MECANISMOS DE ESPECIAÇÃO Autores: Bárbara Medeiros

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MECANISMOS DE ESPECIAÇÃO
Autores: Bárbara Medeiros Fonseca e Ricardo Lourenço Pinto
I. Considerações iniciais
II. Como definir uma espécie?
III. Mecanismos de isolamento genético
IV. Especiação alopátrica, parapátrica e simpátrica
V. Mecanismos de divergência
VI. Hibridização
VII. Considerações finais
VIII. Referências
I. Considerações iniciais
Você já se perguntou quantas espécies existem no planeta atualmente? E quantas
já existiram? (sim, pois os fósseis estão aí como prova de que já houve muita coisa na
Terra muito antes do homem aparecer...). Previsões mais conservadoras sugerem que
existam de dois a cinco milhões de espécies no planeta. Mas há aquelas mais ousadas
que apontam para valores próximos a 100 milhões de espécies!
Agora uma pergunta ainda mais intrigante: quais seriam os mecanismos que
deram origem a todas as espécies, ou seja, quais seriam os mecanismos de especiação?
Como surge uma espécie? Uma das obras mais fundamentais da Biologia traz essa
questão já em seu título: “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, publicada em
1859.
Talvez você ainda não se tenha dado conta, mas os mecanismos de especiação
estão entre os eventos mais fundamentais na história da vida. Os mesmos já ocorreram
milhões, se não bilhões de vezes desde a origem da vida, há aproximadamente 3,8
bilhões de anos atrás. E nesse exato momento, enquanto você está lendo este capítulo,
várias novas espécies estão em processo de formação, embora um número ainda maior
de espécies esteja em processo de extinção devido, principalmente, às atividades
humanas.
Atividade Complementar 1: Resgatando alguns conceitos de genética de populações
A genética de populações integra a teoria de seleção natural de Charles Darwin com a
genética de Gregor Mendel. Nessa abordagem, o processo de evolução é visto como
mudanças na frequência de alelos ao longo de gerações. Para compreender melhor os
mecanismos de especiação, um bom entendimento de alguns conceitos de genética é
fundamental. Por exemplo, você sabe exatamente o que é o DNA? E o que são genes?
Enfim, aproveite a oportunidade e faça uma revisão sobre a relação entre DNA, genes,
alelos, e mutações.
Antes, porém, de falar sobre o tema título deste capítulo, ou seja, os mecanismos
de especiação propriamente ditos, você saberia identificar uma espécie? Ou, refazendo a
pergunta de outra forma, você saberia dizer por que consideramos o homem e o
chipanzé espécies diferentes, por exemplo?
II. Como identificar uma espécie?
Todas as culturas humanas, desde tempos remotos, reconhecem diferentes tipos de
seres vivos na natureza e atribuem nomes a eles. É interessante notar que muitas
espécies de animais e plantas reconhecidas por povos primitivos são as mesmas
identificadas atualmente pelos biólogos. Esse fato talvez faça você pensar que a
entidade chamada de espécie deveria ser fácil de definir. Entretanto o conceito de
espécie tem sido um dos temas mais controversos dentro da Biologia. Os sistemas de
classificação (ver quadro “Saiba mais”) baseiam-se em argumentos para agrupar ou
separar os organismos. O grande desafio dos biólogos, atualmente, tem sido transpor
julgamentos informais para uma definição de espécie mais precisa, criando um sistema
que nomeie e classifique a diversidade da vida e, ao mesmo tempo, reflita a história
evolutiva dos seres vivos.
A princípio, parece relativamente fácil diferenciar um homem de um chipanzé e
assumir que eles pertençam a espécies diferentes. Mas há situações em que a
delimitação de características distintivas não é tão fácil. Isso costuma ocorrer
especialmente entre os microorganismos. Por essa razão, atualmente há vários conceitos
diferentes de espécie. E é sobre três desses conceitos que falaremos a seguir.
Saiba mais
Você sabia que existem biólogos que se especializam em dar nomes e classificar os
organismos? Esse profissional é um taxonomista, e a ciência que ele faz é uma
subdivisão da Biologia chamada TAXONOMIA. Quando uma espécie até então
desconhecida é descoberta, o taxonomista entra em ação dando um nome a ela, sempre
obedecendo às regrais gerais dos códigos internacionais de nomenclatura, que são o
Código Internacional de Nomenclatura Botânica, o Código Internacional de
Nomenclatura Zoológica e o Código Internacional de Nomenclatura Bacteriológica.
Provavelmente você leu sobre isso no capítulo 2 deste livro.
Conceito biológico de espécie
À época da nova síntese evolutiva, nas décadas de 30 e 40, alguns dos seus
principais protagonistas, como Theodosius Dobzhansky e Ernst Mayr, enunciaram o
chamado conceito biológico de espécie, que costuma ser o mais utilizado nos livros
texto sobre o assunto. Segundo tal conceito, o critério básico para identificar espécies é
o isolamento reprodutivo. Uma espécie seria um grupo de populações naturais que
podem cruzar entre si, deixando descendentes férteis. População, por sua vez, seria um
grupo de organismos da mesma espécie que ocupam uma região geográfica mais ou
menos definida e exibem continuidade reprodutiva de geração a geração. Cada membro
de uma espécie seria um indivíduo.
Se duas populações não são capazes de produzir híbridos ou descendentes férteis
entre si, elas estão isoladas reprodutivamente, sendo consideradas, então, espécies
distintas. Ou seja, o homem e o chipanzé são espécies diferentes porque os dois não
conseguem cruzar entre si e produzir descendentes férteis. Quando eventualmente
ocorre o cruzamento de indivíduos de espécies diferentes, com o surgimento de
descendentes, esses – chamados híbridos – são estéreis, salvo algumas exceções.
