A ÁFRICA ISLÂMICA E A HISTÓRIA. Ivete Batista da Silva Almeida

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A ÁFRICA ISLÂMICA E A HISTÓRIA.
Ivete Batista da Silva Almeida*
Resumo
Os muçulmanos trouxeram para a África uma grande rede de contatos e comércio, fazendo
com que as regiões da África islâmica passassem a fazer parte desse circuito. Nos reinos
que se convertiam ao islamismo, a fundação de cidades, como Timbucto e Gao, na faixa do
rio Níger, ou Sidjilmassa e Marrocos, no Magreb eram acompanhadas pela construção de
palácios e mesquitas. Embora possa parecer que, no processo de islamização da África, ela
teria perdido suas características próprias em detrimento da religião e da cultura islâmica,
os historiadores estão de acordo ao afirmar que teria ocorrido justamente o oposto: o que
houve foi uma “africanização do islã”, na qual produziu-se uma cultura, uma arte e até
mesmo uma forma própria de entender-se a história.
Palavras-Chave: África Islâmica. Cultura. Religião. História.
AFRICA ISLAMIC AND HISTORY
Abstract
The Muslims brought to Africa a large network of contacts and trade, making regions of
Africa Islamic part of that circuit. In the kingdoms who converted to Islam, the foundation
of cities, as Timbucto and Gao, in the range of the Niger River, or Sidjilmassa and Morocco
in the Maghreb were accompanied by the construction of palaces and mosques. While it
may seem that the process of Islamization of Africa, made lose its own characteristics to the
detriment of religion and Islamic culture, historians agree in stating that occurred precisely
the opposite: that there was an Africanization of Islam, which produced a culture, an art and
even own a way to understand the history.
Keywords: Africa Islamic. Culture. Religion. History.
“A África tem História”.
Com esta breve afirmação, Josph Ki-Zerbo abre a maior coleção já escrita sobre a
História dos povos do continente africano. O volume I, da História Geral da África. É
importante salientar que, em razão da leitura eurocêntrica, via de regra, apenas alguns
períodos e regiões da África mereceram, por muito tempo, destaque nos compêndios sobre
a História das Civilizações. A saber: O Egito por conta da antiga civilização egípcia,
considerada fundamental no processo de helenização do mundo do Oriente próximo; a
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Doutoranda no Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade de São
Paulo [email protected]
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região da África mediterrânica central, em função da presença cartaginesa e depois islâmica
e a Costa Ocidental, que aparece nas narrativas sobre as expansões marítimas e o
escravismo colonial. Existia um grande silêncio em relação aos povos de regiões como o
Nilo Meridional e o “Chifre da África”, o Saara, a África Austral e a África Oriental.
Muito conhecemos sobre as relações que se instituíram entre Europa e África a
partir das Grandes Navegações do século XV. Contudo, poucos trabalhos discutem sobre o
universo das idéias e dos processos sociais e políticos nos reinos africanos durante os
séculos XIV e XV. Propomos nestas páginas, uma brevíssima reflexão sobre a trajetória
política e cultural das regiões do Magreb e do Vale do Níger às vésperas da chegada dos
explorados europeus.
O Norte da África sempre foi a região mais estudada dado seu estreito contato com
o mundo europeu desde a Antigüidade. Diversas culturas deixariam ali suas marcas: a
presença cartaginesa, a presença romana, a presença vândala – que termina por promover
profunda fragmentação administrativa da região – a presença bizantina e, por fim a
presença muçulmana que irá se estender em direção à região da costa Ocidental e à costa
Oriental. Sobre esse tema, temos como referência, no volume III de História Geral da
África no que se refere ao lugar do Egito no mundo muçulmano, pontuando as diferentes
fases da presença islâmica na região setentrional da África; temos ainda o capítulo sobre a
África islâmica em De Maomé aos Marranos, obra em que Leon Poliakov nos apresenta o
processo de dominação e organização do poder muçulmano ao sul da Espanha – tendo
como destaque a discussão sobre a Espanha das três religiões. Outro trabalho importante
para esta discussão é Ibn Khaldun. O nascimento da História. Passado do Terceiro Mundo,
de Ives Lacoste que, em sua obra, amplia nossa visão sobre o mundo não-europeu dos
séculos XIV e XV, suas relações políticas e as ideias sobre a História.
