um estudo léxico-semântico no campo “estrelas”: falares do povo

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Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande
ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012
UM ESTUDO LÉXICO-SEMÂNTICO NO CAMPO LÉXICO DAS
“ESTRELAS”: CONTRIBUIÇÕES DO ATLAS LINGUÍSTICO DE
MATO GROSSO DO SUL
Suely Aparecida Cazarotto (PG/UFMS)
[email protected]
RESUMO: Este estudo teve por objetivo analisar, sob as perspectivas léxico-semântica e diatópica, as
variantes lexicais, registradas no campo léxico “estrelas”, utilizadas pelos falantes sul-mato-grossenses
para nomear os conceitos dos referentes estrela cadente (“Nas noites estreladas, como se chama aquela
estrela que parece caminhar no céu?”), estrela d´alva (“Como se chama aquela estrela grande que a
gente vê quando o dia está clareando?”), três marias (“E aquelas estrelas que estão sempre juntinhas?”)
e via-láctea (“Em noites estreladas, aquela faixa esbranquiçada que fica bem no meio do céu?”). A partir
das variantes selecionadas, fizemos uma busca nos dicionários de uso geral da língua - Ferreira (1998),
Ferreira (2004) e Houaiss (2007) -, a fim de verificar a dicionarização das unidades lexicais em estudo e a
sua inscrição enquanto brasileirismo e/ou regionalismo, observando-se, sobretudo, as variantes marcadas
como regionalismo sul-mato-grossense. Utilizamos como fonte de dados o ALMS – Atlas Linguístico de
Mato Grosso do Sul (2007), que registrou aspectos da língua em uso por falantes sul-mato-grossenses,
com os seguintes propósitos: 1) conhecer as características da modalidade falada no Mato Grosso do Sul;
2) oferecer aos estudiosos da língua portuguesa e pesquisadores de áreas afins contribuições para o
ensino/aprendizagem dessa, respeitando as variações regionais, e 3) sistematizar dados para futuras
descrições nas diversas áreas do conhecimento (OLIVEIRA, 2007, p.14).
Palavras-chave: ALMS – Atlas Linguístico de Mato Grosso do Sul; campo léxico “estrelas”; variantes
lexicais; perspectivas léxico-semântico-diatópica.
ABSTRACT: This study aimed to analyze the perspectives semantic-lexicon and diatopical, lexical
variants, recorded in the lexical field "stars" are used by speakers of South Mato Grosso to name the
concepts regarding the shooting star ("In the evenings stellate, as it is called that star that seems to walk
in the sky? ") morning star ("What do you call that big star that people see when the day is clearing? "),
three Marys ("And those stars that are always close to each other? ") and Milky Way ("In starlit nights,
that band that white is right in the middle of the sky? "). From the selected variants, we did a search in
dictionaries of general use of language - Ferreira (1998), Ferreira (2004) and Houaiss (2007) - in order to
verify the dictionaryzation study of lexical units and their Brazilianness and enrollment while/or
regionalism, noting in particular the variants marked regionalism South Mato Grosso. Our sources of data
the ALMS - Linguistic Atlas of South Mato Grosso (2007), which recorded aspects of language use by
speakers of South Mato Grosso, with the following purposes: 1) know the characteristics of spoken
modality in South Mato Grosso, 2) offer students of Portuguese and researchers in related fields
contributions to the teaching/learning of this, respecting the regional variations, and 3) to systematize data
for future descriptions in various areas of knowledge (OLIVEIRA, 2007, p.14).
Keywords: ALMS - Linguistic Atlas of South Mato Grosso; lexical field "stars"; lexical variants;
prospects lexical-semantic-diatopical.
