MECANISMOS DE ESPECIAÇÃO Autores: Bárbara Medeiros Fonseca e Ricardo Lourenço Pinto I. Considerações iniciais II. Como definir uma espécie? III. Mecanismos de isolamento genético IV. Especiação alopátrica, parapátrica e simpátrica V. Mecanismos de divergência VI. Hibridização VII. Considerações finais VIII. Referências I. Considerações iniciais Você já se perguntou quantas espécies existem no planeta atualmente? E quantas já existiram? (sim, pois os fósseis estão aí como prova de que já houve muita coisa na Terra muito antes do homem aparecer...). Previsões mais conservadoras sugerem que existam de dois a cinco milhões de espécies no planeta. Mas há aquelas mais ousadas que apontam para valores próximos a 100 milhões de espécies! Agora uma pergunta ainda mais intrigante: quais seriam os mecanismos que deram origem a todas as espécies, ou seja, quais seriam os mecanismos de especiação? Como surge uma espécie? Uma das obras mais fundamentais da Biologia traz essa questão já em seu título: “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, publicada em 1859. Talvez você ainda não se tenha dado conta, mas os mecanismos de especiação estão entre os eventos mais fundamentais na história da vida. Os mesmos já ocorreram milhões, se não bilhões de vezes desde a origem da vida, há aproximadamente 3,8 bilhões de anos atrás. E nesse exato momento, enquanto você está lendo este capítulo, várias novas espécies estão em processo de formação, embora um número ainda maior de espécies esteja em processo de extinção devido, principalmente, às atividades humanas. Atividade Complementar 1: Resgatando alguns conceitos de genética de populações A genética de populações integra a teoria de seleção natural de Charles Darwin com a genética de Gregor Mendel. Nessa abordagem, o processo de evolução é visto como mudanças na frequência de alelos ao longo de gerações. Para compreender melhor os mecanismos de especiação, um bom entendimento de alguns conceitos de genética é fundamental. Por exemplo, você sabe exatamente o que é o DNA? E o que são genes? Enfim, aproveite a oportunidade e faça uma revisão sobre a relação entre DNA, genes, alelos, e mutações. Antes, porém, de falar sobre o tema título deste capítulo, ou seja, os mecanismos de especiação propriamente ditos, você saberia identificar uma espécie? Ou, refazendo a pergunta de outra forma, você saberia dizer por que consideramos o homem e o chipanzé espécies diferentes, por exemplo? II. Como identificar uma espécie? Todas as culturas humanas, desde tempos remotos, reconhecem diferentes tipos de seres vivos na natureza e atribuem nomes a eles. É interessante notar que muitas espécies de animais e plantas reconhecidas por povos primitivos são as mesmas identificadas atualmente pelos biólogos. Esse fato talvez faça você pensar que a entidade chamada de espécie deveria ser fácil de definir. Entretanto o conceito de espécie tem sido um dos temas mais controversos dentro da Biologia. Os sistemas de classificação (ver quadro “Saiba mais”) baseiam-se em argumentos para agrupar ou separar os organismos. O grande desafio dos biólogos, atualmente, tem sido transpor julgamentos informais para uma definição de espécie mais precisa, criando um sistema que nomeie e classifique a diversidade da vida e, ao mesmo tempo, reflita a história evolutiva dos seres vivos. A princípio, parece relativamente fácil diferenciar um homem de um chipanzé e assumir que eles pertençam a espécies diferentes. Mas há situações em que a delimitação de características distintivas não é tão fácil. Isso costuma ocorrer especialmente entre os microorganismos. Por essa razão, atualmente há vários conceitos diferentes de espécie. E é sobre três desses conceitos que falaremos a seguir. Saiba mais Você sabia que existem biólogos que se especializam em dar nomes e classificar os organismos? Esse profissional é um taxonomista, e a ciência que ele faz é uma subdivisão da Biologia chamada TAXONOMIA. Quando uma espécie até então desconhecida é descoberta, o taxonomista entra em ação dando um nome a ela, sempre obedecendo às regrais gerais dos códigos internacionais de nomenclatura, que são o Código Internacional de Nomenclatura Botânica, o Código Internacional de Nomenclatura Zoológica e o Código Internacional de Nomenclatura Bacteriológica. Provavelmente você leu sobre isso no capítulo 2 deste livro. Conceito biológico de espécie À época da nova síntese evolutiva, nas décadas de 30 e 40, alguns dos seus principais protagonistas, como Theodosius Dobzhansky e Ernst Mayr, enunciaram o chamado conceito biológico de espécie, que costuma ser o mais utilizado nos livros texto sobre o assunto. Segundo tal conceito, o critério básico para identificar espécies é o isolamento reprodutivo. Uma espécie seria um grupo de populações naturais que podem cruzar entre si, deixando descendentes férteis. População, por sua vez, seria um grupo de organismos da mesma espécie que ocupam uma região geográfica mais ou menos definida e exibem continuidade reprodutiva de geração a geração. Cada membro de uma espécie seria um indivíduo. Se duas populações não são capazes de produzir híbridos ou descendentes férteis entre si, elas estão isoladas reprodutivamente, sendo consideradas, então, espécies distintas. Ou seja, o homem e o chipanzé são espécies diferentes porque os dois não conseguem cruzar entre si e produzir descendentes férteis. Quando eventualmente ocorre o cruzamento de indivíduos de espécies diferentes, com o surgimento de descendentes, esses – chamados híbridos – são estéreis, salvo algumas exceções. Curiosidade: O cavalo, o jegue e o bardoto. O jegue (ou asno, ou burro, ou jumento) é um mamífero da espécie Equus asinus. O macho (ou mulo) é o indivíduo do sexo masculino resultante do cruzamento de um burro com uma égua, Equus caballus. O animal fêmea resultante do mesmo cruzamento é chamado mula. Entretanto, o cruzamento das mesmas espécies, porém invertidos os sexos (portanto cavalo e mula), dá origem a um animal diferente, o bardoto. Esses híbridos são quase sempre estéreis devido ao fato do cavalo possuir 64 cromossomos, enquanto que o jegue possui 62, resultando em 63 cromossomos. São raros os casos em que uma mula tenha parido. Desde 1527, data em que os casos começaram a ser arquivados, apenas 60 casos foram registrados. O isolamento reprodutivo é considerado um bom critério na identificação de espécies, pois confirma a ausência de fluxo gênico entre os indivíduos. Parece simples. Para saber, então, se dois grupos de indivíduos pertencem à mesma espécie, bastaria tentar o cruzamento entre o macho de um grupo e uma fêmea do outro, ou vice-versa. Considerando que no sexo ocorre o fluxo gênico por meio da transferência de alelos durante a fusão dos gametas, se o resultado do cruzamento produzisse uma prole viável, os dois grupos seriam da mesma espécie. Entretanto, há várias situações em que a aplicação