Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012 UM ESTUDO LÉXICO-SEMÂNTICO NO CAMPO LÉXICO DAS “ESTRELAS”: CONTRIBUIÇÕES DO ATLAS LINGUÍSTICO DE MATO GROSSO DO SUL Suely Aparecida Cazarotto (PG/UFMS) [email protected] RESUMO: Este estudo teve por objetivo analisar, sob as perspectivas léxico-semântica e diatópica, as variantes lexicais, registradas no campo léxico “estrelas”, utilizadas pelos falantes sul-mato-grossenses para nomear os conceitos dos referentes estrela cadente (“Nas noites estreladas, como se chama aquela estrela que parece caminhar no céu?”), estrela d´alva (“Como se chama aquela estrela grande que a gente vê quando o dia está clareando?”), três marias (“E aquelas estrelas que estão sempre juntinhas?”) e via-láctea (“Em noites estreladas, aquela faixa esbranquiçada que fica bem no meio do céu?”). A partir das variantes selecionadas, fizemos uma busca nos dicionários de uso geral da língua - Ferreira (1998), Ferreira (2004) e Houaiss (2007) -, a fim de verificar a dicionarização das unidades lexicais em estudo e a sua inscrição enquanto brasileirismo e/ou regionalismo, observando-se, sobretudo, as variantes marcadas como regionalismo sul-mato-grossense. Utilizamos como fonte de dados o ALMS – Atlas Linguístico de Mato Grosso do Sul (2007), que registrou aspectos da língua em uso por falantes sul-mato-grossenses, com os seguintes propósitos: 1) conhecer as características da modalidade falada no Mato Grosso do Sul; 2) oferecer aos estudiosos da língua portuguesa e pesquisadores de áreas afins contribuições para o ensino/aprendizagem dessa, respeitando as variações regionais, e 3) sistematizar dados para futuras descrições nas diversas áreas do conhecimento (OLIVEIRA, 2007, p.14). Palavras-chave: ALMS – Atlas Linguístico de Mato Grosso do Sul; campo léxico “estrelas”; variantes lexicais; perspectivas léxico-semântico-diatópica. ABSTRACT: This study aimed to analyze the perspectives semantic-lexicon and diatopical, lexical variants, recorded in the lexical field "stars" are used by speakers of South Mato Grosso to name the concepts regarding the shooting star ("In the evenings stellate, as it is called that star that seems to walk in the sky? ") morning star ("What do you call that big star that people see when the day is clearing? "), three Marys ("And those stars that are always close to each other? ") and Milky Way ("In starlit nights, that band that white is right in the middle of the sky? "). From the selected variants, we did a search in dictionaries of general use of language - Ferreira (1998), Ferreira (2004) and Houaiss (2007) - in order to verify the dictionaryzation study of lexical units and their Brazilianness and enrollment while/or regionalism, noting in particular the variants marked regionalism South Mato Grosso. Our sources of data the ALMS - Linguistic Atlas of South Mato Grosso (2007), which recorded aspects of language use by speakers of South Mato Grosso, with the following purposes: 1) know the characteristics of spoken modality in South Mato Grosso, 2) offer students of Portuguese and researchers in related fields contributions to the teaching/learning of this, respecting the regional variations, and 3) to systematize data for future descriptions in various areas of knowledge (OLIVEIRA, 2007, p.14). Keywords: ALMS - Linguistic Atlas of South Mato Grosso; lexical field "stars"; lexical variants; prospects lexical-semantic-diatopical. 