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Introdução
É por meio da língua que o homem expressa suas crenças, seus valores, suas
ideologias. Desde o seu nascimento se vê cercado por manifestações linguísticas e, por
isso, nem se dá conta, de imediato, das mudanças que ocorrem na sua língua, em
particular no nível lexical: algumas palavras caem em desuso e outras se incorporam à
fala dos indivíduos. Devemos entendter a língua como um fato cultural, parte da vida de
uma sociedade. Isso faz com que aspectos da cultura dessa sociedade sejam acumulados
e repassados, através das gerações, por meio da língua. Nessa perspectiva, pode-se
também considerar o léxico como “herança” cultural dos indivíduos que integram essa
sociedade, afirmativa esta referendada por Biderman (1981, p. 132), quando expõe que,
se considerarmos a dimensão social da língua, podemos ver no léxico o
patrimônio social da comunidade por excelência, juntamente com outros
símbolos da herança cultural. Dentro desse ângulo de visão, esse tesouro
léxico é transmitido de geração a geração como signos operacionais, por
meio dos quais os indivíduos de cada geração podem pensar e exprimir seus
sentimentos e idéias.
Acresce-se ainda que, mesmo com as constantes transformações pelas quais
passa a sociedade e, consequentemente, a linguagem, o grupo conserva marcas
linguísticas de seus antepassados na configuração de seus hábitos, atitudes, mitos,
superstições, lendas, ou seja, na forma de nomear o mundo que o cerca. Nesse sentido,
Biderman, valendo-se do pensamento de Matoré (1953), no que se refere à tese de o
léxico funcionar como testemunha de uma sociedade, argumenta:
Matoré tem razão quando afirma que a palavra tem uma existência
psicológica e um valor coletivo. Também está certo ao afirmar que é pela
palavra (diríamos a nomeação) que o homem exerce a sua capacidade de
abstrair e de generalizar o individual, o subjetivo. A palavra cristaliza o
conceito resultante dessa operação mental, possibilitando a sua transmissão
às gerações seguintes (MATORÉ, 1953 apud BIDERMAN, 1981, p. 132).
Ao focalizar a questão da relação entre língua, cultura e sociedade, deve-se levar
em conta que o léxico é o nível da língua que melhor representa a herança sociocultural
de um grupo e que revela as mudanças ocorridas no sistema social, representando e
configurando as experiências de um grupo. Para a realização deste trabalho, considerar-
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se-á, como modelo de sociedade, o Brasil, um país de relevante dimensão geográfica, ao
que cabe considerá-lo também como um mosaico de variantes lexicais, uma vez que
cada uma das suas extensas regiões particulariza termos para nomear fatores físicos,
culturais, ambientais; ou seja, utilizam-se de formas diferenciadas para traduzir cada
uma das realidades que essas regiões apresentam. E mais, dentre essas extensas regiões,
aproximamo-nos da região Centro-Oeste e, mais particularmente, do estado de Mato
Grosso do Sul, onde encontramos unidades lexicais distintas para nomear um mesmo
conceito. Para a interpretação desse fenômeno, valemo-nos do pensamento de Sapir,
citado por Biderman (1998), no sentido de que
a linguagem é um guia para a „ realidade social´. (...) Os seres humanos não
vivem só no mundo objetivo, ou só no mundo da atividade social como
normalmente se admite, vivem quase totalmente à mercê da língua
específica que se tornou o meio de expressão para a sua sociedade. É
ilusório imaginar que alguém possa fundamentalmente ajustar-se à realidade
sem o uso da linguagem e que a língua seja apenas um recurso qualquer para
resolver problemas específicos de comunicação ou reflexão. O fato é que „o
mundo real´ é, em grande parte, construído inconscientemente sobre a base
dos hábitos lingüísticos do grupo. Não existem duas línguas, por mais
semelhantes que sejam, que possam ser consideradas como representantes
da mesma realidade social. Os mundos em que vivem as diferentes
sociedades humanas são mundos distintos e não um só e mesmo mundo ao
qual se teriam aposto etiquetas diferentes (SAPIR, apud BIDERMAN, 1998,
p. 93).
Este trabalho utiliza como fonte de dados o ALMS – Atlas Linguístico de Mato
Grosso do Sul (2007), que registrou aspectos da língua em uso por falantes sul-matogrossenses, com os seguintes propósitos: 1) conhecer as características da modalidade
falada no Mato Grosso do Sul; 2) oferecer aos estudiosos da língua portuguesa e
pesquisadores de áreas afins contribuições para o ensino/aprendizagem dessa,
respeitando as variações regionais, e 3) sistematizar dados para futuras descrições nas
diversas áreas do conhecimento (OLIVEIRA, 2007, p.14).