do conceito biológico de espécies é dificultada. Por exemplo: como saber se duas populações vivendo em locais diferentes estão isoladas reprodutivamente? Você já viu, no capítulo 1, que espécies podem se estender por longos períodos de tempo. Como testar, então, o conceito biológico em fósseis? Não temos como saber, com certeza, se os indivíduos de uma linhagem contínua eram reprodutivamente isolados. Além disso, como você deve ter notado, o conceito biológico está diretamente relacionado à reprodução sexuada. Entretanto, há uma série de organismos que nunca se reproduzem sexuadamente... Mais adiante iremos retomar esta questão. Conceito filogenético de espécie Um conceito de espécie alternativo ao biológico seria o chamado conceito filogenético. Tal abordagem baseia-se no critério da monofilia. Grupos monofiléticos são táxons que contêm todos os descendentes conhecidos de um único ancestral comum. Um táxon, por sua vez, é o nome de qualquer grupo de organismos dentro de uma determinada categoria taxonômica. Homo sapiens (homem), Zea mays (milho) e Agaricus bisporus (cogumelo champignon) são exemplos de táxons da categoria taxonômica “espécie”. Animalia, Plantae e Fungi são táxons dentro da categoria taxonômica “reino”. Saiba mais FILOGENIA pode ser definida como uma hipótese sobre o caminho pelo qual um grupo de organismos está evolutivamente relacionado. Tanto dados morfológicos quanto moleculares ou ecológicos podem ser usados para inferir relações filogenéticas. A primeira árvore filogenética de que se tem notícia foi elaborada pelo zoólogo e evolucionista alemão Ernst Haeckel, em 1866. Inicialmente, a filogenia de vários grupos de organismos era feita com base em caracteres estruturais, ou seja, fenotípicos. Atualmente, as árvores filogenéticas baseiam-se principalmente em dados moleculares, comparando-se o genótipo dos indivíduos. Pelo conceito filogenético, espécies são identificadas inferindo-se a filogenia de populações intimamente relacionadas e procurando-se o grupo monofilético mais restritivo. Esse exibiria, no mínimo, uma característica distintiva e unificadora, seja esta de caráter estrutural, bioquímico ou molecular. Tais características são chamadas de sinapomorfias. Programas de computador têm sido amplamente utilizados para comparar as características dos organismos e modelar os padrões mais prováveis de relações, gerando diagramas ramificados conhecidos como árvores filogenéticas. No conceito filogenético de espécie, cada ponta de uma ramificação numa árvore filogenética representa uma espécie em particular, e os ancestrais comuns estariam representados nos nós das ramificações. No diagrama abaixo, por exemplo, A, B, C, e D seriam espécies distintas. O ancestral “1” é comum a todas elas; o ancestral “2” é comum às espécies A e B; o ancestral “3” é comum às espécies C e D. A 2 B 1 C 3 D O princípio racional por trás desse conceito é o de que, numa filogenia, caracteres apenas podem distinguir populações se as mesmas tiverem sido isoladas em termos de fluxo gênico e divergido genetica e/ou morfologicamente. Em outras palavras, para serem chamadas de espécies separadas filogeneticamente, populações devem ter sido independentes por tempo suficiente para garantir que as sinapormofias (citadas anteriormente) emergissem. Conforme você já deve ter percebido, uma grande vantagem do conceito filogenético é que ele pode ser aplicado a qualquer tipo de organismo, independente dele ser um fóssil ou de sua reprodução ocorrer por métodos sexuados ou assexuados. Na prática, porém, essa abordagem apresenta algumas desvantagens relacionadas à considerável quantidade de tempo e dinheiro requerida para se inferir as relações evolutivas entre os organismos. Como resultado, filogenias bem fundamentadas existem apenas para um grupo relativamente pequeno de organismos. Além disso, a maior parte dos pesquisadores reconhece que a instituição do conceito filogenético de espécie certamente iria dobrar o número de espécies conhecidas e criar uma grande confusão se os nomes das espécies tradicionais fossem modificados. A resposta desses mesmos pesquisadores para tal polêmica é que, se um aumento dramático no número de espécies conhecidas realmente ocorrer, é porque, de fato, é necessário refletir sobre a realidade biológica. Conceito morfológico de espécie De acordo com esse conceito, espécies são o menor grupo definível por características estruturais que são relativamente fáceis de distinguir. Os paleontólogos, por exemplo, definem espécies com base nas diferenças morfológicas entre fósseis. Quando não se tem acesso a testes rigorosos de isolamento reprodutivo ou a filogenias bem estabelecidas, botânicos e zoólogos também recorrem ao conceito morfológico de espécie. A grande vantagem do mesmo é, portanto, sua ampla aplicação e, na prática, esse continua sendo o conceito mais amplamente utilizado no dia-a-dia, embora suas limitações sejam reconhecidas. Quando não aplicada adequadamente, a definição das espécies pode se tornar arbitrária. No pior dos cenários, a designação de espécies feita por diferentes pesquisadores pode não ser comparável. Entre as algas, por exemplo, o conceito morfológico de espécie tem sido frequentemente utilizado, pois para muitas delas a reprodução sexuada é rara ou até mesmo nunca foi observada. Vários táxons são identificados com base em suas características morfológicas. As três fotos abaixo se referem a diferentes espécies do gênero Cosmarium, uma alga verde muito comum em lagoas, rios e reservatórios. Veja que os indivíduos apresentam diferenças particularmente quanto ao tamanho (a barra vertical corresponde a 10 micrômetros) e ao formato das células. Fotos: B.M.Fonseca e L.M.B.Estrela Atividade Complementar 2: Imagine que você é um extraterrestre que desembarcou na Terra e coletou os organismos abaixo. Qual conceito de espécie você aplicaria? Quantas espécies diferentes você diria ter coletado? Por quê? Quais seriam seus critérios para diferenciálas? 