Filosofia Politica e Sociedade Brasileira Formacao do Estado e

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FILOSOFIA POLÍTICA
E
SOCIEDADE BRASILEIRA: FORMAÇÃO
DO
ESTADO
E
CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO NACIONAL
Daniel Mascarin Pires Kumasaca 1
Osvaldo Estrela Viegaz2
RESUMO: o presente artigo visa despertar o interesse à análise sobre a formação do
Estado brasileiro e a construção do pensamento político nacional que, indubitavelmente,
são dois dos temas mais estudados e ao mesmo tempo menos compreendidos da história
do Brasil. A configuração histórica é necessária para entendermos o todo, desde os
motivos da Colonização, passando pela importância do Império como primeiro passo a
um verdadeiro Estado Brasileiro e, por fim, verificando a República em suas muitas
facetas. As manifestações ideológicas nacionais surgem nesses momentos e serão
igualmente importantes para a criticidade decorrente do estudo da história.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Política, Estado Brasileiro, Pensamento Nacional,
Abrasileiramento de Ideias.
ABSTRACT: The present article aims to arouse interest to the analysis on the formation
of the Brazilian state and the construction of national political thought that undoubtedly
are two of the most studied topics and simultaneously least understood of the history of
Brazil. The historical setting is necessary to understand the whole, since the reasons for
colonization, through the importance of the Empire as a first step to a true Brazilian
state and, finally, verifying the Republic in its many facets. National ideological
manifestations arise in these moments and will also be important due to the criticality of
the study of history.
KEYWORDS: Political Philosophy, Brazilian State, National Thought, Brazilianization
Ideas.
1
Mestrando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (Direito) pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU).
Gerente-Jurídico da Empresa Área Leilões (Vizeu Leiloeiro Oficial).
2
Licenciado em História pelas Faculdades Integradas de Guarulhos (2009). Bacharel em Direito pela
Universidade Nove de Julho (2014). Advogado em São Paulo.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Colonização Portuguesa e Política Econômica. 2. Formação
do Estado Brasileiro. 3. Construção do Pensamento Político. 4. Influências Europeias. 5.
Abrasileiramento de Ideias. 6. Considerações Finais. 7. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
A formação do Estado brasileiro e a construção do pensamento político nacional
deve ser analisado sob o prisma histórico considerando todas as nuances que
envolveram esse desenvolvimento ideológico, que compreende ainda a conjuntura
política, social e econômica do país, todas preponderantes para essa constituição.
Essa edificação paulatina iniciada na colonização e ainda em processo de
estruturação contínua sofreu inúmeros percalços neste caminho, choques que atingiram
e muitas vezes não modificaram a ideia política conservadora instituída.
Não podemos deixar de estudar como se procedeu a colonização realizada pela
então Metrópole Portuguesa na Colônia Brasileira, pois é a partir desses movimentos
iniciais que toda a formação política decorrerá, desde o ideal econômico da empresa
extrativista, passando pelo conservadorismo estatal político e culminando numa
burocratização geral que atinge todas as camadas da sociedade.
O tipo de povoamento intentado pela Coroa Portuguesa, bem como o uso de
escravos (indígenas e negros) fez da miscigenação com os europeus uma característica
do novo mundo que, somado às doutrinas europeias que procuravam terreno, mas não
encontravam, foram inseridas para satisfazer os desejos e interesses da classe
hegemônica, classe essa praticamente inalterada.
O transplante ultramarino realizado por Portugal de doutrinas acabadas e prontas
para serem colocadas em prática sofreu com a falta de interesse dos próprios colonos
portugueses, que enxergavam nestas doutrinas um obstáculo aos seus interesses. Além
disso, a própria sociedade que aqui se formava não permitia que estas ideias se
firmassem e alcançassem algum êxito.
E é dessa maneira que o Brasil Império deve ser visto, uma vez que tanto as
classes dominantes como a própria figura do Imperador (filho do Rei da antiga
Metrópole Portuguesa e, por conseguinte, herdeiro deste trono) de tudo fizeram para
permanecer no poder, alcançando sucesso considerável nesta contenda.
Esse conservadorismo deve ser tido e analisado com bastante cuidado, não
somente pelo perigo de cairmos na mesmice analítica do que é ser conservador, mas
também e principalmente pela importância deste nos acontecimentos coloniais, imperais
e republicanos, já que essas mudanças praticamente não atingiram a classe dominante
agrária, dos grandes proprietários de terras e senhores do Brasil desde sempre.
As influências do pensamento europeu esbarraram exatamente nesta parede
conservadora, quando começou a sofrer o evento do abrasileiramento, consistente na
adaptação das teorias que chegavam ao país justamente de acordo aos interesses dessa
classe, sem jamais visar interesses maiores e públicos, ficando a sociedade à margem
dessas determinações políticas.
Embora pareça um tema batido e continuamente tratado na maioria das
discussões históricas sobre o período, devemos sempre considerar novas formas de se
ver, discutir e considerar a história do Brasil em todas as suas fases de constituição,
desde o período colonial, passando pelo Império e findando na República.
A fenomenologia analítica do objeto estudado, isto é, o Estado Brasileiro em sua
essência, é o que se pretende por esse estudo, sem desconsiderar o que já foi levantado
até o momento, mas também contribuindo para a construção de uma visão crítica e
social sobre a formação do Brasil e de sua sociedade.
COLONIZAÇÃO PORTUGUESA E POLÍTICA ECONÔMICA
A expansão marítima europeia, tal qual outros fatos e acontecimentos que
movimentaram o século XV, foi preponderante para a configuração de uma nova
sociedade política e econômica, reverberando nas instâncias sociais que já se
transfiguravam durante o período denominado Idade Média.
A Península Ibérica foi a grande responsável, com Portugal e Espanha, para o
sucesso da empreitada, facilitada pela saída oceânica do Mediterrâneo e que
proporcionou o avanço da nova filosofia econômica pré-capitalista, em que foi
classificada por Karl Marx como uma espécie de capitalismo mercantil. 3
3
Neste sentido: “Quando cada indivíduo deve possuir uma determinada quantidade de terras, o simples
aumento da população constitui um obstáculo. Para que este seja superado, deverá desenvolver-se a
colonização e isto exigirá guerras de conquista. O que conduzirá à escravidão etc., à ampliação da ager
publicus e, por isto, ao advento do Patriciado que passará a representar a comunidade, etc. Assim, a
preservação da antiga comunidade implica a destruição das condições sobre as quais ela está baseada,
tornando-se o seu contrário. Suponhamos, por exemplo, que a produtividade pudesse ser aumentada sem
acréscimo territorial, por meio do desenvolvimento das forças de produção (que, no caso da agricultura,
uma atividade das mais tradicionais, são as mais lentas). Isto implicaria novos métodos e combinações de
trabalho, aumento da jornada de trabalho dedicada àà agricultura, etc., e, novamente, as velhas condições
econômicas da comunidade cessariam de atuar. O ato de reprodução, em si, muda não apenas as
condições objetivas — e.g. transformando aldeias em cidades; regiões selvagens em terras agrícolas, etc.
Este é um dos problemas encontrados por Marx quando analisa os dilemas
provenientes das formações econômicas pré-capitalistas. A falta de perspectivas sobre a
política e a produção econômica que cercava o momento da expansão marítima marca
também o avanço de um novo modelo (e por isso uma nova visão) da realidade
mundana na qual os europeus se encontravam, de modo que necessitavam de uma ação
para sair deste inatismo.
O que se procurava era uma fundamentação, um empurrão que levasse os
europeus a procurar fora da Europa a resposta para os novos movimentos econômicos,
além de conseguirem de alguma maneira driblar o domínio mouro que ainda se fazia
presente na maior parte do Mediterrâneo, embora expulsos da Península Ibérica.
A ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da
expansão comercial da Europa. Não se trata de deslocamentos de
população provocados por pressão demográfica – como fora o caso da
Grécia – ou de grandes movimentos de povos determinados pela
ruptura de um sistema cujo equilíbrio se mantivesse pela força – caso
das migrações germânicas em direção ao ocidente e ao sul da Europa.
O comércio interno europeu, em intenso crescimento a partir do
século XI, havia alcançado um elevado grau de desenvolvimento no
século XV, quando as invasões turcas começaram a criar dificuldades
crescentes às linhas orientais de abastecimento de produtos de alta
qualidade, inclusive manufaturas. O restabelecimento dessas linhas,
contornando o obstáculo otomano, constitui sem dúvida alguma a
maior realização dos europeus na segunda metade deste século. 4
Quando Portugal e Espanha iniciam o povoamento e colonização dessas novas
terras, seja nas Américas, África ou Ásia, o intuito não é em manter uma extensão de
seu território, mas sim proporcionar o acúmulo de riquezas e a produção em larga escala
dos produtos que deixavam os europeus “loucos” por conta de sua escassez,
configurando a formação econômica pré-capitalista, ou capitalismo mercantil.5
É correto afirmar que por quase toda a primeira metade do século XVI, a
Colônia Brasileira em nada interessou à Metrópole Portuguesa, sofrendo com invasões
holandesas e francesas, despendendo de trabalho e força para expulsão dos mesmos do
seu território.
— mas os produtores mudam com ele, pela emergência de novas qualidades transformando-se e
desenvolvendo-se na produção, adquirindo novas forças, novas concepções, novos modos de
relacionamento mútuo, novas necessidades e novas maneiras de falar”. (MARX, Karl. Formações
Econômicas Pré-Capitalistas. Rio de Janeiro: Editora Paz & Terra, 4ª Edição, 1985, p. 88).
4
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2012,
p. 25.
5
Neste sentido: “Os magníficos resultados financeiros da colonização agrícola do Brasil abriram
perspectivas atraentes à utilização econômica das novas terras. Sem embargo, os espanhóis continuaram
concentrados em sua tarefa de extrair metais preciosos”. (FURTADO, Celso. Ob. Cit. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 2012, p. 37)
Apesar da exploração do pau-brasil e do solo fértil para plantio, o verdadeiro
interesse português somente se manifestou quando sua vizinha ibérica encontrou os
primeiros metais preciosos na América Central, momento no qual o povoamento
brasileiro ganhou um significado.
Nos primeiros séculos após o descobrimento, o Brasil, colonizado sob
a inspiração doutrinária do mercantilismo e integrante do Império
Português, refletiu os interesses econômicos da Metrópole e, em
função deles, articulou-se. Nessa perspectiva, o Brasil-Colônia só
poderia gerar produtos tropicais que a Metrópole pudesse revender
com lucro no mercado europeu; além disso, as outras atividades
produtivas deveriam limitar-se de modo a não estabelecer
concorrência, devendo a Colônia adquirir tudo o que a Metrópole
tivesse condições de vender. Para Portugal, o Brasil deveria servir
seus interesses; existia para ele e em função dele. 6
O modelo político-econômico aqui estabelecido deveria servir Portugal. É assim
que se estabeleceu a relação desde o começo entre a Metrópole e a Colônia. O modelo
servil não se deu simplesmente na via única de produção exclusiva para exportação e
lucro à Coroa Portuguesa, como também a Metrópole aproveitava-se de sua Colônia
para revender seus produtos. De onde quer que se pense uma ação advinda de Portugal
esta visava o lucro.
Essa política econômica, por evidência, necessitou de Portugal não apenas a
instalação física de instituições capazes de manter a colônia em funcionamento, como
também o transplante ultramarino de portugueses para essas funções, bem como de
trabalhadores para os serviços pesados (na sua maioria vindos da África, inicialmente)
para substituir os indígenas que, com o passar dos tempos, se mostraram inúteis ao
trabalho forçado e foram caçados e mortos, seja em razão da “indisciplina”, seja pelas
doenças dos conquistadores europeus.
O povo-nação não surge no Brasil da evolução de formas anteriores de
sociabilidade, em que grupos humanos se estruturaram em classes
opostas, mas se conjugam para atender às suas necessidades de
sobrevivência e progresso. Surge, isto sim, da concentração de uma
força de trabalho escrava, recrutada para servir à propósitos mercantis
alheios a ela, através de processos tão violentos de ordenação e
repressão que constituíram, de fato, um continuado genocídio e um
etnocídio implacável. 7
6
WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p.
41.
7
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Editora
Companhia de Bolso, 2007, pp. 20-1.
O primeiro choque existente no território brasileiro se deu justamente entre os
indígenas e os colonizadores, discrepantes desde a forma de se vestir até os gestos, da
maneira de ver o mundo até de se comportar diante de uma visão diferente. Embora
“pacífica” de início, aos poucos esse contato se fez piorar, com a utilização dos
indígenas no trabalho forçado, contrariando as suas fundamentações sobre o mundo em
que viviam, fazendo muitos simplesmente deixarem de viver por isso. 8
A empresa portuguesa se estabeleceu no Brasil como importante centro de
produção de produtos exportáveis, se tornando também um criatório de gentes pela
miscigenação e misturas surgidas da convivência entre europeus, africanos e nativos. É
nessa sociedade que a filosofia política começa a se instalar.
Quando a Coroa Portuguesa decide por implantar no Brasil esta nova espécie
política e econômica temos que considerar dois importantes fatores que foram
essenciais para o sucesso do projeto.
Primeiramente,
devemos
considerar
que
quando
os
conquistadores
desembarcaram nas novas terras e começam a impor a sua mentalidade aos povos “nãocivilizados”, automaticamente consideramos que toda a organização social que estes
povos possuíam foi desconsiderada e destruídas (algumas dizimadas junto com os
próprios povos) para ser colocada então a organização europeia.
Mesmo com toda a influência moura pela qual a península ibérica conviveu por
longo período, tal fato mais se assemelha às ações romanas quando do império, que ao
conquistas os povos inimigos destruíam tudo que se fizesse referência aos mesmos para
impor as ideias romanas, o que é perigoso.
Quando os estados conquistados estão habituados a viver sob suas
próprias leis e em liberdade, existem três maneiras de conservá-los: a
primeira maneira é destruí-los, a outra é ir pessoalmente residir neles,
e a terceira é deixá-los viver sob suas próprias leis, impondo-lhes um
tributo e criando dentro deles um governo de poucos, que se conserve
teu amigo. 9
Segundo Nicolau Maquiavel, existem três formas de se lidar com um Estado
quando conquistado: destruí-los (o que os romanos faziam), ir habitar neles ou deixá-los
viver sob suas leis diante do pagamento de um tributo (este último que ocorria quando o
8
Neste sentido: “Com a destruição das bases da vida social indígena, a negação de todos os seus valores,
o despojo, o cativeiro, muitíssimos indígenas deitavam em suas redes e se deixavam morrer, como só eles
têm o poder de fazer. Morriam de tristeza, certos de que todo o futuro possível seria a negação mais
horrível do passado, uma vida indigna de ser vivida por gente verdadeira”. (RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit.
São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, pp. 38-9).
9
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001, p. 21.
Império Turco-Otomano dominou o Mediterrâneo, permitindo que os cristãos
continuassem com seus cultos desde que pagassem os tributos devidos).
Portugal inovou essa parte da teoria maquiavélica. Além de destruir tudo e
qualquer coisa que fizesse referência aos indígenas, desde sua sociabilidade até a sua
dignidade, os portugueses se instalaram aos poucos no território conquistado, quando
não somente impuseram a força física, mas também as de suas instituições. Mas na
realidade, conforme analisa posteriormente o próprio Maquiavel, esta é a única forma
segura de não perder o território conquistado.
