade literária ao otium e, assim, ao lazer e às amenidades da esfera privada, mas não ao negotium e à atividade a serviço da comunidade. Quando Cícero, alguns anos depois de seu consulado em 63 a.C., começou a propalar o ideal do otium cum dignitate (uma vida de ócio, adequada ao status da pessoa), um dos seus objetivos era persuadir a classe dominante, os senadores, de que ler e escrever podiam ser atividades úteis à comunidade.25 Claro, nem todo exemplo de literatura correspondia a essa condição, mas, de acordo com os interesses intelectuais e literários de Cícero, a filosofia o fazia, especialmente quando centrada na ética e na política. Além disso, os comentários de Cícero sobre a historiografia mostram que também a história podia corresponder ao ideal do otium cum dignitate. Entretanto, cerca de duas décadas depois, Salústio, na introdução de suas duas monografias históricas, sentiu-se obrigado a se desculpar por ter abandonado a política e ter-se dedicado a escrever história, e a explicar que esta não era inferior àquela. Na década seguinte, o comentário de Tito Lívio (citado acima) sobre o valor moral do conhecimento histórico (introduzido, igualmente, no prólogo da obra) não é, de todo, apologético, mas sim um elogio à historiografia. Como suas próprias palavras demonstram, a razão para Sumário | 124 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 esse orgulho pessoal é a aceitação geral dos exemplos: a historiografia como sendo um repositório, o melhor repositório, de exempla justifica a escrita da história como uma atividade digna de um cidadão romano. Isso, entretanto, não reflete uma evolução generalizada; ao contrário, diferenças em sua vida e condições pessoais podem explicar tanto a insegurança de Salústio como a autoconfiança de Tito Lívio.26 Como dito acima, a literatura e, especialmente, a historiografia não eram os únicos gêneros a fornecer exemplos de virtudes e vícios; monumentos e imagens também podiam servir a esse propósito. Contudo, a linguagem era o melhor, ou talvez o único meio para exprimir uma ideia abstrata subjacente a um comportamento ou feito específico, e, dentre vários gêneros literários, a historiografia concentrava-se unicamente em recontar o passado por meio de uma sequência de exemplos ao longo dos séculos e, assim, em educar os seus leitores. Mas e a retórica? Ela não se baseava no mesmo método de utilizar exemplos para convencer a audiência? E um jovem romano, que, ele mesmo, mais tarde em sua vida poderia talvez escrever história, ele não aprendia história primeiramente, como parte de seu estudo de retórica? Ambas as perguntas têm respostas afirmativas, mas nenhuma delas afeta a capacidade única da historiografia de transmitir a história por meio de exemplos. De fato, de acordo com Cícero, a historiografia romana, desde suas origens até o seu próprio tempo, não apresentava qualquer qualidade literária.27 Já que as escolas de retórica se concentravam, precisamente, na perfeição estilística, isso elimina a possibilidade de que as qualidades cruciais ao nosso contexto fossem ensinadas ali. Além disso, a retórica grega não era ensinada em Roma antes do séc. II a.C., e as escolas latinas de retórica não existiam antes do começo do primeiro século de nossa era. Daí, detrai-se que os historiadores romanos até essa época, ou não aprendiam retórica, ou aprendiam somente retórica grega, que, logicamente, fornecia um treinamento no método de convencer usando exemplos históricos, mas que, geralmente, não usava exemplos conforme o modo de pensar romano, direto e moralista.28 O surgimento da retórica latina, mais de um século depois da historiografia romana, teve a consequência de que um dos gêneros mais típicos da literatura romana, a coleção de exemplos históricos a serem usados na retórica, explorou o material originário