FILOSOFIA POLÍTICA E SOCIEDADE BRASILEIRA: FORMAÇÃO DO ESTADO E CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO NACIONAL Daniel Mascarin Pires Kumasaca 1 Osvaldo Estrela Viegaz2 RESUMO: o presente artigo visa despertar o interesse à análise sobre a formação do Estado brasileiro e a construção do pensamento político nacional que, indubitavelmente, são dois dos temas mais estudados e ao mesmo tempo menos compreendidos da história do Brasil. A configuração histórica é necessária para entendermos o todo, desde os motivos da Colonização, passando pela importância do Império como primeiro passo a um verdadeiro Estado Brasileiro e, por fim, verificando a República em suas muitas facetas. As manifestações ideológicas nacionais surgem nesses momentos e serão igualmente importantes para a criticidade decorrente do estudo da história. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Política, Estado Brasileiro, Pensamento Nacional, Abrasileiramento de Ideias. ABSTRACT: The present article aims to arouse interest to the analysis on the formation of the Brazilian state and the construction of national political thought that undoubtedly are two of the most studied topics and simultaneously least understood of the history of Brazil. The historical setting is necessary to understand the whole, since the reasons for colonization, through the importance of the Empire as a first step to a true Brazilian state and, finally, verifying the Republic in its many facets. National ideological manifestations arise in these moments and will also be important due to the criticality of the study of history. KEYWORDS: Political Philosophy, Brazilian State, National Thought, Brazilianization Ideas. 1 Mestrando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (Direito) pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Gerente-Jurídico da Empresa Área Leilões (Vizeu Leiloeiro Oficial). 2 Licenciado em História pelas Faculdades Integradas de Guarulhos (2009). Bacharel em Direito pela Universidade Nove de Julho (2014). Advogado em São Paulo. SUMÁRIO: Introdução. 1. Colonização Portuguesa e Política Econômica. 2. Formação do Estado Brasileiro. 3. Construção do Pensamento Político. 4. Influências Europeias. 5. Abrasileiramento de Ideias. 6. Considerações Finais. 7. Bibliografia. INTRODUÇÃO A formação do Estado brasileiro e a construção do pensamento político nacional deve ser analisado sob o prisma histórico considerando todas as nuances que envolveram esse desenvolvimento ideológico, que compreende ainda a conjuntura política, social e econômica do país, todas preponderantes para essa constituição. Essa edificação paulatina iniciada na colonização e ainda em processo de estruturação contínua sofreu inúmeros percalços neste caminho, choques que atingiram e muitas vezes não modificaram a ideia política conservadora instituída. Não podemos deixar de estudar como se procedeu a colonização realizada pela então Metrópole Portuguesa na Colônia Brasileira, pois é a partir desses movimentos iniciais que toda a formação política decorrerá, desde o ideal econômico da empresa extrativista, passando pelo conservadorismo estatal político e culminando numa burocratização geral que atinge todas as camadas da sociedade. O tipo de povoamento intentado pela Coroa Portuguesa, bem como o uso de escravos (indígenas e negros) fez da miscigenação com os europeus uma característica do novo mundo que, somado às doutrinas europeias que procuravam terreno, mas não encontravam, foram inseridas para satisfazer os desejos e interesses da classe hegemônica, classe essa praticamente inalterada. O transplante ultramarino realizado por Portugal de doutrinas acabadas e prontas para serem colocadas em prática sofreu com a falta de interesse dos próprios colonos portugueses, que enxergavam nestas doutrinas um obstáculo aos seus interesses. Além disso, a própria sociedade que aqui se formava não permitia que estas ideias se firmassem e alcançassem algum êxito. E é dessa maneira que o Brasil Império deve ser visto, uma vez que tanto as classes dominantes como a própria figura do Imperador (filho do Rei da antiga Metrópole Portuguesa e, por conseguinte, herdeiro deste trono) de tudo fizeram para permanecer no poder, alcançando sucesso considerável nesta contenda. Esse conservadorismo deve ser tido e analisado com bastante cuidado, não somente pelo perigo de cairmos na mesmice analítica do que é ser conservador, mas também e principalmente pela importância deste nos acontecimentos coloniais, imperais e republicanos, já que essas mudanças praticamente não atingiram a classe dominante agrária, dos grandes proprietários de terras e senhores do Brasil desde sempre. As influências do pensamento europeu esbarraram exatamente nesta parede conservadora, quando começou a sofrer o evento do abrasileiramento, consistente na adaptação das teorias que chegavam ao país justamente de acordo aos interesses dessa classe, sem jamais visar interesses maiores e públicos, ficando a sociedade à margem dessas determinações políticas. Embora pareça um tema batido e continuamente tratado na maioria das discussões históricas sobre o período, devemos sempre considerar novas formas de se ver, discutir e considerar a história do Brasil em todas as suas fases de constituição, desde o período colonial, passando pelo Império e findando na República. A fenomenologia analítica do objeto estudado, isto é, o Estado Brasileiro em sua essência, é o que se pretende por esse estudo, sem desconsiderar o que já foi levantado até o momento, mas também contribuindo para a construção de uma visão crítica e social sobre a formação do Brasil e de sua sociedade. COLONIZAÇÃO PORTUGUESA E POLÍTICA ECONÔMICA A expansão marítima europeia, tal qual outros fatos e acontecimentos que movimentaram o século XV, foi preponderante para a configuração de uma nova sociedade política e econômica, reverberando nas instâncias sociais que já se transfiguravam durante o período denominado Idade Média. A Península Ibérica foi a grande responsável, com Portugal e Espanha, para o sucesso da empreitada, facilitada pela saída oceânica do Mediterrâneo e que proporcionou o avanço da nova filosofia econômica pré-capitalista, em que foi classificada por Karl Marx como uma espécie de capitalismo mercantil. 3 3 Neste sentido: “Quando cada indivíduo deve possuir uma determinada quantidade de terras, o simples aumento da população constitui um obstáculo. Para que este seja superado, deverá desenvolver-se a colonização e isto exigirá guerras de conquista. O que conduzirá à escravidão etc., à ampliação da ager publicus e, por isto, ao advento do Patriciado que passará a representar a comunidade, etc. Assim, a preservação da antiga comunidade implica a destruição das condições sobre as quais ela está baseada, tornando-se o seu contrário. Suponhamos, por exemplo, que a produtividade pudesse ser aumentada sem acréscimo territorial, por meio do desenvolvimento das forças de produção (que, no caso da agricultura, uma atividade das mais tradicionais, são as mais lentas). Isto implicaria novos métodos e combinações de trabalho, aumento da jornada de trabalho dedicada àà agricultura, etc., e, novamente, as velhas condições econômicas da comunidade cessariam de atuar. O ato de reprodução, em si, muda não apenas as condições objetivas — e.g. transformando aldeias em cidades; regiões selvagens em terras agrícolas, etc. Este é um dos problemas encontrados por Marx quando analisa os dilemas provenientes das formações econômicas pré-capitalistas. A falta de perspectivas sobre a política e a produção econômica que cercava o momento da expansão marítima marca também o avanço de um novo modelo (e por isso uma nova visão) da realidade mundana na qual os europeus se encontravam, de modo que necessitavam de uma ação para sair deste inatismo. O que se procurava era uma fundamentação, um empurrão que levasse os europeus a procurar fora da Europa a resposta para os novos movimentos econômicos, além de conseguirem de alguma maneira driblar o domínio mouro que ainda se fazia presente na maior parte do Mediterrâneo, embora expulsos da Península Ibérica. A ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da expansão comercial da Europa. Não se trata de deslocamentos de população provocados por pressão demográfica – como fora o caso da Grécia – ou de grandes movimentos de povos determinados pela ruptura de um sistema cujo equilíbrio se mantivesse pela força – caso das migrações germânicas em direção ao ocidente e ao sul da Europa. O comércio interno europeu, em intenso crescimento a partir do século XI, havia alcançado um elevado grau de desenvolvimento no século XV, quando as invasões turcas começaram a criar dificuldades crescentes às linhas orientais de abastecimento de produtos de alta qualidade, inclusive manufaturas. O restabelecimento dessas linhas, contornando o obstáculo otomano, constitui sem dúvida alguma a maior realização dos europeus na segunda metade deste século. 