Na verdade, não existe modo seguro de possuí-las exceto a ruína.
Quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver livre, e não a
destrói, será destruído por ela, porque ela sempre invocará, na
rebelião, o nome de sua liberdade e de sua antiga ordem, as quais nem
o passar do tempo nem os benefícios jamais farão esquecer. Não
importa o que se fizer ou o as precauções que se tomarem, se não se
dispersarem os habitantes, eles não esquecerão aquele nome e aquela
ordem; ao menor incidente os recordarão. [...] Ali, a recordação da
antiga liberdade não os deixa, não as pode deixar em paz e, por isso, o
meio seguro para possuí-las é ou destruí-las ou ir habitá-las. 10
Outro fator importante foi a utilização de escravos, primeiro indígenas e depois
advindos das colônias africanas. O trabalho pesado nos campos e lavouras de cana de
açúcar (e depois de café) proporcionou a produção em larga escala, através de
exaustivas horas de trabalhos forçados e o não pagamento de qualquer forma de salário.
Enquanto o Brasil produzia tudo o que se faltava na Europa, a África produzia a mão de
obra necessária para o sucesso dessa empresa, numa via em que a vida humana não
existia senão relevada à mera questão da existência. 11
Embora na Grécia a utilização de escravos estivesse diretamente ligada à
configuração política lá existente, aqui temos a utilização de mão de obra não visando o
ócio criativo, mas sim o acúmulo de riquezas. A ideia se baseia em fundamento diverso,
isto é, não ter nenhuma espécie de gastos com os trabalhadores ao mesmo tempo em
10
MAQUIAVEL, Nicolau. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001, pp. 21-2.
Sobre o uso dos nativos nos trabalhos em que os portugueses os forçavam a atuar, importante
contribuição nos traz Darcy Ribeiro: “A escravidão indígena predominou ao longo de todo o primeiro
século. Só no século XVII a escravidão negra viria a sobrepujá-la. Ainda assim, subsistiu nas áreas
pioneiras como estoque de escravos baratos utilizáveis para funções auxiliares. Nenhum colono pôs
jamais em dúvida a utilidade da mão-de-obra indígena, embora preferisse a escravatura negra para a
produção mercantil de exportação. O índio era tido, ao contrário, como um trabalhador ideal para
transportar cargas ou pessoas por terras e por águas, para o cultivo de gêneros e o preparo de alimento,
para a caça e para a pesca. Seu papel foi também preponderante nas guerras aos outros índios e aos negros
quilombolas”. (RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, p. 88).
11
que se enriquece a Metrópole Portuguesa e os proprietários das terras produzidas, sem
que com isso surgissem novos “Sócrates”, “Platões” ou “Aristóteles”.
As duas práticas unidas foram essenciais para o sucesso das empresas Ibéricas
na América, em especial da colonização mercantil portuguesa, em que pese toda a sua
luta pra se impor, com o auxílio da Igreja Católica, no novo mundo, fundamentando sua
presença e até mesmo o escravismo.
Os procedimentos fundamentais de dominação das colônias
escravistas das Américas foram: a erradicação da antiga classe
dominante local, a concessão de terras como propriedade latifundiária
aos conquistadores, a adoção de formas escravistas de conscrição da
mão-de-obra e a implantação de patriciados burocráticos,
representantes do poder real, como exatores de impostos. 12
Bom lembrar que a dominação portuguesa não se lastreou somente pela
imposição de suas ideologias em detrimento da já existente ou apenas com a utilização
de mão-de-obra escrava indígena e negra, mas de uma série de outros fatores que
auxiliaram as práticas arbitrárias ao longo de séculos.
Inclusive, os grandes latifúndios foram os responsáveis pela criação da classe
conservadora que ainda hoje influi nas políticas econômicas e sociais do país, atingindo
a formação do pensamento e a construção do Estado como fatores do seu sucesso e de
sua continuidade.
FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO
As instituições que aqui se instalaram para comandar as engrenagens do sistema
econômico tinha por base ideias políticas pautadas em anos de burocratização do
aparelho estatal português.
A bem da verdade, a organização do Estado durante o período colonial era uma
verdadeira e completa bagunça. Cargos diferentes e conflitantes entre suas funções eram
criados e colocados à disposição dos interesses da Coroa Portuguesa, sendo que estas
colisões não importavam, desde que não atingissem os ganhos.
Donatários, Governador-Geral, Ouvidor, dentre outras, são alguns dos cargos em
que pessoas de confiança da Metrópole assumiam com o intuito único de manter a
12
RIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatório – Etapas da Evolução Sociocultural. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 2000, p. 114.
empresa em funcionamento. Enquanto a produção estivesse em alta e dando o lucro
esperando, a bagunça se justificava. 13
A própria configuração jurídica existente levava a esta finalidade. As
Ordenações Portuguesas (Manuelinas, Afonsinas e Filipinas) foram por muito tempo o
único bem jurídico existente no país, permanecendo vigente até mesmo após a
Independência (1822) e a Proclamação da República (1889), o que contribuiu para o
fortalecimento das estruturas burocráticas.
No que se refere à estrutura política, registra-se a consolidação de
uma instância de poder que, além de incorporar o aparato burocrático
e profissional da administração lusitana, surgiu sem identidade
nacional, completamente desvinculada dos objetivos de sua população
de origem e da sociedade como um todo. Alheia à manifestação e à
vontade da população, a Metrópole absolutista instaurou extensões de
seu poder real na Colônia, implantando um espaço institucional que
evoluiu para a montagem de uma burocratização patrimonial
legitimada pelos donatários, senhores de escravos e proprietários de
terras. Essa estrutura política colonial incorpora o intento dos senhores
rurais sob uma administração local que se exerce pelas câmara dos
homens bons dos povo, isto é, proprietários. (grifos do original). 14
Importante contribuição nos traz Antônio Carlos Wolkmer. O aparato estatal
aqui instalado estava totalmente alheio à realidade social da Colônia, embora totalmente
condizente com o que se via na Europa e, em especial, na Metrópole Portuguesa. O
transplante ultramarino não era, assim, apenas de portugueses para habitar e ocupar os
cargos de gerência da Colônia, mas também e principalmente para instalar e manter a
mesma estrutura política de além-mar.
Apesar de estar totalmente atrelado à Metrópole, o período de Brasil Colônia é
substancial
para
compreendermos
a
formação
do
Estado
Brasileiro,
seu
desenvolvimento no Império, até alcançar a república e suas muitas fases. Em termos
claros, a designação de Estado Brasileiro deve ser considerada somente a partir de 1621,
quando de sua elevação a tal.
Isso configura, desde o início da colonização, uma combinação
estranha e atípica de relações político-econômicas marcadas, de um
lado, pela passagem de uma situação agrária semifeudal para um
13
Neste sentido: “As instâncias judiciárias das colônias eram semelhantes às da Metrópole e subordinadas
a ela. No Brasil, a organização ficou, inicialmente, a cargos dos próprios capitães donatários, que
deveriam coordenar a Justiça em suas capitanias, instituindo um Ouvidor da capitania e formando
Câmaras de Justiça locais. Em 1548 foi instituído um Governador Geral e o Ouvidor Geral como
símbolos da dominação da Metrópole. Mais de um século, porém, foi necessário para que a centralização
se tornasse eficaz”. (ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Uma Cadeira de Espinhos: O
Supremo Tribunal Federal e a política (1933-1942). Dissertação de Doutorado. São Paulo: Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), 2007, p. 39).