1 2 3 v v v v v 4 5 6 7 v 8 Quando o sexo não faz falta Qual a relação entre sexo e reprodução? Você acha que são sinônimos? A reprodução aumenta o número de indivíduos na natureza, propagando seus genes ao longo do tempo. Já sexo é a mistura de genes de dois indivíduos, expressos na geração seguinte. Tem como função biológica promover variedade, a qual permite às populações uma maior capacidade de resposta frente a alterações ambientais. Essa seria uma das principais vantagens da reprodução sexuada. E as grandes mudanças evolutivas só podem ocorrer se os organismos mantiverem um amplo estoque de variabilidade genética. Mas a reprodução em si pode ocorrer também sem sexo. Diga-se de passagem, os métodos assexuados estão entre os mais eficientes na função de aumentar o número de indivíduos na natureza, pois requerem apenas um indivíduo para a reprodução e em geral são mais simples e rápidos. A prole, nesse caso, terá material genético idêntico ao organismo parental. Atividade Complementar 3 Faça uma pesquisa sobre métodos de reprodução assexuada. Organismos assexuados (ou seja, uniparentais) incluem desde bactérias, com suas células procarióticas, a eucariotos multicelulares mais complexos, incluindo invertebrados e até vertebrados como algumas espécies de lagartos. Há estudos que mostram que rotíferos bdelóides (grupo de invertebrados aquáticos) vivem sem sexo há aproximadamente 85 milhões de anos! Talvez você esteja se perguntando: então será que esses organismos não mudam nunca? Nunca irão apresentar variabilidade genética, tão importante para que o processo de seleção natural ocorra? Na verdade, em geral eles irão contar com outros mecanismos para garantir alguma variabilidade genética. Nas bactérias, a troca de material genético até acontece, porém não da mesma forma que na reprodução sexuada típica. Sexo, no contexto abordado aqui, significa meiose seguida por troca recíproca de partes homólogas do genoma. Atividade Complementar 4: Você provavelmente aprendeu, ainda no ensino médio, as diferenças entre mitose e meiose, processos relacionados à divisão celular. Conforme apontado acima, quando falamos em sexo num contexto biológico, está implícita a ocorrência de meiose. Por quê? O que ocorre na meiose que não acontece na mitose? Faça uma revisão sobre o assunto. Nos procariotos, a troca de genes limita-se a pequenos segmentos do genoma, é unidirecional, ocorre na ausência de reprodução e resulta em recombinação gênica, ou seja, uma nova combinação de alelos. Nas bactérias, os alelos são rotineiramente transferidos entre membros de táxons completamente diferentes. Em alguns casos, as espécies envolvidas possuem genomas cuja sequência de bases divergem em até 16%. Em contraste, a troca genética entre eucariotos é normalmente limitada a organismos cujos genomas divergem em, no máximo, 2%. Espécies eucarióticas que hibridizam são, em sua grande maioria, classificadas num mesmo gênero; já bactérias que transferem alelos podem ser classificadas até em filos diferentes. Nos animais, isso seria o equivalente a um indivíduo da espécie humana transferir alelos para uma minhoca... O movimento de alelos entre organismos relacionados de forma distante é chamado transferência genética lateral. Esse fenômeno tem sido responsável pela rápida disseminação de resistência a antibióticos em bactérias relacionadas de forma distante. Alguns pesquisadores acreditam que o mesmo seria o principal mecanismo de especiação nas bactérias. Eles acreditam que o fluxo gênico desencadeia divergência entre grupos de bactérias. Dessa forma, as espécies de bactérias, consistem, então, em células que descendem de um ancestral comum recente e que ainda não passaram por fluxo gênico via transferência genética lateral. Embora espécies desse tipo possam ser identificadas pelo conceito filogenético, vários pesquisadores continuam trabalhando novas abordagens para definir espécies em bactérias. Aplicando os conceitos de espécies – quantas espécies de elefantes vivem na África? Você sabe quantas espécies de elefante existem no mundo? Tradicionalmente, duas: a africana (Loxodonta africana) e a asiática (Elephas maximus). Entretanto, análises morfológicas recentes têm desafiado essa visão, apontando que os elefantes africanos que habitam as florestas apresentam características diferentes daqueles que habitam as savanas. Mas como esses indivíduos não interagem regularmente, raramente eles têm a chance de cruzar entre si. Como resultado, tem sido difícil verificar se eles seriam espécies diferentes, dentro do conceito biológico. Para elucidar a situação, um grupo de pesquisadores aplicou o conceito filogenético de espécie. Eles coletaram amostras de tecidos de 195 elefantes em 21 populações nas regiões central e sul da Ásia. Eles isolaram o DNA desses tecidos e, a partir da análise do material genético, compararam as populações para ver quais delas estavam mais relacionadas. A filogenia resultante da análise mostrou claramente que os elefantes da savana e os da floresta eram espécies diferentes, segundo o conceito filogenético. Os mesmos pesquisadores propuseram o nome Loxodonta cyclotis para os elefantes da floresta, mantendo o nome Loxodonta africana para os animais das savanas. Estudos como esse têm importantes implicações do ponto de vista da conservação da biodiversidade. Imagine que você trabalhe para algum órgão ambiental africano e quisesse preservar os elefantes. Se as savanas estivessem sofrendo maior pressão de caça e ocupações ilegais que as florestas, ou vice-versa, e um dos ecossistemas fosse subestimado na sua estratégia de conservação, provavelmente uma das espécies de elefante acabaria em risco de extinção. Importância das espécies para biologia Com tudo que discutimos até aqui, deve ter ficado claro como é difícil definir o que é espécie e, talvez, isso deixe a impressão de que espécie seria um conceito arbitrário, sem significado para a biologia. A história das discussões sobre os conceitos de espécie durante as diferentes épocas do desenvolvimento do pensamento biológico foi exposta por Ernst Mayr num trabalho publicado em 1998. Embora haja, de fato, divergências quanto ao conceito a ser empregado, a maioria dos biólogos aceita que espécies são unidades reais e de importância fundamental para a Biologia. Assim, imprecisão na delimitação e identificação das espécies pode causar, como muitas vezes já causou, problemas para estudos de ecologia, fisiologia, evolução, conservação etc. Uma discussão interessante sobre o “problema das espécies”, mas que também mostra a extrema importância dada pelos biólogos às espécies foi feita por Jody Hey em 2001. III. Mecanismos de isolamento genético Conforme visto acima, existem várias ferramentas disponíveis para a identificação de espécies. Agora, o foco de nossa discussão passa à questão de COMO as espécies se formam. Já que o isolamento reprodutivo parece ser o principal aspecto na definição de espécie, passa a ser crucial analisar quais mecanismos levam populações originalmente de uma mesma espécie a desenvolverem isolamento reprodutivo e formarem, consequentemente, espécies distintas. A forma mais comumente aceita de especiação tem sido descrita como um processo que envolve três etapas de acontecimentos: 1) isolamento geográfico entre populações; 2) divergência de características, em geral relacionadas ao sistema de acasalamento ou uso de habitat; 3) isolamento reprodutivo. De acordo com esse modelo, as etapas de isolamento e de divergência ocorreriam em períodos de tempo não coincidentes e quando as populações estivessem localizadas em diferentes áreas geográficas. E a etapa final ocorreria quando as populações que divergiram entrassem em contato físico, um evento chamado contato secundário. Mas estudos recentes têm mostrado que as etapas de isolamento e de