4 Quando Portugal e Espanha iniciam o povoamento e colonização dessas novas terras, seja nas Américas, África ou Ásia, o intuito não é em manter uma extensão de seu território, mas sim proporcionar o acúmulo de riquezas e a produção em larga escala dos produtos que deixavam os europeus “loucos” por conta de sua escassez, configurando a formação econômica pré-capitalista, ou capitalismo mercantil.5 É correto afirmar que por quase toda a primeira metade do século XVI, a Colônia Brasileira em nada interessou à Metrópole Portuguesa, sofrendo com invasões holandesas e francesas, despendendo de trabalho e força para expulsão dos mesmos do seu território. — mas os produtores mudam com ele, pela emergência de novas qualidades transformando-se e desenvolvendo-se na produção, adquirindo novas forças, novas concepções, novos modos de relacionamento mútuo, novas necessidades e novas maneiras de falar”. (MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. Rio de Janeiro: Editora Paz & Terra, 4ª Edição, 1985, p. 88). 4 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2012, p. 25. 5 Neste sentido: “Os magníficos resultados financeiros da colonização agrícola do Brasil abriram perspectivas atraentes à utilização econômica das novas terras. Sem embargo, os espanhóis continuaram concentrados em sua tarefa de extrair metais preciosos”. (FURTADO, Celso. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2012, p. 37) Apesar da exploração do pau-brasil e do solo fértil para plantio, o verdadeiro interesse português somente se manifestou quando sua vizinha ibérica encontrou os primeiros metais preciosos na América Central, momento no qual o povoamento brasileiro ganhou um significado. Nos primeiros séculos após o descobrimento, o Brasil, colonizado sob a inspiração doutrinária do mercantilismo e integrante do Império Português, refletiu os interesses econômicos da Metrópole e, em função deles, articulou-se. Nessa perspectiva, o Brasil-Colônia só poderia gerar produtos tropicais que a Metrópole pudesse revender com lucro no mercado europeu; além disso, as outras atividades produtivas deveriam limitar-se de modo a não estabelecer concorrência, devendo a Colônia adquirir tudo o que a Metrópole tivesse condições de vender. Para Portugal, o Brasil deveria servir seus interesses; existia para ele e em função dele. 6 O modelo político-econômico aqui estabelecido deveria servir Portugal. É assim que se estabeleceu a relação desde o começo entre a Metrópole e a Colônia. O modelo servil não se deu simplesmente na via única de produção exclusiva para exportação e lucro à Coroa Portuguesa, como também a Metrópole aproveitava-se de sua Colônia para revender seus produtos. De onde quer que se pense uma ação advinda de Portugal esta visava o lucro. Essa política econômica, por evidência, necessitou de Portugal não apenas a instalação física de instituições capazes de manter a colônia em funcionamento, como também o transplante ultramarino de portugueses para essas funções, bem como de trabalhadores para os serviços pesados (na sua maioria vindos da África, inicialmente) para substituir os indígenas que, com o passar dos tempos, se mostraram inúteis ao trabalho forçado e foram caçados e mortos, seja em razão da “indisciplina”, seja pelas doenças dos conquistadores europeus. O povo-nação não surge no Brasil da evolução de formas anteriores de sociabilidade, em que grupos humanos se estruturaram em classes opostas, mas se conjugam para atender às suas necessidades de sobrevivência e progresso. Surge, isto sim, da concentração de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir à propósitos mercantis alheios a ela, através de processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram, de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável. 7 6 WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p. 41. 7 RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, pp. 20-1. O primeiro choque existente no território brasileiro se deu justamente entre os indígenas e os colonizadores, discrepantes desde a forma de se vestir até os gestos, da maneira de ver o mundo até de se comportar diante de uma visão diferente. Embora “pacífica” de início, aos poucos esse contato se fez piorar, com a utilização dos indígenas no trabalho forçado, contrariando as suas fundamentações sobre o mundo em que viviam, fazendo muitos simplesmente deixarem de viver por isso. 8 A empresa portuguesa se estabeleceu no Brasil como importante centro de produção de produtos exportáveis, se tornando também um criatório de gentes pela miscigenação e misturas surgidas da convivência entre europeus, africanos e nativos. É nessa sociedade que a filosofia política começa a se instalar. Quando a Coroa Portuguesa decide por implantar no Brasil esta nova espécie política e econômica temos que considerar dois importantes fatores que foram essenciais para o sucesso do projeto. Primeiramente, devemos considerar que quando os conquistadores desembarcaram nas novas terras e começam a impor a sua mentalidade aos povos “nãocivilizados”, automaticamente consideramos que toda a organização social que estes povos possuíam foi desconsiderada e destruídas (algumas dizimadas junto com os próprios povos) para ser colocada então a organização europeia. Mesmo com toda a influência moura pela qual a península ibérica conviveu por longo período, tal fato mais se assemelha às ações romanas quando do império, que ao conquistas os povos inimigos destruíam tudo que se fizesse referência aos mesmos para impor as ideias romanas, o que é perigoso. Quando os estados conquistados estão habituados a viver sob suas próprias leis e em liberdade, existem três maneiras de conservá-los: a primeira maneira é destruí-los, a outra é ir pessoalmente residir neles, e a terceira é deixá-los viver sob suas próprias leis, impondo-lhes um tributo e criando dentro deles um governo de poucos, que se conserve teu amigo. 9 Segundo Nicolau Maquiavel, existem três formas de se lidar com um Estado quando conquistado: destruí-los (o que os romanos faziam), ir habitar neles ou deixá-los viver sob suas leis diante do pagamento de um tributo (este último que ocorria quando o 8 Neste sentido: “Com a destruição das bases da vida social indígena, a negação de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos indígenas deitavam em suas redes e se deixavam morrer, como só eles têm o poder de fazer. Morriam de tristeza, certos de que todo o futuro possível seria a negação mais horrível do passado, uma vida indigna de ser vivida por gente verdadeira”. (RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, pp. 38-9). 9 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001, p. 21. Império Turco-Otomano dominou o Mediterrâneo, permitindo que os cristãos continuassem com seus cultos desde que pagassem os tributos devidos). Portugal inovou essa parte da teoria maquiavélica. Além de destruir tudo e qualquer coisa que fizesse referência aos indígenas, desde sua sociabilidade até a sua dignidade, os portugueses se instalaram aos poucos no território conquistado, quando não somente impuseram a força física, mas também as de suas instituições. Mas na realidade, conforme analisa posteriormente o próprio Maquiavel, esta é a única forma segura de não perder o território conquistado. Na verdade, não existe modo seguro de possuí-las exceto a ruína. Quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver livre, e não a destrói, será destruído por ela, porque ela sempre invocará, na rebelião, o nome de sua liberdade e de sua antiga ordem, as quais nem o passar do tempo nem os benefícios jamais farão esquecer. Não importa o que se fizer ou o as precauções que se tomarem, se não se dispersarem os habitantes, eles não esquecerão aquele nome e aquela ordem; ao menor incidente os recordarão. [...] Ali, a recordação da antiga liberdade não os deixa, não as pode deixar em paz e, por isso, o meio seguro para possuí-las é ou destruí-las ou ir habitá-las. 10 Outro fator importante foi a utilização de escravos, primeiro indígenas e depois advindos das colônias africanas. O trabalho pesado nos campos e lavouras de cana de açúcar (e depois de café) proporcionou a produção em larga escala, através de exaustivas horas de trabalhos forçados e o não pagamento de qualquer forma de salário. Enquanto o Brasil produzia tudo o que se faltava na Europa, a África produzia a mão de obra necessária para o sucesso dessa empresa, numa via em que a vida humana não existia senão relevada à mera questão da existência. 