facilmente disponível nas obras já existentes de historiadores romanos, e não vice-versa.29 Naturalmente, Sumário | 125 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado mais tarde, historiadores romanos serão ou devem ser influenciados na forma de pensar pelo próprio estudo de retórica em que aprenderam não menos como usar exemplos históricos, mas oradores e professores de retórica continuaram a procurar exemplos não apenas em discursos e manuais de retórica, mas também em obras de história.30 A afirmação de Tito Lívio, citada acima e confirmada pelo grande número de exempla dado em muitos outros textos da historiografia romana, deixa claro que os modelos romanos transmitem valores morais. Embora se refiram ao comportamento individual, eles não se baseiam na ética individualista, mas na coletiva. Assim, na sociedade romana deve ter existido um conjunto de regras morais que foram impostas por leis ou por consenso social. Isso também é confirmado por muitas evidências: foi chamado mos maiorum (costumes e valores morais dos antepassados) e concebido para permanecer sempre inalterável. 31 Todavia, a experiência de vida ensinou que poderiam surgir situações de um novo tipo e que, por conseguinte, novas formas de agir e de se comportar seriam necessárias – as quais poderiam e iriam tornar-se exemplos e então ser incluídas no mos maiorum. 32 Mesmo assim, em geral, a mentalidade por trás do mos era estritamente conservadora. Isso é verdade, também, do historiador que descreve ações do passado como exemplos para as gerações futuras.33 O conservadorismo peculiar dos valores morais significa que passado e presente são essencialmente a mesma coisa. Em consequência, há uma tendência de negar que qualquer mudança ou desenvolvimento ocorre ao longo do tempo – com uma exceção notável: declínio moral é admitido como uma possibilidade, como os romanos pensavam que tivesse ocorrido no século das guerras civis romanas (133 – 30 a.C.), mais vividamente descrito por Salústio, o derradeiro autor romano que representa um ponto de vista pessimista. Além disso, segundo o modo de pensar romano, o declínio moral pode e deve ser combatido por todos. A arma contra o declínio moral é precisamente oferecida pelos conhecidos exempla de um tempo em que as coisas ainda estavam em ordem, ou seja, exemplos do passado, certamente de um passado remoto. Portanto, pensa-se na historiografia como sendo capaz de ajudar, através de seus exemplos, não só a manter a ordem moral estabelecida, como também a restaurar uma velha e boa ordem que tenha sido ameaçada ou mesmo perdida. Isso foi exatamente parte de programa de restauração de Sumário | 126 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 Augusto, como ele próprio o formulou em seu famoso Res Gestae, e esse programa era duplo no sentido explicado acima: “Por meio de novas leis que eu dispus para serem introduzidas (no Senado), eu restaurei muitos exemplos dos nossos antepassados que foram desaparecendo da nossa vida, e eu próprio criei exemplos em muitos aspectos a serem imitados por gerações posteriores.”34 A mesma ideia, embora mesclada a uma boa dose de cepticismo sobre a possibilidade de restaurar a moral de Roma, fazia parte do pensamento de Tito Lívio, algumas décadas antes, quando ele começou a escrever sua história romana, e foi a mais alta no pensamento de Vergílio e de alguns outros – mas não todos – autores da época da mesma forma. 