O que é o ser humano?

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O que é o ser humano?
Olinto A. Pegoraro1
Filósofo
In: Carneiro, F. (Org.). A Moralidade dos Atos Cientificos – questões emergentes dos
Comitês de Ética em Pesquisa, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1999.
I – INTRODUÇÃO
Esta pergunta sempre formou um capítulo central das teorias filosóficas. Ela foi
elaborada pelos gregos à luz da questão do cosmos, pelos medievais à luz de Deus
Criador, pelos modernos à luz da Ciência e hoje esta questão se coloca à luz dos atos
tecnocientíficos. Cada vez mais a ciência aliada à técnica, intervém diretamente na
estrutura radical do ser humano, tentando definí-lo cientificamente. De um ponto de
vista tecnocientífico podemos dizer que o homem é seu genoma. É uma definição muito
perto de ser cientificamente exata: o homem é a totalidade de seus gens mapeados e
conhecidos em suas funções. Seria o homem somente isto? Deixou o homem de ser uma
questão ontológica e teológica para reduzir-se a um desafio biológico? Que diz a ética?
A definição científica e laboratorial do homem parece bater de frente com a meta física,
a psicologia e a ética. Este conflito, de fato, revela nossa ignorância sobre nós mesmos.
Max Scheller já dizia no início do século: "Na história de mais de 10.000 anos, pela
primeira vez o Homem tornou-se problemático para si mesmo. O Homem não sabe mais
quem ele é e se dá conta de não sabê-lo". Já não temos do Homem uma definição global
e de aceitação universal como na Grécia e na Idade Média; mais gravemente, não
sabemos definir o que é o ser humano embrionário ou fetal e o ser humano adulto em
estado de inconsciência irreversível.
Por outro lado, já podemos manipular nossa estrutura genética a ponto de construir-nos
num laboratório. Aqui a pergunta "o que é 0 ser humano?" pode ser substituída por esta
outra: "o que queremos fazer de nós mesmos? ". A primeira pergunta é ontológica e a
segunda tecnocientífica. À primeira vista, estas duas perguntas, são mutuamente
excludentes. A resposta ontológica é muito abrangente e vaga e a resposta biológica
parece excessivamente pontual. Fazemos aqui uma terceira pergunta, seria possível
reconciliar as duas questões numa terceira formulada assim: qual o sentido do homem
na era tecnocientífica? A questão do sentido do homem é ao mesmo tempo éticoontológica e tecnocientífica pois se refere à existência humana sem excluir nenhuma de
suas dimensões.
II – TRÊS RESPOSTAS
Tentarei avançar pelo caminho conciliatório. Para isso, examinarei três respostas à
pergunta "o que é o ser humano?": a primeira é meta física, a segunda fenomenológica e
a terceira utilitarista.
1 – A metafísica
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Professor da Universidade Estatual do Rio de Janeiro
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O conceito de pessoa não foi elaborado pelos gregos mas pelos pensadores cristãos. É
de Severino Boécio a famosa definição: "a pessoa é o indivíduo subsistente numa
natureza racional". Em termos de hoje, esta definição pode ser expressa assim: pessoa é
a união do espírito com o corpo, ou seja, o espírito define a especificidade humana.
Portanto, a alma racional nos diferencia radicalmente dos outros seres vivos. Esta
diferença é tão profunda que demanda uma intervenção divina. De fato, para os
pensadores medievais, a alma, sendo espiritual e imortal, transcende às forças e leis
biológicas. Não são os pais que transmitem a alma aos filhos, mas é Deus que cria e
infunde a alma em cada ser humano no momento de sua concepção. Então, cada um de
nós foi produzido por um duplo ato: um biológico, pelo qual os pais geram o corpo, e
um divino, pelo qual Deus implanta a alma espiritual no corpo, resultando um novo ser
humano ou uma nova pessoa. Portanto, a pessoa é a união da alma espiritual e imortal
com o corpo material vivificado pela alma.
Este é o núcleo metafísico e permanente do ser humano; dele emergem, como
conseqüências naturais, a inteligência, a liberdade, a criatividade, a consciência ética, a
capacidade de diálogo, a sociabilidade, enfim, todas as qualidades superiores do
homem. Evidentemente, estas qualidades são muito importantes, mas não são fundantes
da estrutura radical do homem: são somente conseqüência e manifestação de uma
estrutura mais profunda e ontológica, ou seja, a essência humana como a união do
Espírito com o corpo. Veremos adiante que a fenomenologia deixa de lado a idéia de
essência humana e concentra sua reflexão sobre a liberdade, criatividade
e historicidade da existência humana revelada pela sua relação com os outros no
mundo.
