A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais State crisis: a social rights perspective Adriano Tacca Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Bacharel em Direito e especialista em Direito Processual pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Formação para docência no ensino superior pela Faculdade da Serra Gaúcha. Coordenador de pós-graduação em Direito Empresarial e professor titular do curso de Direito e Administração na Faculdade da Serra Gaúcha desde 2005. Advogado. [email protected] Deivis Cassiano Philereno Doutor em Desenvolvimento Regional pela Unisc. Mestre em Economia do Desenvolvimento pela PUC-RS. Especialista em Gestão Estratégica da Contabilidade pela Faccat. Bacharel em Administração pela Faccat. Graduando em Direito (FSG). Professor no curso da pós-graduação na Faculdade da Serra Gaúcha (FSG). [email protected] Fábio Beltrami Doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Graduação em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Pós-graduação em Direito Empresarial pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Mestrado em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul. Advogado e professor universitário no Centro de Ensino Superior Cenecista de Farroupilha (CNEC) e na Faculdade da Serra Gaúcha (FSG). [email protected] Resumo O Estado, que é a mais importante e a mais característica das instituições modernas desde o século XVII, está em crise, e ela pode afetar sua própria formulação como instituição moderna (MORAIS, Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 55 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami 2011). Diante dessa constatação, o presente estudo busca, além de conceituar o Estado, analisar sua ascensão, sua evolução e o declínio dos modelos que surgiram no decorrer de sua história. Para isso, o objetivo geral é analisar a perspectiva dos direitos sociais a partir de sua crise. Autores como Van Creveld (2004), Maia (2011), Morais (2011) e outros contribuíram para que houvesse uma melhor compreensão acerca do tema. Como procedimento metodológico utilizou-se a pesquisa bibliográfica e descritiva. No decorrer do estudo, pode-se confirmar a existência da crise e sua fragilidade em garantir o mínimo necessário para a sobrevivência da população. Palavras-chave: estado; crise do estado; direitos sociais. Abstract The State, which is the most important and characteristic feature of modern institutions since the seventeenth century, is in crisis, which may affect its own formulation as a modern institution (MORAES, 2011). Thus, besides conceptualizing the State, the present study sought to analyze the rise, evolution, and decline of the models that have arisen during the course of the State’s history. Thus, the general objective of this study was to analyze social rights in the perspective of its crisis. Authors such as Van Creveld (2004), Maia (2011), Mitchell (2011), and others have contributed to a better understanding of the subject. The study was based on literature review and descriptive research and it confirmed the existence of a State crisis and its fragility in ensuring the minimum necessary for the survival of the population. Keywords: state; State crisis; social rights. Introdução No tema proposto, que, por seu próprio composto reflexivo, intenta mais provocar questionamentos do que apresentar soluções, o que se busca, primeiramente, é analisar a crise do Estado. O problema central a ser discutido remete ao seguinte questionamento: qual a perspectiva dos direitos sociais tendo em vista a crise do Estado? Para isso, tem-se como objetivo retomar um debate para o presente/futuro da relação en56 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais tre os direitos sociais e o Estado. A hipótese arquitetada oferece, desde elementos históricos que retratam seu surgimento e sua modificação, até a apreciação da crise que este vivencia e os efeitos dela oriundos. Como método de efetivação da pesquisa, utilizou-se o estudo bibliográfico, pois este favorece a compreensão, bem como a identificação e a análise do tema central, tendo em vista a abrangência e intensidade na articulação dos temas subjacentes e do propósito final do estudo. Não se descarta a percepção das limitações que este tipo de investigação inflige, principalmente, com referência a dados secundários, sendo que há possibilidade de que, nesta configuração, exista uma disposição fora de sua adequação. A abordagem do tema inicia-se por seu apanhado histórico/conceitual e as transformações ocorridas no decorrer de sua historicidade. Em seguida, a abordagem recai em demonstrar/responder ao questionamento: o Estado está em crise? Nesse ínterim, é visível que o Estado e os seus sistemas sociais e culturais estão passando por um processo acentuado de desintegração, o que acaba por se tornar hegemônico. Por sua vez, a crise econômica fragmenta e quebra o paradigma de uma sociedade unificada, fazendo com que também o Estado fique fragmentado (CAMPILONGO, 1994). Conceito e evolução do Estado São várias as definições encontradas para Estado (VAN CREVELD, 2004, p. 1). Sabe-se que não foi Maquiavel quem cunhou o termo, mas seguramente foi pelo prestígio e divulgação obtidos em decorrência de sua obra O príncipe que a expressão impôs-se na cultura da humanidade. Nesse sentido, (MAQUIAVEL, 1513 apud BOBBIO, 1987, p. 73) assegura ser possível extrair os dizeres no início da citada obra: “Todos os Estados, todos os domínios que imperaram e imperam sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados”, o que denota que a mudança de significado do termo status – situação – para “Estado” tenha sido em decorrência do isolamento da expressão clássica status rei publicae. Ainda, segundo o aludido autor, o termo à época Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 57 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami já seria de uso corrente, pois, do contrário, Maquiavel não o teria utilizado no começo da mencionada obra. Em sua análise sobre o tema, Carnoy (1988) informa que, juntamente com o termo “Estado” vem sempre implícito o ideal de que o governo tem como fulcro servir aos interesses da maioria, embora nem sempre o faça. Assim, a concepção de que os indivíduos, de forma coletiva, devem ser capazes de