35 A crença firme na permanência imutável de valores morais obscureceu e impediu o reconhecimento das mudanças reais que especialmente as conquistas romanas, o Império e, acima de tudo, as guerras civis provocaram. A historiografia do tempo de Augusto e do primeiro principado foi parcialmente bem sucedida, pelo menos, em negar tais mudanças. A questão que se põe, entretanto, é inevitável, se existiam em todos os tempos acontecimentos em Roma que, de fato, provocaram mudanças fundamentais em valores morais, ou mesmo excluíram o sistema moral estabelecido e o substituíram por um novo, então seria necessário um conjunto completo de novos exemplos ou exemplos históricos morais nunca antes utilizados. Tal mudança deve ter sido causada pelo sistema de crenças cristão e especialmente por sua ascensão à religião do Império romano. A realidade, porém, era mais complexa – bem como mais conservadora. Como tem sido discutido recentemente, o talvez mais importante professor da igreja no final do séc. IV d.C., Ambrósio, Bispo de Milão, continuou a invocar o princípio da educação moral através dos exempla históricos, mas ele usava exemplos que diferiram daqueles tradicionais romanos. Em vez dos políticos e generais de um passado remoto, ele invocava os reis do Israel antigo.36 Por outro lado, no início do quinto século, o autor da primeira história do mundo cristão (Historiae aduersus paganos), Paulo Orósio, que se defrontou com as pesadas perdas políticas e militares da parte ocidental do Império Romano e, mais ainda, o saque de Roma pelos visigodos, usava exemplos históricos de forma diferente. Ele via a vida humana em geral como uma sequência de infortúnios e miséria causados pelos pecados dos homens e pelo subsequente castigo de Deus. Mas ele também Sumário | 127 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado acreditava que o tempo do paganismo foi muito mais atingido por tal miséria que a era desde o nascimento de Jesus Cristo, na qual o mundo inteiro, pela vontade de Deus, tornou-se parte do Império Romano. Tendo em vista que os imperadores romanos e muitos de seus súditos tinham-se convertido ao cristianismo, ao Império Romano, em sua opinião, ainda o único verdadeiro império do mundo, foi concedido um futuro sem perturbações. Com a finalidade de contrastar o mau e antigo passado pagão do mundo, e especialmente o de Roma, com o mais recente e bom passado cristão em conjunto com o presente e futuro, Orósio apropriou-se de exempla da historiografia pagã – mas selecionou apenas os exemplos negativos para demonstrar a perversidade do passado pagão. Especialmente mediante a exploração de Salústio, o pessimista que ofereceu um conceito explícito de declínio moral de Roma, Orósio – e, da mesma forma, Agostinho em A cidade de Deus – não alterou os juízos de valor inerentes aos exemplos que escolheram; em vez disso, eles integraram a conotação moral negativa dos exemplos de sua fonte pagã diretamente em seu sistema de valores cristãos.37 Como resultado, mesmo a mudança qualitativa, que a religião cristã trouxe ao Ocidente Romano, não pôs um fim ao modo romano de entender a história como um conjunto de exemplos morais que representam valores-chave. Portanto, na verdade, a utilização de exemplos de morais tirados do passado é o mais persistente e contínuo componente do pensamento histórico romano: para os romanos, a história é exemplo – e exemplo é autoridade.38 RESUMO E CONCLUSÃO Os romanos registraram e lembraram o passado por diferentes meios. A historiografia tornou-se um deles, mas tardiamente e sob a influência estrangeira (grega). No entanto, a historiografia foi a ferramenta mais importante para expressar o pensamento histórico. O registro e a lembrança da história foram profundamente influenciados pelas convenções sociais e pelo poder político. A intensidade dessa influência depende ainda tanto das condições sociais e políticas que prevaleciam quanto dos próprios meios e formas de registro histórico e memória. Influenciados por um gênero especial de historiografia grega, historiadores romanos, na época da expansão de Roma no Mediterrâneo, descrevem sua história, seguindo o padrão Sumário | 128 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 de histórias locais