Que tem a ver esta definição metafísica com a ética? Tudo. Pois sendo a alma espiritual
e imortal, o homem é marcado por um destino eterno e deve ser respeitado como
criatura e filho de Deus. Esta condição faz do homem um ser privilegiado, o único ser
ético, o único a não ser produzido inteiramente pela natureza.
Seu corpo, animado por uma alma espiritual e imortal, é intocável e indisponível a toda
manipulação. Sobre o corpo humano são permitidas só intervenções terapêuticas.
Nenhuma circunstância justifica o aborto; a fecundação in vitro representa sempre um
grave desvio do processo natural da geração humana; toda experimentação genética
sobre o ser humano, embrionário ou adulto, é sempre inaceitável porque converte a
pessoa humana em objeto de estudo que acaba sendo descartado no fim das
experiências laboratoriais. No mesmo quadro de proibições inscrevem-se os
anticoncepcionais artificiais, como pílulas e camisinhas por desviarem o curso natural
das funções reprodutivas.
Por que tanto rigor e tantas proibições? Duas são as principais respostas. Em primeiro
lugar, não é permitido intervir no corpo vivificado pela alma feita por Deus; a
integridade do corpo deve ser respeitada como um templo. Em segundo lugar porque há
o temor de que a ciência biológica se torne toda poderosa e ultrapasse seu campo de
competência e invada a área teológica que ensina que só Deus é o senhor que dá a vida e
tira a vida. Em poucas palavras, a pessoa é uma noção meta física e essencialista com
base na biologia sendo que ambas se subordinam à teologia que afirma a origem divina
da alma.
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De fato, esta tese confunde metafísica com biologia, ou seja, quer provar
cientificamente que a personalidade deriva da composição biológica do ser humano. Ou,
em outras palavras, o encontro dos cromossomos masculinos e femininos produzem um
novo ser humano ou pessoa. Isto significa que a estrutura biológica é ou constitui a
personalidade humana. Esta identificação tenta explicar a metafísica pela biologia, o
que é impossível. De fato, é impossível aos laboratórios descobrirem o gene da
personalidade pelo simples fato de que os genes são de ordem biológica (e como tais,
estudados pela genética) e a personalidade é de ordem conceptual (e como tal, elaborado
pela filosofia e a ética). A pessoa e a personalidade não são um produto biológico mas
cultural, construído durante milênios pela filosofia, pela ética, pelas religiões e pelo
direito.
2 – A fenomenologia
Como acabamos de ver, a meta física clássica criou um conceito essencialista e estático
de pessoa que se apóia na biologia e na teologia. Em nosso século, a fenomenologia
defende um conceito dinâmico da pessoa. O ponto de partida é a idéia de relação. O ser
humano não é uma essência definida e estruturada desde o início, ou seja, não é
meramente um dado biológico. Antes de tudo, somos um ser tecido de relações; somos
um ser relacional que vai se construindo com os acontecimentos pessoais e coletivos.
Numa palavra, as relações são a base da personalidade. A personalidade cresce sempre,
desde o seio materno até as relações socio-políticas da idade madura: a pessoa está
sempre acontecendo.
Esta teoria filosófica se apóia também nas teorias da evolução da vida. Segundo esta
tese, a pessoa emerge toda inteira da natureza como corpo e como espírito; aliás, aqui
faz pouco sentido distinguir a parte corporal da espiritual: o ser humano é todo inteiro
corporeidade pensante que vai se fazendo ao longo do processo temporal.
Segundo esta teoria, em seus primeiros estágios, o embrião humano ainda não é uma
pessoa definida e completa. Mas o embrião humano que tem desde o início todos os
elementos genéticos do adulto, é apenas pessoa em potencial ou seja, um processo de
personalização. Isto é, os elementos genéticos vão se desdobrando, crescendo até serem
aptos a fazer atos conscientes e escolhas livres. Portanto, para as teorias
fenomenológica e evolucionista, as qualidades superiores do homem como consciência,
inteligência e liberdade, não são dádivas divinas mas produtos da natureza. Ademais, o
ser humano alcança sua maturidade no estágio ético ou seja, quando o homem
consciente e livre vive e age coerentemente segundo uma ordem de valores.