A rede de pontos do ALMS constituiu-se de 32 localidades distribuídas por
cinco setores, encabeçados pelos municípios de Três Lagoas, Corumbá, Aquidauana,
Campo Grande e Dourados. A escolha dos pontos de inquéritos pautou-se em critérios
demográficos, históricos e sociais e em cada uma das 32 localidades da rede de pontos
foram entrevistados quatro informantes estratificados segundo as variáveis sexo
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(masculino e feminino), grau de escolaridade (analfabeto ou com escolaridade até 4ª
série do ensino fundamental), naturalidade (nascido no município ou nele residindo
desde os oito anos de idade) e idade (duas faixas etárias, 18 a 35 anos e 45 a 65). A
coleta de dados foi feita por meio de entrevistas, utilizando-se, para isso, um
questionário único com 557 perguntas subdivididas em aspectos fonéticos, semânticolexicais e morfossintáticos. As entrevistas foram gravadas in loco com duração de mais
ou menos três horas, perfazendo um total de 384 horas de gravação com 128
informantes, sendo 64 homens e 64 mulheres (OLIVEIRA, 2007, p.20). As perguntas
do questionário abordavam as seguintes temáticas: a) acidentes geográficos; b)
fenômenos atmosféricos; c) tempo; d) flora; e) fauna; f) corpo humano; g) doenças mais
comuns; h) funções do corpo humano; i) características físicas; j) ciclos da vida; k)
religiões e crenças; l) vestuários e objetos de uso pessoal; m) brinquedos e diversões;
n) sistema de pesos e medidas; p) superstições, simpatias e lendas.
O projeto ALMS foi um trabalho de onze anos que resultou em 207 cartas
linguísticas, sendo: 47 fonéticas, 153 semântico-lexicais e 7 morfossintáticas.
Metodologia
Para a realização deste estudo utilizamo-nos de um recorte de cartas semânticolexicais do ALMS, campo léxico das estrelas: QSL 0033.a, estrela cadente; QSL
0034.a, estrela d´alva; QSL 0035.a, três marias e QSL 0036.a, via-láctea.
A análise das variantes registradas nessas cartas considerou as perspectivas
léxico-semântica e diatópica, procurando mostrar as variantes lexicais utilizadas pelos
falantes sul-mato-grossenses para nomear os conceitos dos referentes estrela cadente
(“Nas noites estreladas, como se chama aquela estrela que parece caminhar no céu?”),
estrela d´alva (“Como se chama aquela estrela grande que a gente vê quando o dia
está clareando?”), três marias (“E aquelas estrelas que estão sempre juntinhas?”) e
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via-láctea (“Em noites estreladas, aquela faixa esbranquiçada que fica bem no meio do
céu?”).
A partir das variantes selecionadas, fizemos uma busca nos dicionários de uso
geral da língua - Ferreira (1998), Ferreira (2004) e Houaiss (2007) -, a fim de verificar a
dicionarização das unidades lexicais em estudo e a sua inscrição enquanto brasileirismo
e/ou regionalismo, observando-se, sobretudo, as variantes marcadas como regionalismo
sul-mato-grossense.
Discussão dos dados
No verbete estrela, Ferreira (1988) define essa unidade lexical como
denominação comum aos astros luminosos que mantém praticamente as
mesmas posições relativas na esfera celeste, e que, observados à distância,
apresentam cintilação, o que os distingue dos demais planetas. Dispõem-se
segundo grupos localizados em regiões convencionalmente delimitados do
céu, as constelações. Constituem o elemento fundamental da formação do
Universo, grupando-se em aglomerados, associações, correntes, grupos,
galáxias.
A olho desarmado o seu brilho aparente é definido pela
magnitude. [...]. (FERREIRA, 1988.)
O
mesmo autor registra as seguintes variantes para estrela: estrela anã, estrela
binária, estrela cadente, estrela matutina, estrela da tarde, estrela múltipla, estrela
nuclear, estrela cataclísmica, estrela nuclear.