Curiosidade: O cavalo, o jegue e o bardoto.
O jegue (ou asno, ou burro, ou jumento) é um mamífero da espécie Equus asinus. O
macho (ou mulo) é o indivíduo do sexo masculino resultante do cruzamento de um
burro com uma égua, Equus caballus. O animal fêmea resultante do mesmo
cruzamento é chamado mula. Entretanto, o cruzamento das mesmas espécies, porém
invertidos os sexos (portanto cavalo e mula), dá origem a um animal diferente, o
bardoto. Esses híbridos são quase sempre estéreis devido ao fato do cavalo possuir 64
cromossomos, enquanto que o jegue possui 62, resultando em 63 cromossomos. São
raros os casos em que uma mula tenha parido. Desde 1527, data em que os casos
começaram a ser arquivados, apenas 60 casos foram registrados.
O isolamento reprodutivo é considerado um bom critério na identificação de
espécies, pois confirma a ausência de fluxo gênico entre os indivíduos. Parece simples.
Para saber, então, se dois grupos de indivíduos pertencem à mesma espécie, bastaria
tentar o cruzamento entre o macho de um grupo e uma fêmea do outro, ou vice-versa.
Considerando que no sexo ocorre o fluxo gênico por meio da transferência de alelos
durante a fusão dos gametas, se o resultado do cruzamento produzisse uma prole viável,
os dois grupos seriam da mesma espécie. Entretanto, há várias situações em que a
aplicação do conceito biológico de espécies é dificultada. Por exemplo: como saber se
duas populações vivendo em locais diferentes estão isoladas reprodutivamente?
Você já viu, no capítulo 1, que espécies podem se estender por longos períodos
de tempo. Como testar, então, o conceito biológico em fósseis? Não temos como saber,
com certeza, se os indivíduos de uma linhagem contínua eram reprodutivamente
isolados.
Além disso, como você deve ter notado, o conceito biológico está diretamente
relacionado à reprodução sexuada. Entretanto, há uma série de organismos que nunca se
reproduzem sexuadamente... Mais adiante iremos retomar esta questão.
Conceito filogenético de espécie
Um conceito de espécie alternativo ao biológico seria o chamado conceito
filogenético. Tal abordagem baseia-se no critério da monofilia. Grupos monofiléticos
são táxons que contêm todos os descendentes conhecidos de um único ancestral comum.
Um táxon, por sua vez, é o nome de qualquer grupo de organismos dentro de uma
determinada categoria taxonômica. Homo sapiens (homem), Zea mays (milho) e
Agaricus bisporus (cogumelo champignon) são exemplos de táxons da categoria
taxonômica “espécie”. Animalia, Plantae e Fungi são táxons dentro da categoria
taxonômica “reino”.
Saiba mais
FILOGENIA pode ser definida como uma hipótese sobre o caminho pelo qual um
grupo de organismos está evolutivamente relacionado. Tanto dados morfológicos
quanto moleculares ou ecológicos podem ser usados para inferir relações filogenéticas.
A primeira árvore filogenética de que se tem notícia foi elaborada pelo zoólogo e
evolucionista alemão Ernst Haeckel, em 1866. Inicialmente, a filogenia de vários
grupos de organismos era feita com base em caracteres estruturais, ou seja, fenotípicos.
Atualmente, as árvores filogenéticas baseiam-se principalmente em dados moleculares,
comparando-se o genótipo dos indivíduos.
Pelo conceito filogenético, espécies são identificadas inferindo-se a filogenia de
populações intimamente relacionadas e procurando-se o grupo monofilético mais
restritivo. Esse exibiria, no mínimo, uma característica distintiva e unificadora, seja esta
de caráter estrutural, bioquímico ou molecular. Tais características são chamadas de
sinapomorfias. Programas de computador têm sido amplamente utilizados para
comparar as características dos organismos e modelar os padrões mais prováveis de
relações, gerando diagramas ramificados conhecidos como árvores filogenéticas.
No conceito filogenético de espécie, cada ponta de uma ramificação numa
árvore filogenética representa uma espécie em particular, e os ancestrais comuns
estariam representados nos nós das ramificações. No diagrama abaixo, por exemplo, A,
B, C, e D seriam espécies distintas. O ancestral “1” é comum a todas elas; o ancestral
“2” é comum às espécies A e B; o ancestral “3” é comum às espécies C e D.
A
2
B
1
C
3
D
O princípio racional por trás desse conceito é o de que, numa filogenia,
caracteres apenas podem distinguir populações se as mesmas tiverem sido isoladas em
termos de fluxo gênico e divergido genetica e/ou morfologicamente. Em outras
palavras, para serem chamadas de espécies separadas filogeneticamente, populações
devem ter sido independentes por tempo suficiente para garantir que as sinapormofias
(citadas anteriormente) emergissem.
Conforme você já deve ter percebido, uma grande vantagem do conceito
filogenético é que ele pode ser aplicado a qualquer tipo de organismo, independente
dele ser um fóssil ou de sua reprodução ocorrer por métodos sexuados ou assexuados.