1 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012 Introdução É por meio da língua que o homem expressa suas crenças, seus valores, suas ideologias. Desde o seu nascimento se vê cercado por manifestações linguísticas e, por isso, nem se dá conta, de imediato, das mudanças que ocorrem na sua língua, em particular no nível lexical: algumas palavras caem em desuso e outras se incorporam à fala dos indivíduos. Devemos entendter a língua como um fato cultural, parte da vida de uma sociedade. Isso faz com que aspectos da cultura dessa sociedade sejam acumulados e repassados, através das gerações, por meio da língua. Nessa perspectiva, pode-se também considerar o léxico como “herança” cultural dos indivíduos que integram essa sociedade, afirmativa esta referendada por Biderman (1981, p. 132), quando expõe que, se considerarmos a dimensão social da língua, podemos ver no léxico o patrimônio social da comunidade por excelência, juntamente com outros símbolos da herança cultural. Dentro desse ângulo de visão, esse tesouro léxico é transmitido de geração a geração como signos operacionais, por meio dos quais os indivíduos de cada geração podem pensar e exprimir seus sentimentos e idéias. Acresce-se ainda que, mesmo com as constantes transformações pelas quais passa a sociedade e, consequentemente, a linguagem, o grupo conserva marcas linguísticas de seus antepassados na configuração de seus hábitos, atitudes, mitos, superstições, lendas, ou seja, na forma de nomear o mundo que o cerca. Nesse sentido, Biderman, valendo-se do pensamento de Matoré (1953), no que se refere à tese de o léxico funcionar como testemunha de uma sociedade, argumenta: Matoré tem razão quando afirma que a palavra tem uma existência psicológica e um valor coletivo. Também está certo ao afirmar que é pela palavra (diríamos a nomeação) que o homem exerce a sua capacidade de abstrair e de generalizar o individual, o subjetivo. A palavra cristaliza o conceito resultante dessa operação mental, possibilitando a sua transmissão às gerações seguintes (MATORÉ, 1953 apud BIDERMAN, 1981, p. 132). Ao focalizar a questão da relação entre língua, cultura e sociedade, deve-se levar em conta que o léxico é o nível da língua que melhor representa a herança sociocultural de um grupo e que revela as mudanças ocorridas no sistema social, representando e configurando as experiências de um grupo. Para a realização deste trabalho, considerar- 2 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012 se-á, como modelo de sociedade, o Brasil, um país de relevante dimensão geográfica, ao que cabe considerá-lo também como um mosaico de variantes lexicais, uma vez que cada uma das suas extensas regiões particulariza termos para nomear fatores físicos, culturais, ambientais; ou seja, utilizam-se de formas diferenciadas para traduzir cada uma das realidades que essas regiões apresentam. E mais, dentre essas extensas regiões, aproximamo-nos da região Centro-Oeste e, mais particularmente, do estado de Mato Grosso do Sul, onde encontramos unidades lexicais distintas para nomear um mesmo conceito. Para a interpretação desse fenômeno, valemo-nos do pensamento de Sapir, citado por Biderman (1998), no sentido de que a linguagem é um guia para a „ realidade social´. (...) Os seres humanos não vivem só no mundo objetivo, ou só no mundo da atividade social como normalmente se admite, vivem quase totalmente à mercê da língua específica que se tornou o meio de expressão para a sua sociedade. É ilusório imaginar que alguém possa fundamentalmente ajustar-se à realidade sem o uso da linguagem e que a língua seja apenas um recurso qualquer para resolver problemas específicos de comunicação ou reflexão. O fato é que „o mundo real´ é, em grande parte, construído inconscientemente sobre a base dos hábitos lingüísticos do grupo. Não existem duas línguas, por mais semelhantes que sejam, que possam ser consideradas como representantes da mesma realidade social. Os mundos em que vivem as diferentes sociedades humanas são mundos distintos e não um só e mesmo mundo ao qual se teriam aposto etiquetas diferentes (SAPIR, apud BIDERMAN, 1998, p. 93). Este trabalho utiliza como fonte de dados o ALMS – Atlas Linguístico de Mato Grosso do Sul (2007), que registrou aspectos da língua em uso por falantes sul-matogrossenses, com os seguintes propósitos: 1) conhecer as características da modalidade falada no Mato Grosso do Sul; 2) oferecer aos estudiosos da língua portuguesa e pesquisadores de áreas afins contribuições para o ensino/aprendizagem dessa, respeitando as variações regionais, e 3) sistematizar dados para futuras descrições nas diversas áreas do conhecimento (OLIVEIRA, 2007, p.14). A rede de pontos do ALMS constituiu-se de 32 localidades distribuídas por cinco setores, encabeçados pelos municípios de Três Lagoas, Corumbá, Aquidauana, Campo Grande e Dourados. A escolha dos pontos de inquéritos pautou-se em critérios demográficos, históricos e sociais e em cada uma das 32 localidades da rede de pontos foram entrevistados quatro informantes estratificados segundo as variáveis sexo 3 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012 (masculino e feminino), grau de escolaridade (analfabeto ou com escolaridade até 4ª série do ensino fundamental), naturalidade (nascido no município ou nele residindo desde os oito anos de idade) e idade (duas faixas etárias, 18 a 35 anos e 45 a 65). A coleta de dados foi feita por meio de entrevistas, utilizando-se, para isso, um questionário único com 557 perguntas subdivididas em aspectos fonéticos, semânticolexicais e morfossintáticos. As entrevistas foram gravadas in loco com duração de mais ou menos três horas, perfazendo um total de 384 horas de gravação com 128 informantes, sendo 64 homens e 64 mulheres (OLIVEIRA, 2007, p.20). As perguntas do questionário abordavam as seguintes temáticas: a) acidentes geográficos; b) fenômenos atmosféricos; c) tempo; d) flora; e) fauna; f) corpo humano; g) doenças mais comuns; h) funções do corpo humano; i) características físicas; j) ciclos da vida; k) religiões e crenças; l) vestuários e objetos de uso pessoal; m) brinquedos e diversões; n) sistema de pesos e medidas; p) superstições, simpatias e lendas. O projeto ALMS foi um trabalho de onze anos que resultou em 207 cartas linguísticas, sendo: 47 fonéticas, 153 semântico-lexicais e 7 morfossintáticas. Metodologia Para a realização deste estudo utilizamo-nos de um recorte de cartas semânticolexicais do ALMS, campo léxico das estrelas: QSL 0033.a, estrela cadente; QSL 0034.a, estrela d´alva; QSL 0035.a, três marias e QSL 0036.a, via-láctea. A análise das variantes registradas nessas cartas considerou as perspectivas léxico-semântica e diatópica, procurando mostrar as variantes lexicais utilizadas pelos falantes sul-mato-grossenses para nomear os conceitos dos referentes estrela cadente (“Nas noites estreladas, como se chama aquela estrela que parece caminhar no céu?”), estrela d´alva (“Como se chama aquela estrela grande que a gente vê quando o dia está clareando?”), três marias (“E aquelas estrelas que estão sempre juntinhas?”) e 4 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012 via-láctea (“Em noites estreladas, aquela faixa esbranquiçada que fica bem no meio do céu?”). A partir das variantes selecionadas, fizemos uma busca nos dicionários de uso geral da língua - Ferreira (1998), Ferreira (2004) e Houaiss (2007) -, a fim de verificar a dicionarização das unidades lexicais em estudo e a sua inscrição enquanto brasileirismo e/ou regionalismo, observando-se, sobretudo, as variantes marcadas como regionalismo sul-mato-grossense. Discussão dos dados No verbete estrela, Ferreira (1988) define essa unidade lexical como denominação comum aos astros luminosos que mantém praticamente as mesmas posições relativas na esfera celeste, e que, observados à distância, apresentam cintilação, o que os distingue dos demais planetas. Dispõem-se segundo grupos localizados em regiões convencionalmente delimitados do céu, as constelações. Constituem o elemento fundamental da formação do Universo, grupando-se em aglomerados, associações, correntes, grupos, galáxias. A olho desarmado o seu brilho aparente é definido pela magnitude. [...]