14
WOLKMER, Antônio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p. 43-4.
modo de produção capitalista (ora mercantil, ora industrial),
refletindo, regionalmente, as imposições econômicas das metrópoles
centrais; de outro, pela incorporação e adaptação, por parte das
instituições políticas, de diretrizes patrimonialistas e burocráticas
inerentes ao modelo conservador de administração portuguesa. 15
O aparelho estatal brasileiro atual é reflexo em muitos aspectos do que se
montou neste período. Os colonos que aqui se instalaram e posteriormente se tornaram a
elite comercial e política dominante mantiveram seu status quo enviando seus filhos
para aprender as artimanhas burocráticas na própria coroa.
Não se tratava apenas de proporcionar a melhor educação possível aos filhos
enviando-os à Universidade de Coimbra, mas sim possibilitar a continuidade das
políticas estatais. A petrificação das instituições somente beneficiaria essa classe.
A montagem desse sistema se manteve inclusive quando a Família Real (e, por
conseguinte, o Estado Português) se muda para o Brasil em 1808, fugindo das invasões
napoleônicas. Este é, inclusive, outro fato marcante para se entender corretamente a
formação do Estado Brasileiro, considerando ainda o período entre 1815 e 1822, em que
a Colônia foi elevada à categoria de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Com a independência em 1822, a estrutura montada nos termos de Colônia
propiciou a formação do Império, isto porque o país foi uma Colônia, passou por
período de Reino Unido e por longos anos de Império até a Proclamação da República,
numa condição sui generis que permaneceu no país por quase setenta anos.
Embora permanecendo a manutenção do status quo dominante, o Império marca
o início de uma verdadeira organização estatal, com funções delimitadas trazidas por
influência dos ideais da Revolução Francesa (1789), na qual a separação entre os
poderes foi a principal inovação, sendo implantada para colocar ordem na bagunça
organizacional colonial.
Mesmo com base nas Ordenações Filipinas (1604), a Constituição Imperial de
1824 traz em seu bojo inúmeros dispositivos que permitem nominar o Brasil como um
Estado. Ainda que a prática tenha se mostrado diferente da teoria, não se pode olvidar
que esta primeira tentativa de solidificação de Estado foi importante para os eventos
posteriores.
Levando em consideração a formação da colônia extrativista, a vinda da Família
Real e a constituição do Império, podemos considerar este momento como o primeiro
15
WOLKMER, Antônio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p. 45.
passo para a construção de uma verdadeira identidade nacional política autônoma, isto
porque, enquanto colônia, a organização deste aparato não se revelou importante, desde
que não afetasse a produção comercial e os interesses da Coroa.
CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO
O Império foi a primeira manifestação de Estado brasileiro. A influência dos
ideais da Revolução Francesa, porém, esbarraram em uma figura central do novo
Estado: o Imperador e todo o seu poder.
Os ideários franceses tinha por pressuposto a liberdade, igualdade e fraternidade,
tendo sido este o estandarte sustentado pelos revolucionários. Apesar de algumas
mentes que pregavam o liberalismo no Império, o que se seguiu foi a continuidade do
pensamento colonial. Em alguns pontos, a Constituição Imperial até previu certas
liberdades, mas a contradição sempre foi latente, bastando verificar no próprio âmago
da sociedade esta discrepância, em que o trabalho escravo permanecia firme e forte no
modelo de empresa cafeeira brasileira.
Mas não é apenas na letra fria da lei que os atos não compunham a liberdade que
se pregava, tudo por conta das estruturas sociais petrificadas neste sentido e do poder
soberano do Imperador. Exemplo disso é que a Assembleia Constituinte foi fechada por
Pedro I por algumas vezes para se garantir a “efetividade” da lei na melhor forma para o
povo, mas que na realidade traduzia o seu intento absolutista.
Foram seis meses de pesada desconfiança e lenta agonia, nos quais se
intensificaram as desavenças entre o Imperador e os rumos da
Constituinte, que culminaram no decreto de 12 de novembro de 1823
que dissolveu a Constituinte, com a promessa de uma nova. Foi a
única, em nossa história, dissolvida pela força militar: o cerco do Paço
da Câmara por um corpo de cavalaria liderado pelo próprio D. Pedro.
[...] No dia seguinte o Imperador expediu dois novos decretos,
justificando a dissolução e reforçando o propósito de convocar nova
Assembleia, além de criar um Conselho de Estado composto por 10
membros. O Executivo fazia jus à tradição absolutista portuguesa. D.
Pedro dirigiu, à Nação, um Manifesto no qual justificava o
fechamento da Assembleia dizendo ser ele alvo de desacatos e
calunias além do que: passou-se adiante e pretenderam se restringir
em demasia as atribuições que competem pela essência dos governos
representativos ao Chefe do Poder Executivo e que me haviam sido
conferidos pela Nação. 16
16
ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Ob. Cit.. Dissertação de Doutorado. São Paulo: Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), 2007, p. 56.
É também neste ínterim que se fortalece o imaginário de uma tradição que se
mostrará presente ao longo de toda a República, inclusive na atualidade, quando a
sociedade passa a ter com o governante um sentimento de pessoalidade, isto é, a
identificação do líder da nação com a própria nação, ainda que com interesses distintos
daqueles esperados pela sociedade.
Essa tradição que se inicia na colônia e permanece durante o Império, se
fortalece no período republicano devido os interesses cada vez mais voltados para a
solidificação do poder nas camadas que já detinham o poder. Embora sem mais a figura
do imperador, esta situação permanece centrada no presidente, sendo até mesmo um dos
motivos pelos quais o Poder Executivo é visto como o “principal” numa República em
que a paridade e a igualdade entre os Três Poderes deveriam prevalecer.
É um momento representativo e fundador de uma longa tradição
paternalista do poder que se dirige à nação com apelos
sentimentalistas, identificando os desígnios e pulsações do coração do
Imperador com os interesses do país, modelo que será seguido em
outros momentos de nossa história, como, por exemplo, no governo de
Getúlio Vargas, o pai dos pobres, o coração da pátria e aquele que
impede o funcionamento do Poder Legislativo com o golpe do Estado
Novo. 17
Na realidade, essa ação do Imperador e dos seus seguidores que o apoiavam
tinha como intuito garantir que o seu poder não sofresse nenhuma alteração e talvez até
fosse aumentado, mesmo com a Tripartição dos Poderes em Executivo (centrado na sua
figura), Legislativo e Judiciário.
Até então a ideia francesa inspirada na nova concepção trazida por Charles de
Montesquieu estava sendo colocada na letra da lei prevendo esta separação (sem aqui
trabalharmos ou considerarmos a efetividade dessa tripartição). Contudo, uma
dificuldade surgia: o que se fazer com o Imperador e, mais do que isso, com suas
vontades, pois tudo girava em torno dessa problemática.
A solução foi simples e inserida entre os Arts. 98 e 101, do Título 5º (Do
Imperador) e Capítulo I (Do Poder Moderador) da Constituição Imperial de 1824: além
de ser o chefe do Poder Executivo (Arts. 102 a 104 da mesma Carta Lei), o Imperador
concentrava também a inovação constitucional para o Estado, o Poder Moderador, que
17
ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Ob. Cit.. Dissertação de Doutorado. São Paulo: Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), 2007, pp. 54-5.
segundo as disposições estava acima dos demais poderes e da própria lei, seja
constitucional ou infra.18
O texto dos Arts. 98 e 99 revelam esta posição do Imperador de “chave de toda a
organização política, chefe supremo da Nação e responsável por manter a independência
e a harmonia dos poderes” (Art. 98), além de ser considerado “inviolável e sagrado, não
estando sujeitos à nenhuma responsabilidade” (Art. 99). 19
Isso nos faz lembrar do que dispôs Thomas Hobbes (1588-1679) sobre o Estado,
que se organiza em trono da figura central do Soberano, que sendo o representante do
povo, estava por esse motivo acima da própria lei, pois os atos do soberano não podiam
ficar restritos por meras disposições legais.