11 Embora na Grécia a utilização de escravos estivesse diretamente ligada à configuração política lá existente, aqui temos a utilização de mão de obra não visando o ócio criativo, mas sim o acúmulo de riquezas. A ideia se baseia em fundamento diverso, isto é, não ter nenhuma espécie de gastos com os trabalhadores ao mesmo tempo em 10 MAQUIAVEL, Nicolau. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001, pp. 21-2. Sobre o uso dos nativos nos trabalhos em que os portugueses os forçavam a atuar, importante contribuição nos traz Darcy Ribeiro: “A escravidão indígena predominou ao longo de todo o primeiro século. Só no século XVII a escravidão negra viria a sobrepujá-la. Ainda assim, subsistiu nas áreas pioneiras como estoque de escravos baratos utilizáveis para funções auxiliares. Nenhum colono pôs jamais em dúvida a utilidade da mão-de-obra indígena, embora preferisse a escravatura negra para a produção mercantil de exportação. O índio era tido, ao contrário, como um trabalhador ideal para transportar cargas ou pessoas por terras e por águas, para o cultivo de gêneros e o preparo de alimento, para a caça e para a pesca. Seu papel foi também preponderante nas guerras aos outros índios e aos negros quilombolas”. (RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, p. 88). 11 que se enriquece a Metrópole Portuguesa e os proprietários das terras produzidas, sem que com isso surgissem novos “Sócrates”, “Platões” ou “Aristóteles”. As duas práticas unidas foram essenciais para o sucesso das empresas Ibéricas na América, em especial da colonização mercantil portuguesa, em que pese toda a sua luta pra se impor, com o auxílio da Igreja Católica, no novo mundo, fundamentando sua presença e até mesmo o escravismo. Os procedimentos fundamentais de dominação das colônias escravistas das Américas foram: a erradicação da antiga classe dominante local, a concessão de terras como propriedade latifundiária aos conquistadores, a adoção de formas escravistas de conscrição da mão-de-obra e a implantação de patriciados burocráticos, representantes do poder real, como exatores de impostos. 12 Bom lembrar que a dominação portuguesa não se lastreou somente pela imposição de suas ideologias em detrimento da já existente ou apenas com a utilização de mão-de-obra escrava indígena e negra, mas de uma série de outros fatores que auxiliaram as práticas arbitrárias ao longo de séculos. Inclusive, os grandes latifúndios foram os responsáveis pela criação da classe conservadora que ainda hoje influi nas políticas econômicas e sociais do país, atingindo a formação do pensamento e a construção do Estado como fatores do seu sucesso e de sua continuidade. FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO As instituições que aqui se instalaram para comandar as engrenagens do sistema econômico tinha por base ideias políticas pautadas em anos de burocratização do aparelho estatal português. A bem da verdade, a organização do Estado durante o período colonial era uma verdadeira e completa bagunça. Cargos diferentes e conflitantes entre suas funções eram criados e colocados à disposição dos interesses da Coroa Portuguesa, sendo que estas colisões não importavam, desde que não atingissem os ganhos. Donatários, Governador-Geral, Ouvidor, dentre outras, são alguns dos cargos em que pessoas de confiança da Metrópole assumiam com o intuito único de manter a 12 RIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatório – Etapas da Evolução Sociocultural. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2000, p. 114. empresa em funcionamento. Enquanto a produção estivesse em alta e dando o lucro esperando, a bagunça se justificava. 13 A própria configuração jurídica existente levava a esta finalidade. As Ordenações Portuguesas (Manuelinas, Afonsinas e Filipinas) foram por muito tempo o único bem jurídico existente no país, permanecendo vigente até mesmo após a Independência (1822) e a Proclamação da República (1889), o que contribuiu para o fortalecimento das estruturas burocráticas. No que se refere à estrutura política, registra-se a consolidação de uma instância de poder que, além de incorporar o aparato burocrático e profissional da administração lusitana, surgiu sem identidade nacional, completamente desvinculada dos objetivos de sua população de origem e da sociedade como um todo. Alheia à manifestação e à vontade da população, a Metrópole absolutista instaurou extensões de seu poder real na Colônia, implantando um espaço institucional que evoluiu para a montagem de uma burocratização patrimonial legitimada pelos donatários, senhores de escravos e proprietários de terras. Essa estrutura política colonial incorpora o intento dos senhores rurais sob uma administração local que se exerce pelas câmara dos homens bons dos povo, isto é, proprietários. (grifos do original). 14 Importante contribuição nos traz Antônio Carlos Wolkmer. O aparato estatal aqui instalado estava totalmente alheio à realidade social da Colônia, embora totalmente condizente com o que se via na Europa e, em especial, na Metrópole Portuguesa. O transplante ultramarino não era, assim, apenas de portugueses para habitar e ocupar os cargos de gerência da Colônia, mas também e principalmente para instalar e manter a mesma estrutura política de além-mar. Apesar de estar totalmente atrelado à Metrópole, o período de Brasil Colônia é substancial para compreendermos a formação do Estado Brasileiro, seu desenvolvimento no Império, até alcançar a república e suas muitas fases. Em termos claros, a designação de Estado Brasileiro deve ser considerada somente a partir de 1621, quando de sua elevação a tal. Isso configura, desde o início da colonização, uma combinação estranha e atípica de relações político-econômicas marcadas, de um lado, pela passagem de uma situação agrária semifeudal para um 13 Neste sentido: “As instâncias judiciárias das colônias eram semelhantes às da Metrópole e subordinadas a ela. No Brasil, a organização ficou, inicialmente, a cargos dos próprios capitães donatários, que deveriam coordenar a Justiça em suas capitanias, instituindo um Ouvidor da capitania e formando Câmaras de Justiça locais. Em 1548 foi instituído um Governador Geral e o Ouvidor Geral como símbolos da dominação da Metrópole. Mais de um século, porém, foi necessário para que a centralização se tornasse eficaz”. (ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Uma Cadeira de Espinhos: O Supremo Tribunal Federal e a política (1933-1942). Dissertação de Doutorado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), 2007, p. 39). 14 WOLKMER, Antônio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p. 43-4. modo de produção capitalista (ora mercantil, ora industrial), refletindo, regionalmente, as imposições econômicas das metrópoles centrais; de outro, pela incorporação e adaptação, por parte das instituições políticas, de diretrizes patrimonialistas e burocráticas inerentes ao modelo conservador de administração portuguesa. 