Portanto, a ética fenomenológica sustenta a evolução por inteiro do ser humano, em seu
corpo e no espírito. Não há motivo para considerar que a alma seja uni dom divino,
criado por Deus no ato da concepção. De fato, a natureza produz toda a realidade
humana: corporal e espiritual.
Nem por isso a fenomenologia defende o nivelamento de todos os seres vivos: não
exalta as outras espécies de vida às custas do rebaixamento do homem. Pelo contrário, a
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fenomenologia sustenta que o aparecimento do ser humano na natureza transcende às
fases e formas anteriores de vida.
O ser humano é transcendente não no sentido de que uma intervenção divina especial
mas no sentido que é o produto mais avançado da evolução da natureza. Nele e por ele a
natureza dá um salto qualitativo e alcança o estágio superior. Isto é, no homem e pelo
homem a natureza salta do estágio meramente físico, biológico e determinista para o
estágio da História presidida pela inteligência e pela liberdade. Portanto, no Homem e
pelo Homem todas as criaturas ganham nova qualidade, nova dignidade e
respeitabilidade ética mas em graus diferentes. É claro que o Homem ocupa o grau mais
elevado de qualidade biológica e ética.
Nisto a fenomenologia se distingue profundamente da metafísica que defende a
personalidade como um fato biológico dado definitivamente desde o início. Pelo
contrário, a fenomenologia destaca que a evolução do ser humano é um processo
temporal de personalização, concebido como pessoa potencial que vai se tornando
pessoa plena e sempre em expansão e crescimento ao longo da vida inteira; nunca
somos pessoa acabada, somos um ser aberto à realização de novas potencialidades e
possibilidades pelo exercício da liberdade e criatividade.
Que tem a ver tudo isto com a ética? Tudo. Na metafísica clássica, a ética consiste no
respeito à essência humana dada pela natureza. Para a fenomenologia, a ética é ativa, é o
exercício responsável da liberdade e da criatividade. A ética está sempre acontecendo
como a personalidade, ou seja, a ética é histórica como todo processo evolutivo
conduzido pela inteligência.
Portanto, pela fenomenologia, a ética ganha ampla flexibilidade e transcende às normas
fixas estabelecidas pela ética essencialista. Ao mesmo tempo, cresce a responsabilidade
do exercício da liberdade. Não basta aplicar uma norma permanente aos fatos da vida
mas é preciso descobrir sempre de novo o sentido ético dos acontecimentos.
Examinemos agora alguns exemplos à luz desta perspectiva ética. Tomemos
primeiramente o espinhoso caso do aborto. Segundo a ética fenomenológica nem
sempre o aborto é um procedimento imoral e criminoso, visto que o embrião e o feto
ainda são pessoa em potencial, um processo de vir-a-ser pessoa. É claro que os casos
em que se aceita eticamente o aborto devem ser determinados em lei. O legislador, por
sua vez, faz a norma aceitando a visão ética segundo a qual em embrião ou feto ainda
não é pessoa. Ao contrário, seria um absurdo ético que a lei descriminalizasse um
assassinato.
Esta flexibilidade (inadmissível na ética essencialista) não significa que a
fenomenologia justifique o aborto em geral. Não é uma ética abortista; mas a
elasticidade de seus princípios permite justificar o aborto em determinadas
circunstâncias existenciais das pessoas e, sobretudo, fornecer um fundamento à
legislação sobre o aborto cada dia mais aceita no mundo inteiro.
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Um segundo exemplo é tirado dos atos tecnocientíficos praticados sobre o ser humano
embrionário ou adulto. São eticamente válidos desde que feitos segundo o respeito e a
beneficência devidos ao ser humano em qualquer estágio. Isto porque um ser humano
embrionário, fetal ou adulto é sempre um ser humano e nunca uma coisa; um embrião
ou feto humano tem a dignidade de ser humano (ou pessoa em potencial) eticamente
mais valioso que qualquer outra espécie vivente. Ele possui todos os genes humanos e
está em via de vir-a-ser pessoa. É neste nível que deve ser tratado eticamente. Por
exemplo, um feto humano abortado não deve ser material descartável com os restos de
laboratório que vão para o lixo ou incineração.
Uma terceira reflexão se refere às partes do corpo humano. Nosso corpo é sempre
humano no seu todo e em cada uma de suas partes. Por exemplo, uma placenta não é
um objeto qualquer: ela será sempre uma parte do corpo humano e como tal deve ser
tratada.
Enfim, qualquer que seja o estágio de sua evolução, o ser humano está situado no ponto
mais adiantado da evolução e, por isso, revestido do grau mais elevado de eticidade.
