1 LUCIANO ROCHA SANTANA RESENHA O

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LUCIANO ROCHA SANTANA RESENHA O LIVRO “SUFRE, LUEGO IMPORTA” DE
FRANCISCO LARA E OLGA CAMPOS
Luciano ROCHA SANTANA
Doutor em Filosofia Moral pela Universidad de Salamanca
LARA, Francisco; CAMPOS, Olga. Sufre, luego importa:
reflexiones éticas sobre los animales. Madrid: Plaza y
Valdés, 2015.
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O livro “Sufre, luego importa: reflexiones éticas sobre los animales” é uma obra
inquietante para aqueles que passeiam por todas as páginas dispersas em seis
capítulos. Tal inquietude não deve ser confundida com as ondas bravias de um oceano
castigado pela tempestade, que levam as naus e os mercadores a naufrágios e ruínas,
mas sim com o deslumbramento de um biólogo ao descobrir uma nova espécie jamais
relatada pela literatura científica, ou até mesmo com o encantamento de um médico
diante da cura de um paciente.
Escrita “a quatro mãos” por Francisco Damián Lara Sanchez, doutor em filosofia
pela Universidad de Granada e professor titular do Departamento de Filosofia Moral
desta universidade, autor que tem-se ocupado da temática animalista desde 1988 com
a publicação do artigo “Hacia una teoría moral de los derechos del animal” (LARA,
1988)1, e Olga Campos Serena, doutora em filosofia pela Universidad de Granada, com
pós-doutoramento na Oxford University, e investigadora na área de filosofia moral do
Departamento de Filosofia da Universidad de Granada, essa obra tem um propósito
claro: dar respostas filosóficas ao debate sobre a relação dos seres humanos com os
animais não humanos, inclusive aplicando conceitos básicos a questões práticas, como
as problemáticas dos experimentos com animais e as corridas de touros.
Observa-se na obra a utilização pelos autores de alguns recursos que relembram
vagamente o filósofo norte-americano Tom Regan, como a citação indireta do filósofo
britânico John Stuart Mill, quando mencionam na sua introdução que “la creencia de
John Stuart Mill de que, en gran movimiento, a la etapa del ridículo siempre le siguen
las de discusión y, finalmente, adopción” (LARA; CAMPOS, 2015, p. 15) 2, citação esta
que também fora utilizada por Regan logo no início das duas edições de The Case for
Animal Rights.
1
LARA, Francisco. Hacia una teoría moral de los derechos del animal. Revista de la Facultad de
Derecho de la Universidad de Granada, Granada, v. 16, 1988.
2
A famosa citação de Mill é a seguinte: “Every great movement must experience three stages: ridicule,
discussion, adoption.”. Diferente de Regan, que fez uma citação solta para livre reflexão por parte dos
leitores, Francisco Lara e Olga Campos faz a referência a Mill na introdução de sua obra, já expondo suas
percepções iniciais.
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Isto mostra a tese já defendida quanto a forte influência que Regan desempenha
no mainstream da filosofia moral contemporânea envolvida com a questão animal
que, a despeito de desenvolver diversas e pertinentes críticas ao pensamento
reganiano, “ainda não encontrou uma solução melhor para resolver a questão animal”
(SANTANA, 2016, p. 285), sendo o citado filósofo norte-americano uma referência
inevitável a qualquer estudioso da ética animal, o que os autores perceberam,
especialmente no capítulo 4, relativo aos direitos dos animais.
O capítulo primeiro “Hacia una ética no especista” mostra ao leitor os desafios
que surgiram no curso da história da filosofia moral ocidental, inicialmente tratando da
problemática da “coisificação” dos animais, a qual “explica que mucha gente tampoco
considere incorrecto el sufrimiento causado y la muerte provocada a muchos de ellos
por satisfacer intereses humanos, tan secundarios como divertirse con espectáculos en
los que se les trata cruelmente, vestir su piel o probar la puntería cazándolos” (LARA;
CAMPOS, 2015, p. 24).