Contudo, o que mais devemos destacar desse pensamento hobbesiano é a
representatividade, isto é, por meio de um pacto social entre os cidadãos que se
organizam entre si e saem do estado de natureza (guerra), abrindo mão de suas
liberdades e permitindo que o Estado e o soberano os governe. “É como se cada um
dissesse ao outro: autorizo este homem ou esta assembleia, e entrego-lhe meu direito de
me governar, com a condição de que tu lhe abandones teu direito e autorizes da mesma
maneira todas as ações deles”. 20
Este ponto é salutar, pois no Brasil, embora o Imperador se colocasse para além
do bem e do mal com seu poder moderador, faltava-lhe o principal pressuposto para se
encaixar corretamente na doutrina de Thomas Hobbes: a representatividade, já que com
a volta da Família Real à Portugal, o caminho para a independência ficou mais fácil e
caiu no colo justamente do herdeiro do trono português, sem qualquer forma de pacto
social que o colocasse como representante.
A falta desta simples, mas muito importante característica do pensamento
hobbesiano faz todas as semelhanças existentes entre ela e o Império do Brasil (e o
Poder Moderador) caírem por terra, vez que ela se mostra essencial para sua
configuração e sem sua existência, não há que se falar no Estado Leviatã, por falta de
pressupostos ideológicos.
18
Neste sentido: “Esse quarto poder, conforme estabelecia a Carta política, pousava sobre os demais –
Executivo, Legislativo e Judicial – através do poder de prerrogativa, que permitia do imperador sancionar
resoluções, prorrogar e adiar sessões, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear e demitir livremente os
ministros, suspender os magistrados e conceder indulto e anistia.” (ARAÚJO, Rosalina Corrêa de. O
Estado e o Poder Judiciário no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2004, p. 27).
19
BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Fonte: Planalto.
20
HOBBES, Thomas. Leviatã – Ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástica e Civil. São
Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, p. 147.
Essa confusão de ideias é tipicamente brasileira, não apenas em se afirmar
legalmente algo que na prática se mostrava diferente, mas também por permanecer
determinadas instituições arcaicas do período colonial, como o escravismo, que mesmo
com as muitas leis ao longo do Século XIX que diminuíram sua incidência (Lei Eusébio
de Queirós, de 1850, a Lei do Ventre Livre, de 1871 e a Lei dos Sexagenários, de 1885),
o mesmo só foi completamente abolido com a Lei Áurea, de 1888, ou seja, um ano
antes da proclamação da república, em 1889, fatos estes que ocorreram na sua maioria
por pressões internas dos abolicionistas e ainda mais externas, sobretudo por parte da
Inglaterra e seu direito marítimo de interceptar qualquer navio destinado ao tráfico (Lei
Bill Aberdeen, de 1845).
Tanto é que o Poder Moderador foi extinto pela Constituição Republicana de
1891, ou melhor as duas palavras foram retiradas do texto legal, mas sua força se
transmutou do Imperador ao Poder Executivo, que se valeu em inúmeras vezes durante
a república de uma suposta superioridade em face dos demais poderes (embora a
Constituição previsse a harmonia e independência entre eles) e até mesmo legal, político
e social, momentos nos quais a instabilidade política se sobressaía. 21
Isso não significa, todavia, que este passo de extinção do Poder Moderador, do
fim do Império e início de uma República tenha sido marcado, tal qual em outros
exemplos nos quais ensejaram mudanças drásticas do pensamento político e social do
momento, que o mesmo tenha se realizado da mesma maneira.
É curioso notar-se que os movimentos aparentemente reformadores,
no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo: foram de
inspiração intelectual, se assim se pode dizer, tanto quanto
sentimental. Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos
durante o decurso de nossa evolução política vieram quase de
surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência, ou
hostilidade. Não emanavam de uma predisposição espiritual e emotiva
particular, de uma concepção da vida bem definida e especifica que
tivesse chegado à maturidade plena. Os campeões das novas ideias
esqueceram-se, com frequencia, de que as formas de vida nem sempre
são expressões do arbítrio pessoal, não se “fazem” ou “desfazem” por
decreto. 22
21
Neste sentido: “Apesar de não existir mais o Poder Moderador, o Presidente, herdeiro desse poder
absoluto, estava um pouquinho acima da lei e dos demais poderes: o que estava escrito no papel da nova
Constituição não era suficiente para garantir o equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário”.
(ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Ob. Cit.. Dissertação de Doutorado. São Paulo: Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), 2007, p. 79).
22
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição.
2008, p. 160.
Esta na realidade é a primeira forte ideia que devemos ter em mente. Todas as
mudanças acontecidas no Brasil foram iniciadas e terminadas de cima para baixo, em
que a sociedade como um todo apenas a recebeu e a colocou em prática conforme se
pretendia os interesses da classe dominante e não porque esta ação visasse algo que
favorecesse a sua já sofrida vida.
O imaginário sobre a aplicação real dos estandartes da Revolução Francesa
continuou presente, inclusive, mais de cem anos após a independência da colônia
brasileira da metrópole portuguesa, bem como da primeira Constituição que trouxe em
seu bojo essas ideias, quando do governo varguistas e da incessante e contínua busca
desses ideários, que permaneciam sendo proclamados na letra da lei, mas sem qualquer
evidência de consolidação prática para a sociedade.
O cotidiano da cidade continuava carregado de tensões herdadas de
um projeto republicano mal resolvido. Os ideais de “liberdade,
igualdade e fraternidade” continuavam letra morta, mas ainda assim
eram vivos nos imaginários dos ativistas da resistência. Socialistas,
anarquistas ou comunistas, cada qual à sua maneira, visualizavam um
futuro que pretendia extrapolar a ficção. 23
Essas estruturas precárias e arcaicas, aliás, ditarão o ritmo de boa parte dos
acontecimentos que se seguem durante o período republicano, alguns como
características da longa duração brasileira e outros que, ao se misturar com esses velhos
fragmentos, criam novos modelos que, no final, acabam confirmando o continuísmo
social, político e legal nacionais, como é o caso do surgimento tardio da burguesia e da
passividade da sociedade com muitos atos do governo, fazendo com que quase sempre a
classe dominante não fosse atingida em seu poder.
Dentro desse contexto social jamais se puderam desenvolver
instituições democráticas com base em formas locais de autogoverno.
As instituições republicanas, adotadas formalmente no Brasil para
justificar novas formas de exercício do poder pela classe dominante,
tiveram sempre como seus agentes junto ao povo a própria camada
proprietária. No mundo rural, a mudança de regime jamais afetou o
senhorio fazendeiro que, dirigindo a seu talante as funções de
repressão policial, as instituições da propriedade na Colônia, no
Império e na República, exerceu desde sempre um poder
hegemônico. 24
23
ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Sonhos de Fumaça – Operários, Artistas e Intelectuais no
Palco da Metrópole (1900-1940). In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.). São Paulo Metrópole das
Utopias – Histórias de Repressão e Resistência no Arquivo Deops. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 2009, p. 41.
24
RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, pp. 200-1.
A pretensa superioridade do Poder Executivo se fez presente em muitas fases: a
República das Espadas (1889-1894), a Primeira República (1894-1930), marcada por
constantes estados de sítio e arbitrariedades; a Ditadura de Getúlio Vargas (1930-1945)
e seus três governos distintos e contínuos (Provisório, Constitucional e Estado Novo)
com os muitos mandos e desmandos decorrentes de inúmeros decretos-leis; durante o
primeiro verdadeiro período republicano (1945-1964), em que a sociedade teve de se
preocupar com golpes de estado, até o dia que culminou na mácula mais negra da
história recente do país, a Ditadura Militar (1964-1985).