15 O aparelho estatal brasileiro atual é reflexo em muitos aspectos do que se montou neste período. Os colonos que aqui se instalaram e posteriormente se tornaram a elite comercial e política dominante mantiveram seu status quo enviando seus filhos para aprender as artimanhas burocráticas na própria coroa. Não se tratava apenas de proporcionar a melhor educação possível aos filhos enviando-os à Universidade de Coimbra, mas sim possibilitar a continuidade das políticas estatais. A petrificação das instituições somente beneficiaria essa classe. A montagem desse sistema se manteve inclusive quando a Família Real (e, por conseguinte, o Estado Português) se muda para o Brasil em 1808, fugindo das invasões napoleônicas. Este é, inclusive, outro fato marcante para se entender corretamente a formação do Estado Brasileiro, considerando ainda o período entre 1815 e 1822, em que a Colônia foi elevada à categoria de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Com a independência em 1822, a estrutura montada nos termos de Colônia propiciou a formação do Império, isto porque o país foi uma Colônia, passou por período de Reino Unido e por longos anos de Império até a Proclamação da República, numa condição sui generis que permaneceu no país por quase setenta anos. Embora permanecendo a manutenção do status quo dominante, o Império marca o início de uma verdadeira organização estatal, com funções delimitadas trazidas por influência dos ideais da Revolução Francesa (1789), na qual a separação entre os poderes foi a principal inovação, sendo implantada para colocar ordem na bagunça organizacional colonial. Mesmo com base nas Ordenações Filipinas (1604), a Constituição Imperial de 1824 traz em seu bojo inúmeros dispositivos que permitem nominar o Brasil como um Estado. Ainda que a prática tenha se mostrado diferente da teoria, não se pode olvidar que esta primeira tentativa de solidificação de Estado foi importante para os eventos posteriores. Levando em consideração a formação da colônia extrativista, a vinda da Família Real e a constituição do Império, podemos considerar este momento como o primeiro 15 WOLKMER, Antônio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p. 45. passo para a construção de uma verdadeira identidade nacional política autônoma, isto porque, enquanto colônia, a organização deste aparato não se revelou importante, desde que não afetasse a produção comercial e os interesses da Coroa. CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO O Império foi a primeira manifestação de Estado brasileiro. A influência dos ideais da Revolução Francesa, porém, esbarraram em uma figura central do novo Estado: o Imperador e todo o seu poder. Os ideários franceses tinha por pressuposto a liberdade, igualdade e fraternidade, tendo sido este o estandarte sustentado pelos revolucionários. Apesar de algumas mentes que pregavam o liberalismo no Império, o que se seguiu foi a continuidade do pensamento colonial. Em alguns pontos, a Constituição Imperial até previu certas liberdades, mas a contradição sempre foi latente, bastando verificar no próprio âmago da sociedade esta discrepância, em que o trabalho escravo permanecia firme e forte no modelo de empresa cafeeira brasileira. Mas não é apenas na letra fria da lei que os atos não compunham a liberdade que se pregava, tudo por conta das estruturas sociais petrificadas neste sentido e do poder soberano do Imperador. Exemplo disso é que a Assembleia Constituinte foi fechada por Pedro I por algumas vezes para se garantir a “efetividade” da lei na melhor forma para o povo, mas que na realidade traduzia o seu intento absolutista. Foram seis meses de pesada desconfiança e lenta agonia, nos quais se intensificaram as desavenças entre o Imperador e os rumos da Constituinte, que culminaram no decreto de 12 de novembro de 1823 que dissolveu a Constituinte, com a promessa de uma nova. Foi a única, em nossa história, dissolvida pela força militar: o cerco do Paço da Câmara por um corpo de cavalaria liderado pelo próprio D. Pedro. [...] No dia seguinte o Imperador expediu dois novos decretos, justificando a dissolução e reforçando o propósito de convocar nova Assembleia, além de criar um Conselho de Estado composto por 10 membros. O Executivo fazia jus à tradição absolutista portuguesa. D. Pedro dirigiu, à Nação, um Manifesto no qual justificava o fechamento da Assembleia dizendo ser ele alvo de desacatos e calunias além do que: passou-se adiante e pretenderam se restringir em demasia as atribuições que competem pela essência dos governos representativos ao Chefe do Poder Executivo e que me haviam sido conferidos pela Nação. 16 16 ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Ob. Cit.. Dissertação de Doutorado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), 2007, p. 56. É também neste ínterim que se fortalece o imaginário de uma tradição que se mostrará presente ao longo de toda a República, inclusive na atualidade, quando a sociedade passa a ter com o governante um sentimento de pessoalidade, isto é, a identificação do líder da nação com a própria nação, ainda que com interesses distintos daqueles esperados pela sociedade. Essa tradição que se inicia na colônia e permanece durante o Império, se fortalece no período republicano devido os interesses cada vez mais voltados para a solidificação do poder nas camadas que já detinham o poder. Embora sem mais a figura do imperador, esta situação permanece centrada no presidente, sendo até mesmo um dos motivos pelos quais o Poder Executivo é visto como o “principal” numa República em que a paridade e a igualdade entre os Três Poderes deveriam prevalecer. É um momento representativo e fundador de uma longa tradição paternalista do poder que se dirige à nação com apelos sentimentalistas, identificando os desígnios e pulsações do coração do Imperador com os interesses do país, modelo que será seguido em outros momentos de nossa história, como, por exemplo, no governo de Getúlio Vargas, o pai dos pobres, o coração da pátria e aquele que impede o funcionamento do Poder Legislativo com o golpe do Estado Novo. 17 Na realidade, essa ação do Imperador e dos seus seguidores que o apoiavam tinha como intuito garantir que o seu poder não sofresse nenhuma alteração e talvez até fosse aumentado, mesmo com a Tripartição dos Poderes em Executivo (centrado na sua figura), Legislativo e Judiciário. Até então a ideia francesa inspirada na nova concepção trazida por Charles de Montesquieu estava sendo colocada na letra da lei prevendo esta separação (sem aqui trabalharmos ou considerarmos a efetividade dessa tripartição). Contudo, uma dificuldade surgia: o que se fazer com o Imperador e, mais do que isso, com suas vontades, pois tudo girava em torno dessa problemática. A solução foi simples e inserida entre os Arts. 98 e 101, do Título 5º (Do Imperador) e Capítulo I (Do Poder Moderador) da Constituição Imperial de 1824: além de ser o chefe do Poder Executivo (Arts. 102 a 104 da mesma Carta Lei), o Imperador concentrava também a inovação constitucional para o Estado, o Poder Moderador, que 17 ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Ob. Cit.. Dissertação de Doutorado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), 2007, pp. 54-5. segundo as disposições estava acima dos demais poderes e da própria lei, seja constitucional ou infra.18 O texto dos Arts. 98 e 99 revelam esta posição do Imperador de “chave de toda a organização política, chefe supremo da Nação e responsável por manter a independência e a harmonia dos poderes” (Art. 98), além de ser considerado “inviolável e sagrado, não estando sujeitos à nenhuma responsabilidade” (Art. 99). 19 Isso nos faz lembrar do que dispôs Thomas Hobbes (1588-1679) sobre o Estado, que se organiza em trono da figura central do Soberano, que sendo o representante do povo, estava por esse motivo acima da própria lei, pois os atos do soberano não podiam ficar restritos por meras disposições legais. Contudo, o que mais devemos destacar desse pensamento hobbesiano é a representatividade, isto é, por meio de um pacto social entre os cidadãos que se organizam entre si e saem do estado de natureza (guerra), abrindo mão de suas liberdades e permitindo que o Estado e o soberano os governe. “É como se cada um dissesse ao outro: autorizo este homem ou esta assembleia, e entrego-lhe meu direito de me governar, com a condição de que tu lhe abandones teu direito e autorizes da mesma maneira todas as ações deles”. 