. (FERREIRA, 1988.) O mesmo autor registra as seguintes variantes para estrela: estrela anã, estrela binária, estrela cadente, estrela matutina, estrela da tarde, estrela múltipla, estrela nuclear, estrela cataclísmica, estrela nuclear. A variante estrela cadente que, segundo Ferreira (1988), nomeia “um fragmento de matéria do espaço interplanetário que ao penetrar na atmosfera se aquece, tornando-se luminoso”, está registrada na carta QSL 0033.a, do ALMS, em treze das trinta e duas localidades pesquisadas, resultando num percentual de 19,53%. Trata-se da variante com maior número de ocorrências entre os falantes sul-mato-grossenses. Vale ressaltar que, na localidade de Nioaque, leste do Estado, três dos quatro informantes 5 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012 entrevistados citaram essa variante – estrela cadente - para nomear o referente. Em Campo Grande, centro e capital do Estado, e Porto Esperança, extremo leste, dois informantes também mencionaram essa mesma unidade lexical. A segunda variante marcada para o referente, normalmente denominado de estrela cadente e utilizada por 10,16% dos entrevistados, foi satélite. Cabe, aqui, menção à variante estrela companheira da lua, apontada como designação do referente em pauta, pelo informante do sexo masculino, da 2ª faixa etária, no município de Bataguassu. Percebe-se nessa designação um “tom poético” expresso na nomeação do referente. Percebe-se, nas variantes deus te guia, deus te acompanhe, estrela de Davi, usadas para nomear a estrela cadente, a manifestação da religiosidade, da fé e da crença dos informantes entrevistados. Essas variantes de caráter religioso foram registradas com um percentual de 0,78%, cada uma delas, em todo o território sul-mato-grossense. Relativo á variante estrela d´alva, Ferreira (1988) e Houaiss (2007) asseveram que representa outra designação do planeta Vênus, “o mais brilhante dos planetas, com órbita situada entre a de Mercúrio e a da Terra [...]” (FERREIRA, 1988). Ainda segundo o mesmo autor, são sinônimos de estrela d`alva: “Vésper, Véspero, estrela Vésper, estrela vespertina, estrela da tarde, estrela matutina, matutina, estrela da manhã, estrela d´alva, estrela do Pastor”. Essa variante - estrela d´alva - foi registrada em todas as localidades pesquisadas, contabilizando um percentual de 41,41% de ocorrências. Nas localidades de Aquidauana, Camapuã, Corumbá e Porto Esperança, os quatro informantes entrevistados fizeram uso dessa variante para nomear o referente em questão. Nos municípios de Amambaí, Coxim, Eldorado, Fátima do Sul, Iguatemi, Rio Brilhante, Rio Negro e Três Lagoas, três dos quatro informantes mencionaram essa unidade lexical. O ALMS registra, ainda, as variantes istrela darva, dalva, istrela alva, istela dalva, darva e estrela dalva que, somadas à estrela d´alva, marcam um percentual de 6 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012 53,13% na nomeação do referente em pauta entre os falantes sul-mato-grossenses. A segunda variante de maior ocorrência, com um percentual de 5,47%, foi estrela guia, no entanto, não foi encontrada nenhuma referência a ela em Ferreira (2001). Por seu turno, Houaiss (2007) traz a seguinte definição: “Estrela guia - estrela (ou qualquer astro do firmamento) usado como referencial para direcionamento”. Importa ressaltar a informação de que, tanto em estrela cadente quanto em estrela d´alva, a variante estrela guia foi mencionada e, curiosamente, nas duas situações os informantes eram da primeira faixa etária. Isso nos leva a crer que a atual geração desconhece o referente ou o seu meio dificulta a compreensão dos fenômenos naturais. Há, no ALMS, também o registro de lucena, fornecida pelo informante do sexo masculino, da 1ª faixa etária, no município de Bela Vista, para nomear o referente comumente designado de estrela d´alva. Ferreira (1988) não contempla essa variante como verbete, há, porém, o registro de lucerna, na acepção de “lumeeira; tipo de lanterna colocada no alto; lampadário”. Também no verbete lucerna e, segundo o mesmo autor, há referência a lucarna, “abertura no teto de uma casa para dar luz”, considerando lucerna e/ou lucarna como variantes de lucena, apresentada como designação da estrela d´alva. Houaiss (2007) define lucerna como “pequena luz ou fonte de luz, posta em local bem alto; candeia, lanterna” e lucarna como sua sinônima. Com isso, podemos perceber que o sema luminosidade, oriunda do Planeta Vênus, é o que aproxima essas variantes. Sequenciando a análise dos dados