Na prática, porém, essa abordagem apresenta algumas desvantagens relacionadas à
considerável quantidade de tempo e dinheiro requerida para se inferir as relações
evolutivas entre os organismos. Como resultado, filogenias bem fundamentadas existem
apenas para um grupo relativamente pequeno de organismos. Além disso, a maior parte
dos pesquisadores reconhece que a instituição do conceito filogenético de espécie
certamente iria dobrar o número de espécies conhecidas e criar uma grande confusão se
os nomes das espécies tradicionais fossem modificados. A resposta desses mesmos
pesquisadores para tal polêmica é que, se um aumento dramático no número de espécies
conhecidas realmente ocorrer, é porque, de fato, é necessário refletir sobre a realidade
biológica.
Conceito morfológico de espécie
De acordo com esse conceito, espécies são o menor grupo definível por
características estruturais que são relativamente fáceis de distinguir. Os paleontólogos,
por exemplo, definem espécies com base nas diferenças morfológicas entre fósseis.
Quando não se tem acesso a testes rigorosos de isolamento reprodutivo ou a filogenias
bem estabelecidas, botânicos e zoólogos também recorrem ao conceito morfológico de
espécie. A grande vantagem do mesmo é, portanto, sua ampla aplicação e, na prática,
esse continua sendo o conceito mais amplamente utilizado no dia-a-dia, embora suas
limitações sejam reconhecidas. Quando não aplicada adequadamente, a definição das
espécies pode se tornar arbitrária. No pior dos cenários, a designação de espécies feita
por diferentes pesquisadores pode não ser comparável.
Entre as algas, por exemplo, o conceito morfológico de espécie tem sido
frequentemente utilizado, pois para muitas delas a reprodução sexuada é rara ou até
mesmo nunca foi observada. Vários táxons são identificados com base em suas
características morfológicas. As três fotos abaixo se referem a diferentes espécies do
gênero Cosmarium, uma alga verde muito comum em lagoas, rios e reservatórios. Veja
que os indivíduos apresentam diferenças particularmente quanto ao tamanho (a barra
vertical corresponde a 10 micrômetros) e ao formato das células.
Fotos: B.M.Fonseca e L.M.B.Estrela
Atividade Complementar 2:
Imagine que você é um extraterrestre que desembarcou na Terra e coletou os
organismos abaixo. Qual conceito de espécie você aplicaria? Quantas espécies
diferentes você diria ter coletado? Por quê? Quais seriam seus critérios para diferenciálas?
1
2
3
v
v
v
v
v
4
5
6
7
v
8
Quando o sexo não faz falta
Qual a relação entre sexo e reprodução? Você acha que são sinônimos?
A reprodução aumenta o número de indivíduos na natureza, propagando seus
genes ao longo do tempo. Já sexo é a mistura de genes de dois indivíduos, expressos na
geração seguinte. Tem como função biológica promover variedade, a qual permite às
populações uma maior capacidade de resposta frente a alterações ambientais. Essa seria
uma das principais vantagens da reprodução sexuada. E as grandes mudanças evolutivas
só podem ocorrer se os organismos mantiverem um amplo estoque de variabilidade
genética.
Mas a reprodução em si pode ocorrer também sem sexo. Diga-se de passagem,
os métodos assexuados estão entre os mais eficientes na função de aumentar o número
de indivíduos na natureza, pois requerem apenas um indivíduo para a reprodução e em
geral são mais simples e rápidos. A prole, nesse caso, terá material genético idêntico ao
organismo parental.
Atividade Complementar 3
Faça uma pesquisa sobre métodos de reprodução assexuada.
Organismos assexuados (ou seja, uniparentais) incluem desde bactérias, com
suas células procarióticas, a eucariotos multicelulares mais complexos, incluindo
invertebrados e até vertebrados como algumas espécies de lagartos. Há estudos que
mostram que rotíferos bdelóides (grupo de invertebrados aquáticos) vivem sem sexo há
aproximadamente 85 milhões de anos!
Talvez você esteja se perguntando: então será que esses organismos não mudam
nunca? Nunca irão apresentar variabilidade genética, tão importante para que o processo
de seleção natural ocorra? Na verdade, em geral eles irão contar com outros
mecanismos para garantir alguma variabilidade genética.
Nas bactérias, a troca de material genético até acontece, porém não da mesma
forma que na reprodução sexuada típica. Sexo, no contexto abordado aqui, significa
meiose seguida por troca recíproca de partes homólogas do genoma.
Atividade Complementar 4:
Você provavelmente aprendeu, ainda no ensino médio, as diferenças entre mitose e
meiose, processos relacionados à divisão celular. Conforme apontado acima, quando
falamos em sexo num contexto biológico, está implícita a ocorrência de meiose.
Por quê? O que ocorre na meiose que não acontece na mitose? Faça uma revisão sobre
o assunto.
Nos procariotos, a troca de genes limita-se a pequenos segmentos do genoma, é
unidirecional, ocorre na ausência de reprodução e resulta em recombinação gênica, ou
seja, uma nova combinação de alelos. Nas bactérias, os alelos são rotineiramente
transferidos entre membros de táxons completamente diferentes. Em alguns casos, as
espécies envolvidas possuem genomas cuja sequência de bases divergem em até 16%.
Em contraste, a troca genética entre eucariotos é normalmente limitada a organismos
cujos genomas divergem em, no máximo, 2%. Espécies eucarióticas que hibridizam são,
em sua grande maioria, classificadas num mesmo gênero; já bactérias que transferem
alelos podem ser classificadas até em filos diferentes. Nos animais, isso seria o
equivalente a um indivíduo da espécie humana transferir alelos para uma minhoca...