divergência que iniciam o processo de especiação podem ocorrer ao mesmo tempo, e no mesmo lugar. Além disso, parece que em um número significativo de eventos de especiação a terceira etapa nem chega a acontecer. Ainda assim, a sequência isolamento/divergência/contato secundário oferece uma abordagem muito útil na análise de como ocorre a especiação. Você deve estar lembrado que, segundo o conceito biológico, uma espécie surge a partir do momento em que duas populações não conseguem mais manter fluxo gênico pela reprodução sexuada. A seguir, iremos falar um pouco sobre os fatores que promovem o isolamento genético de populações, relacionados à etapa inicial da especiação. Discutiremos como a separação física ou mudanças nos cromossomos podem reduzir o fluxo gênico entre populações. Imagine, inicialmente, uma população que foi recentemente dividida em duas devido ao surgimento de uma barreira geográfica, que poderia ser um rio que mudou seu curso, ou uma cadeia de montanhas que se elevou, ou mesmo uma descontinuidade no ambiente como uma faixa seca que se formou separando duas áreas de matas úmidas. Dessa forma, não há mais acasalamentos entre indivíduos de uma população com os da outra, impedindo o fluxo gênico. Você acha que isso justificaria classificarmos indivíduos de cada população como pertencendo a uma espécie diferente? Provavelmente não! É importante que você tenha em mente que o isolamento reprodutivo é uma característica própria dos indivíduos de cada espécie, mas, nesse caso, os animais deixam de se reproduzir unicamente porque estão distantes um do outro. Em suma, apenas isolamento geográfico não configura isolamento reprodutivo; deve ocorrer algo mais. Mas vamos continuar, então, com nossas duas populações, que ainda permanecem isoladas geograficamente. É possível, por exemplo, que cada uma dessas populações desenvolva, ao longo do tempo, características próprias devido a diferenças existentes entre os ambientes onde vivem. Será que o acúmulo de diferenças entre nossas duas populações poderia causar um isolamento reprodutivo? Muitas evidências indicam que sim! Vamos ver primeiro as evidências oriundas de estudos feitos em laboratório. Em um trabalho muito interessante, publicado em 1989, a pesquisadora Diane Dodd separou grupos de indivíduos de Drosophila pseudoobscura, oriundos de um mesmo local, e manteve cada grupo com uma dieta alimentar diferente. Depois de certo tempo, quando os indivíduos de cada grupo apresentavam diferenças em suas enzimas digestivas, Dodd montou grupos mistos e verificou que o número de acasalamentos entre indivíduos de grupos diferentes era significativamente menor do que entre indivíduos do mesmo grupo. O primeiro resultado parece simples, os grupos sofreram modificações devido ao tipo de alimento disponível, mas também parece ter havido uma segunda mudança que só ficou aparente quando os indivíduos foram reunidos: os animais desenvolveram também uma preferência para acasalar com indivíduos cultivados em mesmo meio. Foram, obviamente, realizados experimentos controles e verificou-se que animais mantidos separados mas recebendo o mesmo tipo de alimentação não desenvolveram essa mesma preferência quanto ao acasalamento. Esse tipo de isolamento reprodutivo demonstrado no exemplo acima é do tipo chamado pré-zigótico. Ou seja, o isolamento não permite que os animais cheguem a cruzar. Há outros tipos de isolamento reprodutivo pré-zigótico que podem surgir em populações isoladas, como uma mudança gradual para épocas reprodutivas diferentes, ou desenvolvimento de comportamentos diferentes para atrair parceiros. Talvez você esteja se perguntando, mas como é que uma pressão evolutiva atuando sobre uma característica relativa à alimentação poderia provocar isolamento reprodutivo? Bom, antes de responder, também quero fazer uma pergunta, você lembra o que é pleiotropia? Um fenômeno bem documentado na genética é a capacidade de alguns genes de atuarem simultaneamente sobre duas ou mais características fenotípicas. Esses genes são chamados de pleiotrópicos, e o fenômeno é chamado de pleiotropia. Respondendo, então, à primeira pergunta, se a seleção estiver atuando sobre um gene de função alimentar que também atua na reprodução por pleiotropia, surge isolamento pré-zigótico como mero efeito colateral da seleção alimentar. Outras evidências quanto ao surgimento de isolamento reprodutivo como conseqüência do isolamento geográfico provém de estudos de biogeografia. Isolamento pré-zigótico (biogeografia) Quando observamos na natureza populações isoladas geograficamente, não podemos saber com certeza se elas apresentam isolamento reprodutivo, pois encontros entre seus indivíduos simplesmente não ocorrem. Entretanto, pesquisadores podem realizar esses encontros experimentalmente em laboratório. O que se observa com frequência, como resultado desses experimentos, é que o grau de isolamento reprodutivo aumenta conforme a distância entre as populações analisadas. Além disso, existem alguns casos peculiares de distribuição geográfica que são particularmente instrutivos quanto a essa correlação positiva entre a distância e o grau de isolamento reprodutivo: são as chamadas espécies em anel. Imagine uma região hipotética onde há uma cadeia de montanhas que se estende de norte para sul. Agora, nessa região, imagine uma população que habitava originalmente o extremo norte ao pé dessa cadeia de montanhas e se expandiu gradualmente, através de muitas gerações, para o sul pelos dois lados da cadeia de montanhas até que seus membros se encontraram novamente ao sul. O que aconteceria se, durante a expansão em direção ao sul, cada “sub-população”, a leste e a oeste da cadeia de montanhas, sofresse adaptações ao ambiente em que se encontra? As modificações em cada lado poderiam resultar em isolamento reprodutivo? Nós já discutimos, anteriormente, que o isolamento reprodutivo pode surgir como consequência, por pleiotropia, de adaptações a fatores ambientais não necessariamente relacionados diretamente com aspectos reprodutivos. Portanto, seria perfeitamente plausível que, ao se encontrarem novamente no sul, as duas “sub-populações” não se reproduzissem, ou seja, que apresentassem isolamento reprodutivo. De fato, existem exemplos na natureza exatamente disso que acabamos de discutir hipoteticamente; esses exemplos são justamente as chamadas espécies em anel. Um pesquisador que analisasse, no nosso caso hipotético, apenas os indivíduos ao sul da cadeia, muito provavelmente separaria os grupos em duas espécies, pois veria que não ocorre hibridização entre as diferentes formas. Por outro lado, esses dois grupos estão interconectados por cruzamentos através das formas intermediárias que contornam as montanhas pelo norte e, assim sendo, um outro pesquisador analisando a população como um todo, de norte a sul, possivelmente argumentaria que não há isolamento reprodutivo. As