determinar as leis que os governarão é tão antiga quanto a ideia de democracia. Entretanto, não foi sempre assim, e, durante muito tempo, as leis divinas foram as responsáveis por definir quem iria governá-los e como deveriam ser governados. Em decorrência dessa premissa, a aristocracia rural europeia, juntamente com a Igreja Católica, foi responsável pela imposição e, consequentemente, exigência de obediência a inúmeras leis “divinas”, as quais, além de originarem textos católicos, foram igualmente empregadas para estabelecer relações econômicas e sociais por mais de mil anos (CARNOY, 1988). Ainda segundo o autor, é impreciso datar quando, efetivamente, o sistema feudal e a legitimidade advinda de uma lei “divina” começaram a declinar. Entretanto, embora não seja possível datar precisamente o declínio do feudalismo e a origem do capitalismo, sabe-se que no período compreendido entre os séculos XVI e XVII importantes transformações ocorreram na história da Europa, muitas das quais de forma drástica, desencadeando o surgimento de novas formas de governo. Antes, porém, de a análise recair sobre o desenvolvimento histórico do Estado, é imperioso identificar suas estruturas, elementos constitutivos, funções, mecanismos, órgãos, ou seja, sua própria estrutura. Para tanto, e por questão de convenção doutrinária, a análise atualmente se apresenta bifurcada entre filosofia política e ciência política, sendo que a primeira subdivide-se em três vértices de investigação, sendo a melhor forma de governo a primeira, seguida pelo fundamento do Estado e, por fim, a essência da categoria política. Nos dizeres de Bobbio (1987), os referidos vértices sugeridos são representados no início da Idade Moderna pelas obras literárias de More (Utopia, 1516), Hobbes (Leviatã, 1651) e Maquiavel (Príncipe, 1513). No que tange à ciência política, é possível citar o princípio de verificação, ou mesmo a falsi58 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais ficação, como critério da aceitabilidade de seus resultados, o uso de técnicas que permitam visualizar os pontos fortes, ou não, do fenômeno investigado e, por fim, a abstenção de juízos de valor. Ainda sobre a temática que envolve o Estado como instituição é possível visualizar enfoques de diferentes pontos de vista, dentre eles a distinção entre a doutrina sociológica e a jurídica. A referida distinção faz-se necessária em decorrência da tecnicização do Direito Público, consequentemente do aparecimento do Estado como pessoa jurídica que dela é derivada. Para Bobbio (1987, p. 56), a necessária distinção ocorre pois: do ponto de vista jurídico – a ser deixado aos juristas que, de resto, tinham sido por séculos os principais artífices dos tratados sobre o Estado – e do ponto de vista sociológico, que deriva valer-se das contribuições dos sociólogos, dos etnólogos, dos estudiosos das várias formas de organização social; […] não podia ser percebida antes do advento da Sociologia como ciência geral que englobava a teoria do Estado. Com isso, tem-se que a visão sociológica ocupava-se com a existência objetiva e histórica natural do Estado, enquanto que a visão jurídica estava preocupada com as normas jurídicas emanadas do Estado. A teoria clássica do Estado, na acepção de Carnoy (1988, p. 22), teve origem graças à mudança de condições do poder político e econômico ocorrido na Europa no século XVII. Isso fez com que as transformações advindas do sistema feudal fossem oriundas das implicações do desenvolvimento das monarquias nacionais – centralizadas e autoritárias – demandassem mecanismos capazes de combater não só o Estado, mas também a Igreja (Estado virtual). Como consequência, diversas guerras eclodiram no final do século XVI e XVII, as quais se tornaram determinantes para o surgimento de novos conceitos de governos e como estes deveriam ser e agir. Desde então, a instituição Estado percorreu um longo caminho de mudanças, avanços e retrocessos, em um “conjunto” de inúmeros ele- Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 59 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami mentos estatais e democráticos, sociais e culturais que foram essenciais para chegar até a configuração do Estado Constitucional ocidental conhecido atualmente (HÄBERLE, 2007, p. 1-2). Por conseguinte, nos próximos tópicos, busca-se traçar um esboço de cada uma dessas etapas pelas quais o Estado percorreu e se desenvolveu. O Estado liberal Os filósofos do século XVIII elencaram os alicerces teóricos das revoluções burguesas. Assim, ao comparar a Revolução Francesa com as demais revoluções da época, percebe-se que ela esteve pautada no campo político, sendo a luta pela tomada de poder uma de suas características marcantes. Em decorrência desses fatos, as classes feudais foram sendo destruídas e um novo estado de classes foi sendo construído sem disfarce pelos fisiocratas e por Adam Smith (NUNES, 2013, p. 21). No que tange ao Estado liberal, sua origem pautou-se na história política da Inglaterra e da França no limiar do século XVIII. Sua base foi o Iluminismo e o pressuposto norteador estava embasado no fato de que o bem-estar comum seria alcançado quando o Estado interferisse o mínimo possível na vida da população. Assim sendo, o Estado liberal procurava controlar as condutas humanas para garantir a harmonia social, com base no código civil napoleônico de 1804, o qual relatava ser a liberdade um direito a fazer tudo aquilo que as leis permitissem (MAIA, 2011). Para La Bradbury (2006), os revolucionários exibiam o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, o qual expressava os desejos da burguesia. Nesse sentido, a liberdade individual era necessária para a expansão de seus empreendimentos e a obtenção de lucro; por sua vez, a igualdade “jurídica” com a aristocracia visava à abolição das discriminações existentes entre as classes sociais e, por fim, a fraternidade dos camponeses visava a que estes apoiassem a revolução e lutassem por ela. Nesse modelo, porém, o Estado não deveria interferir na economia, sendo que a lei da oferta e da procura deveria ser capaz de regular os preços e propiciar que os fazendeiros e os empresários conseguissem 60 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais produzir mais com menores preços. Dessa forma, alicerçados