O movimento de alelos entre organismos relacionados de forma distante é
chamado transferência genética lateral. Esse fenômeno tem sido responsável pela
rápida disseminação de resistência a antibióticos em bactérias relacionadas de forma
distante. Alguns pesquisadores acreditam que o mesmo seria o principal mecanismo de
especiação nas bactérias. Eles acreditam que o fluxo gênico desencadeia divergência
entre grupos de bactérias. Dessa forma, as espécies de bactérias, consistem, então, em
células que descendem de um ancestral comum recente e que ainda não passaram por
fluxo gênico via transferência genética lateral. Embora espécies desse tipo possam ser
identificadas pelo conceito filogenético, vários pesquisadores continuam trabalhando
novas abordagens para definir espécies em bactérias.
Aplicando os conceitos de espécies – quantas espécies de elefantes vivem na África?
Você sabe quantas espécies de elefante existem no mundo? Tradicionalmente,
duas: a africana (Loxodonta africana) e a asiática (Elephas maximus). Entretanto,
análises morfológicas recentes têm desafiado essa visão, apontando que os elefantes
africanos que habitam as florestas apresentam características diferentes daqueles que
habitam as savanas. Mas como esses indivíduos não interagem regularmente, raramente
eles têm a chance de cruzar entre si. Como resultado, tem sido difícil verificar se eles
seriam espécies diferentes, dentro do conceito biológico.
Para elucidar a situação, um grupo de pesquisadores aplicou o conceito
filogenético de espécie. Eles coletaram amostras de tecidos de 195 elefantes em 21
populações nas regiões central e sul da Ásia. Eles isolaram o DNA desses tecidos e, a
partir da análise do material genético, compararam as populações para ver quais delas
estavam mais relacionadas. A filogenia resultante da análise mostrou claramente que os
elefantes da savana e os da floresta eram espécies diferentes, segundo o conceito
filogenético. Os mesmos pesquisadores propuseram o nome Loxodonta cyclotis para os
elefantes da floresta, mantendo o nome Loxodonta africana para os animais das
savanas.
Estudos como esse têm importantes implicações do ponto de vista da
conservação da biodiversidade. Imagine que você trabalhe para algum órgão ambiental
africano e quisesse preservar os elefantes. Se as savanas estivessem sofrendo maior
pressão de caça e ocupações ilegais que as florestas, ou vice-versa, e um dos
ecossistemas fosse subestimado na sua estratégia de conservação, provavelmente uma
das espécies de elefante acabaria em risco de extinção.
Importância das espécies para biologia
Com tudo que discutimos até aqui, deve ter ficado claro como é difícil definir o
que é espécie e, talvez, isso deixe a impressão de que espécie seria um conceito
arbitrário, sem significado para a biologia. A história das discussões sobre os conceitos
de espécie durante as diferentes épocas do desenvolvimento do pensamento biológico
foi exposta por Ernst Mayr num trabalho publicado em 1998. Embora haja, de fato,
divergências quanto ao conceito a ser empregado, a maioria dos biólogos aceita que
espécies são unidades reais e de importância fundamental para a Biologia. Assim,
imprecisão na delimitação e identificação das espécies pode causar, como muitas vezes
já causou, problemas para estudos de ecologia, fisiologia, evolução, conservação etc.
Uma discussão interessante sobre o “problema das espécies”, mas que também mostra a
extrema importância dada pelos biólogos às espécies foi feita por Jody Hey em 2001.
III. Mecanismos de isolamento genético
Conforme visto acima, existem várias ferramentas disponíveis para a
identificação de espécies. Agora, o foco de nossa discussão passa à questão de COMO
as espécies se formam. Já que o isolamento reprodutivo parece ser o principal aspecto
na definição de espécie, passa a ser crucial analisar quais mecanismos levam populações
originalmente de uma mesma espécie a desenvolverem isolamento reprodutivo e
formarem, consequentemente, espécies distintas.
A forma mais comumente aceita de especiação tem sido descrita como um
processo que envolve três etapas de acontecimentos: 1) isolamento geográfico entre
populações; 2) divergência de características, em geral relacionadas ao sistema de
acasalamento ou uso de habitat; 3) isolamento reprodutivo.
De acordo com esse modelo, as etapas de isolamento e de divergência
ocorreriam em períodos de tempo não coincidentes e quando as populações estivessem
localizadas em diferentes áreas geográficas. E a etapa final ocorreria quando as
populações que divergiram entrassem em contato físico, um evento chamado contato
secundário.
Mas estudos recentes têm mostrado que as etapas de isolamento e de divergência
que iniciam o processo de especiação podem ocorrer ao mesmo tempo, e no mesmo
lugar. Além disso, parece que em um número significativo de eventos de especiação a
terceira etapa nem chega a acontecer. Ainda assim, a sequência
isolamento/divergência/contato secundário oferece uma abordagem muito útil na análise
de como ocorre a especiação.
Você deve estar lembrado que, segundo o conceito biológico, uma espécie surge
a partir do momento em que duas populações não conseguem mais manter fluxo gênico
pela reprodução sexuada. A seguir, iremos falar um pouco sobre os fatores que
promovem o isolamento genético de populações, relacionados à etapa inicial da
especiação. Discutiremos como a separação física ou mudanças nos cromossomos
podem reduzir o fluxo gênico entre populações.
Imagine, inicialmente, uma população que foi recentemente dividida em duas
devido ao surgimento de uma barreira geográfica, que poderia ser um rio que mudou
seu curso, ou uma cadeia de montanhas que se elevou, ou mesmo uma descontinuidade
no ambiente como uma faixa seca que se formou separando duas áreas de matas úmidas.