A variante estrela cadente que, segundo Ferreira (1988), nomeia “um
fragmento de matéria do espaço interplanetário que ao penetrar na atmosfera se aquece,
tornando-se luminoso”, está registrada na carta QSL 0033.a, do ALMS, em treze das
trinta e duas localidades pesquisadas, resultando num percentual de 19,53%. Trata-se da
variante com maior número de ocorrências entre os falantes sul-mato-grossenses. Vale
ressaltar que, na localidade de Nioaque, leste do Estado, três dos quatro informantes
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entrevistados citaram essa variante – estrela cadente - para nomear o referente. Em
Campo Grande, centro e capital do Estado, e Porto Esperança, extremo leste, dois
informantes também mencionaram essa mesma unidade lexical.
A segunda variante marcada para o referente, normalmente denominado de
estrela cadente e utilizada por 10,16% dos entrevistados, foi satélite.
Cabe, aqui, menção à variante estrela companheira da lua, apontada como
designação do referente em pauta, pelo informante do sexo masculino, da 2ª faixa etária,
no município de Bataguassu. Percebe-se nessa designação um “tom poético” expresso
na nomeação do referente. Percebe-se, nas variantes deus te guia, deus te acompanhe,
estrela de Davi, usadas para nomear a estrela cadente, a manifestação da religiosidade,
da fé e da crença dos informantes entrevistados. Essas variantes de caráter religioso
foram registradas com um percentual de 0,78%, cada uma delas, em todo o território
sul-mato-grossense.
Relativo á variante estrela d´alva, Ferreira (1988) e Houaiss (2007) asseveram
que representa outra designação do planeta Vênus, “o mais brilhante dos planetas, com
órbita situada entre a de Mercúrio e a da Terra [...]” (FERREIRA, 1988). Ainda segundo
o mesmo autor, são sinônimos de estrela d`alva: “Vésper, Véspero, estrela Vésper,
estrela vespertina, estrela da tarde, estrela matutina, matutina, estrela da manhã, estrela
d´alva, estrela do Pastor”.
Essa variante - estrela d´alva - foi registrada em todas as localidades
pesquisadas, contabilizando um percentual de 41,41% de ocorrências. Nas localidades
de Aquidauana, Camapuã, Corumbá e Porto Esperança, os quatro informantes
entrevistados fizeram uso dessa variante para nomear o referente em questão. Nos
municípios de Amambaí, Coxim, Eldorado, Fátima do Sul, Iguatemi, Rio Brilhante, Rio
Negro e Três Lagoas, três dos quatro informantes mencionaram essa unidade lexical.
O ALMS registra, ainda, as variantes istrela darva, dalva, istrela alva, istela
dalva, darva e estrela dalva que, somadas à estrela d´alva, marcam um percentual de
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53,13% na nomeação do referente em pauta entre os falantes sul-mato-grossenses.
A segunda variante de maior ocorrência, com um percentual de 5,47%, foi
estrela guia, no entanto, não foi encontrada nenhuma referência a ela em Ferreira
(2001). Por seu turno, Houaiss (2007) traz a seguinte definição: “Estrela guia - estrela
(ou qualquer astro do firmamento) usado como referencial para direcionamento”.
Importa ressaltar a informação de que, tanto em estrela cadente quanto em
estrela d´alva, a variante estrela guia foi mencionada e, curiosamente, nas duas
situações os informantes eram da primeira faixa etária. Isso nos leva a crer que a atual
geração desconhece o referente ou o seu meio dificulta a compreensão dos fenômenos
naturais.
Há, no ALMS, também o registro de lucena, fornecida pelo informante do
sexo masculino, da 1ª faixa etária, no município de Bela Vista, para nomear o referente
comumente designado de estrela d´alva. Ferreira (1988) não contempla essa variante
como verbete, há, porém, o registro de lucerna, na acepção de “lumeeira; tipo de
lanterna colocada no alto; lampadário”. Também no verbete lucerna e, segundo o
mesmo autor, há referência a lucarna, “abertura no teto de uma casa para dar luz”,
considerando lucerna e/ou lucarna como variantes de lucena, apresentada como
designação da estrela d´alva. Houaiss (2007) define lucerna como “pequena luz ou
fonte de luz, posta em local bem alto; candeia, lanterna” e lucarna como sua sinônima.
Com isso, podemos perceber que o sema luminosidade, oriunda do Planeta Vênus, é o
que aproxima essas variantes.