reunidos no campo léxico estrela, temos três marias, variante não registrada como verbete nos dicionários impressos consultados. Mesmo no verbete estrela, não há o registro de três marias enquanto tal. No verbete constelação, encontramos “grupo de estrelas” (FERREIRA, 1988), mas, também, nenhuma referência a esta variante - três marias. No Dicionário Aurélio Eletrônico - Século XXI (2004) há o registro de três marias como “asterismo na constelação de Órion, formado por três estrelas brilhantes, em linha reta, e igualmente 7 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012 espaçadas; Três-Irmãs, Cinto de Órion”. No Houaiss (2007) há o verbete três marias, mas, em sua conceituação, não é feita nenhuma referência a estrelas. Essa unidade lexical foi citada em três localidades das 32 (trinta e duas) selecionadas: Iguatemi e Sete Quedas, no extremo sul do Mato Grosso do Sul, e Inocência, ao leste do Estado, e ocupou um percentual de 35,16% entre os informantes selecionados. As variantes trêis maria, trêis marias e três maria são as mais recorrentes entre os falantes sul-mato-grossenses. É interessante assinalar que a unidade lexical trêis irmã, registrada como sinônimo de três marias no Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI (2004), só foi mencionada pela informante do sexo feminino, da 1ª faixa etária, do município de Naviraí, sul do estado de Mato Grosso do Sul. Assim como em estrela cadente, também em três marias encontramos marcas acentuadas da religiosidade do falante sul-mato-grossense. As lexias cruzeru, cruzeru du sul, trêis salomãu, trêis ave maria, avi maria, trêis avi maria, cruzeiru du sul, rosário de maria imaculada e trêis reis magu confirmam isso. Analisando, agora, via-láctea, convém pontuar que essa variante foi encontrada como verbete em Ferreira (1988), dicionário impresso, na acepção de “nebulosa que forma longa mancha branca no escuro do céu” e como sinônimos utilizados na linguagem popular, o mesmo lexicógrafo apresenta as seguintes acepções “caminho de São Tiago e carreira de São Tiago”. Todavia, não está registrada nem em Ferreira (2004), nem em Houaiss (2007). É curioso notar que o maior percentual registrado na nomeação desse referente foi o de respostas não produtivas – marcadas pela sigla RNP, perfazendo um total de 62,50%, e as respostas prejudicadas – RP, com um percentual de 1,56%. Isso nos faz acreditar, mais uma vez, no desconhecimento do referente por parte dos informantes urbanos, ou seja, os informantes, mesmo com o conceito apresentado pelo entrevistador, 8 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012 não conseguem estabelecer nenhuma relação com algo que lhes seja familiar ou conhecido e, com isso, não podem fornecer a resposta. Não houve ocorrência da forma padrão via-láctea em nenhuma das localidades pesquisadas. A resposta mais próxima, talvez em decorrência da aparência física do fenômeno, foi com a unidade lexical “névia”, utilizada pelo informante do sexo masculino, da primeira faixa etária do município de Rio Negro. Todavia, muitos sinônimos produtivos na língua popular foram mencionados: caminho de santiago (8,59%); camim di santiagu (2,34%); caminhu di santiágua (0,78%); caminhu de são tiagu (0,78%) e camim santiagu (0,78%) que, somados, perfizeram um total de 13,27%. As variantes cruzeru, cova di adão i eva, covas di adãu, cruzeiro do sul, corpu da nossa senhora, cova di adãu, pão de cada dia, mantu di nossa senhora, cruzeru do sul, sãu franciscu, túmulu di adãu i eva, adãu i eva e caminho di são jorgi demonstram, mais uma vez, o caráter religioso impresso pelo falante sul-mato-grossense em algumas designações de corpos celestes. Interessante também são as referências feitas a animais para designar a vialáctea: rabu di galu, rabu di pexe e avistruiz na noiti istrelada. Este último, além de reportar-se a um animal, tem conotação poética. Não é demais lembrar que as designações de corpos celestes normalmente têm caráter mitológico, daí o uso de designações relacionadas a animais para nomeá-los e a evocação de aspectos ligados à religiosidade nas designações desses referentes. Algumas considerações finais A análise das variantes relacionadas ao campo léxico das estrelas demonstrou que a unidade lexical estrela é carregada de “poder mágico”, que lhe é atribuído pela cultura popular, definida por Câmara Cascudo, em entrevista concedida à Folha de São Paulo, em 08/01/1979, como “tudo quanto caracteriza a cultura anônima e coletiva” e 9 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012 que “qualquer um de nós é um mestre que sabe contos, mitos, lendas, versos, superstições [...]”