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Como Newton deve ter obtido a força gravitacional através das leis de Kepler
No curso de Física II que ministrei em 2010, adotamo um livro-texto que talvez
não enfatize o bastante um ponto crucial sobre como Newton, usando a terceira
lei de Kepler, inferiu a lei da gravitação universal. Não há nada errado no livro,
mas acho melhor salientar alguns detalhes dessa inferência. A terceira lei de
Kepler diz que os quadrados dos períodos das órbitas dos planetas são proporcionais aos cubos dos semi-eixos maiores das órbitas elípticas que os planetas
descrevem. Na verdade, no livro-texto de H. Moysés Nussenzveig, essa terceira
lei está enunciada assim: “Os quadrados dos períodos de revolução de dois planetas quaisquer estão entre si como os cubos de suas distâncias médias ao Sol”.
Veja que se essa for a forma que Kepler realmente utilizou, então ele não se terá
referido ao movimento da Lua, propriamente dito, mas apenas aos movimentos dos cinco planetas conhecidos na época: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e
Saturno. Esses são os planetas visíveis a olho nu. Ao longo de uma trajetória
elíptica, a distância média a um dos focos é proporcional ao semi-eixo maior, o
que justifica o enunciado anterior, isto é, de que os quadrados dos períodos são
proporcionais aos cubos dos semi-eixos maiores. Foi Newton quem pensou que
havia uma força universal entre objetos materiais e supôs que a mesma força
que a Terra exerce sobre os corpos em sua superfície estender-se-ia até a órbita
da Lua. Aí está a inferência de que a lei de força que atua entre cada planeta
e o Sol é a mesma lei de força que atua entre quaisquer dois corpos dotados
de massa. Isso coloca todos os planetas, a Terra, a Lua, o Sol e todos os corpos materiais dotados de massa na mesma categoria de objetos que interagem
mutuamente através da força gravitacional.
O cálculo que tipicamente é apresentado de forma didática agora segue facilmente. Um objeto qualquer na presença da Terra, digamos, cai em sua direção
seguindo uma lei de força universal. Se a força que mantém a Lua em órbita
segue a mesma lei, então essa força deve ser igual à massa da Lua multiplicada
por sua aceleração centrípeta, de acordo com a segunda lei de Newton. Sendo
assim, a aceleração da Lua em uma órbita circular é a centrípeta e é dada por
= −ω 2 rr̂,
a
implicando, pela segunda lei de Newton, em uma força centrípeta dada por
F =
=
ma
−mω 2 rr̂,
onde ω é a frequência angular da Lua em sua órbita, suposta circular, m é
sua massa, r é a distância radial de sua trajetória, com a origem colocada no
centro da Terra suposta imóvel, e r̂ é o versor radial. Seja T o período da órbita
descrita pela Lua. Então,
ω
=
1
2π
T
e, portanto,
F =
−m
4π 2
rr̂.
T2
A terceira lei de Kepler nos diz, matematicamente que
T2
∝ r3 ,
já que a distância média da Lua à Terra é r em uma órbita circular de raio r.
Vamos chamar de K a constante de proporcionalidade e escrever
T2
= Kr3 .
A substituição de T 2 por Kr3 na expressão da força logo acima resulta em
F =
−m
4π 2
rr̂,
Kr3
que pode ser rearranjada assim:
F
= −
4π 2 m
r̂.
K r2
Exatamente aqui sempre fica implícita uma inferência importante: essa mesma
expressão de força deverá valer mesmo que a Terra e a Lua estejam ambas,
uma em relação à outra, paradas. A ideia é que a Lua só permanece em órbita
porque está constantemente “caindo” em direção à Terra, com módulo da velocidade tangencial constante. Caso não tivesse uma componente tangencial de
velocidade, inegavelmente a Lua colidiria com a Terra. Com essa observação em
mente, conjecturamos que se a força gravitacional fosse equilibrada pela ação de
uma outra força qualquer, capaz de segurar a Terra e a Lua para não colidirem
por atração mútua, então a lei de força gravitacional ainda assim continuaria da
mesma forma. Essa asserção é uma inferência e não uma dedução. O movimento
orbital e a terceira lei de Kepler foram utilizados como artifícios para podermos
inferir qual deveria ser a força atrativa que somente dependesse das massas dos
corpos e de suas posições relativas.
Com a inferência explicitada do parágrafo acima, podemos continuar nossa
análise da lei de força gravitacional. Pela terceira lei de Newton, a Lua também
exercerá uma força sobre a Terra de mesmo módulo, mas de sinal contrário:
FL→T
= −F
4π 2 m
=
r̂.
K r2
Como, por hipótese, a Lua também atrai a Terra porque a Terra tem massa,
podemos trocar a Terra pela Lua e vice-versa e escrever
FL→T
4π 2 M
(−r̂)
K 0 r2
4π 2 M
r̂,
K 0 r2
= −
=
2
com M sendo a massa da Terra e K 0 sendo uma outra constante de proporcionalidade. Note que o versor radial com o centro da Lua na origem do sistema
de coordenadas é −r̂, onde r̂ é o versor radial com o centro da Terra na origem.
Como
FL→T
=
−F,
segue que
4π 2 m
r̂,
K r2
4π 2 M
r̂ =
K 0 r2
isto é,
M
K0
=
m
.
K
F =
−
4π 2 m
r̂
K r2
Portanto,
e, ao mesmo tempo,
F
= −
4π 2 M
r̂.
K 0 r2
Isso quer dizer que, com r fixo, F é simultaneamente proporcional a m e a M,
além de ser proporcional a −r−2 r̂. Assim, sendo G uma constante independente
das massas m e M, segue que
F =
−G
Mm
r̂.
r2
Ainda há mais questionamento filosófico que não é normalmente coberto pelos
livros-texto, mas vou parar por aqui para não lhe assustar ou entusiasmar demais. Veja que G, que não depende das massas e nem das coordenadas dos
corpos interagentes, é, portanto, uma constante universal, sendo a mesma para
a força gravitacional entre quaisquer dois objetos dotados de massa.
A física é bonita por causa desses detalhes que, por não serem tão práticos,
são deixados para depois. O problema é que sempre, em todas as disciplinas,
esses detalhes são deixados para depois. Para não perder o entusiasmo, não
deixe para depois as coisas bonitas das disciplinas que cursar; vá atrás delas
agora, antes mesmo de decorar as fórmulas e passagens matemáticas! Para que
é que serve Google, afinal?
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