Em quarto lugar examinemos o caso do cientista à luz da ética fenomenológica. Nem a
ciência, nem a filosofia e nem a religião aceitam interferências em seus métodos,
premissas e conclusões. Isto é, nem o saber tecnocientífico e nem o saber simbólico
toleram ser tutelados. Esta já é uma conquista construída penosamente desde o caso
Galileu. Como então resolver os conflitos éticos que surgem entre os saberes?
Em termos fenomenológicos, podemos trilhar o caminho que parte da liberdade da
criatividade humana. Isto é, o mais importante não é a tecnologia nem seu produto mas
sim o cientista. A tecnologia é um produto de uso e o cientista é um ser digno. Ele é ser
humano livre, que age livremente em suas pesquisas. Mas ele não é um solipcista;
exatamente por ser cientista, ele é um ser social, que serve aos outros seres humanos;
para isto ele é apoiado por políticas públicas e por recursos públicos a fim de que
produza resultados científicos para o bem da sociedade. Em outras palavras, a liberdade
do cientista se articula com a liberdade dos cidadãos. As liberdades devem chegar a um
consenso sobre o uso de um produto tecnocientífico. Por exemplo, uma comunidade
pode concluir que não está preparada para o uso de um determinado progresso
{clonagem); poderá vir a sê-lo em outro momento; por isto pode temporariamente
recusar o uso desta novidade. Isto não significa resistência ao cientista e à ciência. O
cientista continua livre em seu trabalho que poderá ser aproveitado em outro momento.
Em síntese, a ciência, através do cientista livre e cidadão, se enquadra sempre na visão
ética fenomenológica que avalia a ciência a partir da convivência das liberdades.
Portanto, a ética fenomenológica não é uma ética do 'pode ou não pode', que cria
limitações odiosas aos cientistas. Pelo contrário, ela situa a liberdade e a criatividade do
cientista num horizonte de totalidade e de sentido. Isto significa que a ciência não é um
poder absoluto que se impõe inexorável e irresistivelmente ao destino humano e
cósmico. Não. A tecnociência, como produto do saber humano, é apenas um elemento a
mais, embora poderoso, no contexto histórico e subordina-se ao diálogo das liberdades
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que é a base do convívio social dos seres humanos com toda a natureza. Quem governa
esta totalidade não é a tecnociência (que é um produto) mas a liberdade.
Finalmente, a ciência se situa num horizonte de sentido, tomado como ordenamento
dos homens e das coisas tendo em vista a conquista de metas tais como a realização de
um certo bem estar para todos, onde haja justa repartição dos bens materiais entre os
seres humanos e uma convivência respeitosa do homem coma natureza. Então a
ciência é um poderoso aliado na construção deste sentido da existência.
Na perspectiva da ética fenomenológica parece inútil proibir experiências, pois a
tecnociência é exatamente o resultado de um árduo processo de experimentação. Toda
vez que na história se proibiu a investigação científica o resultado foi sempre a
manipulação camuflada. Em muitas ocasiões proibiu-se a pesquisa científica por medo
que seu resultado viesse a ser mal utilizado ou usado para o mal. Este critério tímido
não se justifica pois todo saber se presta a desvios. Portanto, não adianta proibir; melhor
seria promover o entendimento e o consenso das liberdades convertido em legislação
pública. Enfim, a ética orienta a decisão das liberdades sobre o uso dos resultados da
pesquisa
Aqui, aparece o papel importante dos Comitês de Ética no que se refere à pesquisa
sobretudo em seres humanos. A Resolução CNS 196/96 do Ministério da Saúde, que
representa um belo esforço sobre a pesquisa feita sobre o ser humano, refere-se
especialmente ao Consentimento Esclarecido do paciente que se dispõe a oferecer seu
corpo para uma pesquisa científica. É muito importante que os Comitês de Ética se
situem sempre no horizonte da totalidade e de sentido acima mencionado. A Resolução
é uma baliza, uma referência que ajuda o Comitê a formular um juízo ético objetivo e
bem fundado. Nada mais. É preciso ter presente que a Resolução não é a palavra final e
que há situações concretas e existenciais que ultrapassam o texto: o contexto de
totalidade e de sentido dão suporte ao próprio texto. Mais concretamente, o corpo
humano é a face concreta e externa da personalidade. Por isso, o corpo de um paciente
nunca é objeto de pesquisa mas é sempre sujeito de direitos e não pode ser tocado sem o
consentimento prévio do sujeito. Por isso, o ato médico ou a investigação científica
sobre o corpo humano é sempre um ato feito sobre a pessoa ou o ser humano em
potencial que precisa ser tratado em seu nível ético. Assim, a ética fenomenológica
ajuda a evitar o risco da biologização da medicina. De fato, há o perigo da medicina
concentrar-se exclusivamente na dimensão biológica da existência humana e esquecer
sua dimensão histórica e transcendente. Pelo contrário, o corpo humano deve ser visto
não apenas pela biotecnologia mas também pela sua dimensão simbólica que inclui
tradição cultural da pessoa, seus temores e esperanças, sua filosofia e suas crenças.