Com a supressão do tráfico negreiro dera-se, em verdade, o primeiro
passo para a abolição de barreiras ao triunfo decisivo dos mercadores
e especuladores urbanos [...] Como esperar transformações profundas
em país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação
que se pretendia ultrapassar? Enquanto perdurassem intatos e, apesar
de tudo, poderosos os padrões econômicos e sociais herdados da era
colonial e expressos principalmente na grande lavoura servida pelo
braço escravo, as transformações mais ousadas teriam de ser
superficiais e artificiosas. 25
Não obstante, a República que se instalou no país em momento algum buscou
zelar pelos ideários contidos no liberalismo que ainda encontrava barreiras praticamente
intransponíveis no nível cultural, político, social e até mesmo econômico, impedindo
qualquer avanço no sentido de “evolução” política.
A pretensa democracia, tal qual a República, teve seu início não no âmago da
sociedade, como em toda e qualquer Revolução que mostrou ser esse o caminho para a
verdadeira reestruturação.
A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido.
Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodála, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos
privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da
burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar a
situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa,
alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram
exaltados nos livros e discursos. 26
As mudanças no Brasil serem (e ainda hoje) são colocadas, impostas, de cima
para baixo, fazendo com que quaisquer transformações não sejam radicais, pelo
contrário, pois lastreadas pelo ideário da imutabilidade conservadora, ocorrendo
justamente para que possam se manter nesta posição, ou seja, concedem determinados
25
26
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 78.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 160.
direitos e anseios à sociedade para não verem essas se voltando contra aqueles que estao
no poder.
Se analisarmos bem o que se seguiu após o fim do Regime Militar verificaremos
que, em muitos aspectos, a sociedade brasileira permanece praticamente imutável, com
alguns poucos lampejos de sabedoria que tem como fito sair desses períodos sombrios.
Seja as práticas das classes dominantes para a manutenção do seu status, seja a
passividade da sociedade e a “compreensão” para muitos atos do Estado, visando
interesses próprios, a atualidade não se mostra totalmente diferente em muitos aspectos,
sobretudo as estruturas de longa duração que se sobrepõem aos de curta duração, como
é o caso de manifestações e reivindicações, que logo desaparecem.
A auto-crítica é necessária, pois somente assim poderemos compreender o todo
da formação do Estado Brasileiro e da construção do pensamento político, com as
influências e o encaixe das ideias que melhor abarcaram (e abarcam) os interesses
daqueles que já se encontram no poder.
INFLUÊNCIAS EUROPEIAS
Conforme comentado anteriormente o Estado brasileiro foi sofrendo influências
inúmeras ao longo de sua história, passando por diversos estágios e muitas constituições
(no sentido aristotélico do termo, não apenas o usual para Carta Magna).
A confluência de ideias diversas é marcante devido à grande miscigenação e
misturas advindas dos povos europeus e africanos que aqui se instalaram e em menor
escala dos indígenas, em que todos juntos neste imenso criatório de gentes diferentes
ajudaram na construção do país e das ideias estatais que se prevaleceram em detrimento
de outras ou mesmo se sobrepuseram a elas, o que com o tempo poderá também ser
visto na própria sociedade, estratificada e voltada para interesses exteriores aos dos
trabalhadores (escravos ou não).
A estratificação social gerada historicamente tem também como
característica a racionalidade resultante de sua montagem como
negócio que a uns privilegia e enobrece, fazendo-os donos da vida, e
aos demais subjuga e degrada, como objeto de enriquecimento alheio.
Esse caráter intencional do empreendimento faz do Brasil, ainda hoje,
menos uma sociedade do que uma feitoria, porque não estrutura a
população para o preenchimento de suas condições de sobrevivência e
de progresso, mas para enriquecer uma camada senhorial voltada para
atender às solicitações exógenas. 27
27
RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, p. 194.
Sendo colonizado por Portugal, por evidência que o primeiro contato com
alguma ideia política se deu exatamente com o que se praticava na Metrópole. A
importância era tamanha que mesmo depois da independência em 1822 e da criação das
primeiras universidades brasileiras em 1827, os filhos dos “Donos do Poder” (numa
feliz expressão de Raymundo Faoro) continuavam a ir ano após ano aprender a
burocratização estatal nas cátedras de Coimbra.
Essa burocracia, aliás, foi determinante no Estado brasileiro, uma vez que é a
partir desse intrincado sistema em que a mera expectativa de acesso à algum órgão
público, qualquer que seja, se torna uma aventura sem fim, passando por diversas
repartições que, por vezes, nada tem que ver com o intuito da procura do poder público,
com inúmeras fichas a se preencher e diversos protocolos que, ao final, perde-se o
interesse em continuar com a empreitada. Foi o que Weber classificou como “Jaula de
Ferro”.
Se na doutrina de Montesquieu o Estado conseguiu adequar a teoria da
tripartição dos poderes aos interesses do momento, em outros casos não podemos dizer
o mesmo, já que a resistência às novas ideologias é outro fator marcante da história
brasileira.
Esta concepção lusitana de impedir o avanço de qualquer ideia que se mostrasse
superior e avançado demais aos seus interesses, que de alguma forma colocasse em
conflito suas instituições ou simplesmente fosse capaz de trazer outras medidas que não
aquelas que mantivessem o conservadorismo deveria ser refutada. A influência da Igreja
Católica foi preponderante para este intento.
Temendo a expansão protestante, urgira a reafirmação da integridade
da fé e dos dogmas, [...] teria início o processo de censura
inquisitorial, que aniquilaria o alvorecer do humanismo luso. Neste
contexto, a Companhia de Jesus e a Inquisição vieram configurar os
contornos da sociedade. Em consequência, Portugal distanciava-se do
ideário renascentista, da modernidade científica e filosófica, do
espírito crítico e das novas práticas do progresso material, advindas
com o Capitalismo, fechando-se no dogma eclesiástico da fé e da
revelação, no apego à tradição estabelecida e na propagação de
crenças religiosas pautadas na renúncia, no servilismo e na
disciplina. 28
As doutrinas novas tinham por pressuposto a busca de ideologias que
quebrassem totalmente com o sistema pautado na servidão feudal. O protestantismo,
28
WOLKMER, Antônio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p. 47.
sendo um perigo ao catolicismo, foi combatido pela Igreja com a ajuda dos ibéricos.
Portugal, por sua vez, auxiliou ao trazer às suas novas terras verdadeiras equipes para a
proliferação de sua doutrina conservadora.
O liberalismo de John Locke, por exemplo, apesar das muitas tentativas, foi
renegado, criticado e tido como impróprio pelos conservadores que tinham como intuito
manter a situação da maneira que estava, numa clara manifestação da máxima
futebolística “em time que está ganhando não se mexe”. Quando conclamada a doutrina,
o faziam os europeus já instalados no país.
A fermentação liberalista que precedeu a proclamação da
independência constitui obra de minorias exaltadas, sua repercussão
foi bem limitada entre o povo, bem mais limitada, sem dúvida, do que
o querem fazer crer os compêndios de história pátria. Saint-Hilaire,
que por essa época anotava suas impressões de viagem pelo interior
brasileiro, observa que, no Rio, as agitações do liberalismo anteriores
ao 12 de janeiro foram promovidas por europeus e que as revoluções
das províncias partiram de algumas famílias ricas e poderosas. “A
massa do povo” , diz, “ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar
como o burro da fabula: Não terei a vida toda de carregar a
albarda?” 29
Tal fato é até surpreendente, já que para as classes dominantes o liberalismo
somente impulsionaria a sua economia empresarial, muito embora, conforme analisado
anteriormente, o surgimento tardio da burguesia brasileira seja o responsável também
pelo atraso no desenvolvimento social.
Ainda que o interesse na doutrina de Locke tenha crescido em fins do Império e
início da República, os embates continuavam a acontecer em todos os níveis do Estado:
liberais contrários ao império e conservadores favoráveis ao mesmo duelavam na
sociedade, na economia, na política e até mesmo no Judiciário, tendo em muitas
ocasiões reverberado até nas decisões do Supremo Tribunal Federal, em que ministros
de ambas as correntes compunham o pleno de julgamentos.