. E é no âmbito dessa cultura popular que emergem superstições que se relacionam às estrelas, tais como: “apontar para as estrelas faz criar verrugas nos dedos”; “ao vermos uma estrela cadente devemos fazer um pedido, pois é garantido que ele se realizará”, dentre outros. Ainda há, nesse contexto, a presença de conotações de religiosidade, manifestação de fé, de crenças populares relacionadas ao papel, ou até mesmo ao “poder” das estrelas no imaginário popular, o que ficou evidente na análise das unidades lexicais estrela cadente, três marias, estrela d´alva e via láctea. E isso também nos remete às superstições, uma vez que essas resultam essencialmente da deturpação ou acomodação psicológica de elementos religiosos contemporâneos, condicionados à mentalidade popular e, ainda, que as superstições participam da própria essência intelectual humana e não há momento da história do mundo sem sua inevitável presença. Assim como a língua – meio através do qual o homem se expressa e dá nome às coisas que o cerca -, que é mutável e deixa transparecer aspectos inerentes a uma determinada comunidade, em um determinado tempo, fornecendo-nos elementos que descrevem fatores de ordem cultural, física, social e ideológica dessa comunidade, também a cultura popular está recheada de elementos que permitem a interpretação ideológica, religiosa e cultural de um grupo que se revelam seus mitos, o que é materializado por meio do universo lexical, uma vez que o léxico de uma língua constitui uma forma de registrar o conhecimento do universo. Ao dar nomes aos referentes, o homem os classifica simultaneamente. Assim, a nomeação da realidade pode ser considerada como a etapa primeira no percurso científico do espírito humano de conhecimento do universo. Ao identificar semelhanças e, inversamente, discriminar os traços distintivos que individualizam esses referentes em entidades distintas, o homem foi estruturando o mundo que o cerca, rotulando essas entidades discriminadas. É esse processo de nomeação que gerou e gera o léxico das línguas naturais. [...] A geração do léxico se processou e se processa através de atos sucessivos de cognição da realidade e da categorização de experiência, cristalizada em signos lingüísticos: as palavras (BIDERMAN, 1998. p. 91-92). 10 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 2 • Número 1 • julho 2012 . Portanto, a utilização de determinadas unidades lexicais, por um grupo social, em detrimento de outras, demonstra que o léxico deriva, em grande parte, da influência da realidade na forma de viver de um grupo. Assim sendo, este estudo nos forneceu meios para uma melhor compreensão da realidade sociocultural de um grupo de falantes – cidadãos sul-mato-grossenses –, expressa na forma de nomear os fenômenos atmosféricos, mais precisamente os tipos de estrelas. Referências Bibliográficas BIDERMAN, M. T. C. A estruturação mental do léxico. In: Estudos da Filologia e Lingüística. São Paulo: T. A. Queiroz/EDUSP, 1981, p. 131-145. _____________. Dimensões da palavra. Filologia e lingüística portuguesa. N. 2, 1998, p. 81-118. _____________. As ciências do léxico. In: OLIVEIRA, A. M. P. P. e ISQUERDO, A. N. As ciências do léxico. Lexicologia, Lexicografia e Terminologia. Campo Grande – MS: UFMS, 1998, p. 11-20. FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI – versão 3 – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. 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