20 Este ponto é salutar, pois no Brasil, embora o Imperador se colocasse para além do bem e do mal com seu poder moderador, faltava-lhe o principal pressuposto para se encaixar corretamente na doutrina de Thomas Hobbes: a representatividade, já que com a volta da Família Real à Portugal, o caminho para a independência ficou mais fácil e caiu no colo justamente do herdeiro do trono português, sem qualquer forma de pacto social que o colocasse como representante. A falta desta simples, mas muito importante característica do pensamento hobbesiano faz todas as semelhanças existentes entre ela e o Império do Brasil (e o Poder Moderador) caírem por terra, vez que ela se mostra essencial para sua configuração e sem sua existência, não há que se falar no Estado Leviatã, por falta de pressupostos ideológicos. 18 Neste sentido: “Esse quarto poder, conforme estabelecia a Carta política, pousava sobre os demais – Executivo, Legislativo e Judicial – através do poder de prerrogativa, que permitia do imperador sancionar resoluções, prorrogar e adiar sessões, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear e demitir livremente os ministros, suspender os magistrados e conceder indulto e anistia.” (ARAÚJO, Rosalina Corrêa de. O Estado e o Poder Judiciário no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2004, p. 27). 19 BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Fonte: Planalto. 20 HOBBES, Thomas. Leviatã – Ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástica e Civil. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, p. 147. Essa confusão de ideias é tipicamente brasileira, não apenas em se afirmar legalmente algo que na prática se mostrava diferente, mas também por permanecer determinadas instituições arcaicas do período colonial, como o escravismo, que mesmo com as muitas leis ao longo do Século XIX que diminuíram sua incidência (Lei Eusébio de Queirós, de 1850, a Lei do Ventre Livre, de 1871 e a Lei dos Sexagenários, de 1885), o mesmo só foi completamente abolido com a Lei Áurea, de 1888, ou seja, um ano antes da proclamação da república, em 1889, fatos estes que ocorreram na sua maioria por pressões internas dos abolicionistas e ainda mais externas, sobretudo por parte da Inglaterra e seu direito marítimo de interceptar qualquer navio destinado ao tráfico (Lei Bill Aberdeen, de 1845). Tanto é que o Poder Moderador foi extinto pela Constituição Republicana de 1891, ou melhor as duas palavras foram retiradas do texto legal, mas sua força se transmutou do Imperador ao Poder Executivo, que se valeu em inúmeras vezes durante a república de uma suposta superioridade em face dos demais poderes (embora a Constituição previsse a harmonia e independência entre eles) e até mesmo legal, político e social, momentos nos quais a instabilidade política se sobressaía. 21 Isso não significa, todavia, que este passo de extinção do Poder Moderador, do fim do Império e início de uma República tenha sido marcado, tal qual em outros exemplos nos quais ensejaram mudanças drásticas do pensamento político e social do momento, que o mesmo tenha se realizado da mesma maneira. É curioso notar-se que os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo: foram de inspiração intelectual, se assim se pode dizer, tanto quanto sentimental. Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso de nossa evolução política vieram quase de surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência, ou hostilidade. Não emanavam de uma predisposição espiritual e emotiva particular, de uma concepção da vida bem definida e especifica que tivesse chegado à maturidade plena. Os campeões das novas ideias esqueceram-se, com frequencia, de que as formas de vida nem sempre são expressões do arbítrio pessoal, não se “fazem” ou “desfazem” por decreto. 22 21 Neste sentido: “Apesar de não existir mais o Poder Moderador, o Presidente, herdeiro desse poder absoluto, estava um pouquinho acima da lei e dos demais poderes: o que estava escrito no papel da nova Constituição não era suficiente para garantir o equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário”. (ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Ob. Cit.. Dissertação de Doutorado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), 2007, p. 79). 22 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 160. Esta na realidade é a primeira forte ideia que devemos ter em mente. Todas as mudanças acontecidas no Brasil foram iniciadas e terminadas de cima para baixo, em que a sociedade como um todo apenas a recebeu e a colocou em prática conforme se pretendia os interesses da classe dominante e não porque esta ação visasse algo que favorecesse a sua já sofrida vida. O imaginário sobre a aplicação real dos estandartes da Revolução Francesa continuou presente, inclusive, mais de cem anos após a independência da colônia brasileira da metrópole portuguesa, bem como da primeira Constituição que trouxe em seu bojo essas ideias, quando do governo varguistas e da incessante e contínua busca desses ideários, que permaneciam sendo proclamados na letra da lei, mas sem qualquer evidência de consolidação prática para a sociedade. O cotidiano da cidade continuava carregado de tensões herdadas de um projeto republicano mal resolvido. Os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade” continuavam letra morta, mas ainda assim eram vivos nos imaginários dos ativistas da resistência. Socialistas, anarquistas ou comunistas, cada qual à sua maneira, visualizavam um futuro que pretendia extrapolar a ficção. 23 Essas estruturas precárias e arcaicas, aliás, ditarão o ritmo de boa parte dos acontecimentos que se seguem durante o período republicano, alguns como características da longa duração brasileira e outros que, ao se misturar com esses velhos fragmentos, criam novos modelos que, no final, acabam confirmando o continuísmo social, político e legal nacionais, como é o caso do surgimento tardio da burguesia e da passividade da sociedade com muitos atos do governo, fazendo com que quase sempre a classe dominante não fosse atingida em seu poder. Dentro desse contexto social jamais se puderam desenvolver instituições democráticas com base em formas locais de autogoverno. As instituições republicanas, adotadas formalmente no Brasil para justificar novas formas de exercício do poder pela classe dominante, tiveram sempre como seus agentes junto ao povo a própria camada proprietária. No mundo rural, a mudança de regime jamais afetou o senhorio fazendeiro que, dirigindo a seu talante as funções de repressão policial, as instituições da propriedade na Colônia, no Império e na República, exerceu desde sempre um poder hegemônico. 24 23 ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Sonhos de Fumaça – Operários, Artistas e Intelectuais no Palco da Metrópole (1900-1940). In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.). São Paulo Metrópole das Utopias – Histórias de Repressão e Resistência no Arquivo Deops. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009, p. 41. 24 RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, pp. 200-1. A pretensa superioridade do Poder Executivo se fez presente em muitas fases: a República das Espadas (1889-1894), a Primeira República (1894-1930), marcada por constantes estados de sítio e arbitrariedades; a Ditadura de Getúlio Vargas (1930-1945) e seus três governos distintos e contínuos (Provisório, Constitucional e Estado Novo) com os muitos mandos e desmandos decorrentes de inúmeros decretos-leis; durante o primeiro verdadeiro período republicano (1945-1964), em que a sociedade teve de se preocupar com golpes de estado, até o dia que culminou na mácula mais negra da história recente do país, a Ditadura Militar (1964-1985). Com a supressão do tráfico negreiro dera-se, em verdade, o primeiro passo para a abolição de barreiras ao triunfo decisivo dos mercadores e especuladores urbanos [...] Como esperar transformações profundas em país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar? Enquanto perdurassem intatos e, apesar de tudo, poderosos os padrões econômicos e sociais herdados da era colonial e expressos principalmente na grande lavoura servida pelo braço escravo, as transformações mais ousadas teriam de ser superficiais e artificiosas. 25 Não obstante, a República que se instalou no país em momento algum buscou zelar pelos ideários contidos no liberalismo que ainda encontrava barreiras praticamente intransponíveis no nível cultural, político, social e até mesmo econômico, impedindo qualquer avanço no sentido de “evolução” política. A pretensa democracia, tal qual a República, teve seu início não no âmago da sociedade, como em toda e qualquer Revolução que mostrou ser esse o caminho para a verdadeira reestruturação. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodála, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar a situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos. 26 As mudanças no Brasil serem (e ainda hoje) são colocadas, impostas, de cima para baixo, fazendo com que quaisquer transformações não sejam radicais, pelo contrário, pois lastreadas pelo ideário da imutabilidade conservadora, ocorrendo justamente para que possam se manter nesta posição, ou seja, concedem determinados 25 26 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 78. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 160. direitos e anseios à sociedade para não verem essas se voltando contra aqueles que estao no poder. Se analisarmos bem o que se seguiu após o fim do Regime Militar verificaremos que, em muitos aspectos, a sociedade brasileira permanece praticamente imutável, com alguns poucos lampejos de sabedoria que tem como fito sair desses períodos sombrios. Seja as práticas das classes dominantes para a manutenção do seu status, seja a passividade da sociedade e a “compreensão” para muitos atos do Estado, visando interesses próprios, a atualidade não se mostra totalmente diferente em muitos aspectos, sobretudo as estruturas de longa duração que se sobrepõem aos de curta duração, como é o caso de manifestações e reivindicações, que logo desaparecem. A auto-crítica é necessária, pois somente assim poderemos compreender o todo da formação do Estado Brasileiro e da construção do pensamento político, com as influências e o encaixe das ideias que melhor abarcaram (e abarcam) os interesses daqueles que já se encontram no poder. INFLUÊNCIAS EUROPEIAS Conforme comentado anteriormente o Estado brasileiro foi sofrendo influências inúmeras ao longo de sua história, passando por diversos estágios e muitas constituições (no sentido aristotélico do termo, não apenas o usual para Carta Magna). A confluência de ideias diversas é marcante devido à grande miscigenação e misturas advindas dos povos europeus e africanos que aqui se instalaram e em menor escala dos indígenas, em que todos juntos neste imenso criatório de gentes diferentes ajudaram na construção do país e das ideias estatais que se prevaleceram em detrimento de outras ou mesmo se sobrepuseram a elas, o que com o tempo poderá também ser visto na própria sociedade, estratificada e voltada para interesses exteriores aos dos trabalhadores (escravos ou não). A estratificação social gerada historicamente tem também como característica a racionalidade resultante de sua montagem como negócio que a uns privilegia e enobrece, fazendo-os donos da vida, e aos demais subjuga e degrada, como objeto de enriquecimento alheio. Esse caráter intencional do empreendimento faz do Brasil, ainda hoje, menos uma sociedade do que uma feitoria, porque não estrutura a população para o preenchimento de suas condições de sobrevivência e de progresso, mas para enriquecer uma camada senhorial voltada para atender às solicitações exógenas. 27 27 RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, p. 194. Sendo colonizado por Portugal, por evidência que o primeiro contato com alguma ideia política se deu exatamente com o que se praticava na Metrópole. A importância era tamanha que mesmo depois da independência em 1822 e da criação das primeiras universidades brasileiras em 1827, os filhos dos “Donos do Poder” (numa feliz expressão de Raymundo Faoro) continuavam a ir ano após ano aprender a burocratização estatal nas cátedras de Coimbra. Essa burocracia, aliás, foi determinante no Estado brasileiro, uma vez que é a partir desse intrincado sistema em que a mera expectativa de acesso à algum órgão público, qualquer que seja, se torna uma aventura sem fim, passando por diversas repartições que, por vezes, nada tem que ver com o intuito da procura do poder público, com inúmeras fichas a se preencher e diversos protocolos que, ao final, perde-se o interesse em continuar com a empreitada. Foi o que Weber classificou como “Jaula de Ferro”. Se na doutrina de Montesquieu o Estado conseguiu adequar a teoria da tripartição dos poderes aos interesses do momento, em outros casos não podemos dizer o mesmo, já que a resistência às novas ideologias é outro fator marcante da história brasileira. Esta concepção lusitana de impedir o avanço de qualquer ideia que se mostrasse superior e avançado demais aos seus interesses, que de alguma forma colocasse em conflito suas instituições ou simplesmente fosse capaz de trazer outras medidas que não aquelas que mantivessem o conservadorismo deveria ser refutada. A influência da Igreja Católica foi preponderante para este intento. Temendo a expansão protestante, urgira a reafirmação da integridade da fé e dos dogmas, [...] teria início o processo de censura inquisitorial, que aniquilaria o alvorecer do humanismo luso. Neste contexto, a Companhia de Jesus e a Inquisição vieram configurar os contornos da sociedade. Em consequência, Portugal distanciava-se do ideário renascentista, da modernidade científica e filosófica, do espírito crítico e das novas práticas do progresso material, advindas com o Capitalismo, fechando-se no dogma eclesiástico da fé e da revelação, no apego à tradição estabelecida e na propagação de crenças religiosas pautadas na renúncia, no servilismo e na disciplina. 28 As doutrinas novas tinham por pressuposto a busca de ideologias que quebrassem totalmente com o sistema pautado na servidão feudal. O protestantismo, 28 WOLKMER, Antônio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p. 47. sendo um perigo ao catolicismo, foi combatido pela Igreja com a ajuda dos ibéricos. Portugal, por sua vez, auxiliou ao trazer às suas novas terras verdadeiras equipes para a proliferação de sua doutrina conservadora. O liberalismo de John Locke, por exemplo, apesar das muitas tentativas, foi renegado, criticado e tido como impróprio pelos conservadores que tinham como intuito manter a situação da maneira que estava, numa clara manifestação da máxima futebolística “em time que está ganhando não se mexe”. Quando conclamada a doutrina, o faziam os europeus já instalados no país. A fermentação liberalista que precedeu a proclamação da independência constitui obra de minorias exaltadas, sua repercussão foi bem limitada entre o povo, bem mais limitada, sem dúvida, do que o querem fazer crer os compêndios de história pátria. Saint-Hilaire, que por essa época anotava suas impressões de viagem pelo interior brasileiro, observa que, no Rio, as agitações do liberalismo anteriores ao 12 de janeiro foram promovidas por europeus e que as revoluções das províncias partiram de algumas famílias ricas e poderosas. “A massa do povo” , diz, “ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar como o burro da fabula: Não terei a vida toda de carregar a albarda?” 29 Tal fato é até surpreendente, já que para as classes dominantes o liberalismo somente impulsionaria a sua economia empresarial, muito embora, conforme analisado anteriormente, o surgimento tardio da burguesia brasileira seja o responsável também pelo atraso no desenvolvimento social. Ainda que o interesse na doutrina de Locke tenha crescido em fins do Império e início da República, os embates continuavam a acontecer em todos os níveis do Estado: liberais contrários ao império e conservadores favoráveis ao mesmo duelavam na sociedade, na economia, na política e até mesmo no Judiciário, tendo em muitas ocasiões reverberado até nas decisões do Supremo Tribunal Federal, em que ministros de ambas as correntes compunham o pleno de julgamentos. Esta não é, contudo, a única doutrina europeia que procurou terreno no Brasil e ao invés disso encontrou resistência e por longo período de tempo servindo de subterfúgio para a perseguição dos “subversivos”, baseando inclusive a criação da Doutrina da Segurança Nacional e posteriormente sendo utilizado durante toda a ditadura militar para justificar a ação do governo. Por muito tempo o comunismo foi combatido e considerado o inimigo em comum do Estado e da sociedade. A doutrina baseada na filosofia de Karl Marx 29 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 161. encontrou campo fértil entre trabalhadores e as classes mais baixas, tal qual o anarquismo (influenciado pelos imigrantes italianos). Um caso de grande destaque e repercussão envolveu a agente soviética Olga Benário Prestes (esposa de Luis Carlos Prestes, líder do Partido Comunista Brasileira), que foi extraditada por ordem de Getúlio Vargas à Alemanha Nazista, na qual Vargas possuía interesse ideologico, lá morrendo em uma câmara de gás de um campo de concentração. Igualmente negado foi o habeas corpus em favor de Maria Prestes, ou Olga Benário, companheira de Luís Carlos Prestes, presa como estrangeira perniciosa à ordem pública, por crimes cometidos no Brasil, para depois ser expulsa do território nacional. O habeas corpus fora impetrado alegando-se a gravidez da paciente. Olga Benário, no entanto, foi entregue ao governo alemão, vindo a morrer posteriormente em um campo de concentração. 