focalizado especialmente na fundação da cidade ou da tribo por um semideus ou deus e em histórias de prodígios. Mesmo quando a história de Roma se torna de fato história do mundo, a historiografia permanece concentrada na cidade de Roma e emancipa-se apenas parcialmente do regime da historiografia local grega. Na sua historiografia, os romanos usavam o regime analista, a que eles estavam acostumados pela organização política da sua República, bem como as breves listas de eventos registrados por seus sacerdotes chefes. As mudanças políticas provocadas pelo Principado e pelo Império causaram uma mudança no sentido de um esquema cada vez mais ou mesmo completamente biográfico. Embora a história romana seja história política, ao julgar o comportamento de atores históricos, os romanos não aplicam critérios políticos, mas regras morais. Desde o início, eles viam a história como uma série de exemplos morais que as gerações futuras deveriam imitar (se fossem bons) ou evitar (se ruins) em situações semelhantes. Situações em que se precisasse de uma orientação a partir de um exemplo histórico foram pensadas para poderem ser trazidas à tona em qualquer lugar ou ocasião. Os romanos estavam interessados no passado, não porque o considerassem como diferente do presente, mas, pelo contrário, porque ambos eram considerados qualitativamente iguais. A única consequência, que eles perceberam, foi que o declínio moral poderia ser combatido precisamente baseando-se em exemplos de um passado melhor. Até mesmo os autores cristãos no Ocidente Romano, embora de maneiras específicas definidas por suas crenças, mantêm essa longa tradição do pensamento histórico mediante o recurso a exemplos do passado. No entanto, reduzir a história romana a um conjunto de exemplos morais e nada mais, tal como foi descrita pelos próprios historiadores romanos, seria injustiça. Como os gregos, os romanos consideravam a história como um fluxo contínuo de eventos (historia continua) e, além disso, eles garantiram a continuidade da história, levando adiante as obras dos historiadores anteriores.39 Isso impediu os historiadores romanos de escrever a história como uma simples coleção de exemplos e de fragmentar o fluxo da história em trechos desconexos, narrando apenas os eventos e ações que fossem especialmente capazes de servir como exemplos. Quando se leem passagens mais extensas, como, por exemplo, em Tito Lívio ou Tácito, Sumário | 129 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado pode-se ver que a história era para eles – e para outros historiadores romanos também – uma continuidade de eventos, em que esses eventos, que serviram como exempla, tinham o papel de destaque (lumina). Além disso, os romanos – reconhecidamente menos que os gregos, mas não em grande medida – esperavam da história não só a compreensão clara da natureza íntima das ideias morais, transmitidas por exemplos individuais, mas também das ideias políticas gerais que não podiam ser ensinadas por qualquer exemplum. Dessa forma, esclarecendo, a verdadeira lição a ser aprendida com o discurso de Cláudio em Tácito (citado acima) não é que o Imperador ali atue como um governante exemplar, mas que um Império pode ser estabelecido e conduzido com êxito durante um longo período de tempo, apenas integrando – em correlação com o crescimento do Império – um crescente número de indivíduos no grupo de cidadãos e até mesmo elevando alguns deles para a classe dominante. O foco nos exempla, mesmo de tipos simples, não impediu, mesmo assim, o historiador romano de adquirir uma compreensão histórica mais profunda, criando discussões, mesmo que implicitamente, por apresentar uma série de eventos análogos estendidos por um longo período de tempo e, assim, interpretando a história em um nível mais abstrato.40 Apesar de sua tendência forte para