nos pensamentos econômicos liberais de Adam Smith e David Ricardo, a livre concorrência e a não intervenção do Estado ocasionariam a distribuição da riqueza (MAIA, 2011). Nesse sentido, quanto menos o Estado interferisse, melhor seria, pois ele era visto sob a ótica de um mal necessário, ou ainda pela expressão laissez faire (deixai fazer) (BASTOS, 2002). Por sua vez, Maia (2011, p. 34) afirma que o “Estado Liberal é a expressão do triunfo da burguesia, o que não significa que o liberalismo fosse ou se tornasse a única tendência política do mundo moderno”. Na visão de Nunes (2013, p. 37), o Estado Liberal é caracterizado na medida em que: Cada indivíduo actua com vista à realização do seu próprio interesse, mas se assim fizer, “cada indivíduo é guiado por uma mão invisível, a atingir um objetivo que ele não tinha de modo algum visado”. Prosseguindo o seu interesse particular, cada indivíduo serve ao interesse social mais eficazmente do que se tivesse realmente o objetivo de o servir […]. As leis naturais da economia, o livre jogo das forças do mercado encarregar-se-iam de fazer convergir espontanea e automaticamente a actuação de todos na realização da racionalidade económica, da eficiência e do equilíbrio econômico. Qualquer intervenção estranha só poderia ser fonte de perturbação e de desperdício. Porém, apesar das forças econômicas, o Estado Liberal não conseguiu atingir o bem-estar das classes trabalhadoras, sendo que o Estado deveria intervir “para suprir as omissões e coibir os abusos e para empreender objetivos não atingíveis pela livre iniciativa” (BASTOS, 2002, p. 213). Ainda, para o referido autor, este modelo de Estado é considerado o melhor modelo para coibir a presença da estatização, mas, por outro lado, é considerado o mais favorável ao processo de liberdade, de livre expressão de pensamentos, de locomoção, de associação e de propriedade. Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 61 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami Isso porque o Estado não interfere na vida de seus cidadãos, a não ser em determinados limites, sendo estes o oferecimento da previdência social, assistência social, educação, saúde e desporto. O Estado Liberal adota garantias individuais e normas de conduta intersubjetiva, mas, em contraponto, é indiferente aos problemas sociais e econômicos, sendo que a “questão social é uma questão para a polícia e não para políticas” (MAIA, 2011, p. 35). Seguindo a historicidade do Estado, nasce o modelo socialista, no qual as primeiras manifestações puderam ser assinaladas imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, período esse marcado por uma profunda crise econômica e também pela subversão do Estado de direito liberal e dos princípios de democracia. O Estado social Assim, tem-se que se a velha tese liberal de que a economia e a sociedade fossem deixadas e guiadas pela mão invisível do mercado, este proporcionaria a todos os indivíduos as melhores condições de vida, tese essa que não se confirmou e, por conseguinte, o pressuposto liberal falhou. Como forma de denunciar o excesso de conversão adotado pelo modelo liberal, no século XIX surge o modelo mecanicista, idealizado por Karl Marx, que buscou romper com o modelo liberal e orgânico de Hegel, o qual foi chamado de modelo socialista. O Estado, na visão de Marx, é desenvolvido a partir da divisão social e do trabalho, sendo este reflexo da base econômica da sociedade. Isso quer dizer que o Estado vai formar-se, ajustar-se ou reajustar-se, de acordo com os interesses da classe dominante. Com isso, é possível conseguir manter o domínio político e econômico, evitando, assim, de maneira anônima e impessoal, que as leis privilegiem determinada classe social (NUNES, 2013, p. 53-56). Na percepção de Marx (MAIA, 2011, p. 35), não deveria haver separação entre Estado e sociedade civil, pois “as formas sociais e jurídicas decorrem das condições materiais de vida (materialismo)”. Ainda na concepção do referido autor, a produção e a circulação de bens são 62 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais as bases do modelo econômico e todas as demais formas sociais e jurídicas são oriundas dessa infraestrutura. Entretanto, a evolução desencadeada pelo capitalismo veio desfazer o mito de que a sociedade civil era capaz de garantir a ordem e justiça social, e a economia passou a ser para o Estado e para os cidadãos um dado da ordem natural, tornando-se num objeto suscetível de conformação pelas políticas públicas. Assim, Nunes (2013, p. 57) afirma que: o estado social veio, justamente, traduzir e assumir a necessidade de considerar a economia dentro da esfera da política, pondo termo ao mito da economia separada da política (separada do estado). A economia passou a considerar-se como um problema político e o estado capitalista assumiu-se como estado económico, cuja principal função é a de proporcionar as condições de funcionamento de uma economia bem-sucedida. Por sua vez, Marx e Engels relatam que o Estado foi uma sequência do desenvolvimento econômico no capitalismo. Para Marx (1982), a força do capitalismo aconteceu pelas forças da burguesia em prol das resistências aristocráticas, buscando conduzir ao poder a nova classe dominante. Por sua vez, Gurgel e Justen afirmam que a expansão da burguesia ocorreu “a partir da extração de valor, da conversão desse valor em dinheiro, do uso desse dinheiro para a criação e recriação dessas condições, que a levará ao poder”. Ainda na concepção dos referidos autores, esta evolução da burguesia “é antes de tudo, antes da soberania política, inclusive, a revolução do capital, a revolução econômica, da propriedade privada, da mercadoria, do assalariamento, da mais-valia, do lucro, da acumulação e da submissão da ordem feudal à nova ordem do capital” (GURGEL; JUSTEN, 2011, p. 1-2). Assim, na visão de Gurgel e Justen (2011, p. 3), “o Estado burguês não constrói; seu papel não é edificar, mas calcar, despedaçar, despojar, rasgar […] a burguesia, não. A burguesia constrói independentemente do Estado”. O Estado ,então, parece ser um realizador dos interesses Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 63 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami gerais da sociedade, quando na verdade ele preserva os interesses