Destacam os autores que, historicamente, a maioria das correntes da filosofia
moral do Ocidente tem considerado os animais não humanos como portadores de um
valor meramente instrumental, ou seja, eles seriam iguais às coisas, de maneira que
somente importaria o quanto eles podem vir a servir ao interesse humano.
Um exemplo de aplicação dessa perspectiva, que transcende à proposta feita
pelos autores do presente livro, era a maneira como o direito romano vislumbrava os
animais não humanos, sendo os seus filhotes considerados como fructus naturales
(GIMENÉZ-CANDELA, 1999, p. 176), ou seja, bens derivados naturalmente de um
objeto dotado de função reprodutora.
O “peso da tradição” não se limita ao direito romano, visto que a filosofia grega
desempenhava um papel predominante na consolidação da “visión antropocéntrica de
la naturaleza”, sendo um exemplo disto o pensamento aristotélico de que “la
naturaleza posee un esquema jerárquico en el que aquellos que no tienen capacidad
para comportarse racionalmente existen para bien de aquellos que sí la tienen” (LARA;
CAMPOS, 2015, p. 25), concepção que seria retomada, posteriormente, por São Tomás
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de Aquino e por Immanuel Kant, e que resulta na exclusão dos animais não humanos
da comunidade moral.
Os autores apontam então para a fragilidade de qualquer argumentação que não
conceda um estatuto moral aos animais apenas pelo fato de eles não serem humanos,
pois a discriminação “solo por la especie es tan arbitrario como hacerlo por la raza, el
gênero o la nacionalidad”, postura esta que seria denominada pelo britânico Richard
Ryder como especismo (speciesism) e que fora popularizada pelo filósofo australiano
Peter Singer3.
O capítulo segundo “La capacidad de sufrir” expõe os elementos da
argumentação central invocada pelos autores para fundamentar a inclusão dos
animais não humanos na comunidade moral: a capacidade de sofrer, o que implicaria
no mínimo em um dever, por parte de terceiros, de não causar danos a eles.
Aqui identificamos nos autores uma argumentação essencialmente patocêntrica,
ou seja, um discurso fundamentado em uma “axiología que reconoce valor intrínseco a
toda criatura dotada de sensibilidad, dejando fuera del espectro moral a cuantos
individuos carezcan de la capacidad de sentir goce o dolor, es decir, al mundo vegetal y
al inanimado, además de las entidades colectivas, como los ecosistemas” (VELAYOS,
1996, p. 31).
Tendo em vista o propósito dos autores, a obra começa com a discussão em
torno da capacidade de um animal não humano sentir dor ao abordar a capacidade
dos animais de ter crenças e desejos, o que permite a presença de estados mentais
minimamente necessários para identificar uma consciência animal. Assim, os autores
irão concluir que “Para ser miembro de pleno derecho en la comunidad moral no
importa la especie a la que se pertenezca ni el grado de racionalidad que se posea, sino
3
Neste ponto, deve ser destacado que os autores quando afirmam em seu livro que Singer chamou tal
preconceito de espécie de especismo, possivelmente não pretendiam atribuir ao citado filósofo australiano
a origem do termo, mas citá-lo como o principal divulgador de tal ideia, o que é coerente com a história
da ética animal.
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tener la capacidad de sentir dolor, algo que también podemos reconocer
legítimamente en otros vertebrados.” (LARA; CAMPOS, 2015, p. 46).
Mas bastará evitar a dor para garantir a proteção aos interesses desses animais?
Em resposta a isto, os autores no capítulo terceiro “Los animales y el perjuicio de la
muerte” abordam a questão do grande mal que pode ser causado a um animal se lhe é
tirada a vida contra a sua vontade, assim como ocorre com qualquer ser humano.
Questionam os autores sobre a irrelevância moral tradicionalmente atribuída às
matanças de animais não humanos e, em seguida, sustentam a necessidade de uma
proteção moral de suas vidas, principalmente, apelando para argumentos baseados na
autoconsciência destes seres.