Dessa forma, não há mais acasalamentos entre indivíduos de uma população com os da
outra, impedindo o fluxo gênico. Você acha que isso justificaria classificarmos
indivíduos de cada população como pertencendo a uma espécie diferente?
Provavelmente não! É importante que você tenha em mente que o isolamento
reprodutivo é uma característica própria dos indivíduos de cada espécie, mas, nesse
caso, os animais deixam de se reproduzir unicamente porque estão distantes um do
outro. Em suma, apenas isolamento geográfico não configura isolamento reprodutivo;
deve ocorrer algo mais.
Mas vamos continuar, então, com nossas duas populações, que ainda
permanecem isoladas geograficamente. É possível, por exemplo, que cada uma dessas
populações desenvolva, ao longo do tempo, características próprias devido a diferenças
existentes entre os ambientes onde vivem. Será que o acúmulo de diferenças entre
nossas duas populações poderia causar um isolamento reprodutivo? Muitas evidências
indicam que sim! Vamos ver primeiro as evidências oriundas de estudos feitos em
laboratório.
Em um trabalho muito interessante, publicado em 1989, a pesquisadora Diane
Dodd separou grupos de indivíduos de Drosophila pseudoobscura, oriundos de um
mesmo local, e manteve cada grupo com uma dieta alimentar diferente. Depois de certo
tempo, quando os indivíduos de cada grupo apresentavam diferenças em suas enzimas
digestivas, Dodd montou grupos mistos e verificou que o número de acasalamentos
entre indivíduos de grupos diferentes era significativamente menor do que entre
indivíduos do mesmo grupo. O primeiro resultado parece simples, os grupos sofreram
modificações devido ao tipo de alimento disponível, mas também parece ter havido uma
segunda mudança que só ficou aparente quando os indivíduos foram reunidos: os
animais desenvolveram também uma preferência para acasalar com indivíduos
cultivados em mesmo meio. Foram, obviamente, realizados experimentos controles e
verificou-se que animais mantidos separados mas recebendo o mesmo tipo de
alimentação não desenvolveram essa mesma preferência quanto ao acasalamento.
Esse tipo de isolamento reprodutivo demonstrado no exemplo acima é do tipo
chamado pré-zigótico. Ou seja, o isolamento não permite que os animais cheguem a
cruzar. Há outros tipos de isolamento reprodutivo pré-zigótico que podem surgir em
populações isoladas, como uma mudança gradual para épocas reprodutivas diferentes,
ou desenvolvimento de comportamentos diferentes para atrair parceiros.
Talvez você esteja se perguntando, mas como é que uma pressão evolutiva
atuando sobre uma característica relativa à alimentação poderia provocar isolamento
reprodutivo? Bom, antes de responder, também quero fazer uma pergunta, você lembra
o que é pleiotropia?
Um fenômeno bem documentado na genética é a capacidade de alguns genes de
atuarem simultaneamente sobre duas ou mais características fenotípicas. Esses genes
são chamados de pleiotrópicos, e o fenômeno é chamado de pleiotropia. Respondendo,
então, à primeira pergunta, se a seleção estiver atuando sobre um gene de função
alimentar que também atua na reprodução por pleiotropia, surge isolamento pré-zigótico
como mero efeito colateral da seleção alimentar.
Outras evidências quanto ao surgimento de isolamento reprodutivo como
conseqüência do isolamento geográfico provém de estudos de biogeografia.
Isolamento pré-zigótico (biogeografia)
Quando observamos na natureza populações isoladas geograficamente, não
podemos saber com certeza se elas apresentam isolamento reprodutivo, pois encontros
entre seus indivíduos simplesmente não ocorrem. Entretanto, pesquisadores podem
realizar esses encontros experimentalmente em laboratório. O que se observa com
frequência, como resultado desses experimentos, é que o grau de isolamento
reprodutivo aumenta conforme a distância entre as populações analisadas. Além disso,
existem alguns casos peculiares de distribuição geográfica que são particularmente
instrutivos quanto a essa correlação positiva entre a distância e o grau de isolamento
reprodutivo: são as chamadas espécies em anel.
Imagine uma região hipotética onde há uma cadeia de montanhas que se estende
de norte para sul. Agora, nessa região, imagine uma população que habitava
originalmente o extremo norte ao pé dessa cadeia de montanhas e se expandiu
gradualmente, através de muitas gerações, para o sul pelos dois lados da cadeia de
montanhas até que seus membros se encontraram novamente ao sul. O que aconteceria
se, durante a expansão em direção ao sul, cada “sub-população”, a leste e a oeste da
cadeia de montanhas, sofresse adaptações ao ambiente em que se encontra? As
modificações em cada lado poderiam resultar em isolamento reprodutivo? Nós já
discutimos, anteriormente, que o isolamento reprodutivo pode surgir como
consequência, por pleiotropia, de adaptações a fatores ambientais não necessariamente
relacionados diretamente com aspectos reprodutivos. Portanto, seria perfeitamente
plausível que, ao se encontrarem novamente no sul, as duas “sub-populações” não se
reproduzissem, ou seja, que apresentassem isolamento reprodutivo.
De fato, existem exemplos na natureza exatamente disso que acabamos de
discutir hipoteticamente; esses exemplos são justamente as chamadas espécies em anel.
Um pesquisador que analisasse, no nosso caso hipotético, apenas os indivíduos ao sul da
cadeia, muito provavelmente separaria os grupos em duas espécies, pois veria que não
ocorre hibridização entre as diferentes formas. Por outro lado, esses dois grupos estão
interconectados por cruzamentos através das formas intermediárias que contornam as
montanhas pelo norte e, assim sendo, um outro pesquisador analisando a população
como um todo, de norte a sul, possivelmente argumentaria que não há isolamento
reprodutivo.