espécies em anel constituem exemplos reais de que variação suficiente pode surgir dentro de uma população a tal ponto que subgrupos se diversifiquem em espécies distintas. Embora não sejam extremamente comuns, há vários casos claros de espécies em anel. Por exemplo, duas espécies de gaivota, Larus argentatus e Larus fuscus, coexistem no norte da Europa, mas estão conectadas por uma cadeia de formas intermediárias em torno do oceano Ártico. Essas diferentes formas apresentam pouca diferenciação em marcadores moleculares, o que indica que provavelmente se expandiram e diferenciaram recentemente. A figura abaixo, retirada do artigo de Irwin e colaboradores, ilustra esse exemplo. Fonte: Irwin et al. (2001). Isolamento pós-zigótico (Dobzhansky-Muller, interação entre vários locos) Até aqui, discutimos tanto evidências experimentais como biogeográficas que indicam o surgimento de isolamento reprodutivo pré-zigótico entre populações que se modificam independentemente ao serem subdivididas. O mecanismo genético responsável por esse isolamento seria a pleiotropia, ou seja, um efeito colateral sobre a reprodução causado pela adaptação a condições do ambiente. Mas existe também outra forma de isolamento reprodutivo que pode surgir entre populações isoladas, chamado pós-zigótico. Ao contrário do que acontecia no isolamento pré-zigótico, em que não ocorria cruzamento, agora as espécies diferentes chegam a se reproduzir, gerando híbridos. Entretanto, essas populações podem ser consideradas reprodutivamente isoladas por vários motivos como, por exemplo, a produção de híbridos inviáveis, ou o desenvolvimento de híbridos inférteis ou de baixa aptidão. Muitos exemplos desse tipo de isolamento reprodutivo são conhecidos, como o caso de Equus caballus e Equus asinus, discutido anteriormente quando falamos de conceitos de espécie. O isolamento pós-zigótico também pode decorrer do surgimento de uma barreira geográfica que divide uma população inicial em duas. Assim como nos casos de isolamento pré-zigótico, a divergência acumulada pode levar ao surgimento de isolamento reprodutivo pós-zigótico, mas nesse último caso o mecanismo genético causador do isolamento não é mais a pleiotropia. O mecanismo genético subjacente ao isolamento reprodutivo pós-zigótico prevê uma situação um pouco mais complicada do que aquela discutida para o isolamento prézigótico. Esse mecanismo genético gerador de isolamento pós-zigótico ficou conhecido como modelo de Dobzhansky-Muller e solucionou uma importante objeção lógica que era feita à teoria da evolução por seleção natural, desde os seus primórdios. O argumento era o seguinte. Se olharmos duas espécies aparentadas, veremos que cada uma delas está muito bem adaptada ao seu modo de vida. Em uma analogia com a superfície de uma paisagem, poderíamos dizer que o grau de adaptação de cada uma das duas espécies seria o pico de uma montanha. Portanto, para que uma espécie se transformasse em outra, seria necessário transpor um vale, ou seja, seria necessário primeiramente que a população diminuísse sua aptidão para depois se adaptar a outras condições. Logicamente, você deve imaginar que a própria seleção natural impediria essa redução inicial na aptidão, e então o vale nunca seria transposto. Talvez a situação fique ainda mais clara se usarmos como exemplo o valor adaptativo de um loco gênico. Duas espécies estão muito bem adaptadas a seus ambientes, uma possuidora do genótipo AA e a outra do genótipo aa. Híbridos formados por essas duas espécies seriam inviáveis ou estéreis, como consequência de possuírem o genótipo heterozigoto Aa. CLAREANDO A MÉMORIA Lembra-se do que são os alelos? Cada uma das versões de um mesmo gene. Por exemplo, digamos que para um gene que chamaremos de “A” presente na espécie humana, poderiam existir os alelos A (lemos “azão”) e a (lemos “azinho”). Você, por exemplo, carrega em suas células duas versões, ou dois alelos, para cada um de seus genes. Quando os dois alelos são iguais, dizemos que o genótipo é homozigoto (exemplo: AA, aa); quando eles são diferentes, dizemos que o genótipo é heterozigoto. Você, por exemplo, carrega em suas células duas versões, ou dois alelos, para cada um de seus genes. Esses dois alelos foram herdados, respectivamente, de seu pai e de sua mãe, a partir do momento em que um espermatozóide dele fecundou um óvulo dela. Considerando o gene “A”, seu pai poderia produzir espermatozóides do tipo A ou do tipo a, e sua mãe também poderia produzir óvulos do tipo A ou do tipo a; a tabela abaixo apresenta as possibilidades de zigotos que poderiam se formar para essas combinações de gametas. Ora, novamente, chegamos à situação que uma população original possuidora, por exemplo, do genótipo homozigoto AA, jamais poderia originar uma outra população aa, sem antes passar pelo estado Aa, que é inviável. Você saberia dizer qual a solução para esses paradoxos? O modelo de Dobzhansky-Muller solucionou essa questão estabelecendo que o isolamento reprodutivo pós-zigótico surge como consequência da interação entre múltiplos locos gênicos, fenômeno genético conhecido como epistasia. Vamos então, agora, reconsiderar a situação através de um modelo de dois locos gênicos. Uma população original AABB foi subdividida em duas por uma barreira geográfica. Em um lado da barreira, surge uma mutação ‘a’ no primeiro loco (AaBB) e o seguinte genótipo acaba se fixando: aaBB. Na outra população, surge uma mutação ‘b’ no outro loco (AABb) e fixa-se finalmente o genótipo AAbb. Todas essas combinações são perfeitamente férteis e viáveis. Mas, não poderia acontecer de o genótipo duplo heterozigoto ser inviável ou estéril? Lembre-se que os muitos genes do genótipo de uma espécie desenvolvem-se intimamente ligados, interagindo o tempo todo sob ação da seleção natural. Mas no nosso exemplo acima, entretanto, as formas heterozigotas Aa e Bb nunca existiram em um mesmo genoma. A interação entre esses dois locos poderia, então, resultar em isolamento reprodutivo pós-zigótico. Você deve ter percebido que pelo modelo de Dobzhansky-Muller seria perfeitamente possível, teoricamente, uma população desenvolver isolamento pószigótico sem a necessidade de descer pelo vale de adaptabilidade. Mas não é apenas do ponto de vista teórico que esse modelo demonstra consistência. Estudos experimentais apresentam evidência de que, realmente, o isolamento reprodutivo pós-zigótico está correlacionado a uma interação epistática entre múltiplos locos. Finalmente, a teoria de Dobzhansky-Muller parece ser perfeitamente aplicável a fenômenos biológicos reais. São várias as possibilidades de surgimento de incompatibilidade entre genes de locos distintos nos organismos. Podemos supor, por exemplo, que os locos hipotéticos do exemplo acima correspondam a genes que codificam enzimas envolvidas em etapas distintas de uma rota metabólica. O loco A codifica a enzima EA que cataliza a transformação