Os autores sustentam que, para muitos animais, a morte é moralmente
relevante, porém não para todos. Neste sentido, eles afirmam que “podría
establecerse legítimamente una gradación del daño que supone la muerte, en función
de si los miembros de la comunidad moral satisfacen o no el criterio defendido” e
concluem, neste ponto, que os animais autoconscientes estão sofrendo dano ao ter
sua vida ceifada, ainda que sejam utilizados meios indolores (LARA; CAMPOS, 2015, p.
65-66).
O capítulo quarto “Los derechos de los animales” enfrenta a questão do
“reconocimiento de entidad moral a los animales”, discorrendo sobre quais tipos de
obrigações o concretizaria. Assim, neste capítulo, os autores abordam os
questionamentos em torno do dever moral de ser vegetariano, os impactos do “tener
un derecho”, além da própria utilidade dos direitos como mecanismos de proteção aos
animais.
Em primeiro lugar, os autores sustentam a necessidade de serem reconhecidos
dois níveis de direitos individuais: o direito ao não sofrimento por parte dos seres
sencientes e o direito à vida a alguns destes seres, entre os quais estariam alguns
animais não humanos. Esta interessante abordagem, bastante original por sinal, faz
com que se recorde o pensamento reganiano, o qual sustenta que devem ser
protegidos os direitos morais à vida, liberdade e integridade física dos animais não
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humanos (REGAN, 2006, p. 60-61) e que façamos um paralelo entre ambas, com a
diferença de que Regan apresenta uma proposta igualitarista, diferente dos autores
espanhóis que suavizam o rigor reganiano.
A proposta dos autores diferentemente do filósofo norte-americano “un
aceptable desarrollo normativo de la creencia en el valor intrínseco de los animales
giraría en torno a una definición de lo correcto como aquel comportamiento que
satisface al máximo los intereses básicos de todos los afectados”, sendo que os direitos
desempenhariam um papel decisivo na concretização da proteção a tais interesses
(LARA; CAMPOS, 2015, p. 80).
Nos capítulos quinto chamado de “Los conflitos entre vidas: el caso de la
experimentación con animales” que aborda a controvérsia sobre a utilização de
animais não humanos em experimentos médico-científicos e sexto chamado “¿Cultura
o tortura? Las corridas de toros y la legislación española” que trata da perspectiva dos
autores sobre as corridas de touros, no qual é evidenciado um conflito de valores
jurídicos e morais entre o direito dos animais à não sofrerem atos cruéis e a liberdade
das manifestações culturais, temos os autores buscando aplicar a ideia de direitos de
maneira prática.
No caso da investigação médica e suas práticas experimentais, os autores têm o
mérito de desconstruir os argumentos técnicos (necessidade e eficácia) e morais que
buscam sustentar tal prática. Por outro lado, sua proposta de aplicação da teoria dos
dois níveis dos direitos animais é seguramente uma abordagem polêmica no âmbito
dos defensores dos direitos dos animais, especialmente aqueles que tendem a adotar
uma aplicação absoluta de tal técnica, a exemplo de Regan e, de autores
contemporâneos como Gary Francione, pois mesmo os próprios autores admitindo
que ela não é abolicionista, contudo se mostraria “muy restrictiva” (LARA; CAMPOS,
2015, p. 99).
Portanto, a proposta dos autores quanto à gradação do valor das vidas, apesar
de ser um ponto de partida para um debate em busca da resolução dos conflitos que a
questão da investigação médica envolvendo animais não humanos provoca, possui o
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grande mérito de proporcionar um debate em torno da temática, ao invés de um
conveniente silêncio que pode ser causado, tanto por propostas radicais, quanto por
omissões intencionais.
Quanto ao último capítulo, tem-se o questionamento da tauromaquia como uma
arte, dizem os autores, amparados em Eugenio Noel, “no hay arte en la barbárie”
(LARA; CAMPOS, 2015, p. 104), bem como a demonstração das deficiências do discurso
em defesa de tal prática na legislação espanhola e na moral que a sustenta. Os autores
citam a incoerência do ordenamento jurídico espanhol que produz leis que pretendem
proteger os animais contra atos de crueldade 4 e, concomitantemente, possui leis que
respaldam as corridas de touros.