30 Mais do que o liberalismo, o combate ao marxismo foi além. O principal motivo tem relação com o já estudado conservadorismo intrínseco no âmago da sociedade, pois a filosofia comunista tem por base a luta pelos direitos sociais, o que por si só já coloca seus adeptos como o inimigo número um das classes dominantes e dos governantes, havendo inúmeros casos de prisões e julgamentos no Supremo Tribunal Federal sobre o assunto, como no caso acima narrado. As perseguições, todavia, não visavam apenas os marxistas, como também a todo e qualquer grupo que tentasse de alguma maneira se manifestar contrariamente à ordem então estabelecida, incluindo, nesse caso, grupos artísticos, como os de classes operárias que divulgavam o trabalho popular do teatro. Associações que costumavam promover eventos, como a das Classes Laboriosas, foram perseguidas pela Polícia Política de São Paulo para evitar qualquer forma de manifestação que propalasse ideias contrárias à ideologia oficial. Dessa forma, fazia-se uma espécie de “rede de controle” por todos os lugares de divulgação da cultura proletária. Foi assim que, em 1937, durante o Estado Novo, foi criada uma divisão no Deops, inspirada nos moldes nazistas, denominada Serviço de Censura e Fiscalização de Teatros e Divertimentos Públicos, especializada em controlar atividades teatrais e recreativas, principalmente aquelas realizadas no meio operário que criticavam o governo e a ideologia imperialista. 31 30 COSTA, Emília Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. São Paulo: IEJI, 2001, p. 90. 31 ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Sonhos de Fumaça – Operários, Artistas e Intelectuais no Palco da Metrópole (1900-1940). In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.). Ob. Cit. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009, p. 37. Foi no campo positivista, porém, que o cenário brasileiro melhor encontrou resposta às suas necessidades momentâneas, uma vez que sua filosofia foi incorporada somente naquilo que se adequava aos preceitos aqui já estabelecidos. É importante sempre lembrarmos que no plano ideológico o Brasil transplantou um modelo já pronto e acabado de um local com histórico considerável de construção do pensamento humano, social e político, mas sobretudo de uma realidade distinta da encontrada por aqui, tanto em termos gerais (humanos, sociais e políticos), como específicos (clima, economia, gentículos), que acabam por influir também nas concepções inseridas como modelos a serem seguidos com a alegação de que “deu certo” na Europa. Os positivistas foram apenas os exemplares mais característicos de uma raça humana que prosperou consideravelmente em nosso pais, logo que este começou a ter consciência de si. De todas as formas de evasão da realidade, a crença mágica no poder das idéias pareceu-nos a mais dignificante em nossa difícil adolescência política e social. Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam as condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios ate onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incomoda, confirmando nosso instintivo horror as hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. 32 O mais importante, contudo, é sabermos que toda e qualquer ideia somente irá ser absorvida desde que, de alguma maneira, possam ser incorporadas ao que a cultura social já considera como parte de sua formação e de suas características próprias. Afinal, “a experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida”. 33 As ideias europeias de alguma maneira influenciaram a formação do Estado brasileiro e a construção da própria filosofia política pátria, tudo adequado ao tão conhecido e familiar “jeitinho brasileiro”, bem como dos choques constantes com o conservadorismo existente desde sempre nas estruturas políticas, econômicas e sociais do país. 32 33 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 160. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 40. ABRASILEIRAMENTO DE IDEIAS Quando a filosofia europeia chega em território tupiniquim a recepção não é das melhores, explicado pelo fato de o conservadorismo social e político brasileiros encontrar-se totalmente fechado para novas concepções, ainda que tais ideários pudessem servir e se integrar perfeitamente com seu modus operandi. Isso não significa, entretanto, que essas ideias não influenciaram ou mesmo não modificaram as arraigadas ideologias brasileiras. De uma forma ou de outra existe a relação dialética entre o novo e o velho em choques constantes e que, apesar de parecer um velho imutável, este velho sofre alterações, seja para “evoluir” com o material novo introduzido, seja para se fortalecer contra esse mesmo novo material. Em ambos os casos, temos a figura do abrasileiramento das ideias, consistente na formação de uma maneira, um lócus, de se enxergar as novas filosofias. Essa forma de se ver e considerar as ideias está pautada em como cada agente se relaciona com o objeto e o quão útil a sua intercepção será para satisfazer seus interesses, sejam eles pessoais ou não. Em outras palavras, o número de verdades será o mesmo que o número de sujeitos, isto porque cada qual analisará a filosofia política e a aplicará de acordo com sua visão e possibilidades para tanto. No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa historia, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. 34 Tratando desse “jeitinho brasileiro” é que podemos identificar a aplicação da filosofia política com qualquer forma filosófica já existente em território nacional, isto é, quando coloca-sena prática não a filosofia europeia no Brasil, mas sim aplicar a ideologia brasileira nos ideários europeus, aplicação essa voltada ao particular, dificilmente aos interesses públicos (diferente do que prega Aristóteles). Por evidência, não se trata de uma análise pura das teorias, muito menos de aplicação das mesmas tal qual concebidas, mas sim o resultado da relação dialética entre a tese (filosofia brasileira) e da antítese (filosofia europeia) fazendo surgir a síntese 34 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Companhia das Letras. 26ª Edição. 2008, p. 146. (nova concepção), que pode ou não ser simplesmente ignorada, desmentida e refutada por outras que mesmo não sendo contras também não se colocam a favor. Estas concepções, sejam novas, velhas ou oriundas do choque entre elas, não poderia ter outro pressuposto que não a convalidação da classe hegemônica como a única socialmente dominante, permanecendo igual a si mesma na sua posição de controladora social. Essas linhas de formação correspondem, no lado nórdico, à formação de um povo livre, dono do seu destino, que engloba toda a cidadania branca. No nosso sul, o que se engendra é uma elite de senhores da terra e de mandantes civis e militares, montados sobre a massa de uma subumanidade oprimida, a que não se reconhece nenhum direito. A evolução de uma e de outra dessas formações dá lugar, nas mesmas linhas, de um lado, amadurecimento democrático fundado nos direitos dos cidadãos, englobando também os negros. Do outro, uma feitoria latifundiária, hostil a seu povo condenado ao arbítrio, à ignorância e à pobreza. 