do substrato S em S’, enquanto o loco B codifica a enzima EB, responsável por catalizar a transformação seguinte de S’ em S”. A primeira espécie produziria as enzimas EA1 e EB1, de forma que o produto da primeira da primeira reação (S’) seja processado corretamente pela enzima seguinte na rota metabólica. A segunda espécie funcionaria de forma semelhante, porém com as enzimas EA2 e EB2. Entretanto, em um organismo híbrido, a enzima EA poderia gerar um produto que não pode ser processado pela enzima EB, resultando em interrupção da rota metabólica. Essa é apenas uma das possíveis formas de interação entre múltiplos locos que pode resultar em isolamento segundo o teoria de Dobzhansky-Muller. Reforço Até aqui, vimos dois aspectos fundamentais e bem compreendidos sobre os mecanismos de especiação em populações geograficamente isoladas: 1) o surgimento de isolamento reprodutivo pré-zigótico, por pleiotropia; 2) o surgimento de isolamento reprodutivo pós-zigótico por interações epistáticas entre múltiplos locos gênicos. Mas há também outros mecanismos que podem contribuir para o processo de especiação, como, por exemplo, a teoria do reforço, às vezes chamada também de efeito de Wallace, pois retoma uma ideia proposta inicialmente por Alfred Russel Wallace. Em determinadas circunstâncias, a teoria prevê que a seleção natural pode amplificar, ou reforçar, um isolamento reprodutivo parcial existente. Você saberia dizer em que situação e de que forma isso seria possível? Nós já discutimos os eventos que podem ocorrer quando há formação de uma barreira geográfica isolando duas populações, mas vamos agora considerar a situação em que essa barreira geográfica desaparece. Chamamos de contato secundário quando duas populações voltam a se encontrar após o desaparecimento de uma barreira geográfica. Poderemos observar graus variados de isolamento reprodutivo em populações que entram em contato secundário. Pode ser que as populações se misturem novamente sem nenhum problema (ausência de isolamento), pode ser que as populações estejam totalmente isoladas e, portanto, não produzam descendentes ou produzam descendentes inviáveis ou inférteis. Por fim, pode ser que as populações apresentem um estágio intermediário de isolamento pós-zigótico, ou seja, ocorre intercruzamento, mas as formas híbridas apresentam baixa aptidão. Nesse cenário, como você acha que a seleção natural poderia atuar? Um possível desdobramento dessa situação seria que as forças seletivas acelerassem o processo de especiação, aumentando o grau de isolamento entre as duas populações. Se houver nessas populações indivíduos que se reproduzem preferencialmente com seus semelhantes, fica fácil imaginar que a seleção natural rapidamente favorecerá o estabelecimento dessas características nas populações. Indivíduos incapazes de discriminar membros de seu próprio grupo produzirão, com maior frequência, híbridos de baixa aptidão e serão, consequentemente, selecionados negativamente. Por outro lado, aqueles indivíduos capazes de escolher membros de seu próprio grupo para se reproduzir produzirão descendentes com alta aptidão e serão, portanto, selecionados positivamente. Você seria capaz de resumir essa história da teoria do reforço utilizando a terminologia científica adequada? Bom, acho que podemos concluir que a teoria do reforço prevê que a seleção natural agirá no sentido de ampliar o isolamento pré-zigótico entre populações que entraram em contato secundário após desenvolverem isolamento reprodutivo pószigótico incompleto. Vale ressaltar que a seleção natural não é capaz de provocar o aumento do isolamento reprodutivo pós-zigótico, ou seja, favorecer a formação de descendentes menos viáveis. A teoria do reforço talvez não seja amplamente aplicável aos casos de especiação. Essa teoria necessita de condições bastante específicas e talvez pouco duráveis para atuar. Mas apesar de algumas controvérsias quanto à sua generalização, essa teoria parece bastante plausível e é suportada por estudos de biogeografia. Por exemplo, observa-se em populações em contato secundário que os indivíduos mais próximos da zona de contato, onde ocorre hibridização, são mais capazes de selecionar parceiros de seu próprio grupo do que aqueles indivíduos da mesma espécie que vivem no outro extremo da área de distribuição, isto é, longe da área de contato secundário. IV. Especiação alopátrica, parapátrica e simpátrica Os mecanismos de especiação que discutimos até aqui trataram do surgimento de isolamento reprodutivo entre duas populações separadas geograficamente uma da outra. Essa condição em que duas espécies surgem a partir de uma população ancestral que foi subdividida em duas áreas não conectadas é chamada de especiação alopátrica ou especiação por vicariância. Acredita-se que essa seja a forma mais comum de especiação e ela é, sem dúvida, a mais bem compreendida. A população original pode ser subdividida pelo surgimento de uma barreira que impede o deslocamento dos indivíduos de um lado para outro, como já foi proposto anteriormente, ou então pela migração de um grupo de indivíduos da população original para uma nova área seguida da perda de contato com a população ancestral. Ao final ou mesmo durante o processo de especiação pode ocorrer o contato secundário entre essas populações ou espécies. Mas espécies novas poderiam surgir, ao menos hipoteticamente, em populações que não apresentam distribuição alopátrica... Existe a situação em que uma população ancestral dá origem a duas novas espécies de distribuição contígua, sem que haja isolamento geográfico. Por exemplo, uma população dá origem a uma nova espécie que ocupa a porção leste da distribuição original da população e outra que ocupa a porção oeste, sem que haja descontinuidade entre elas. Esse tipo de distribuição caracteriza a especiação parapátrica. Finalmente, se uma população ancestral se divide em duas novas espécies cujas distribuições são a mesma da população ancestral, fica caracterizada a especiação simpátrica. Embora acredita-se que esses dois últimos tipos de especiação sejam muito menos comuns, eles parecem, no mínimo, possíveis. Mas de que forma poderia ocorrer a especiação parapátrica? Um fenômeno bem conhecido relacionado à distribuição de espécies e organismos é a formação de um gradiente de variação intraespecífico como reposta a uma variação também gradual nas condições ambientais ao longo da área de distribuição. Por exemplo, sabemos que a temperatura média do ambiente tende a diminuir conforme nos afastamos da linha do equador em direção aos pólos. Se uma espécie possui uma ampla distribuição no sentido norte-sul, podemos esperar que, quanto mais nos deslocamos para a região mais fria da área de distribuição, encontraremos, por exemplo, indivíduos gradativamente com maior massa corporal, uma adaptação para tolerar o frio. Esse tipo de gradiente de variação de uma espécie ao