As espécies em anel constituem exemplos reais de que variação suficiente pode
surgir dentro de uma população a tal ponto que subgrupos se diversifiquem em espécies
distintas. Embora não sejam extremamente comuns, há vários casos claros de espécies
em anel. Por exemplo, duas espécies de gaivota, Larus argentatus e Larus fuscus,
coexistem no norte da Europa, mas estão conectadas por uma cadeia de formas
intermediárias em torno do oceano Ártico. Essas diferentes formas apresentam pouca
diferenciação em marcadores moleculares, o que indica que provavelmente se
expandiram e diferenciaram recentemente. A figura abaixo, retirada do artigo de Irwin e
colaboradores, ilustra esse exemplo.
Fonte: Irwin et al. (2001).
Isolamento pós-zigótico (Dobzhansky-Muller, interação entre vários locos)
Até aqui, discutimos tanto evidências experimentais como biogeográficas que
indicam o surgimento de isolamento reprodutivo pré-zigótico entre populações que se
modificam independentemente ao serem subdivididas. O mecanismo genético
responsável por esse isolamento seria a pleiotropia, ou seja, um efeito colateral sobre a
reprodução causado pela adaptação a condições do ambiente. Mas existe também outra
forma de isolamento reprodutivo que pode surgir entre populações isoladas, chamado
pós-zigótico.
Ao contrário do que acontecia no isolamento pré-zigótico, em que não ocorria
cruzamento, agora as espécies diferentes chegam a se reproduzir, gerando híbridos.
Entretanto, essas populações podem ser consideradas reprodutivamente isoladas por
vários motivos como, por exemplo, a produção de híbridos inviáveis, ou o
desenvolvimento de híbridos inférteis ou de baixa aptidão. Muitos exemplos desse tipo
de isolamento reprodutivo são conhecidos, como o caso de Equus caballus e Equus
asinus, discutido anteriormente quando falamos de conceitos de espécie.
O isolamento pós-zigótico também pode decorrer do surgimento de uma barreira
geográfica que divide uma população inicial em duas. Assim como nos casos de
isolamento pré-zigótico, a divergência acumulada pode levar ao surgimento de
isolamento reprodutivo pós-zigótico, mas nesse último caso o mecanismo genético
causador do isolamento não é mais a pleiotropia.
O mecanismo genético subjacente ao isolamento reprodutivo pós-zigótico prevê
uma situação um pouco mais complicada do que aquela discutida para o isolamento prézigótico. Esse mecanismo genético gerador de isolamento pós-zigótico ficou conhecido
como modelo de Dobzhansky-Muller e solucionou uma importante objeção lógica que
era feita à teoria da evolução por seleção natural, desde os seus primórdios.
O argumento era o seguinte. Se olharmos duas espécies aparentadas, veremos
que cada uma delas está muito bem adaptada ao seu modo de vida. Em uma analogia
com a superfície de uma paisagem, poderíamos dizer que o grau de adaptação de cada
uma das duas espécies seria o pico de uma montanha. Portanto, para que uma espécie se
transformasse em outra, seria necessário transpor um vale, ou seja, seria necessário
primeiramente que a população diminuísse sua aptidão para depois se adaptar a outras
condições.
Logicamente, você deve imaginar que a própria seleção natural impediria essa
redução inicial na aptidão, e então o vale nunca seria transposto. Talvez a situação fique
ainda mais clara se usarmos como exemplo o valor adaptativo de um loco gênico. Duas
espécies estão muito bem adaptadas a seus ambientes, uma possuidora do genótipo AA
e a outra do genótipo aa. Híbridos formados por essas duas espécies seriam inviáveis ou
estéreis, como consequência de possuírem o genótipo heterozigoto Aa.
CLAREANDO A MÉMORIA
Lembra-se do que são os alelos? Cada uma das versões de um mesmo gene. Por
exemplo, digamos que para um gene que chamaremos de “A” presente na espécie
humana, poderiam existir os alelos A (lemos “azão”) e a (lemos “azinho”). Você, por
exemplo, carrega em suas células duas versões, ou dois alelos, para cada um de seus
genes. Quando os dois alelos são iguais, dizemos que o genótipo é homozigoto
(exemplo: AA, aa); quando eles são diferentes, dizemos que o genótipo é heterozigoto.
Você, por exemplo, carrega em suas células duas versões, ou dois alelos, para cada um
de seus genes. Esses dois alelos foram herdados, respectivamente, de seu pai e de sua
mãe, a partir do momento em que um espermatozóide dele fecundou um óvulo dela.
Considerando o gene “A”, seu pai poderia produzir espermatozóides do tipo A ou do
tipo a, e sua mãe também poderia produzir óvulos do tipo A ou do tipo a; a tabela
abaixo apresenta as possibilidades de zigotos que poderiam se formar para essas
combinações de gametas.
Ora, novamente, chegamos à situação que uma população original possuidora,
por exemplo, do genótipo homozigoto AA, jamais poderia originar uma outra população
aa, sem antes passar pelo estado Aa, que é inviável. Você saberia dizer qual a solução
para esses paradoxos? O modelo de Dobzhansky-Muller solucionou essa questão
estabelecendo que o isolamento reprodutivo pós-zigótico surge como consequência da
interação entre múltiplos locos gênicos, fenômeno genético conhecido como epistasia.