enfatizar exemplos personalizados e moralistas, a historiografia romana foi, como demonstramos, muito mais do que uma simples coleção de exempla. Sumário | 130 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 ABSTRACT How the Romans Remembered, Recorded, Thought about, and Used Their Past Scholarship on classical antiquity with its strong philological and literary tradition associates historical recording and memory very closely and sometimes absolutely with historiography.1 Although this may be one-sided, it is impossible to write about the topic of this volume, as far as it concerns the Romans, without dwelling much upon their historiography and some of its peculiarities.2 My discussion is divided into three sections, moving from social and historical memory outside historiography to historiography proper; the last section, dealing with the very center of Roman historical thinking, is by far the longest. KEYWORDS Roman historiography; historical recordings; memory. Sumário | 131 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado NOTAS 1 Walter (2004) ocupa-se em detalhe com registro histórico e memória, tanto dentro como fora da historiografia, enfatizando, contra a perspectiva arqueológica de Hölscher (2001), que historiografia é muito mais que um “ramo secundário da memória histórica” (p. 212-20). Vide também Beck e Walter (2001, p. 47-50). A contribuição deve muito à ajuda paciente e amigável de Kurt Raaflaub. 2 Sobre historiografia romana, vide Flach (1998); Mehl (2005, 2011) e, entre várias boas introduções e compêndios em inglês, esp. Mellor (1999); Marincola (2007). Kraus & Woodman (1997) enfoca uma seleção de historiadores latinos de Salústio a Tácito. 3 Walter (2004, p. 84-211) absorve e cita a rica erudição das últimas décadas em tudo que significa preservar a memória histórica, reinterpreta e dá ênfase às suas funções. 4 Para os seguintes pontos e uma avaliação da sua importância para a memória histórica, consulte Walter (2004, p. 84-130). 5 Por esse motivo Catão, Origines fr. 4.1 (CHASSIGNET, 1986, p. 34; BECK; WALTER, 2001, p. 196-97) critica os fasti. Vide RÜPKE, 1995; FLACH, 1998, p. 57-59; MEHL, 2011, p. 37-39. 6 WALTER, 2004, p. 131-54, com WALTER, p. 155-95, é necessário acrescentar “lugares imaginados de memória” (155). 7 Acerca da República Romana, vide WALTER, 2004, p. 196-207; acerca dos primeiros tempos do Império: BEHRWALD, 2009. 8 Andreae 1999. A autorrepresentação de Augusto e seu monopólio da informação pública eram dois lados de uma mesma moeda; vide, com diferentes enfoques, KIENAST, 1999, p. 261-307; LEVICK, 2010, p. 202-87; DAHLHEIM, 2010, p. 235-85, e imediatamente abaixo. 9 Com a observação de que os historiadores romanos desde a época de Augusto já não conheciam o estado romano, como se ele fosse então um Estado estrangeiro (inscitia rei publicae ut alienae), Tácito, Histories 1.1 sucintamente oferece uma visão semelhante à de Dion Cássio. Vide imediatamente acima, e FLACH, 1998, p. 160-61; LUCIANO, 2010, p. 133-136 (no capítulo “Technique of management and the goodfeel-factor”); MEHL, 2011, p. 123, 144, 153-54; para o histórico de fundo, também KIENAST, 1999, p. 261-67. 10 Embora alguns imperadores – antes ou durante o seu governo – fossem ativos em escrever obras literárias e especialmente em comentar suas próprias vidas ou atos como imperadores, Cláudio parece ter sido o único a escrever obras de historiografia no sentido estrito da palavra. Vide PETER, 1914;1906, p. 292-94, CXX-CXXIII (muito atrasada, espera-se, pela equipe liderada por T.J. Cornell, uma edição nova e aumentada); MEHL, 2011, p. 133-35. Suetônio (Claudius 41-42) oferece uma sinopse de Cláudio como um historiador. 