da classe dominante de forma impessoal e anônima. Dessa perspectiva, e com vistas a responder a esses novos questionamentos que emergem do quadro da democracia, o Estado Social apresenta-se como um Estado integrador; assim, seu objetivo é regular os distúrbios que ocorrem no sistema (NUNES, 2013, p. 58). Adentrando na discussão acerca do tema, Loureiro (2010, p. 73) atesta que o Estado Social é aquele que, sem prejuízo de seu papel na economia, assume os deveres de garantidor das condições mínimas para que a sociedade viva com dignidade. “O Estado Social busca assegurar aos cidadãos os direitos mínimos necessários a uma existência digna, situa-se no plano do ser, possui conteúdo econômico e social e busca melhorar as condições de vida do cidadão” (CORREIA, 2010, p. 31). Ainda na concepção da referida autora, cabe ao Estado garantir direitos básicos como: trabalho, saúde, educação, moradia, entre outros. Esses direitos sociais são conhecidos também como direitos de segunda geração, o que garante aos economicamente fracos proteção legal em suas obrigações laborativas. Desse modo, o Estado Democrático de Direito busca regular o exercício democrático e tutela, além dos direitos individuais, os coletivos comuns, bem como os direitos difusos de toda a espécie humana (CORREIA, 2010). Entretanto, no início da década de 1970, as economias capitalistas geraram um fenômeno novo. Era visível o aumento dos preços e do nível de desemprego, o que desencadeou um período de estagnação. Nesse período, os EUA adotaram o câmbio flutuante, o que acarretou um ponto de viragem a favor das correntes neoliberais. O Estado neoliberal As concepções do Estado Neoliberal em geral diferem das propostas de Keynes, principalmente no que tange ao papel do Estado perante a economia e a sociedade (NUNES, 2013, p. 174). O referido Estado é oriundo da crise fiscal e da falta de legitimação e governabilidade que passava o Estado do Bem-Estar Social (Walfare State). Em 64 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais decorrência disso, o neoliberalismo surge com a missão de desonerar este de uma série de atividades sociais. Como dito, esse modelo de Estado surgiu na década de 1970, tendo como berço os Estados Unidos e a Inglaterra. Seu formato era mais radical do que o Estado Liberal, do século XIX, e seu novo modelo buscava a redução de seu tamanho e de suas funções sociais com vistas a evitar que ficasse fragilizado, negando, assim, sua capacidade de ação. Ao analisar esse modelo, Bastos (2002, p. 218) afirma que “ao contrário do que fazia o Estado do Bem-Estar Social que tudo prometia e nada fazia, o Estado Neoliberal nada promete, no entanto, parece cumprir tudo”. Dessa forma, o surgimento do Estado Neoliberal ocorreu pelas hipossuficiências do Estado do Bem-Estar Social em relação à superinflação, elevado índice de déficit público, dívida interna e externa, excesso de burocracia, corrupção e desemprego. Tem-se, então, que no modelo neoliberal a expressão liberdade é empregada em relação ao comércio e à circulação ampliada de capital. Assim, o Estado não intervém na vida de seus cidadãos e sua atenção está voltada para o mercado e outras atribuições menores. Outra característica desse modelo é a busca da economia de mercados sem limites, pois o Estado Neoliberal detém atenção especial à atividade econômica em relação às sociais e políticas. Com isso, o lema do neoliberalismo consubstancia-se em “menos Estado e mais sociedade civil” (BASTOS, 2012, p. 219). Isso significa dizer que deve haver menor controle do Estado em relação ao capital e uma maior liberdade dentro da economia para as empresas privadas. O Estado da social-democracia Ao se analisar a pessoa jurídica do Estado, é importante que se faça a distinção entre sua doutrina sociológica e jurídica. O Estado é visto como um órgão de produção jurídica a partir da sua tecnicização; por outro lado, o ordenamento jurídico o coloca como uma organização social, não separando a sociedade com as relações diretas do direito. Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 65 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami Dentre as teorias sociológicas, pode-se observar a presença de duas que se contrapuseram no decorrer dos anos: a teoria marxista e a funcionalista. A teoria marxista é vista sob duas óticas, a:econômica e a superestrutura. A teoria marxista está voltada para a mudança social, enquanto que a funcionalista aborda o sistema global em seu conjunto, buscando o equilíbrio social. Sobre o tema, Höffe (2005, p. 120) relata que o “poder político emana do conjunto de membros do direito envolvidos - o– povo”. Por sua vez, “o conceito contrário a este tipo de democracia consiste no despotismo ou na tirania em sentido substancial: a opressão e exploração dos cidadãos” (HÖFFE, 2005, p. 121). Porém, o referido autor complementa ainda que a democracia sozinha não consegue garantir o direito e que a democracia garantidora de direito transforma-se no Estado de direito constitucional. Assim, o Estado não consegue garantir que não haverá abusos de poder ou casos de corrupção, tanto pessoal como de partidos ou agremiações. Para o autor, mesmo estando ciente de que: a democracia, como tal, não representa um antídoto contra toda a injustiça, o povo se deixa por mais uma autorrestrição, exercendo os poderes de forma apenas limitada. Sobretudo no âmbito do Judiciário, o Estado constitucional democrático coíbe qualquer intromissão popular. (HÖFFE, 2005, p. 128). Maia (2011, p. 37), por sua vez, salienta que a “democracia então é um princípio de orientação aos governos, não sendo exatamente um modelo de Estado. A democracia é princípio estruturante de um Estado legitimado pela participação do titular do poder na formação da vontade estatal”. No que se refere ao Estado Social, este abdica da liberdade individual em prol dos Direitos Sociais. A referida autora comenta ainda que o Estado Social pode tornar-se democrático, caso ele venha a adotar procedimentos participativos e que legitimem “a vontade do Estado e o exercício do poder” (MAIA, 2011, p. 37-38). Existem dois tipos de democracia, a fundamental e a total. No primeiro, ela é considerada legitimatória e no segundo, organizatória, não 66 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais se submetendo a princípios de direitos humanos, porém admite decisões para tudo (HÖFFE, 2005). Assim sendo, Maia (2011, p. 38) assevera que “a democracia é o ajuste político proposto quando a igualdade de condições materiais está inexoravelmente perdida pelo reconhecimento da naturalidade (no sentido contratualista) com que desenvolvemos a ideia de sentimento de apropriação individual”. O Estado do Bem-Estar Social ou Welfare State Morais (2011, p. 32) ressalta que a construção de um Estado, como o Welfare State, não é nenhuma novidade, que a transformação do Estado Mínimo para o Estado do Bem-Estar Social está ligada a um processo iniciado no século XX, porém esta construção/transformação sofre entraves em três sentidos: fiscal-financeiro, ideológico e filosófico. Ainda na concepção do referido autor, a passagem do modelo de Estado Mínimo ao feitio liberal clássico para o tipo de Estado de Bem-Estar Social impõe a reconsideração do fenômeno da soberania. Enquanto o modelo liberal incorporava uma ideia de soberania como poder incontrastável, próprio a uma sociedade de “indivíduos livres e iguais” […] o modelo adjudica a ideia de uma comunidade solidária onde ao poder público cabe a tarefa de produzir a incorporação dos grupos sociais aos benefícios da sociedade contemporânea. (MORAIS, 2011, p. 32). O Estado de Bem-Estar é uma invenção política; não é filho nem da democracia, tampouco da social-democracia, mas é certamente a melhor obra desta última. O Estado de Bem-Estar tem-se alterado ao longo do tempo e este fator ocorre em função da prevenção das patologias sociais (pobreza e desigualdade). Na concepção de Morais: o Welfare State seria aquele Estado no qual o cidadão, independente de sua situação social, tem direito a ser protegido de sua situação social, tem direito a ser pro- Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 67 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami tegido por meio de mecanismos/proteções públicas estatais, contra dependências e/ou ocorrências de curta ou longa duração, dando guarida a uma fórmula em que a questão da igualdade e do bem-estar aparecem – ou deveriam aparecer – como fundamento para a atitude interventiva do Estado. (MORAIS, 2011, p. 40). Com relação aos programas voltados ao bem-estar social, tem-se na concepção de Nogueira (2001) três ondas distintas. A primeira trata dos: a) acidentes de trabalho; b) doenças; c) invalidez; e d) velhice. A segunda, por sua vez, aborda: a) aposentadoria por tempo de serviço e pensões e b) seguro-desemprego. Por fim, na terceira onda encontram-se os benefícios familiares. Morais (2011) informa que a passagem do Estado Mínimo para o Estado de Bem-Estar Social fez com que este último passasse a assumir tarefas que estavam dispostas somente ao espaço privado. Assim, este passa a incorporar um caráter mais liberalista (tradição socialista), investindo também em setores como a construção de usina hidrelétricas, estradas, financiamento à iniciativa privada, e outros que não estavam ligados diretamente ao indivíduo. Com relação à implantação de um Estado de Bem-Estar Social, segundo Nogueira (2001), não se observou um padrão único de difusão em sua implantação, mas um processo de difusão pluralista, no qual países menos desenvolvidos (industriais e democráticos) tomaram a frente em relação a países mais desenvolvidos. Outro fator contribuinte para a disseminação do Estado de Bem-Estar Social foi a posição geográfica, em que países como a Áustria e a Bélgica serviram de modelo para países menos evoluídos em relação a esse quesito. Nesse caso, um exemplo observado foi a Suécia. Ainda na concepção de Nogueira (2001), um dos primeiro marcos do Welfare State está na introdução da seguridade social. Esse programa originou-se na Alemanha, sendo implantado posteriormente na França, na Itália e na Dinamarca; o segundo marco foi o sufrágio universal masculino, que teve seu ponto de partida na França e na Suíça e passou a representar um direito da cidadania; o terceiro está relacionado ao gasto 68 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais social público, que não deveria ser inferior a 3%; por volta de 1930, quase todos os países citados anteriormente já haviam ultrapassados os 5%. O Estado está em crise? Para Morais (2011), falar em crise na atualidade tornou-se referência. Isso porque tudo que havia de sólido em relação às características fundantes do Estado esvaeceu-se ou está por esvaecer. Assim, para o autor seria possível conferir uma crise conceitual, haja vista que ela afeta a própria formulação de Estado como instituição da modernidade, estando assentada sobre os pilares de seus próprios elementos característicos: “território, povo e poder soberano”. O poder que se conjuga reflete a ideia de absolutização e perpetuidade, em que o Estado não sofre limitações em relação à sua durabilidade, tornando-se, com isso, perpétuo; a “soberania constitui, é constitutiva e constituída pela ideia de Estado-Nação ou Estado Nacional, própria de modernidade, de regra nomeado Estado Moderno” (MORAIS, 2011, p. 25). Diante disso, percebe-se uma mudança, um descompasso entre a pretensão de um poder unitário nos centros de poder. A soberania está alicerçada nos poderes econômicos, bélicos e na agilidade de transmitir a informação em nível global, com isso edificando uma soberania pós-moderna, em que o modelo do Estado moderno seria flexível. Outro fator relevante para a soberania está relacionado ao plano externo, principalmente nas relações internacionais, em especial ao caráter independente do Estado (MORAIS, 2011, p. 27). Del Vecchio (1957, p. 411-412) afirma: “Que el Estado moderno esté em crisis, y que esta crisis se manifesté, más o menos, bajo diversas formas, em todos los países, es una verdad tan a menudo repetida, que puede llamarse un lugar común”. Por sua vez, Castoriadis (1998, p. 13-15) entende que, para compreender a crise do Estado e a timidez oriunda dos regimes ocidentais, é necessário remeter a análise a causas históricas e sociais, dentre elas a incoerência, a cegueira, a incapacidade das camadas comandantes ocidentais e de seus agentes políticos, o que por si sós não explicam, mas demonstram um processo de decomposição das sociedades ocidentais, Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 