35 Para verificarmos este abrasileiramento de ideias basta analisarmos o já estudado poder moderador inserido durante o Império junto com a tripartição dos poderes. Tal concepção não existe na ideia de Montesquieu, mas passou a ser o principal dentre todos (ao menos no Brasil) e mesmo após sua extensão a força das suas ideias permaneceu. Fato é que qualquer mudança radical na sociedade acabaria na perda do poder (colonial, imperial e republicano) daqueles que se mantinham e se mantém no poder, numa evidente e clara ideia de continuísmo no qual as estruturas brasileiras devem permanecer tal qual o melhor interesse dessas classes. Mudanças estruturais, seja elas quais forem, ensejariam a impossibilidade de manutenção conservadora do poder dominante. Desde a abolição, a reforma agrária ou o surgimento de uma verdadeira burguesia capaz de ditar os rumos da sociedade e levá-la à verdadeiras mudanças, o Brasil sempre esbarrou nos interesses dos poucos que seriam violentamente ameaçados e retirados de seu posto de dominador podendo acontecer tal qual na Revolução Francesa de algumas cabeças rolarem. O Brasil, produto da expansão da economia mundial, necessitaria profundas transformações para subsistir fora dela. As decisões indispensáveis para isso – abolição, reforma agrária, industrialização autônoma – excediam à capacidade daquele segmento social existente, uma vez que, para a classe dominante, permanecia sendo lucrativa economicamente a importação de bens manufaturados dos centros europeus e a exportação de produtos tropicais. Acresce ainda, que, não 35 RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, p. 65. existindo então modelos de reconstrução intencional da sociedade, uma reversão puramente autonomista teria resultado, no máximo, em uma autarquia feudal. Como em todos os casos de feudalização, isso representaria uma ruptura do sistema mercantil, que tornaria impraticável a escravidão, porque não haveria como adquirir novos escravos e porque os tornariam inúteis em sua função efetiva, que é a de produtores de mercadoria. 36 Outra possibilidade de encontrar a incidência dessas novas visões acerca das filosofias europeias é verificarmos como o marxismo foi inserido em território nacional, ou seja, de acordo com qual modelo se baseou o que aqui foi chamado de “ameaça vermelha”, tudo com o intuito de distanciá-lo o máximo possível da realidade brasileira. Explica-se: embora o marxismo puro seja único (aquele que foi concebido por Karl Marx), muitas foram as interpretações que surgiram dela, da mesma maneira que o abrasileiramento o faz com as filosofias europeias. Temos, então, o modelo soviético (subdividido na década de 1920 em leninista, trotskista e stalinista), o modelo maoísta (influenciada pela filosofia milenar de Confúcio) e o modelo castrista, somente para citar alguns. Todas são adaptações da filosofia marxista e o que se viu no Brasil foi a adaptação de um modelo anteriormente já adaptado do originalmente concebido. Contudo, o que se viu no Brasil foi a perseguição de qualquer doutrina considerada subversiva, o que incluía todas os modelos existentes de marxismo, independente de qual fosse. Basta analisar, primeiramente, o envolvimento de Luís Carlos Prestes com a União Soviética e décadas depois o de João Goulart com a China. Em ambos os casos, não importava qual o modelo de comunismo, importava apenas que era comunismo e deveria ser combatido. Jânio Quadros é um exemplo interessante não apenas para se analisar o abrasileiramento de ideias, como também a má formação do pensamento político nacional, adaptando-se de acordo com as necessidades de momento daqueles que estão no poder, sendo esta a causa da queda de Quadros, já que “minado pelas contradições de sua política, que externamente apoiava a esquerda, enquanto internamente adotava uma postura de direita, Quadros renunciaria à presidência pouco menos de sete meses após a posse, lançando o país em uma das maiores crises políticas de sua história”. 37 Tanto para a formação do Estado brasileiro como para a construção do pensamento político esta concepção de se utilizar uma maneira de adaptar a filosofia alienígena à realidade nacional foi preponderante para se alcançar e se desenvolver o 36 37 RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2007, pp. 144-5. COSTA, Emília Viotti da. Ob. Cit. São Paulo: IEJI, 2001, p. 156. modelo estatal hoje vigente, assim como as filosofias contrárias e críticas a esta mesma concepção. CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando propusemos analisar um tema já conhecido da história do Brasil tínhamos em mente a contribuição crítica e, com isso, o surgimento de debates sobre os meandros da formação do Estado brasileiro e da construção de um ideário político. Estudos desta monta servem como parâmetros para utilizarmos na atualidade e verificarmos os modelos de longa duração da sociedade brasileiro, bem como as incidências de curta duração, que devem ser vistos como essenciais para a compreensão do todo. Não se trata de considerarmos a história como sendo linear e sem qualquer alteração, mas justamente analisar como esse inatismo, ou seja, essa falta de alteração nas estruturas sociais, políticas e econômicas pode ainda hoje ser percebida em muitos aspectos da realidade brasileira. O Brasil possui diferenciais notáveis em relação aos seus irmãos latinos e podemos assim considerar pela influência da colonização portuguesa, já que na América Espanhola a colonização e o povoamento se deram de maneiras diferentes, ainda mais com relação à filosofia advinda do Velho Mundo. O absolutismo português (que como vimos se difere do absolutismo representativo de Thomas Hobbes) é o responsável primeiro pelo conservadorismo das instituições políticas e econômicas brasileiras e, em segundo plano, pela falta de interesse que as novas filosofias despertaram nos brasileiros. Durante o Império, o poder permaneceu nas mãos de poucos e a classe dominante permaneceu igual, inalterada, apesar da teórica mudança do colonialismo ao monarquismo imperial, fato este que também perseguiu por longos anos a República (lembremos da Primeira República em que as Oligarquias Paulista e Mineira dominavam a política nacional), impedindo qualquer nova teoria de adentrar e se incutir na sociedade. Uma das inquietações que tentamos despertar a partir deste trabalho surge justamente dessa problemática. Se por motivos óbvios tanto no período colonial como no Império as doutrinas liberais e de cunho voltado ao social batiam no “paredão conservador”, porque a República não quebrou este estigma e reconstruiu o pensamento político, social e econômico? A resposta está justamente na sociedade, isto porque todas as mudanças ocorridas no país se fizeram de cima para baixo, com a classe dominante ditando os rumos do que deveria ser feito e a sociedade aceitando passivamente essas determinações, de modo que assim se perpetuou a classe dominante da Colônia no Império e do Império na República, sem que as ideias de mudanças de base fossem levadas em consideração, apenas as mudanças que favorecessem a continuidade de domínio dessa classe hegemônica rural. Estamos diante de um momento único na história do Brasil, em que os questionamentos são possíveis de serem feitos e as pesquisas devem engendrar exatamente resultados no sentido de permitir novas pesquisas e questionamentos, uma vez que a sociedade brasileira necessita se conhecer e se fazer vista, o que só é possível pela análise de sua história. BIBLIOGRAFIA ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Uma Cadeira de Espinhos: O Supremo Tribunal Federal e a política (1933-1942). Dissertação de Doutorado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), 2007. ____________________________________. Sonhos de Fumaça – Operários, Artistas e Intelectuais no Palco da Metrópole (1900-1940). In: Maria Luiza Tucci Carneiro (Org.). São Paulo Metrópole das Utopias – Histórias de Repressão e Resistência no Arquivo Deops. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009. ARAÚJO, Rosalina Corrêa de. O Estado e o Poder Judiciário no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2004. BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Fonte: Planalto. COSTA, Emília Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. São Paulo: IEJI, 2001. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2012. HOBBES, Thomas. Leviatã – Ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástica e Civil. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003. HOLANDA, Sérgio Buarque de. 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