11 Com a palavra, avia (avó) Suetônio (Claudius 41) não alude a Otávia, mãe de Antônia e avó materna de Cláudio, mas a Lívia, avó paterna dele e mãe de Druso: Otávia tinha morrido já em 11/10 a.C., evidentemente antes do nascimento de Cláudio em 10 a.C., enquanto Lívia morreu apenas em 29 d.C. Portanto KIENAST, 1999, p. 267 com a n. 200 (sugerindo Otávia) está errado. Tito Lívio morreu em cerca de 17 d.C.; assim, foi possível para ele ser professor de Cláudio na história escrita antes da morte de Augusto, e também por algum tempo depois disso. Deve-se estar ciente do fato Sumário | 132 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 de que as observações de Suetônio nesse capítulo, como habitualmente em suas biografias, não estão dispostas em ordem cronológica, e, por conseguinte, podem confundir o leitor. Vide FLACH, 1998, p. 179-84 e MEHL, 2011, p. 165-69. 12 Com referência a Cláudio como um historiador, consulte acima n. 10; para Tito Lívio e Augusto, vide FLACH, 1998, p. 140-41 e MEHL, 2011, p. 103. A fonte para a observação sobre Tito Lívio é Tácito, Anais 4.34. Vide também Sêneca, Naturales Quaestiones 5.18.4. Note-se que, de acordo com Dion Cássio, História romana 56.34, Augusto em seus últimos anos teve um julgamento mais diferenciado sobre Pompeu e César. Portanto parece que as discussões sobre essas duas pessoas seria possíveis entre eles. 13 Consulte a observação geral em Cornélio Nepos, Cato 3.4 e, para um exemplo, Catão, Origines, fr. 4.7a (BECK; WALTER, 2001, p. 200-3; CHASSIGNET, 1986, p. 36-38). O autor Aulo Gélio, citando Catão em Noctes Atticae 3.7.1-19, ao introduzir o relato dele, nomeia o herói, mas, na própria narrativa de Catão, todos os indivíduos (o general cartaginês, o cônsul romano como comandante, e o herói, um tribuno romano) não têm nomes, eles são mencionados exclusivamente por suas fileiras ou títulos. Somente uma pessoa histórica, mencionada para comparação (o rei espartano Leônidas, que morreu na batalha das Termópilas, contra os persas), tem um nome. Aulo Gélio deve ter colhido o nome do tribuno em outro lugar. 14 Ao usar o termo scriptor rerum (equivalente a scriptor historiarum) para os historiadores que Alexandre o Grande tinha em sua comitiva para descrever seus feitos, Cícero (Pro Archia poeta 24) sugere autores que, certamente, estudiosos modernos chamam não de biógrafos, mas de “Historiadores de Alexandre”. Em relação a esses autores, consulte MEISTER, 1990, p. 102-23. Ao introduzir a narrativa da segunda Guerra Púnica, Tito Lívio (Ab urbe condita 21.1), escrevendo durante a transição da República ao Império, chama de scriptores rerum a todos os historiadores que – como Túcidides – escrevem sobre a história de uma guerra (sendo guerra a substância final da res) e que exaltam sua respectiva guerra como “a mais digna de ser lembrada.” Apesar de Tito Lívio salientar a importância do líder cartaginês Aníbal para a segunda Guerra Púnica, em sua opinião não é uma guerra travada por pessoas, mas por “estados e povos” (civitates gentesque). 15 O valor dos fasti como uma fonte para a história é intensamente debatida (vide, por ex., RÜPKE, 1995), mas isso não afeta nossas reflexões. 16 Vide CHASSIGNET, 1996, p. XXIII-XLII e 1-15. 17 Embora as póleis gregas também tivessem magistrados anuais, os autores gregos não escreviam histórias baseadas em anais, nem mesmo Tucídides, que usou um esquema peculiar de sucessivos verões e invernos (com ou sem campanhas) para narrar a guerra do Peloponeso. Nem existe uma pista de que exatas analogias para os fasti romanos tenham existido entre os gregos. 18 Sobre o início da historiografia romana, vide FLACH, 1998, p. 56-79; MEHL, 2011, p. 41-60. KIERDORF, 2003, p. 9-17 parece ser único em datar o início da historiografia romana algumas décadas antes, após o fim da primeira Guerra Púnica. A opinião pública grega e a cultura grega, entre a nobreza romana após a primeira Guerra Púnica, dificilmente teria diferido muito daquelas durante a segunda Guerra Púnica. 