69 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami com a participação, sem distinção, de todas as classes envolvidas no processo. Morais (2011, p. 67) retoma a discussão, afirmando que “a crise estrutural está relacionada às condições, ausência delas, de e para o Estado Social, continuar mantendo e aprofundando seu processo includente”. Para o referido autor, este busca regular/garantir/promover a questão social e, assim, buscar a inserção de um modelo liberalista, no qual relaciona a “liberdade liberal à igualdade própria da tradição socialista” (MORAIS, 2011, p. 37). Tem-se, então, que, no Estado Social, a intervenção é voltada para a promoção e proteção do Bem-Estar Social, cuja finalidade é o cumprimento da função social. No entanto, a crise do Estado é demonstrada tradicionalmente como centro único e autônomo de poder, sujeito exclusivo da política, único protagonista na arena internacional e ator supremo no âmbito do espaço territorial de um determinado ente estatal nacional. Mas, pelo lado democrático da sociedade, percebe-se que não existe uniformidade entre o poder unitário e o caráter plural, o que gera dispersão entre os centros de poder (MORAIS, 2011). Nesse sentido, Nunes (2013, p. 199) afirma não haver alternativa quanto à economia social de mercado, pois independe de estarem no poder os conservadores, os socialistas, os trabalhistas ou os sociais-democratas. […] embora com algumas variantes, todos juram defender o <modelo social europeu>; todos garantem querer defender o sistema público de segurança social; todos afirmam querer salvar o sistema nacional (público) de saúde; todos prometem desenvolver o sistema público de ensino. Mas todos trabalham em sentido contrário, embora com métodos e com eficácia diferentes. Conforme assevera Morais (2011, p. 42), o Estado Social é caracterizado por “crises, marchas e contramarchas, avanços e recuos, composições e rupturas”. Porém, sua crise fiscal-financeira é a responsável por quase todas as crises do Estado Social, “fragilizando suas estruturas 70 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais de políticas públicas de caráter social […] e de algumas que sustentam a necessidade de um arranjo sustentável das estruturas sociais ante seus pressupostos econômicos” (MORAIS, 2011, p. 43). Por outro viés, a crise constitucional é considerada uma estratégia de racionalização do poder e de suas relações entre este e a sociedade civil. A Constituição sempre esteve relacionada aos jogos de poder e tensões jurídico-políticas, sujeitando-se às fragilizações do que ela mesma constitui, e está inserida num processo de desconstitucionalização promovido pelo dito neoliberalismo. A crise funcional, por sua vez, trata da tripartite (Legislativo, Executivo e Judiciário) em que esta é fortalecida pela perda da centralidade e exclusividade do Estado, no qual se constata sua fragilização em relação a outros setores (semipúblicos, privados, marginais, nacionais, locais, regionais, internacionais, supranacionais). Dessa forma, o Estado fragilizado somente pode manter-se em dois fatores: a) capacidade de decidir e impor suas decisões, voltando-se para os cuidados das despesas sociais e produtivas; e b) ampliação das parcelas produtivas em relação à própria economia capitalista (novos produtos, tecnologias e práticas socioeconômicas) (MORAIS, 2011, p. 43). Sobre o tema, Castoriadis (1998) assegura que o fato de as sociedades ocidentais ainda funcionarem com certeza não se deve ao esforço de seus dirigentes, mas, sim, à extraordinária flexibilidade, adaptabilidade e capacidade de renovação das instituições capitalistas e liberais, a que se soma a acumulação não apenas de riquezas, mas também de enormes reservas de toda espécie. Por fim, é possível extrair que na crise política há uma exclusão do cidadão comum, o que torna o instrumento político incapaz de responder aos seus anseios, pretensões, intenções e outros elementos, o que acaba se tornando uma tentativa de “fantochização” da democracia. Portanto, a efetivação da democracia representativa está corrompida pelo enfraquecimento do espaço público da política e de sua “economicização” em contexto global. O processo de desidentificação de candidaturas acaba conduzindo os eleitores a um processo de apatia política (MORAIS, 2011). Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 71 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami Em suma, evidencia-se que o Estado está em crise, assim sendo, é obrigado a redefinir seu papel, haja vista que problemas sociais agravam-se cada vez mais, aumentando, com isso, a desigualdade. Assim, demonstram-se os efeitos desta no que tange aos direitos sociais e um panorama das suas perspectivas. Análise e perspectivas dos direitos sociais diante da crise do Estado A seara dos direitos sociais demanda recursos dos governos, necessários à sua concretização. Isso, consequentemente, gera pressões ideológicas no poder político, fazendo com que as políticas determinantes almejem chegar o mais próximo possível do ideal de uma sociedade livre, justa e solidária (ALMEIDA, 2007). Sobre o tema, Comparato (2010, p. 77) ensina que os direitos sociais são realizados “pela execução de políticas públicas, destinadas a garantir o amparo social aos mais fracos e mais pobres, ou seja, aqueles que não dispõem de recursos próprios para viver dignamente”. Na visão de Pinheiro, os direitos fundamentais sociais têm como importante função a busca pela efetiva fruição do direito de liberdade dos indivíduos, pois de […] nada adiantaria a garantia de liberdade se o indivíduo não dispusesse de condições materiais mínimas que assegurassem a sua existência com dignidade. (2008, p. 62). Por sua vez, Pereira (1998, p. 60) afirma que a função do Estado são “aquelas modernas funções do Estado capitalista – imbricado à sociedade – de produzir, instituir e distribuir bens e serviços sociais categorizados como direitos de cidadania”. Ao analisar a temática, Kerstenetzky (2012) enfatiza que há mais de trinta anos se convive com o fantasma da crise do Estado do Bem-estar Social. Nesse viés, afirma ser possível observar que para além da difusão global de sistemas de proteção social, que ocorre justamente no 72 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais período de “crise” ou “retração” do Welfare State, as transformações recentes parecem indicar que o Welfare State tradicional, centrado na seguridade, estaria se adaptando para responder aos novos riscos sociais. Isso porque Nesse processo estaria havendo certo trade off entre aprofundamento vertical e expansão horizontal das titularidades para atender a uma clientela crescente e individualizada (uma ‘remercantilização’ relativa), e um aumento na penetração do setor privado publicamente incentivado (privatização) – o que veremos a seguir. Em paralelo, outras áreas de intervenção pública não seguridade estariam se expandindo, especialmente serviços sociais e políticas ativas de mercado de trabalho. (KERSTENETZKY, 2012, p. 79). Já sob a ótica da efetividade, as esperadas reduções das desigualdades na distribuição de renda disponível, não tanto dos níveis de pobreza absoluta, seguem sendo observadas. Entretanto, uma dúvida paira sobre essas mudanças: estaria o Welfare State, assim reestruturado, reduzindo menos a desigualdade e a pobreza do que se poderia esperar? Ou seja, que há uma redução real não parece haver dúvida, mas será que a nova configuração diminui o potencial de redução de desigualdade dos recursos redistribuídos pelo Welfare State? Há certa proeminência disso, pois o que se vislumbra nos países menos desenvolvidos é uma difusão de institutos fomentadores do Bem-Estar Social e esses em número compatível com a onda ocorrida na Europa e na América do Norte. Assim, o período contemporâneo deve ser visto como uma nova fase do Estado de Bem-Estar Social, no qual transformações quantitativas ocorreram e no qual se apresenta uma nova redivisão público-privada (KERSTENETZKY, 2012, p. 79). Num contraponto, Nunes (2013) afirma que o clima de crise permanente faz repassar a ideia de que é preciso diminuir o custo do Estado – custo esse que desponta nas despesas com saúde, educação e segurança social –, assim são realizadas privatizações para diminuir Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 73 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami seu peso na economia. Além disso, é preciso que a população enfrente sacrifícios – especialmente os trabalhadores –, pois seus benefícios tornam-nos mais caros que os trabalhadores da China e da Índia. Assim, diante da fragilização em que se encontram os trabalhadores, muitas vezes expostos a elevados níveis de desemprego, eles são forçados a aceitar leis laborais mais flexíveis que lhes são manifestamente prejudiciais, o que denota que a crise do Estado já os afeta e põe em risco as conquistas por eles alcançadas. No contexto brasileiro, Campilongo (1994, p. 15) aponta que o sistema político pátrio mostra seguidamente suas fragilidades, tornando-se visível “a incapacidade dos partidos políticos em promover agregações para uma sociedade complexa, heterogênea e marcada por clivagens econômicas, culturais e regionais tão gritantes”. Ainda, para o referido autor, o sistema econômico vive problemas de eficiência; o plano público é incapaz de implementar suas políticas públicas e, no plano privado, o chamado “ajuste estrutural”, ao invés de favorecer a indústria, a desorganiza. Quando somadas essas crises, há uma perda da racionalidade de decisão do Estado. Ainda analisando as políticas ocidentais para com o Terceiro Mundo, Castoriades (1998, p. 63) afirma ser visível uma ausência ou mesmo uma inadequação radical das políticas adotadas para com esses países. Como exemplo, cita que, no âmbito da economia, é possível constatar que o capitalismo manteve-se graças, sobretudo, ao sucesso econômico, o qual esteve aliado ao alargamento dos mercados internos em escala global. Dessa forma, a noção de Estado Social – o qual surgiu como uma reação aos exageros ocasionados pelo liberalismo, em que muitos indivíduos não tinham sua liberdade assegurada pelo texto constitucional –, aliado à incapacidade de garantir o mínimo de condições de sobrevivência, esvaneceu-se. Assim, considerando que a proteção dos direitos sociais assegurada pelo Estado depende de recursos disponíveis, torna evidente que a efetividade dos direitos sociais está em crise, ou se ainda não está em algum país, eles certamente sofrerão os efeitos da crise econômica (MAC CROIRIE, 2013). Nessa mesma linha de investigação, Sarlet (2001, p. 74 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais 6) afirma que o neoliberalismo e a globalização contribuíram para uma minimização do Estado, havendo uma desnacionalização, desestatização, desregulação e uma redução gradativa na intervenção do Estado na economia e, portanto, também contribuíram para a não efetividade desses direitos. Pinheiro (2008, p. 65) vai além, relatando que “uma crise econômica, ocorrida do outro lado do mundo, traz consequências quase que imediatas no Brasil, sendo necessária a adoção interna de algumas ações para amenizar os efeitos deletérios”, fazendo com que se torne mais evidente a dificuldade do Estado em assegurar os direitos fundamentais sociais. Dessa forma, a globalização da economia, ao lado das demais globalizações em curso, tem implicação radical no perfil do Estado contemporâneo, o que reflete de forma inexorável em sua capacidade de organização, em particular no que tange à sua capacidade decisória. Essa fragilidade estrutural, sobretudo em relação à questão social, é responsável por desencadear uma crise profunda (MORAIS, 2011, p. 105). Como forma de esconder as verdadeiras causas dessa crise do capital, opta-se por castigar os países menos favorecidos e, assim, “convencê-los que a ‘cura’ tinha de passar por um calvário de sacrifícios” (NUNES, 2013, p. 405). Para Pinheiro (2008, p. 67), esse contexto de crise é o responsável por uma exclusão social seguida de uma marginalização dos cidadãos (2008, p. 62). Em suma, a crise do Estado tem influência sobre os direitos sociais. Nesse contexto, extrapola a questão da ausência de recursos financeiros para a implementação das políticas públicas almejadas pelos direitos sociais, indo de encontro ao indispensável rearranjo das relações intersubjetivas que vai além do consenso democrático das regras que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos, mas que transmita a ideia de um viver comunitário, em que os interesses individuais sejam indissociáveis dos interesses de toda a coletividade. Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 75 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami Considerações finais Após a análise sob o prisma bibliográfico, é possível assegurar que o Estado está em crise e esta se apresenta sob diversas facetas. Dentre elas, salienta-se a conceitual, que afeta a própria formulação do Estado como instituição da modernidade (MORAIS, 2011, p 27), e a funcional do Estado, que é evidenciada pela fragilização do público diante do setor privado. Por fim, refere-se à crise política que ocasiona uma exclusão do cidadão comum do sistema, tornando-o, por consequência, um instrumento incapaz de responder aos anseios da população (MORAIS, 2011). Com base nisso, observa-se a incapacidade das classes dominantes em gerenciar o Estado, o que conduz com sua cedência à economia social de mercado (CASTORIADIS, 1998). Em suma, foram analisadas as perspectivas dos direitos sociais diante dessa crise. Sob essa temática não houve unanimidade dos doutrinadores pesquisados, haja vista a divergência de seus efeitos no que tange aos direitos sociais, a ponto de afirmarem não haver prejuízos relevantes nessa seara (KERSTENETZKY, 2012, p. 68-88). Sobre este aspecto não há concordância, pois está evidente o clima de insegurança da população, originado pela crise, o que acaba ocasionando o esvaziamento dos direitos sociais. Em decorrência disso, percebe-se a busca do equilíbrio econômico-financeiro que ocorre a custo do trabalhado competitivo (NUNES, 2013). Por fim, no contexto pátrio não é diferente, pois se evidenciou que a crise do Estado fragiliza o sistema político/estatal, o que, por consequência, remete à falência deste e demonstra ser ele ineficiente em conseguir garantir o mínimo indispensável de condições de sobrevivência à grande parcela da população brasileira. Referências ALMEIDA, D. C. A fundamentalidade dos direitos sociais no estado democrático de direito. Revista Crítica de Ciencias Sociales y Jurídicas, v. 15, 2007. Disponível em: <http://pendientedemigracion.ucm.es/info/nomadas/15/ dcalmeida.pdf>. Acesso em: 16 set. 2014. 76 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 A crise do Estado: perspectiva em face dos direitos sociais BASTOS, C. R. Curso de teoria do estado e ciência política. 5. ed. atual. e ampl. São Paulo: Celso Bastos, 2002. BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. CAMPILONGO, C. F. A crise do Estado, mudança social e transformação do direito no Brasil. São Paulo em Perspectiva, v. 8, n. 2, p. 53-68, 1994. CARNOY, M. Estado e teoria política. 2. ed. Campinas: Papirus, 1988. CASTORIADIS, C. A ascensão da insignificância. São Paulo: Paz e Terra, 1998. COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. CORREIA, E. A. A efetividade dos incentivos fiscais ambientais por meio de políticas públicas para a redução das desigualdades regionais. 2010. 135 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Marília, Marília, São Paulo. DALLARI, D. A. Elementos da teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2001. DEL VECCHIO, J. Persona, Estado y Derecho. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1957. GUERGEL, C; JUSTEN, A. Marxismo, Estado e políticas públicas. Comunicação & Política, v. 29, n. 3, set.-dez. 2011. HÄBERLE, P. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. HÖFFE, O. A democracia no mundo de hoje. São Paulo: Martins Fontes, 2005. KERSTENETZKY, C. L. O estado do bem-estar social na idade da razão. A reinvenção do Estado Social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Campus, 2012. LA BRADBURY, L. C. S. Estados liberal, social e democrático de direito: noções, afinidades e fundamentos. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1.252, 5 dez. 2006. Disponível em: <jus.com.br/artigos/9241/estados-liberal-social-e-democratico-de-direito>. Acesso em: 15 set. 2014. LOUREIRO, J. C. Adeus ao estado social? A segurança social entre o Crocodilo da economia e a Medusa da ideologia dos “direitos adquiridos”. Coimbra: Coimbra, 2010. Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78 77 Adriano Tacca; Deivis Cassiano Philereno Fábio Beltrami MAC CROIRIE, B. Os direitos sociais em crise? In: GONÇALVES, P. et al. (Coords.). A crise e o direito público. VI Encontro de professores portugueses de direito público. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, 2013. Disponível em: <http://icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/ebook_ encontrosdp_31out2013a.pdf>. Acesso em: 22 set 2014. MAIA, G. L. Revisitando quatro categorias fundamentais: estado de direito, estado liberal, estado social e democracia. Nomos, Fortaleza, v. 31, n. 2, p. 29-41, jul. 2011. MALUF, S. Teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1999. MARX, K. Teses sobre Feuerbach. Oposição das concepções materialistas e idealistas. In: MARX, K. Obras escolhidas. Lisboa: Avante, 1982. MORAIS, J. L. B. As crises do Estado e da constituição e a transformação espaço-temporal dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. NOGUEIRA, V. M. R. Estado de bem-estar social; origens e desenvolvimento. Katálysis, n. 5, jul./dez. 2001. NUNES, A. A. O estado capitalista e as suas máscaras. Lisboa: AS, 2013. PEREIRA, Potyara A. P. A política social no contexto da seguridade social e do Welfare State. Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, n. 56, mar. 1998. PINHEIRO, M. R. A eficácia e a efetividade dos direitos sociais de caráter prestacional: em busca da superação dos obstáculos. 2008. 195 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, DF. ROESCH, S. M. A. Projetos de estágio e de pesquisa em Administração: guia para estágios, trabalhos de conclusão, dissertações e estudos de caso. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1999. SARLET, I. W. Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988. Revista Diálogos Jurídicos, Salvador, v. 1, n. 1, p. 1-46, 2001. VAN CREVELD, M. Ascensão e declínio do Estado. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Submetido em: 16-7-2015 Aceito em: 6-10-2015 78 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 55-78, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 • DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p55-78