Sequenciando a análise dos dados reunidos no campo léxico estrela, temos
três marias, variante não registrada como verbete nos dicionários impressos
consultados. Mesmo no verbete estrela, não há o registro de três marias enquanto tal.
No verbete constelação, encontramos “grupo de estrelas” (FERREIRA, 1988), mas,
também, nenhuma referência a esta variante - três marias. No Dicionário Aurélio
Eletrônico - Século XXI (2004) há o registro de três marias como “asterismo na
constelação de Órion, formado por três estrelas brilhantes, em linha reta, e igualmente
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espaçadas; Três-Irmãs, Cinto de Órion”. No Houaiss (2007) há o verbete três marias,
mas, em sua conceituação, não é feita nenhuma referência a estrelas.
Essa unidade lexical foi citada em três localidades das 32 (trinta e duas)
selecionadas: Iguatemi e Sete Quedas, no extremo sul do Mato Grosso do Sul, e
Inocência, ao leste do Estado, e ocupou um percentual de 35,16% entre os informantes
selecionados. As variantes trêis maria, trêis marias e três maria são as mais recorrentes
entre os falantes sul-mato-grossenses.
É interessante assinalar que a unidade lexical trêis irmã, registrada como
sinônimo de três marias no Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI (2004), só foi
mencionada pela informante do sexo feminino, da 1ª faixa etária, do município de
Naviraí, sul do estado de Mato Grosso do Sul.
Assim como em estrela cadente, também em três marias encontramos marcas
acentuadas da religiosidade do falante sul-mato-grossense. As lexias cruzeru, cruzeru
du sul, trêis salomãu, trêis ave maria, avi maria, trêis avi maria, cruzeiru du sul,
rosário de maria imaculada e trêis reis magu confirmam isso.
Analisando, agora, via-láctea, convém pontuar que essa variante foi
encontrada como verbete em Ferreira (1988), dicionário impresso, na acepção de
“nebulosa que forma longa mancha branca no escuro do céu” e como sinônimos
utilizados na linguagem popular, o mesmo lexicógrafo apresenta as seguintes acepções
“caminho de São Tiago e carreira de São Tiago”. Todavia, não está registrada nem em
Ferreira (2004), nem em Houaiss (2007).
É curioso notar que o maior percentual registrado na nomeação desse referente
foi o de respostas não produtivas – marcadas pela sigla RNP, perfazendo um total de
62,50%, e as respostas prejudicadas – RP, com um percentual de 1,56%. Isso nos faz
acreditar, mais uma vez, no desconhecimento do referente por parte dos informantes
urbanos, ou seja, os informantes, mesmo com o conceito apresentado pelo entrevistador,
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não conseguem estabelecer nenhuma relação com algo que lhes seja familiar ou
conhecido e, com isso, não podem fornecer a resposta.
Não houve ocorrência da forma padrão via-láctea em nenhuma das localidades
pesquisadas. A resposta mais próxima, talvez em decorrência da aparência física do
fenômeno, foi com a unidade lexical “névia”, utilizada pelo informante do sexo
masculino, da primeira faixa etária do município de Rio Negro. Todavia, muitos
sinônimos produtivos na língua popular foram mencionados: caminho de santiago
(8,59%); camim di santiagu (2,34%); caminhu di santiágua (0,78%); caminhu de são
tiagu (0,78%) e camim santiagu (0,78%) que, somados, perfizeram um total de 13,27%.
As variantes cruzeru, cova di adão i eva, covas di adãu, cruzeiro do sul, corpu
da nossa senhora, cova di adãu, pão de cada dia, mantu di nossa senhora, cruzeru do
sul, sãu franciscu, túmulu di adãu i eva, adãu i eva e caminho di são jorgi demonstram,
mais uma vez, o caráter religioso impresso pelo falante sul-mato-grossense em algumas
designações de corpos celestes.
Interessante também são as referências feitas a animais para designar a vialáctea: rabu di galu, rabu di pexe e avistruiz na noiti istrelada. Este último, além de
reportar-se a um animal, tem conotação poética. Não é demais lembrar que as
designações de corpos celestes normalmente têm caráter mitológico, daí o uso de
designações relacionadas a animais para nomeá-los e a evocação de aspectos ligados à
religiosidade nas designações desses referentes.