Vamos então, agora, reconsiderar a situação através de um modelo de dois locos
gênicos. Uma população original AABB foi subdividida em duas por uma barreira
geográfica. Em um lado da barreira, surge uma mutação ‘a’ no primeiro loco (AaBB) e
o seguinte genótipo acaba se fixando: aaBB. Na outra população, surge uma mutação
‘b’ no outro loco (AABb) e fixa-se finalmente o genótipo AAbb. Todas essas
combinações são perfeitamente férteis e viáveis. Mas, não poderia acontecer de o
genótipo duplo heterozigoto ser inviável ou estéril?
Lembre-se que os muitos genes do genótipo de uma espécie desenvolvem-se
intimamente ligados, interagindo o tempo todo sob ação da seleção natural. Mas no
nosso exemplo acima, entretanto, as formas heterozigotas Aa e Bb nunca existiram em
um mesmo genoma. A interação entre esses dois locos poderia, então, resultar em
isolamento reprodutivo pós-zigótico.
Você deve ter percebido que pelo modelo de Dobzhansky-Muller seria
perfeitamente possível, teoricamente, uma população desenvolver isolamento pószigótico sem a necessidade de descer pelo vale de adaptabilidade. Mas não é apenas do
ponto de vista teórico que esse modelo demonstra consistência. Estudos experimentais
apresentam evidência de que, realmente, o isolamento reprodutivo pós-zigótico está
correlacionado a uma interação epistática entre múltiplos locos.
Finalmente, a teoria de Dobzhansky-Muller parece ser perfeitamente aplicável a
fenômenos biológicos reais. São várias as possibilidades de surgimento de
incompatibilidade entre genes de locos distintos nos organismos. Podemos supor, por
exemplo, que os locos hipotéticos do exemplo acima correspondam a genes que
codificam enzimas envolvidas em etapas distintas de uma rota metabólica.
O loco A codifica a enzima EA que cataliza a transformação do substrato S em
S’, enquanto o loco B codifica a enzima EB, responsável por catalizar a transformação
seguinte de S’ em S”. A primeira espécie produziria as enzimas EA1 e EB1, de forma
que o produto da primeira da primeira reação (S’) seja processado corretamente pela
enzima seguinte na rota metabólica. A segunda espécie funcionaria de forma
semelhante, porém com as enzimas EA2 e EB2. Entretanto, em um organismo híbrido, a
enzima EA poderia gerar um produto que não pode ser processado pela enzima EB,
resultando em interrupção da rota metabólica. Essa é apenas uma das possíveis formas
de interação entre múltiplos locos que pode resultar em isolamento segundo o teoria de
Dobzhansky-Muller.
Reforço
Até aqui, vimos dois aspectos fundamentais e bem compreendidos sobre os
mecanismos de especiação em populações geograficamente isoladas: 1) o surgimento de
isolamento reprodutivo pré-zigótico, por pleiotropia; 2) o surgimento de isolamento
reprodutivo pós-zigótico por interações epistáticas entre múltiplos locos gênicos.
Mas há também outros mecanismos que podem contribuir para o processo de
especiação, como, por exemplo, a teoria do reforço, às vezes chamada também de efeito
de Wallace, pois retoma uma ideia proposta inicialmente por Alfred Russel Wallace.
Em determinadas circunstâncias, a teoria prevê que a seleção natural pode amplificar,
ou reforçar, um isolamento reprodutivo parcial existente. Você saberia dizer em que
situação e de que forma isso seria possível?
Nós já discutimos os eventos que podem ocorrer quando há formação de uma
barreira geográfica isolando duas populações, mas vamos agora considerar a situação
em que essa barreira geográfica desaparece. Chamamos de contato secundário quando
duas populações voltam a se encontrar após o desaparecimento de uma barreira
geográfica.
Poderemos observar graus variados de isolamento reprodutivo em populações
que entram em contato secundário. Pode ser que as populações se misturem novamente
sem nenhum problema (ausência de isolamento), pode ser que as populações estejam
totalmente isoladas e, portanto, não produzam descendentes ou produzam descendentes
inviáveis ou inférteis. Por fim, pode ser que as populações apresentem um estágio
intermediário de isolamento pós-zigótico, ou seja, ocorre intercruzamento, mas as
formas híbridas apresentam baixa aptidão. Nesse cenário, como você acha que a seleção
natural poderia atuar?
Um possível desdobramento dessa situação seria que as forças seletivas
acelerassem o processo de especiação, aumentando o grau de isolamento entre as duas
populações. Se houver nessas populações indivíduos que se reproduzem
preferencialmente com seus semelhantes, fica fácil imaginar que a seleção natural
rapidamente favorecerá o estabelecimento dessas características nas populações.
Indivíduos incapazes de discriminar membros de seu próprio grupo produzirão, com
maior frequência, híbridos de baixa aptidão e serão, consequentemente, selecionados
negativamente. Por outro lado, aqueles indivíduos capazes de escolher membros de seu
próprio grupo para se reproduzir produzirão descendentes com alta aptidão e serão,
portanto, selecionados positivamente. Você seria capaz de resumir essa história da
teoria do reforço utilizando a terminologia científica adequada?
Bom, acho que podemos concluir que a teoria do reforço prevê que a seleção
natural agirá no sentido de ampliar o isolamento pré-zigótico entre populações que
entraram em contato secundário após desenvolverem isolamento reprodutivo pószigótico incompleto. Vale ressaltar que a seleção natural não é capaz de provocar o
aumento do isolamento reprodutivo pós-zigótico, ou seja, favorecer a formação de
descendentes menos viáveis.