A África e o islamismo
Como sabemos, em meados do século VII, os árabes estavam em pleno processo de
expansão, guerreando e conquistando terras em nome da religião que havia nascido com as
palavras de Maomé: o islamismo. Em 642, os árabes avançavam sobre o Egito e seguiam
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em direção à porção Oeste do Norte da África, o Magreb (Magreb em árabe significa
simplesmente Ocidente).
Conforme Joseph Ki-zerbo em seu História da África Negra, “foi um verdadeiro
furacão”. A invasão árabe no continente africano transformou completamente o perfil da
África do Norte, do Mediterrâneo até a faixa sudânica. Uma região que mantivera, até
então, estreito contato com o mundo europeu (cultural e comercialmente, desde o
florescimento do Império Egípcio, a colonização grega na Cirenaica, até o estabelecimento
das colônias romanas na África Mediterrânica) passaria agora a voltar-se – cultural e
economicamente – para o Oriente Médio; adotando dele não só os costumes e a língua, mas
também e, principalmente, a religião.
A conversão das áreas conquistadas ao islamismo não ocorria unicamente e nem
exclusivamente pela força:
“(...) muitas vezes, também a conversão foi efetivada na ausência de toda a força, quer
por marabus1isolados que não tinham outro poder senão sua fé, quer por infiltrações
lentas. Procurava-se antes de tudo ganhar a aristocracia, depois, aos poucos, ganhar a
massa camponesa” (Giordani, p. 130)
Assim, por vezes, em alguns reinos africanos, apenas o soberano e sua corte
adotavam oficialmente o islamismo, garantindo a fidelidade ao Islã; em outras ocasiões a
conversão do rei e de sua corte implicava conversão de todo o seu povo, nesse caso, para
alguns, o islamismo, adotado pelo povo, convivia com as religiões ancestrais, enquanto que
para outros, a conversão de todo o reino ao islamismo implicava a proibição dos cultos
ancestrais.
Mas nem sempre a conversão era pacífica, algumas vezes, o islamismo se impunha
pela força:
“O fanatismo e o orgulho dos conquistadores levava-os quer a desprezar os pagãos e a
deixá-los viver submissos ou escravos, quer a deixar-lhes a escolha entre a morte e a
conversão.” (Giordani, p.130)
Alguns povos resistiram mais, outros menos. Os berberes do deserto, por exemplo,
resistiram por muito tempo ao domínio territorial e cultural árabe. Na região do Axum, os
1
marabu é o nome dado ao líder espiritual islâmico.
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cristãos etíopes também resistiram, mas sem enfrentamento, uma vez que, ainda durante o
período em que se encontrava vivo, Maomé teria recebido uma carta do rei Etíope, que
reconhecia como legítima a mensagem do profeta de Alá. Contudo, após a morte de
Maomé, o Axum colocou-se contra a entrada do islamismo em seu território, que foi
poupado da guerra santa, pelo menos até o século XII, em razão da simpatia que o profeta
sentira pela mensagem do monarca axumita.
Todavia, como insistia o historiador africano de Burkina Faso, Joseph Ki-Zerbo, não
se pode acreditar de todo na intensidade da destruição causada pela chegada dos
muçulmanos à África. Segundo o historiador, os relatos de tais acontecimentos, embora
existam, não devem ser levados ‘ao pé da letra’, até mesmo porque a chegada dos
muçulmanos trouxe para a África Mediterrânica e Sudânica uma nova dinâmica comercial,
além de uma nova relação com o registro da memória e da História, que até então eram
fundamentalmente orais, e que a partir da presença dos árabes, com seus geógrafos,
historiadores e astrônomos, passaria a ser, escrito.
Os muçulmanos trouxeram consigo uma grande rede de contatos e comércio,
fazendo com que as regiões islamizadas da África passassem a fazer parte desse ‘circuito’.
Nos reinos que se convertiam ao islamismo, a fundação de cidades, como Timbucto e Gao,
na faixa do rio Níger, ou Sidjilmassa e Marrocos, no Magreb eram acompanhadas pela
construção de palácios e mesquitas. Embora possa parecer que, no processo de islamização
da África, ela teria perdido suas características culturais próprias em detrimento da religião
e da cultura islâmica, os historiadores estão de acordo ao afirmar que teria ocorrido
justamente o oposto: o que houve foi uma “africanização do islã”.