Algumas considerações finais
A análise das variantes relacionadas ao campo léxico das estrelas demonstrou
que a unidade lexical estrela é carregada de “poder mágico”, que lhe é atribuído pela
cultura popular, definida por Câmara Cascudo, em entrevista concedida à Folha de São
Paulo, em 08/01/1979, como “tudo quanto caracteriza a cultura anônima e coletiva” e
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que “qualquer um de nós é um mestre que sabe contos, mitos, lendas, versos,
superstições [...]”. E é no âmbito dessa cultura popular que emergem superstições que se
relacionam às estrelas, tais como: “apontar para as estrelas faz criar verrugas nos
dedos”; “ao vermos uma estrela cadente devemos fazer um pedido, pois é garantido
que ele se realizará”, dentre outros.
Ainda há, nesse contexto, a presença de conotações de religiosidade,
manifestação de fé, de crenças populares relacionadas ao papel, ou até mesmo ao
“poder” das estrelas no imaginário popular, o que ficou evidente na análise das
unidades lexicais estrela cadente, três marias, estrela d´alva e via láctea. E isso
também nos remete às superstições, uma vez que essas resultam essencialmente da
deturpação ou acomodação psicológica de elementos religiosos contemporâneos,
condicionados à mentalidade popular e, ainda, que as superstições participam da própria
essência intelectual humana e não há momento da história do mundo sem sua inevitável
presença.
Assim como a língua – meio através do qual o homem se expressa e dá nome às
coisas que o cerca -, que é mutável e deixa transparecer aspectos inerentes a uma
determinada comunidade, em um determinado tempo, fornecendo-nos elementos que
descrevem fatores de ordem cultural, física, social e ideológica dessa comunidade,
também a cultura popular está recheada de elementos que permitem a interpretação
ideológica, religiosa e cultural de um grupo que se revelam seus mitos, o que é
materializado por meio do universo lexical, uma vez que
o léxico de uma língua constitui uma forma de registrar o conhecimento do
universo. Ao dar nomes aos referentes, o homem os classifica
simultaneamente. Assim, a nomeação da realidade pode ser considerada
como a etapa primeira no percurso científico do espírito humano de
conhecimento do universo. Ao identificar semelhanças e, inversamente,
discriminar os traços distintivos que individualizam esses referentes em
entidades distintas, o homem foi estruturando o mundo que o cerca,
rotulando essas entidades discriminadas. É esse processo de nomeação que
gerou e gera o léxico das línguas naturais. [...] A geração do léxico se
processou e se processa através de atos sucessivos de cognição da realidade
e da categorização de experiência, cristalizada em signos lingüísticos: as
palavras (BIDERMAN, 1998. p. 91-92).
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Portanto, a utilização de determinadas unidades lexicais, por um grupo social,
em detrimento de outras, demonstra que o léxico deriva, em grande parte, da influência
da realidade na forma de viver de um grupo. Assim sendo, este estudo nos forneceu
meios para uma melhor compreensão da realidade sociocultural de um grupo de falantes
– cidadãos sul-mato-grossenses –, expressa na forma de nomear os fenômenos
atmosféricos, mais precisamente os tipos de estrelas.
Referências Bibliográficas
BIDERMAN, M. T. C. A estruturação mental do léxico. In: Estudos da Filologia e
Lingüística. São Paulo: T. A. Queiroz/EDUSP, 1981, p. 131-145.
_____________. Dimensões da palavra. Filologia e lingüística portuguesa. N. 2,
1998, p. 81-118.
_____________. As ciências do léxico. In: OLIVEIRA, A. M. P. P. e ISQUERDO, A.
N. As ciências do léxico. Lexicologia, Lexicografia e Terminologia. Campo Grande –
MS: UFMS, 1998, p. 11-20.
FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI – versão 3 – Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988.
HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2007.
OLIVEIRA, D. P. (Org.). Atlas Lingüístico de Mato Grosso do Sul. Campo Grande –
MS: Ed. UFMS, 2007.
http/www.arteducacao.pro.br Acesso em 15/12/2011
http/www.terrabrasileira.net Acesso em 15/12/2011
Recebido Para Publicação em 15 de março de 2012.
Aprovado Para Publicação em 17 de maio de 2012.
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