Esta não é, contudo, a única doutrina europeia que procurou terreno no Brasil e
ao invés disso encontrou resistência e por longo período de tempo servindo de
subterfúgio para a perseguição dos “subversivos”, baseando inclusive a criação da
Doutrina da Segurança Nacional e posteriormente sendo utilizado durante toda a
ditadura militar para justificar a ação do governo.
Por muito tempo o comunismo foi combatido e considerado o inimigo em
comum do Estado e da sociedade. A doutrina baseada na filosofia de Karl Marx
29
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 161.
encontrou campo fértil entre trabalhadores e as classes mais baixas, tal qual o
anarquismo (influenciado pelos imigrantes italianos).
Um caso de grande destaque e repercussão envolveu a agente soviética Olga
Benário Prestes (esposa de Luis Carlos Prestes, líder do Partido Comunista Brasileira),
que foi extraditada por ordem de Getúlio Vargas à Alemanha Nazista, na qual Vargas
possuía interesse ideologico, lá morrendo em uma câmara de gás de um campo de
concentração.
Igualmente negado foi o habeas corpus em favor de Maria Prestes, ou
Olga Benário, companheira de Luís Carlos Prestes, presa como
estrangeira perniciosa à ordem pública, por crimes cometidos no
Brasil, para depois ser expulsa do território nacional. O habeas corpus
fora impetrado alegando-se a gravidez da paciente. Olga Benário, no
entanto, foi entregue ao governo alemão, vindo a morrer
posteriormente em um campo de concentração. 30
Mais do que o liberalismo, o combate ao marxismo foi além. O principal motivo
tem relação com o já estudado conservadorismo intrínseco no âmago da sociedade, pois
a filosofia comunista tem por base a luta pelos direitos sociais, o que por si só já coloca
seus adeptos como o inimigo número um das classes dominantes e dos governantes,
havendo inúmeros casos de prisões e julgamentos no Supremo Tribunal Federal sobre o
assunto, como no caso acima narrado.
As perseguições, todavia, não visavam apenas os marxistas, como também a
todo e qualquer grupo que tentasse de alguma maneira se manifestar contrariamente à
ordem então estabelecida, incluindo, nesse caso, grupos artísticos, como os de classes
operárias que divulgavam o trabalho popular do teatro.
Associações que costumavam promover eventos, como a das Classes
Laboriosas, foram perseguidas pela Polícia Política de São Paulo para
evitar qualquer forma de manifestação que propalasse ideias contrárias
à ideologia oficial. Dessa forma, fazia-se uma espécie de “rede de
controle” por todos os lugares de divulgação da cultura proletária. Foi
assim que, em 1937, durante o Estado Novo, foi criada uma divisão no
Deops, inspirada nos moldes nazistas, denominada Serviço de Censura
e Fiscalização de Teatros e Divertimentos Públicos, especializada em
controlar atividades teatrais e recreativas, principalmente aquelas
realizadas no meio operário que criticavam o governo e a ideologia
imperialista. 31
30
COSTA, Emília Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. São Paulo:
IEJI, 2001, p. 90.
31
ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Sonhos de Fumaça – Operários, Artistas e Intelectuais no
Palco da Metrópole (1900-1940). In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.). Ob. Cit. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 2009, p. 37.
Foi no campo positivista, porém, que o cenário brasileiro melhor encontrou
resposta às suas necessidades momentâneas, uma vez que sua filosofia foi incorporada
somente naquilo que se adequava aos preceitos aqui já estabelecidos.
É importante sempre lembrarmos que no plano ideológico o Brasil transplantou
um modelo já pronto e acabado de um local com histórico considerável de construção
do pensamento humano, social e político, mas sobretudo de uma realidade distinta da
encontrada por aqui, tanto em termos gerais (humanos, sociais e políticos), como
específicos (clima, economia, gentículos), que acabam por influir também nas
concepções inseridas como modelos a serem seguidos com a alegação de que “deu
certo” na Europa.
Os positivistas foram apenas os exemplares mais característicos de
uma raça humana que prosperou consideravelmente em nosso pais,
logo que este começou a ter consciência de si. De todas as formas de
evasão da realidade, a crença mágica no poder das idéias pareceu-nos
a mais dignificante em nossa difícil adolescência política e social.
Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de
preceitos, sem saber até que ponto se ajustam as condições da vida
brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe
imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo
democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos
efetivamente esses princípios ate onde coincidiram com a negação
pura e simples de uma autoridade incomoda, confirmando nosso
instintivo horror as hierarquias e permitindo tratar com familiaridade
os governantes. 32
O mais importante, contudo, é sabermos que toda e qualquer ideia somente irá
ser absorvida desde que, de alguma maneira, possam ser incorporadas ao que a cultura
social já considera como parte de sua formação e de suas características próprias.
Afinal, “a experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e
elabora em geral os traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade
de ajuste aos seus quadros de vida”. 33
As ideias europeias de alguma maneira influenciaram a formação do Estado
brasileiro e a construção da própria filosofia política pátria, tudo adequado ao tão
conhecido e familiar “jeitinho brasileiro”, bem como dos choques constantes com o
conservadorismo existente desde sempre nas estruturas políticas, econômicas e sociais
do país.
32
33
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 160.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 40.
ABRASILEIRAMENTO DE IDEIAS
Quando a filosofia europeia chega em território tupiniquim a recepção não é das
melhores, explicado pelo fato de o conservadorismo social e político brasileiros
encontrar-se totalmente fechado para novas concepções, ainda que tais ideários
pudessem servir e se integrar perfeitamente com seu modus operandi.
Isso não significa, entretanto, que essas ideias não influenciaram ou mesmo não
modificaram as arraigadas ideologias brasileiras. De uma forma ou de outra existe a
relação dialética entre o novo e o velho em choques constantes e que, apesar de parecer
um velho imutável, este velho sofre alterações, seja para “evoluir” com o material novo
introduzido, seja para se fortalecer contra esse mesmo novo material.
Em ambos os casos, temos a figura do abrasileiramento das ideias, consistente
na formação de uma maneira, um lócus, de se enxergar as novas filosofias. Essa forma
de se ver e considerar as ideias está pautada em como cada agente se relaciona com o
objeto e o quão útil a sua intercepção será para satisfazer seus interesses, sejam eles
pessoais ou não.
Em outras palavras, o número de verdades será o mesmo que o número de
sujeitos, isto porque cada qual analisará a filosofia política e a aplicará de acordo com
sua visão e possibilidades para tanto.
No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema
administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a
interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é
possível acompanhar, ao longo de nossa historia, o predomínio
constante das vontades particulares que encontram seu ambiente
próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação
impessoal. 34
Tratando desse “jeitinho brasileiro” é que podemos identificar a aplicação da
filosofia política com qualquer forma filosófica já existente em território nacional, isto
é, quando coloca-sena prática não a filosofia europeia no Brasil, mas sim aplicar a
ideologia brasileira nos ideários europeus, aplicação essa voltada ao particular,
dificilmente aos interesses públicos (diferente do que prega Aristóteles).
Por evidência, não se trata de uma análise pura das teorias, muito menos de
aplicação das mesmas tal qual concebidas, mas sim o resultado da relação dialética entre
a tese (filosofia brasileira) e da antítese (filosofia europeia) fazendo surgir a síntese
34
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 146.
(nova concepção), que pode ou não ser simplesmente ignorada, desmentida e refutada
por outras que mesmo não sendo contras também não se colocam a favor.
Estas concepções, sejam novas, velhas ou oriundas do choque entre elas, não
poderia ter outro pressuposto que não a convalidação da classe hegemônica como a
única socialmente dominante, permanecendo igual a si mesma na sua posição de
controladora social.