Dessa forma, se por um lado, o Egito, após a conquista territorial, vai deixando o
cristianismo copta de lado e se tornando cada vez mais islamizado, alcançando o posto de
região mais importante do mundo islâmico entre os séculos XII e XIII; regiões como a
Costa Ocidental africana e mesmo o Magreb, desenvolveriam um islamismo que conviveu
lado a lado com as tradições ancestrais, como no Songhai, onde o rei Sonni Ali era um
legítimo songhali (portanto africano), muçulmano e também um respeitado feiticeiro.
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O islamismo penetrou as regiões da África do Norte e África Mediterrânica; zona
central (entre o Senegal e o lago Chade, tomando os povos da região do rio Níger como o
povo mande e os haussá); zona litoral Oriental (Eritréia, Somália, Madagascar e Zanzibar).
Quanto à organização da religião islâmica propriamente dita, no caso africano, as
confrarias e sociedade secretas desempenharam um papel importante na organização do
islamismo. Mesmo com relação aos princípios morais, a religião de Maomé não entraria em
choque com o ethos das sociedades do Norte da África: o marabu não diferia muito da
figura do adivinho; os anjos e os djinns (intermediários entre os homens e os anjos, no
islamismo) não diferiam muito da figura dos espíritos de proteção e, mesmo a moral
muçulmana, com relação a alguns princípios adaptava-se perfeitamente aos costumes da
maioria dos povos, como por exemplo, a permissão para que o homem possuísse tantas
esposas quantas pudesse manter (tradição existente tanto no Oriente Médio muçulmana
quanto entre os povos africanos dessa região).
Um ponto característico da tradição islâmica, a peregrinação obrigatória à cidade
sagrada de Meca (onde o profeta teria ouvido o chamado de Alá), que deveria ser realizada
por todos os fiéis, pelo menos uma vez na vida, no islamismo africano teria sofrido
modificações. Por se tornar longa, perigosa e cara, a peregrinação era realizada apenas
raramente e, em geral, pelos governantes e seu séqüito. Ampliava-se o culto aos homens
santos e a visitação aos lugares pelos quais teriam passado. Outra característica marcante do
islamismo africano seriam as salmodias (cânticos dos salmos) 2 , que:
“(...) eram tidas por encantamentos mágicos, a ponto de se espalhar o hábito de trazer em
amuletos determinados versículos escritos em pergaminho. O amuleto muçulmano
fascinava não só os novos convertidos, mas também os que ainda o não estavam, e não
tardou a transformar-se em indústria do maalam, que os preparava, benzia e
vendia.” (Giordani, 170)
O reino do Mali: um reino islamizado.
2
Note-se que esses eram os mesmos amuletos utilizados aqui pelos escravizados de religião muçulmana. Em
geral, as regiões islamizadas não eram alvo de apresamento de escravos, mas por vezes, homens negros
muçulmanos eram capturados ou mesmo julgados e condenados à escravidão. No Brasil, esses escravizados,
praticantes do islamismo eram chamados de MALÊS, e traziam consigo os amuletos descritos por Giordani.
Durante o período colonial, acreditava-se que os versos escritos no amuleto eram, de fato, encantamentos.
Durante a Revolta dos malês, na Bahia em 1835, acreditava-se que os versos nos amuletos, na verdade eram
instruções para a insurreição.
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Além da historiografia de origem árabe, outra rica fonte da história, não apenas do
Império do Mali, mas de vários outros reinos africanos, é a tradição oral. Exata e inexata,
na mesma medida que qualquer outra fonte – documental ou material – a tradição oral,
forma costumeira de preservação da história para várias sociedades africanas, é ainda a
ferramenta importante para a reconstrução desse passado.