Nesse aspecto, Lara e Campos defendem o reconhecimento constitucional de um
direito básico ao não sofrimento por todos os seres sencientes e à vida, pelos
autoconscientes, o que vincularia os agentes morais, inevitavelmente, na realização de
deveres jurídicos como o de submeter os touros a uma situação de bem-estar físico e
de proteção à vida que prevaleceria diante de interesses humanos secundários “como
el de la mera diversión, el disfrute de manifestaciones dudosamente artísticas o la
transmisión de cuestionables valores idiosincrásicos.” (LARA; CAMPOS, 2015, p. 124).
No âmbito geral, observa-se que os autores poderiam ter aprofundado um
pouco mais a temática dos direitos dos animais, especialmente a titularidade dos
direitos, pois se trata de um dos maiores desafios da questão animal no âmbito da
comunidade jurídica a possibilidade ou não de os animais não humanos virem a
possuir direitos, tendo em vista as mudanças legislativas que vem ocorrendo em países
da União Européia, como a Alemanha 5 e a Áustria6, países que deixaram de reconhecer
4
Vide o artigo 632.2 do Código Penal espanhol de 1995.
5
Vide o seguinte trecho do § 90a do Código Civil da Alemanha: “Tiere sind keine Sachen. Sie werden
durch besondere Gesetze geschützt. (...)”, que traduzindo significa “Os animais não são coisas. Eles são
protegidos por leis especiais.”.
6
O trecho mencionado na nota de roda-pé anterior é repetido ipsis litteris pelo § 285a do Código Civil da
Áustria.
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os animais como meros objetos do direito, passando a qualificá-los em uma categoria
sui generis regida por lei especial.
Por fim, recorda-se o filósofo italiano Umberto Eco (2003), que deixou o mundo
recentemente, o qual afirmara em sua obra “Sobre a literatura” que a crítica literária
em formato de resenha, por causa de sua função de recomendação, não pode jamais
se eximir de pronunciar um juízo sobre aquilo que o texto diz, caso contrário
estaremos diante de uma “excepcional vilania”. Deste modo, a despeito das
considerações feitas, seguramente este livro é de leitura obrigatória a todos os
interessados em conhecer os fundamentos da ética animalista e seus principais
argumentos em virtude de seu caráter sistematizador e, ao mesmo tempo, divulgador
das principais ideias que compõe o pensamento dos defensores dos animais não
humanos, os quais atendem, sem sombra de dúvida, ao propósito de provocar o
debate acerca da condição animal.
Referências:
ECO, Umberto (2003). Sobre a literatura. Trad. de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Record.
GIMÉNEZ-CANDELA, Teresa (1999). Derecho privado romano. Valencia: Tirant lo
blanch.
LARA, Francisco (1988). Hacia una teoría moral de los derechos del animal. Revista de
la Facultad de Derecho de la Universidad de Granada, Granada, v. 16.
LARA, Francisco; CAMPOS, Olga (2015). Sufre, luego importa: reflexiones éticas sobre
los animales. Madrid: Plaza y Valdés.
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REGAN, Tom. (1983). The case for animal rights. Berkeley: University of California.
_________. (2006). Jaulas vacías: el desafío de los derechos de los animales.
Traducido por Marc Boillat de Corgemont Sartorio. Barcelona: Fundación Altarriba.
(Altarriba, cuadernos para dialogar sobre animales, 4).
SANTANA, Luciano Rocha (2016). La teoría de los derechos animales de Tom Regan:
ampliando las fronteras de la comunidad moral más allá de lo humano. Salamanca:
Universidad de Salamanca (Tesis de Doctorado).
VELAYOS, Carmen (1996). La dimensión moral del ambiente natural: ¿Necesitamos
una nueva ética? Granada: Comares. (Ecorama, 9).
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