Essas linhas de formação correspondem, no lado nórdico, à formação
de um povo livre, dono do seu destino, que engloba toda a cidadania
branca. No nosso sul, o que se engendra é uma elite de senhores da
terra e de mandantes civis e militares, montados sobre a massa de uma
subumanidade oprimida, a que não se reconhece nenhum direito. A
evolução de uma e de outra dessas formações dá lugar, nas mesmas
linhas, de um lado, amadurecimento democrático fundado nos direitos
dos cidadãos, englobando também os negros. Do outro, uma feitoria
latifundiária, hostil a seu povo condenado ao arbítrio, à ignorância e à
pobreza. 35
Para verificarmos este abrasileiramento de ideias basta analisarmos o já estudado
poder moderador inserido durante o Império junto com a tripartição dos poderes. Tal
concepção não existe na ideia de Montesquieu, mas passou a ser o principal dentre
todos (ao menos no Brasil) e mesmo após sua extensão a força das suas ideias
permaneceu.
Fato é que qualquer mudança radical na sociedade acabaria na perda do poder
(colonial, imperial e republicano) daqueles que se mantinham e se mantém no poder,
numa evidente e clara ideia de continuísmo no qual as estruturas brasileiras devem
permanecer tal qual o melhor interesse dessas classes.
Mudanças estruturais, seja elas quais forem, ensejariam a impossibilidade de
manutenção conservadora do poder dominante. Desde a abolição, a reforma agrária ou o
surgimento de uma verdadeira burguesia capaz de ditar os rumos da sociedade e levá-la
à verdadeiras mudanças, o Brasil sempre esbarrou nos interesses dos poucos que seriam
violentamente ameaçados e retirados de seu posto de dominador podendo acontecer tal
qual na Revolução Francesa de algumas cabeças rolarem.
O Brasil, produto da expansão da economia mundial, necessitaria
profundas transformações para subsistir fora dela. As decisões
indispensáveis para isso – abolição, reforma agrária, industrialização
autônoma – excediam à capacidade daquele segmento social existente,
uma vez que, para a classe dominante, permanecia sendo lucrativa
economicamente a importação de bens manufaturados dos centros
europeus e a exportação de produtos tropicais. Acresce ainda, que, não
35
RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, p. 65.
existindo então modelos de reconstrução intencional da sociedade,
uma reversão puramente autonomista teria resultado, no máximo, em
uma autarquia feudal. Como em todos os casos de feudalização, isso
representaria uma ruptura do sistema mercantil, que tornaria
impraticável a escravidão, porque não haveria como adquirir novos
escravos e porque os tornariam inúteis em sua função efetiva, que é a
de produtores de mercadoria. 36
Outra possibilidade de encontrar a incidência dessas novas visões acerca das
filosofias europeias é verificarmos como o marxismo foi inserido em território nacional,
ou seja, de acordo com qual modelo se baseou o que aqui foi chamado de “ameaça
vermelha”, tudo com o intuito de distanciá-lo o máximo possível da realidade brasileira.
Explica-se: embora o marxismo puro seja único (aquele que foi concebido por
Karl Marx), muitas foram as interpretações que surgiram dela, da mesma maneira que o
abrasileiramento o faz com as filosofias europeias. Temos, então, o modelo soviético
(subdividido na década de 1920 em leninista, trotskista e stalinista), o modelo maoísta
(influenciada pela filosofia milenar de Confúcio) e o modelo castrista, somente para
citar alguns. Todas são adaptações da filosofia marxista e o que se viu no Brasil foi a
adaptação de um modelo anteriormente já adaptado do originalmente concebido.
Contudo, o que se viu no Brasil foi a perseguição de qualquer doutrina
considerada subversiva, o que incluía todas os modelos existentes de marxismo,
independente de qual fosse. Basta analisar, primeiramente, o envolvimento de Luís
Carlos Prestes com a União Soviética e décadas depois o de João Goulart com a China.
Em ambos os casos, não importava qual o modelo de comunismo, importava apenas que
era comunismo e deveria ser combatido.
Jânio Quadros é um exemplo interessante não apenas para se analisar o
abrasileiramento de ideias, como também a má formação do pensamento político
nacional, adaptando-se de acordo com as necessidades de momento daqueles que estão
no poder, sendo esta a causa da queda de Quadros, já que “minado pelas contradições de
sua política, que externamente apoiava a esquerda, enquanto internamente adotava uma
postura de direita, Quadros renunciaria à presidência pouco menos de sete meses após a
posse, lançando o país em uma das maiores crises políticas de sua história”. 37
Tanto para a formação do Estado brasileiro como para a construção do
pensamento político esta concepção de se utilizar uma maneira de adaptar a filosofia
alienígena à realidade nacional foi preponderante para se alcançar e se desenvolver o
36
37
RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, pp. 144-5.
COSTA, Emília Viotti da. Ob. Cit. São Paulo: IEJI, 2001, p. 156.
modelo estatal hoje vigente, assim como as filosofias contrárias e críticas a esta mesma
concepção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando propusemos analisar um tema já conhecido da história do Brasil
tínhamos em mente a contribuição crítica e, com isso, o surgimento de debates sobre os
meandros da formação do Estado brasileiro e da construção de um ideário político.
Estudos desta monta servem como parâmetros para utilizarmos na atualidade e
verificarmos os modelos de longa duração da sociedade brasileiro, bem como as
incidências de curta duração, que devem ser vistos como essenciais para a compreensão
do todo.
Não se trata de considerarmos a história como sendo linear e sem qualquer
alteração, mas justamente analisar como esse inatismo, ou seja, essa falta de alteração
nas estruturas sociais, políticas e econômicas pode ainda hoje ser percebida em muitos
aspectos da realidade brasileira.
O Brasil possui diferenciais notáveis em relação aos seus irmãos latinos e
podemos assim considerar pela influência da colonização portuguesa, já que na América
Espanhola a colonização e o povoamento se deram de maneiras diferentes, ainda mais
com relação à filosofia advinda do Velho Mundo.
O absolutismo português (que como vimos se difere do absolutismo
representativo de Thomas Hobbes) é o responsável primeiro pelo conservadorismo das
instituições políticas e econômicas brasileiras e, em segundo plano, pela falta de
interesse que as novas filosofias despertaram nos brasileiros.
Durante o Império, o poder permaneceu nas mãos de poucos e a classe
dominante permaneceu igual, inalterada, apesar da teórica mudança do colonialismo ao
monarquismo imperial, fato este que também perseguiu por longos anos a República
(lembremos da Primeira República em que as Oligarquias Paulista e Mineira
dominavam a política nacional), impedindo qualquer nova teoria de adentrar e se incutir
na sociedade.
Uma das inquietações que tentamos despertar a partir deste trabalho surge
justamente dessa problemática. Se por motivos óbvios tanto no período colonial como
no Império as doutrinas liberais e de cunho voltado ao social batiam no “paredão
conservador”, porque a República não quebrou este estigma e reconstruiu o pensamento
político, social e econômico?
A resposta está justamente na sociedade, isto porque todas as mudanças
ocorridas no país se fizeram de cima para baixo, com a classe dominante ditando os
rumos do que deveria ser feito e a sociedade aceitando passivamente essas
determinações, de modo que assim se perpetuou a classe dominante da Colônia no
Império e do Império na República, sem que as ideias de mudanças de base fossem
levadas em consideração, apenas as mudanças que favorecessem a continuidade de
domínio dessa classe hegemônica rural.
Estamos diante de um momento único na história do Brasil, em que os
questionamentos são possíveis de serem feitos e as pesquisas devem engendrar
exatamente resultados no sentido de permitir novas pesquisas e questionamentos, uma
vez que a sociedade brasileira necessita se conhecer e se fazer vista, o que só é possível
pela análise de sua história.
BIBLIOGRAFIA
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