Ocupando a região da nascente ao vértice do Rio Níger, o Império da Mali formarse-ia a partir da reação, organizada pela família Keita, contra a dominação externa sobre as
terras de seu povo, tornando-se, entre os séculos XIII e XIV, uma das grandes forças
polítco-culturais da região, como expõe Waldman em seu artigo:
“ Ocupando em seu apogeu uma vasta extensão territorial,, o Mali reunia, em seu
interior, uma multiplicidade de etnias, uma estrutura para cuja gênese e perpetuação
concorrerram formas genuinamente africanas de compreender a parceria inelutável do
Espaço para com o Tempo. Esse Império, como precedente Império de Ghana (século
IV ao XI ) e o Songhay, que o sucedeu ( século XIV ao XV), aparte a islamização dos
interstícios da sociedade tradicional, caracterizou-se por um forte substrato cultural
africano. Mantendo incólumes interferências com este aporte, constitui uma imprudência
relacionar mecanicamente o Mali ao Mundo Muçulmano.” 3
A vitória do príncipe Sundjata Keita sobre os antigos dominadores do Mali, é
uma história de reunificação do reino em torno da reunião e da formação de uma nova
aliança entre os membros da nobreza, uma vez que Sundjata era um dos filhos do rei – Nare
Keita – mas não vivia com a família real, por ter nascido fraco, de acordo com a tradição.
A saga de Sundjata é contada como História e como lenda. Na lenda malinke, Sundjata é
apresentado, como o herdeiro franzino do trono, do qual todos zombaram. Teria migrado,
ainda jovem, juntamente com a mãe e os irmãos para um pequeno reino vizinho, onde teria
sido adotado pelo rei. Lá crescera e se tornara um grande guerreiro, vivendo uma série de
aventuras que comprovariam sua coragem e sua predestinação ao reinado. Com o tempo,
mensageiros mandingas recorrem a ele, quando não mais suportavam a dominação.
Vencendo o inimigo, em 1235, Sundjata, o Mari Djata (Leão do Mali), deu início ao seu
reinado. De acordo com Boulos Jr, após liderar a vitória, Sundjata converteu-se ao
islamismo e foi proclamado mansa: título que, entre os povos islamizados equivaleria ao
de imperador. Depois, para organizar sua rede administrativa, dividiu o território do
3
Waldman, Maurício. Africanidade, Espaço e Tradição. A topologia do imaginário espacial tradicional
africano, na fala griot sobre Sundjata Keita do Mali. In http:://www.mw.pro.Br/mw/p04_03_05.pdf
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império em províncias e nomeou um governador para cada uma. Na capital, a cidade de
Niani, que ficava mais ao Sul (em direção à nascente do Níger), o imperador criou uma
corte formada por representantes das províncias e por representantes dos diferentes ofícios.
Nas estradas, construídas para facilitar o fluxo comercial, surgiram duas grandes
cidades: Djenné e Tombucto (ou Timbucto). Os Keita fizeram de Tombuctu uma cidade que
primava pelo apreço ao conhecimento, no melhor modelo das grandes cidades do mundo
árabe sunita. Um grande número de juristas, geógrafos e astrólogos, lá viviam, sendo o
comércio livreiro, um dos mais aquecidos do mundo muçulmano africano, fazendo frente
ao próprio Egito. Dos reis posteriores, contudo, o que mais chamou a atenção dos
historiadores muçulmanos, teria sido Mansa Mussa ou Kankan Mussa que, ao organizar sua
peregrinação a Meca, teria feito a mais luxuosa travessia que já se teve notícia,
presenteando a todos por onde passava, o rei teve, com essa atitude, o objetivo de mostrar
aos soberanos de todo o islã, sua riqueza e poder.
No caso da região do Songhai, (a leste do Mali) seu surgimento ocorreu, de acordo
com a tradição oral, quando um líder berbere (talvez árabe), juntamente com seus
seguidores, teria libertado os pescadores da ilha de Kukia, do domínio de um terrível
“peixe-enfeitiçado”. Os herdeiros do libertador teriam governado de aproximadamente 500
a 1009 da Era cristã, quando a capital teria sido transferida para Gao. Essa data marca não
apenas a transferência do reino, mas também a data em que o crescente contato comercial
com o comércio trans-saariano, com os domínios do Norte da África e o expansionismo
almorávida, teriam estimulado – por questões econômicas e ideológicas – a adoção do
islamismo pelo rei do Songhai. Todavia, é importante destacar que, de acordo com as
descrições de Ki-Zerbo, fica claro que o islamismo do Songhai não será nem de longe
semelhante àquele que florescia em regiões como o Magreb, o Egito e mesmo no Mali.