Estes são imperativos reais que transcendem os imperativos tecnológicos.
Um último aspecto. A ética fenomenológica emerge da situação existencial e real das
pessoas, como a cultura e formação de cada um, a condição familiar, social e religiosa, e
os sentimentos atuais face aos problemas reais vividos. Podemos imaginar a situação
real de uma moça que acaba de praticar um aborto clandestino. Essa mulher não quer
ouvir falar no assunto por razões psicológicas e por razões de medo da lei que condena
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o aborto clandestino. É preciso ter muito tato humano para abordar esta pessoa e
solicitar-lhe o consentimento para realizar pesquisas sobre o feto abortado.
Mais profundamente, a situação existencial pode ser descrita num quadro de quatro
pontos:
a) A estrutura biológica da pessoa
Esta não é controlável pela liberdade e escolha livre. É um factum biológico que
nascemos sem pedir, adoecemos sem querer e morremos sem decidir.
b) A estrutura ontológica
Em sentido filosófico, o ser humano é radicalmente finito: é uma existência que se abre
em possibilidades sucessivas mas que, finalmente, se fecha e acaba seu ciclo de
existência. Também aqui não há escolha livre: ninguém pode escolher ou decidir viver
indefinidamente.
c) A dimensão histórica
Este é o espaço da liberdade e das escolhas livres, da criatividade, da auto-consciência e
da construção coletiva da história. Nós fazemos nossa história; escolhemos uma
trajetória positiva, boa para a pessoa e construtiva para os outros ou podemos andar por
caminhos tortuosos, negativos para a nossa pessoa e pesados para a sociedade. Isto é, a
liberdade toma em suas mãos a sua estrutura biológica dando-lhe um sentido no seio da
sociedade colaborando para construir espaços de bem estar e de justiça. Enfim, a
dimensão histórica é o amplo espaço da criatividade, do otimismo, da luta por fazer um
mundo melhor para si e para a coletividade. Então, a nossa vida fica cheia de sentido e
transcende ( a) o determinismo biológico e ( b ) o limite ontológico intransponíveis e
incontroláveis pela liberdade. Entre estes dois extremos incontroláveis situa-se uma
vastíssima área de liberdade e de criatividade que torna a vida digna de ser vivida. De
fato, a vida é livre e faz sentido quando aberta aos outros e a projetos criativos.
d) A transcendência
Para a filosofia, a história é indeterminada: as pessoas passam e a vida humana continua
indefinidamente. Mas, segundo uma visão de fé religiosa, nosso ser biológico e
ontologicamente finito desemboca na "trans-história", na transcendência divina, numa
vida feliz sem fim. Esta é a esperança que, por exemplo, a fé cristã abre aos crentes.
Esperança que confere um sentido mais amplo às três dimensões anteriores, sobretudo à
dimensão histórica que é o espaço da livre construção de si com os outros no mundo.
Este esforço é pleno de sentido ético em si mesmo. A vida humana que luta por
construir-se juntamente com os outros é digna e honrada por si mesma,
independentemente da religião. Mas ela ganha um sentido ainda mais largo se, através
da fé, a pessoa e a comunidade, se abrem a uma esperança transcendente.
Enfim estes quatro pontos da situação existencial podem ser sintetizados numa prece
de crente: "Senhor dá-me a força e coragem para fazer tudo o que posso, a graça de
aceitar o que não pode ser modificado e a sabedoria de distinguir uma coisa da outra".
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É neste quadro vivo e existencial que atua a ética fenomenológica. Ela está sempre se
repensando, recriando-se sempre à luz dos acontecimentos da vida das pessoas e da
história humana. A ética fenomenológica nunca é um paradigma fixo de normas
morais que se aplicam friamente sobre uma realidade. Pelo contrário, ela está sempre
acontecendo com a própria dinâmica da vida, orientando os acontecimentos para um
sentido positivo e construtivo de cada pessoa, da comunidade e da realidade cósmica.