longo de sua área de distribuição é chamado de clina. Outros exemplos de clina poderiam ser adaptações fisiológicas para lidar com gradações na umidade do ambiente, ou quantia de pigmento na pele conforme a luminosidade a que os indivíduos estão expostos. Embora essas clinas possam ser graduais, também podem ocorrer áreas ao longo da clina em que a variação é mais acentuada, formando as chamadas clinas escalonadas. Esse padrão de variação geográfica em clina escalonada parece ser o principal requisito para que ocorra especiação parapátrica. Se as condições em cada lado da clina escalonada forem diferentes o suficiente para que as formas híbridas produzidas na zona intermediária da clina sejam desvantajosas, fica fácil imaginar como o reforço poderia entrar em cena e promover o isolamento reprodutivo entre os grupos. Uma das principais críticas a esse processo é que a grande maioria das zonas de hibridização conhecidas parecem ser resultantes de contato secundário e não de clinas. De qualquer maneira, o processo seria possível. O isolamento pós-zigótico provavelmente não atuaria em eventos de especiação parapátrica, pois fica difícil imaginar que a seleção natural permitiria o surgimento de genes incompatíveis em populações que mantêm fluxo gênico, ainda que reduzido. A especiação simpátrica, assim como a parapátrica, parece ser um fenômeno muito menos comum do que a especiação alopátrica. Nesse caso, as populações divergentes não estão isoladas geograficamente nem tampouco apresentam uma clina de variação. Você conseguiria imaginar, então, quais seriam as condições necessárias para que o isolamento reprodutivo surgisse em simpatria? No caso da especiação simpátrica, devemos considerar que as barreiras para o fluxo gênico poderiam ser de origem ecológica e não geográfica. As principais evidências sobre mecanismo de especiação simpátrica provém de espécies animais que se alimentam de ou se reproduzem em tipos específicos de plantas. Se membros de uma população original passam a explorar um novo recurso existente na mesma área geográfica em que se encontra a população ancestral e, devido à utilização desse novo recurso, passam a se reproduzir preferencialmente com os outros indivíduos que também exploram esse novo recurso, então podemos ter as condições necessárias para que ocorra especiação parapátrica. Você talvez consiga entender melhor essa situação com o exemplo apresentado adiante, decorrente da introdução das macieiras nos Estados Unidos. V. Mecanismos de divergência Dispersão e vicariância apenas criam condições para a especiação. Para que essa continue, seleção natural e deriva genética devem atuar sobre as mutações de modo a criar divergência nas populações isoladas. Nesta seção, iremos rever como a deriva genética e a seleção atuam sobre populações intimamente relacionadas uma vez que o fluxo gênico entre elas tenha sido reduzido ou eliminado. Seleção natural Conforme você já deve ter notado, diferenças genéticas consideráveis devem ocorrer entre populações intimamente relacionadas para que a especiação aconteça. A deriva genética (discutida mais adiante) quase sempre desempenha um papel fundamental em criar tais diferenças quando ao menos uma das populações é pequena. Mas a seleção natural também pode levar a divergências se uma das populações ocupa um outro ambiente ou usa um novo tipo de recurso. Uma pesquisa realizada com moscas nos Estados Unidos ilustra bem o papel da seleção natural na especiação. Populações dessas moscas estão divergindo em decorrência da seleção natural sobre as preferências alimentares de cada uma delas. A mosca da maçã, Rhagoletis pomonella, é encontrada nas regiões nordeste e centro-norte dos Estados Unidos. Essa espécie é considerada uma praga na agricultura norte-americana. As mesmas moscas também parasitam os frutos de uma outra espécie de planta intimamente relacionada às macieiras, conhecida como pilriteiro (Crataegus). Os machos e fêmeas de Rhagoletis identificam suas árvores hospedeiras pela visão, toque e cheiro. A côrte e o acasalamento ocorrem sobre ou próximo aos frutos. As fêmeas depositam seus ovos nos frutos enquanto os mesmos ainda estão nas árvores; os ovos eclodem em dois dias e então desenvolvem três estágios larvais no mesmo fruto, levando mais ou menos um mês. Depois que o fruto cai da árvore, as larvas saem e cavam pequenos furos no solo, onde permanecem durante todo o inverno. No verão seguinte, elas emergem como adultas, reiniciando o ciclo. Os pesquisadores desse estudo se perguntaram se as moscas que parasitavam as macieiras e os pilriteiros pertenceriam a populações distintas. Tanto os pilriteiros quanto as moscas são nativos da América do Norte, mas as macieiras foram introduzidas a partir da Europa há menos de 300 anos. Para formular a pergunta, os pesquisadores partiram da hipótese de que dois grupos geneticamente distintos de moscas teriam sido criados por seleção natural baseada na preferência por diferentes fontes de alimento. A hipótese alternativa seria de que as moscas das macieiras e dos pilriteiros são membros da mesma população, ou seja, elas seriam capazes de se acasalar livremente e a seleção para explorar diferentes hospedeiros não ocorreu. Para tentar responder às suas perguntas, os pesquisadores americanos então analisaram o material genético de moscas coletadas nos dois tipos de árvores. E os resultados apontaram diferenças significativas nas suas frequências de alelos, o que reforça a hipótese de que as moscas atualmente formam duas populações distintas. Embora morfologicamente elas sejam idênticas, elas foram claramente diferenciadas com base em seu genótipo. Você teria algum palpite sobre como isso pode ter ocorrido? Como moscas que ocupam a mesma região geográfica e são morfologicamente parecidas conseguiram divergir em espécies distintas? Acontece que, ao invés de se isolarem pela geografia, as moscas das macieiras e dos pilriteiros estão isoladas em função de sua espécie hospedeira. Como o acasalamento nessas moscas ocorre nos frutos parasitados por elas, sua preferência de habitat resultou em acasalamentos fortemente não aleatórios, ou seja, as moscas do pilriteiro tendem a cruzar somente com as moscas do pilriteiro, e as moscas da macieira, por sua vez, tendem a cruzar somente com as moscas da macieira. Observou-se que em apenas 6% dos casos totais de acasalamento ocorria cruzamento entre moscas de hospedeiros diferentes. Esse exemplo descreve um caso ainda incompleto de especiação, pois estudos em laboratório demonstram que as formas ainda não estão isoladas reprodutivamente, embora já apresentem diferenças quanto a suas enzimas digestivas e desenvolvimento. Talvez o tempo de divergência tenha sido insuficiente, mas não podemos afirmar com certeza que as duas populações chegarão um dia a formar espécies diferentes. Entretanto, a existência de amplas irradiações adaptativas em linhagens