Segundo o autor, embora os reis, a partir do século XI adotassem o islamismo, tanto o povo
quanto os próprios reis continuariam praticando os rituais mágicos das religiões
tradicionais.
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O reino do Songhai representava assim, mais um passo do islamismo rumo à faixa
do Sudão Central (o Chade),
onde encontraríamos as terras dos haussás e o reino do
Kanem.
Durante os primeiros séculos de vida do novo reino muçulmano, ele existiu como
reino vassalo. Inicialmente do Grande reino de Ghana e, depois, do Mali, a partir de seu
período de expansão com a dinastia dos Keita; a cidade songhali de Gao passaria a pagar
tributos a esse reino, contudo, seu crescimento despertaria a cobiça dos generais malinkes,
que, na metade do século XIV, invadem Gao. Essa invasão dará início a um grande esforço
de libertação, movido pelos príncipes Suleiman e Ali Golen, que libertam a cidade e dão
início a uma nova dinastia, a dos Ali. Desses, o mais importante foi Sonni Ali, o
conquistador (1464-1493).
Rei, de família muçulmana e perito em alta magia, Sonni Ali liberta não apenas o
Songhai, definitivamente, do jugo do Mali, mas também liberta a cidade de Tombucto, que
vinha sendo administrada pelos tuaregues, anexando-a aos seus domínios.
Em seu governo, cobriu os sábios de privilégios; abriu canais, para facilitar o
transporte de homens e armas; fixou escravos em terras conquistadas para ampliar a
produção agrária e pastoril. Contudo, o início grandioso do reinado de Sonni, viu-se
comprometido, quando seu sucessor resolveu renunciar à fé islâmica. Temerosos do que
isso poderia representar militar e comercialmente, os generais resolvem agir, pois
lembremos que, mesmo dominado, o Mali era uma região fortemente islamizada, o Magreb,
os almorávidas e, nesse período, o Kanem-Bornu e mesmo a região nilótica de Dongola,
todas elas, já islamizadas, representavam forças militares aliadas e parceiros comerciais que
poderiam sentir-se inseguros com a atitude do sucessor de Sonni Ali. O general
Mohammed, apoiado pelos soldados, toma o poder, assumindo o título de Askia
Mohammed – “Mohammed, o ilegítimo”, segundo Ki-Zerbo, a tradição oral conta que era
assim que as filhas de Sonni gritavam para o general, em tom de acusação, quando ele
passava e que, apesar do tom acusativo da expressão, Mohammed teria adotado o termo
como “título”.
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Os askias foram, portanto, a dinastia nascida da tomada do poder pelas forças
militares do Songhai, com o objetivo de manter a coesão do reino, firmada sobre as bases
do islamismo. Do final do século XV à metade do XVI (1549), os askias conquistaram o
Vale do Rio Níger, do Leste Senegal à terra dos haussás, próximo ao lago Chade.
Organizavam o estado a partir de uma teia de grande número de funcionários que
tinham por função fiscalizar a produção e cobrar os impostos dos “assentados” e dos
homens livres. O estreito controle sobre as áreas conquistadas permitiu a manutenção de
mais de meio século de dominação.
Reforçando sua fidelidade ao islã, o rei empreendeu uma faustosa viagem a Meca.
Conforme Zakari Dramani Issifous, no capítulo quatro de História Geral da África, volume
III, os reis africanos, que abraçavam o islamismo, promoviam longas e ricas viagens a
Meca, que ao mesmo tempo, tinha por objetivo demonstrar o seu cumprimento aos ditames
da religião, bem como dar ao público um pouco da riqueza do reino e a generosidade de seu
soberano, pois, tradicionalmente, durante a peregrinação, concedia o imperador, ricos
presentes aos seus anfitriões. As viagens funcionavam assim como verdadeiras propagandas
institucionais. Segundo Ibn Khaldun, a de Mohammed equiparou-se a de Kankan Mussa,
do Mali.