3 – O utilitarismo
Refiro-me aqui a apenas uma vertente do utilitarismo sugerida por Peter Singer na qual
ele propõe como base da ética o respeito universal dos interesses das pessoas. Neste
sentido, devemos "atribuir aos interesses alheios o mesmo peso que atribuímos aos
nossos".
À luz deste princípio, Peter Singer analisa a pergunta: o que é o ser humano? Sua
resposta começa por uma distinção entre pessoa (persona) e espécie humana (homo
sapiens). Todo ser humano pertence à espécie homo sapiens. Como espécie, o ser
humano não goza de nenhum privilégio em relação às outras espécies. Não faz sentido
defender o "especismo", como não faz sentido sustentar o racismo ou sexismo. Portanto,
um ser concebido de óvulo e esperma humanos pertencerá à espécie homo sapiens,
mesmo que nasça com extremas deficiências como a anencefalia ou sofra irreversíveis
deficiências mentais na idade adulta. Porém, enquanto homo sapiens este ser humano
ainda não é pessoa e portanto ainda não é sujeito dos direitos que atribuímos às pessoas.
O homo sapiens passará a ser pessoa quando ganhar consciência de si, for capaz de
controle de suas emoções, de manifestar desejos, interesses e defendê-los. Então, um
embrião, um feto e uma criança ainda não são pessoa; e um adulto que perde
definitivamente a consciência de si deixa de ser pessoa.
Esta tese sofreu muitas objeções e oposições principalmente por parte dos que,
considerando a sacralidade da vida, recusam o aborto em qualquer circunstância e
condenam a eutanásia pela mesma razão de fé. Da mesma forma, Peter Singer enfrenta
as objeções da meta física que defende a existência da pessoa desde a concepção até o
fim da vida.
Sejam quais forem as discussões que a posição de Peter Singer levanta, um dado é certo:
o autor não defende um utilitarismo frio, egoísta e calculista de interesses pequenos. O
princípio do igual respeito aos interesses de todos leva o autor a "pensar a vida com
sentido, com um objetivo mais amplo que os interesses pessoais que extrapola os
estreitos limites de nossos estados conscientes: este é o ponto de vista ético". É isto que
dá significado e um objetivo à vida.
Creio que Peter Singer teria evitado muitas dificuldades com seus adversários se
tivesse analisado, sob o prisma da "vida com sentido", os graves problemas que a
biociência levanta sobre a vida humana. É neste amplo contexto do sentido ético da
vida que convém discutir, por exemplo, aborto, eutanásia, concepção in vitro,
clonagem etc. Então, o princípio do igual respeito aos interesses de todos funda-se "na
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vida com sentido". Nisto consiste a ética que transcende os interesses subjetivos para
articular-se com a vida dos outros com os quais construímos um mundo mais digno.
Se esta leitura for correta, então é possível um amplo diálogo entre Peter Singer e a
posição da ética fenomenológica acima exposta.
CONCLUSÃO
Acabamos de expor três maneiras de responder à pergunta: O que é o ser humano? A
resposta meta física, apesar de sua longa história, revela-se distante dos dramas
existenciais. Seus defensores tentam apresentá-la, hoje, sob a roupagem do humanismo;
mas sem êxito, visto que, para esta corrente de pensamento, o Homem é feito para
obedecer aos princípios e não os princípios à condição quotidiana da vida.
Neste sentido, a fenomenologia é muito mais humanista: para esta teoria, não só a
existência humana é mutável e evolutiva mas também os princípios éticos. A ética,
como a vida é uma contínua descoberta de sentido e de estilos de se viver com
dignidade. As verdades éticas absolutas são incompatíveis com o processo temporal da
existência, notadamente nesta época de extraordinárias e profundíssimas descobertas no
campo da biologia que obrigou a repensar nossos modos tradicionais de conduta.
Quanto ao utilitarismo de P. Singer, vimos acima em que condições é possível um
diálogo humanista com ele. O que faz problema não é propriamente a posição de P.
Singer, mas a teoria utilitarista geral baseada "no maior benefício para o maior número
possível"; este princípio, além de ser excludente das minorias, pode, pelo cálculo do
maior benefício para a maioria, justificar até o sacrifício de pessoas. Enfim, o
utilitarismo acentua mais o cálculo das utilidades que a central idade ética da pessoa.
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