de insetos fitófagos, através de colonização de novos hospedeiros, parece indicar que a especiação simpátrica é uma realidade. Seleção sexual Em muitas espécies, machos e fêmeas podem apresentar diferenças na maneira como eles escolhem seus parceiros sexuais. Esse tipo de seleção é chamado de seleção sexual, e é visto como um caso especial de seleção natural. Alguns modelos de genética de populações têm demonstrado que mudanças na maneira com que uma população de organismos sexuados seleciona ou adquire seus parceiros pode resultar numa rápida diferenciação da população ancestral. Isso acontece porque a seleção sexual afeta diretamente o fluxo gênico, e por causa disso pode ser um importante mecanismo promotor de divergências entre populações. Deriva genética O que acontece quando um barco está à deriva? Seu rumo é incerto, não é? Pois quando falamos em deriva genética, nos referimos a algo parecido, só que acontecendo com os alelos. Consideremos agora uma população, ou seja, um grupo de indivíduos capazes de cruzar entre si. Faça um exercício mental imaginando que pegamos todos os óvulos e todos os espermatozoides produzidos pelos indivíduos adultos dessa população e os colocamos numa caixa. Um óvulo pode colidir aleatoriamente com um espermatozoide, ocorrendo então fecundação. Cada um desses gametas carrega um alelo de um determinado gene. espermatozóides A óvulos a A AA Aa a aA aa zigotos Digamos que a frequência do alelo A entre os gametas da população acima seja de 60% e do alelo a, de 40%. A princípio, tais frequências alélicas se manteriam constantes de geração para geração. Isso é o que prega uma lei conhecida como lei de Hardy-Weinberg, a qual você verá mais a fundo quando estiver estudando genética de populações. Entretanto, observa-se que muitas vezes vão ocorrendo alterações nas frequências alélicas no decorrer de várias gerações, especialmente se as populações são relativamente pequenas. A deriva genética refere-se justamente a essas alterações nas frequências alélicas. Mas o que isso tem a ver com o surgimento de novas espécies? Em pequenas populações, a deriva genética pode levar a diferenciações genéticas que, a longo prazo, podem levar ao surgimento de novas espécies. Efeito do fundador No arquipélago do Havaí, são encontradas aproximadamente 500 espécies já descritas de moscas do tipo drosófila (parentes das moscas de frutas), além de uma estimativa de outras 350 espécies ainda não descritas formalmente. Além do número relativamente elevado de espécies, outro aspecto que sempre chamou a atenção dos pesquisadores é a diversificação ecológica desse grupo. As moscas havaianas podem ser encontradas desde o nível do mar até as montanhas mais altas, e tanto em arbustos secos quanto em florestas úmidas. Como tamanha diversidade pode ter surgido? Uma das explicações parte do chamado efeito do fundador, expressão criada por Ernst Mayr para descrever a alteração inicial por deriva genética nas frequências alélicas, que promovem uma cadeia de mudanças genéticas em outros locos. Muitas das moscas havaianas são endêmicas de certas ilhas do arquipélago, ou seja, são encontradas apenas numa ilha em particular. A hipótese do efeito do fundador sustenta que tal endemismo surgiu quando uma pequena população de moscas, ou talvez uma única fêmea grávida, dispersou para um novo habitat ou ilha. Como resultado, os colonizadores fundaram novas populações fisicamente separadas da espécie ancestral, as quais foram se divergindo geneticamente por deriva ou seleção. O efeito do fundador pode ser apontado como um importante mecanismo de especiação em ilhas oceânicas como o Havaí. Além disso, uma grande variedade de habitats tais como fontes termais, cavernas, topos de montanhas e lagos com drenagem restrita também podem ser vistos como “ilhas”, nos quais a ocorrência de espécies endêmicas pode ser explicada por esse efeito. VI. Hibridização Agora suponha que um determinado evento de especiação começa com o isolamento geográfico de duas populações e consequente redução no fluxo gênico. O mesmo evento, então, continua, com seleção, mutação e deriva genética causando divergência nos genes dos dois grupos. O que você acha que aconteceria se essas populações voltassem a ter algum tipo de contato e pudessem cruzar novamente? Eventos de hibridização entre populações na situação que acabou de ser descrita acima são particularmente comuns em plantas. Chamamos de zona híbrida uma região onde o intercruzamento entre populações divergentes é frequente. Tais zonas são usualmente produzidas quando ocorre contato secundário entre espécies que divergiram alopatricamente. Só para clarear sua memória, estamos considerando como híbrido um organismo que é resultante do cruzamento entre dois pertencentes a populações de espécies diferentes ou que, no mínimo, estão em processo de divergência. O destino de tais híbridos, muitas vezes, determina o curso de um processo de especiação. Apresentando algumas situações possíveis: 1) os híbridos eventualmente são capazes de cruzar com indivíduos da geração parental, podendo anular a divergência entre eles; 2) ou, numa outra possibilidade, os híbridos apresentam características novas e dão origem a uma população distinta; 3) por fim, os descendentes dos híbridos podem apresentar um valor adaptativo reduzido em relação à geração parental. Nesse último caso, o destino da zona híbrida dependerá da intensidade das pressões de seleção natural que ela irá sofrer. Se as pressões forem intensas, os híbridos têm poucas chances de se manter a longo prazo. VII. Considerações finais Como você percebeu, uma série de conceitos de espécies pode existir. Tais conceitos diferem nos critérios utilizados no reconhecimento de uma “novidade” evolutiva. De forma geral, porém, assumimos que especiação, ou seja, o surgimento de novas espécies, consiste na evolução de barreiras genéticas à troca gênica entre populações. Vimos que a especiação pode ser analisada como um processo de três etapas: 1) isolamento geográfico entre populações; 2) divergência de características, em geral relacionadas ao sistema de acasalamento ou uso de habitat; 3) isolamento reprodutivo. Mas podem existir exceções a essa sequência. Em alguns casos, a seleção por divergência é forte o suficiente para que populações possam se diferenciar sem que haja isolamento geográfico (lembra-se da pesquisa com as moscas da maçã e do pilriteiro?). Além disso, eventuais contatos secundários podem gerar zonas híbridas estáveis, ou novas espécies que conterão genes de ambos os pais. A diferenciação das populações em espécies distintas pode ocorrer rápida ou lentamente através de seleção natural, deriva genética ou por uma combinação das duas. E, de modo geral, populações pequenas e localizadas podem se diferenciar mais rapidamente em novas espécies. VIII. Referências DODD, D.M.B. 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