A dominação sobre todo o vale do Níger perduraria até a metade do século XV,
quando as pressões do movimento expansionista empreendido pelo Sultão do Marrocos
puseram fim ao domínio dos askias sobre a região. É assim, enfraquecido, que o Songhai,
durante o século XVI, estabeleceria contato com o expansionismo português.
África Islâmica no séculos XIV e XV
O Magreb dos séculos XIV e XV, que nos é apresentado pelo geógrafo Ives Lacoste
é o cenário no qual a produção de Ibn Khaldun toma forma. Abu Zayd 'Abd al-Rahman ibn
Muhammad ibn Khaldun al-Hadrami, ou apenas, Ibn Khaldun, como ficou conhecido, é
considerado um precursor de várias disciplinas dos estudos sociais como
a demografia, história cultural, historiografia, filosofia da história, e sociologia; além da
economia. Ibn Khaldun é tido por muitos africanistas como uma das principais ajudas para
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a compreensão das sociedades muçulmanas na África. Sua principal obra foi Introdução à
História Universal, Muqaddimah que é a obra na qual delineou sua teoria da História. Nela
Khaldun desenvolve sua compreensão de uma história movida pelas necessidades materiais
dos indivíduos, como aponta Lacoste, bem como, define noções fundamentais para a
análise das organizações sociais, como a noção de poder.
Destacando sua metodologia de abordagem dos fenômenos históricos com o
objetivo de demonstrar a inconsistência da concepção da Europa como centro – ou
vanguarda – do pensamento científico, é possível perceber, por meio de sua narrativa que a
África Setentrional irá formar diferentes núcleos muçulmanos.
Durante a expansão muçulmana, o Magreb - região Noroeste da África, formada
pelos atuais Marrocos, Sahara Ocidental, Argélia e Tunísia (O Grande Magreb inclui
também a Mauritânia e a Líbia) - iria enfrentar além da resistência européia à expansão
islâmica, a divisão interna entre os grupos muçulmanos, o que impedia a unificação e o
fortalecimento político do novo território islâmico. Nos enclaves que bordejavam o deserto,
em território berbere, os almóadas formavam uma força que por muito tempo marcou o
Magreb. Os almóadas - crentes na unicidade de deus -, formavam uma sociedade atida a
uma vida rústica, contida e sem luxos, virtudes admiradas e assemelhada aos costumes das
sociedades berberes.
Os almóadas esperavam pelo mahdi, o guia vindo da tradição do profeta, que os
conduziria e os governaria. Nesse período o grande mahdi do Magreb xiita, foi Ibn Turmat,
que durante o século XII, reformou a política do islã magrebino insistindo na necessidade
de compreender-se as palavras do profeta, não em seu sentido literal, mas como alegorias
que deveriam ser interpretadas. A partir desse período, a unificação do Magreb – Ifrikia,
Sidijilmassa, Marrocos – sob os almóadas se consolida. A África almóada, enfrentou por
vezes o expansionismo almorávida da Espanha, todavia, floresceu como um grande centro
comercial e também cultural, até o século XIII, quando o equilíbrio entre as sociedades
nômades e as sedentárias se rompeu. Todavia, a África islâmica não se reduzia ao Magreb;
a partir do século XII, a África Setentrional teria dois grandes centros islâmicos: o Magreb,
mais isolado, de vida cultural e política, separado de Bagdá; e de outro lado, o Egito,
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fortemente ligado ao poder abássida e à cultura árabe. A partir do século XII, tendo os
sunitas como liderança e o Egito como grande centro de decisão, o poder, na África – entre
Trípoli e o Egito - centralizou-se sob o comando aiúbida (originários da região entre Síria e
Egito) a África Setentrional viu-se em meio à organização de um sistema administrativo
que tinha por objetivo: submeter os domínios da África à liderança de Bagdá; viabilizar a
unificação das alfândegas para estimular o comércio; além de manter o antigo sistema de
privilégios dos sultões para que não ocorressem revoltas. Quanto ao Magreb, suas relações
comerciais e políticas estariam muito mais associadas ao mundo africano da costa
ocidental, mantendo-se afastado das disputas comerciais e políticas que envolviam o Egito
e o restante do mundo árabe à leste.