19 Tácito, Anais 1.1: Urbem Romam a principio reges habuere. Esta é a primeira frase do Sumário | 133 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado resumo extremamente condensado de Tácito da história romana antes da morte de Augusto em 14 d.C., que é o ponto de partida para sua própria narrativa histórica. 20 Meu argumento aqui concorda em muitas, mas não todas, facetas com WALTER, 2004, p. 51-62, que discorre longamente em detalhe sobre o exemplum as um típico meio romano de conectar os presente com o passado. 21 Trans. da edição Loeb: Hoc illud est praecipue in cognitione rerum salubre ac frugiferum, omnis te exempli documenta in inlustri posita monumento intueri; inde tibi tuaeque rei publicae quod imitere capias, inde foedum inceptu foedum exitu quod vites. ... nulla umquam res publica ... bonis exemplis ditior fuit. Como Tito Lívio é nossa principal testemunha para escrever a “história exemplar”, seu uso de tais exemplos tem sido estudado intensivamente; vide esp. CHAPLIN, 2000. 22 Entre os mais velhos trabalhos academicos alemã acerca dos termos de valor romanos (“Wertbegriffe”), ver KNOCHE , 1934; entre as obras mais recentes, caracteristicamente, concentrando-se no final da república, com suas rápidas mudanças, e o primeiro principado, com sua transformação política fundamental, ver CHAPLIN, 2000; OPPERMANN, 2000; BÜCHER, 2006. 23 Tucídides, Historiae 1.22; para Xenofonte, vide MEISTER, 1990, p. 74. 24 Tácito, Anais 11.23-25, esp. 24. O discurso original, preservado em uma inscrição de Lion, está no Corpus Inscriptionum Latinarum 11.1668, em Inscriptiones Latinae Selectae 212, bem como em outras coleções epigráficas e documentais. Para a análise comparative das duas versões do discurso de Cláudio, vide VON ALBRECHT, 1995, p. 164-89; FLACH, 1998, p. 230-40. 25 Vide WIRSZUBSKI, 1954 com Cicero, Pro Sestio 98; De oratore 1.3; Brutus 8; De officiis 3.1. 26 Salústio era um membro da classe senatorial, mas teve problemas em sua carreira depois do assassinato de seu patron, Júlio César, o único meio como ele poderia viver em segurança parece ter-se mantido fora da política, e então ele desistiu da carreira senatorial (cursus honorum) antes de ter chegado ao cimo. Tito Lívio, por outro lado, nunca exerceu atividade política, mas escreveu sua História de Roma em íntimo contato com o novo grupo predominante de Augusto, sua família e seus amigos pessoais. Enquanto Salústio teve de achar um novo campo de atividade e conquistar a aceitação entre seus contemporaneous mediante sua atividade, Tito-Lívio pôde estar seguro de desfrutar o apoio geral dos novos governantes, porque sua história, com seus valores morais principalmente tradiciionais, correspondia à ideologia da restauração Augustana. 27 Cícero, De oratore 2.51-64; De legibus 1.5-10; WOODMAN, 1988, p. 76-101. Sobre o ideal de Cícero acerca de “história com retórica, retórica com história” vide FOX, 2007, p. 111-48. 28 Sobre o desenvolvimento da retórica na República de Roma, vide, com enfoque diferente, EISENHUT, 1994, p. 45-61, esp. 60-61; FUHRMANN, 1995, p. 42-47, esp. 46-47. Sobre a retórica nas obras de Salústio, Tito Lívio, Tácito, e sobre as ideias de Cícero de como escrever história, vide WOODMAN, 1988, que, entretanto, não discorre sobre exempla. 29 Sabemos que este gênero apenas através da compilação feita por Valério Máximo, no tempo do imperador Tibério. Como era costume na antiguidade, ele não citou as Sumário | 134 Calíope: Presença Clássica | 2014.1 . Ano XXXI . Número 27 fontes sistematicamente. Por isso não é possível dar um catálogo digno de confiança dos autores e das obras usadas por ele. Alguma coisa do material apresentado por ele pode mesmo ter sido parte do conhecimento popular geral que não poderia ser atribuído a qualquer fonte precisa. 