Um grande domínio comercial se forma a partir da dominação islâmica do setentrião
africano e também do Magreb, pois aquela era uma área de confluência de várias rotas
comerciais: Da África Ocidental, vinham as caravanas pela rota dos carros, trazendo o ouro
de Gana até os domínios magrebinos; do deserto, as rotas berberes traziam as especiarias
vindas da Costa Oriental, que chegavam à cidades como Sidjilmassa e Ifrikia e de lá para o
Mediterrâneo; de Alexandria vinham produtos de todo o Oriente Médio.
Dessa forma, se a dominação muçulmana se fez sentir no Magreb, principalmente a
partir da presença moura, dos almóadas, na África mediterrânica seria a dinastia aiúbida, de
Saladino, a ascensão dos mamelucos turcos, com Baybars, que formariam estados
fortemente organizados em torno de uma elite militar que garantia o poder dos sultões,
emires e califas.
Contudo, a presença muçulmana não se fez sentir somente na conquista territorial,
mas também no campo das ciências. No caso da História, muito do que se tem
conhecimento foi registrado por historiadores e viajantes muçulmanos, que a partir do que
ouviam, e muitas vezes por convite do próprio sultão ou emir, registravam a história da
África e dos muçulmanos na África.
Ibn khaldun (século XIV), faria parte desta tradição. Antes dele, outros como Ibn
Fadl, que, no século XIII, durante o sultanato de Baybars no Cairo, redigiu a Enciclopédia
Geográfica, cuja parte referente à África corresponde hoje a um precioso documento; ou
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Ibn al-Zahir e Ibn al-Furat, autores de biografias e enciclopédias que relataram as relações
entre os reinos muçulmanos da África e o mundo muçulmano do Oriente Médio.
Praticamente tudo o que se sabe, não somente sobre o Magreb, mas sobre a África
islâmica até o século XIV, foi coletado e transcrito por Ibn Khaldun. O que faz seus relatos
serem tão especiais é a sua forma de abordar a História das sociedades.
Para ele, a região teria como principal movimento o embate entre nômades e
sedentários, em sua História dos Berberes, ao contrário da forma de interpretação histórica
do período que, tanto para muçulmanos quanto para europeus trazia uma leitura religiosa da
História – os fatos como produto dos desígnios de Deus e os reinos como expressão do
poder divino – em Ibn Khaldun, conforme Ives Lacoste, encontramos a apresentação do
homem como resultado de seu meio, e as sociedades, como fruto do processo de
amadurecimento de suas heranças culturais.
A apropriação desta bagagem cultural pelos indivíduos significaria o grau de
desenvolvimento da asabiyah, conceito que para o historiador tunisiano representaria o
grau de absorção da herança cultural e mesmo a coesão cultural de um povo. Segundo
Lacoste:
Na verdade, o método propriamente histórico de Ibn Khaldun é essencialmente empírico.
Repousa apenas na observação da ‘natureza das coisas’ e não decorre diretamente de
diferentes teorias filosóficas. É isso, precisamente, que produz essa extraordinária
modernidade da obra de Ibn Khaldun. Deixando de lado os modos de proceder da
Escolástica, baseia seus raciocínios em suas próprias observações e em informações
cuidadosamente verificadas. (LACOSTE, 1991, p. 204)
A leitura materialista de Khaldun, como a define Lacoste, além de nos possibilitar a
compreensão das relações de dominação e poder do período de século XIV na África
demonstra-nos, como afirma o geógrafo, que a primazia do pensamento científico,
desprovido de intervenções de causas divinas, não se encontra somente na Europa e não
estaria associada, necessariamente a uma visão burguesa do mundo, mas também
despontara na África, em razão de um olhar que tencionava, como colocava o próprio
Khaldun, encontrar a “verdade” sobre os fatos.
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Referências
BINA, Gabriel Gonzaga. O atabaque na igreja. Mogi das Cruzes: Editora e Gráfica
Brasil, 2002.
FASI, Mohammed El. (Org). História Geral da África. v. III. São Paulo: Ática/UNESCO,
1988.
GIORDANI, Mário Curtis. História da África. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Lisboa: Publicações Europa-América,
1972.
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Fato&Versões • Uberlândia • V. 4, N. 8 • 2012 • ISSN 1983-1293!
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