30 Os discursos de Cícero estão cheios de exemplos históricos de origem diferente, enquanto Quintiliano, em seu livro de retórica (Institutio oratoria), procura por exemplos estilísticos (não históricos) nas obras dos historiadores Heródoto, Tucídides, Fábio Pictor, Tito Lívio e Salústio. 31 Vide PÖSCHL, 1991 e LINKE, 2000; especialmente acerca da conexão entre mos maiorum e exempla, Hölkeskamp 1996. 32 Esta é a conclusão geral do discurso de Cláudio, apoiando a ideia de fazer senadores dos nobres gauleses (na versão de Tácito, Anais 11.24; veja acima n. 24) e (ironicamente, considerando a questão real) no discurso de Lúcio Vitélio, apoiando o casamento entre Cláudio e sua sobrinha-neta Agripina (ainda na versão de Tácito, Anais 12.6). 33 Vide o capitulo sobre “Exempla and conservatism” em FOX, 2007, p. 152-55. 34 Augusto, Res gestae 8: Legibus novis me auctore latis multa exempla maiorum exolescentia iam ex nostro saeculo reduxi et ipse multarum rerum exempla imitanda posteris tradidi. É sabido que Augusto aqui se refere à sua legislação moral. De acordo com Suetônio, Augustus 31, o próprio Augusto escolheu os grandes homens do passado romano cujas estátuas deveriam ser erguidas como exemplos da virtude no novo Forum Augustum em Roma; vide KIENAST, 1999, p. 207, 210-11. 35 Pref. 9, imediatamente antes, Tito lívio fala do valor dos exempla (cf. acima n. 10). 36 LEPPIN, 2008, p. 48: “Ambrosius konnte… der traditionalistischen Denkform des Exemplum verbunden bleiben… dadurch, dass er sich auf neue Exempla bezog, nämlich auf die Könige des Alten Testaments” (Ambrósio pôde… permanecer ligado à forma tradicional de pensamento de exemplos… à medida que empregava novas formas de exemplos, nomeadamente os reis do Antigo Testamento). 37 Vide os índices nas edições de ambas as obras. Sobre o entendimento de Orósio acerca da história, vide COBET, 2009. 38 Vide PÖSCHL, 1991, p. 189: “Die Macht des Beispiels in Rom ist aber nichts anderes als die Macht der Geschichte und die römische Geschichtsschreibung eine Form römischen Vorbilddenkens. Sie will große Beispiele hinstellen, die durch ihre Autorität verpflichten” (O poder do exemplo em Roma não difere, contudo, do poder da História e a historiografia é uma forma do pensamento pradigmático. Ela irá estabelecer grandes exemplos, que se impõem por sua autoridade). 39 Sobre historia continua Romana, vide MEHL, 2011, p. 40, 50, 89 e o índice s.v. “continuation in historiography.” 40 O argumento lógico dramático, como esboçado acima, não é um feito do imperador Cláudio – cujo discurso (preservado em uma inscrição; ver n. 24) apresenta mais uma característica erudição histórica, às vezes muito crua, do que a lógica do argumento – mas do historiador Tácito (ou de uma fonte literária usada por ele). Poder-se-ia, é claro, considerar a política romana (conforme descrito em Tácito, Anais 11,24), como um exemplo positivo, e a política grega (como descrito na mesma obra), em oposição, como um exemplo negativo. Mas esse também não seria um exemplum do tipo romano moralista e personalizado. Sumário | 135 Andreas Mehl | Como os romanos lembravam, registravam, pensavam e usavam seu passado REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBRECHT, M. von. Meister römischer Prosa von Cato bis Apuleius. 3. ed. Tübingen. 1995. [The English version, Masters of Roman Prose: Interpretative Studies. trans. N. Adkin. Leeds, 1989 is based on the 2. ed. German, Heidelberg 1982] ANDREAE, B. Römische Kunst. Darmstadt: s.n., 2000. [Revised and expanded ed. Freiburg i. Br.] BECK, H.; WALTER, U. (trans., comm.). Die Frühen Römischen Historiker I: Von Fabius Pictor bis C. Gellius. Darmstadt: s.n. 2001. BEHRWALD, R. Festkalender der frühen Kaiserzeit als Medien der Erinnerung. In: BECK, H.; WIEMER, H.-U (Eds.). 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