A teoria do reforço talvez não seja amplamente aplicável aos casos de
especiação. Essa teoria necessita de condições bastante específicas e talvez pouco
duráveis para atuar. Mas apesar de algumas controvérsias quanto à sua generalização,
essa teoria parece bastante plausível e é suportada por estudos de biogeografia. Por
exemplo, observa-se em populações em contato secundário que os indivíduos mais
próximos da zona de contato, onde ocorre hibridização, são mais capazes de selecionar
parceiros de seu próprio grupo do que aqueles indivíduos da mesma espécie que vivem
no outro extremo da área de distribuição, isto é, longe da área de contato secundário.
IV. Especiação alopátrica, parapátrica e simpátrica
Os mecanismos de especiação que discutimos até aqui trataram do surgimento
de isolamento reprodutivo entre duas populações separadas geograficamente uma da
outra. Essa condição em que duas espécies surgem a partir de uma população ancestral
que foi subdividida em duas áreas não conectadas é chamada de especiação alopátrica
ou especiação por vicariância. Acredita-se que essa seja a forma mais comum de
especiação e ela é, sem dúvida, a mais bem compreendida.
A população original pode ser subdividida pelo surgimento de uma barreira que
impede o deslocamento dos indivíduos de um lado para outro, como já foi proposto
anteriormente, ou então pela migração de um grupo de indivíduos da população original
para uma nova área seguida da perda de contato com a população ancestral. Ao final ou
mesmo durante o processo de especiação pode ocorrer o contato secundário entre essas
populações ou espécies. Mas espécies novas poderiam surgir, ao menos
hipoteticamente, em populações que não apresentam distribuição alopátrica...
Existe a situação em que uma população ancestral dá origem a duas novas
espécies de distribuição contígua, sem que haja isolamento geográfico. Por exemplo,
uma população dá origem a uma nova espécie que ocupa a porção leste da distribuição
original da população e outra que ocupa a porção oeste, sem que haja descontinuidade
entre elas. Esse tipo de distribuição caracteriza a especiação parapátrica.
Finalmente, se uma população ancestral se divide em duas novas espécies cujas
distribuições são a mesma da população ancestral, fica caracterizada a especiação
simpátrica.
Embora acredita-se que esses dois últimos tipos de especiação sejam muito
menos comuns, eles parecem, no mínimo, possíveis. Mas de que forma poderia ocorrer
a especiação parapátrica?
Um fenômeno bem conhecido relacionado à distribuição de espécies e
organismos é a formação de um gradiente de variação intraespecífico como reposta a
uma variação também gradual nas condições ambientais ao longo da área de
distribuição. Por exemplo, sabemos que a temperatura média do ambiente tende a
diminuir conforme nos afastamos da linha do equador em direção aos pólos. Se uma
espécie possui uma ampla distribuição no sentido norte-sul, podemos esperar que,
quanto mais nos deslocamos para a região mais fria da área de distribuição,
encontraremos, por exemplo, indivíduos gradativamente com maior massa corporal,
uma adaptação para tolerar o frio. Esse tipo de gradiente de variação de uma espécie ao
longo de sua área de distribuição é chamado de clina.
Outros exemplos de clina poderiam ser adaptações fisiológicas para lidar com
gradações na umidade do ambiente, ou quantia de pigmento na pele conforme a
luminosidade a que os indivíduos estão expostos. Embora essas clinas possam ser
graduais, também podem ocorrer áreas ao longo da clina em que a variação é mais
acentuada, formando as chamadas clinas escalonadas. Esse padrão de variação
geográfica em clina escalonada parece ser o principal requisito para que ocorra
especiação parapátrica.
Se as condições em cada lado da clina escalonada forem diferentes o suficiente
para que as formas híbridas produzidas na zona intermediária da clina sejam
desvantajosas, fica fácil imaginar como o reforço poderia entrar em cena e promover o
isolamento reprodutivo entre os grupos. Uma das principais críticas a esse processo é
que a grande maioria das zonas de hibridização conhecidas parecem ser resultantes de
contato secundário e não de clinas. De qualquer maneira, o processo seria possível.
O isolamento pós-zigótico provavelmente não atuaria em eventos de especiação
parapátrica, pois fica difícil imaginar que a seleção natural permitiria o surgimento de
genes incompatíveis em populações que mantêm fluxo gênico, ainda que reduzido.
A especiação simpátrica, assim como a parapátrica, parece ser um fenômeno
muito menos comum do que a especiação alopátrica. Nesse caso, as populações
divergentes não estão isoladas geograficamente nem tampouco apresentam uma clina de
variação. Você conseguiria imaginar, então, quais seriam as condições necessárias para
que o isolamento reprodutivo surgisse em simpatria?
No caso da especiação simpátrica, devemos considerar que as barreiras para o
fluxo gênico poderiam ser de origem ecológica e não geográfica. As principais
evidências sobre mecanismo de especiação simpátrica provém de espécies animais que
se alimentam de ou se reproduzem em tipos específicos de plantas.
Se membros de uma população original passam a explorar um novo recurso
existente na mesma área geográfica em que se encontra a população ancestral e, devido
à utilização desse novo recurso, passam a se reproduzir preferencialmente com os outros
indivíduos que também exploram esse novo recurso, então podemos ter as condições
necessárias para que ocorra especiação parapátrica. Você talvez consiga entender
melhor essa situação com o exemplo apresentado adiante, decorrente da introdução das
macieiras nos Estados Unidos.
V. Mecanismos de divergência
Dispersão e vicariância apenas criam condições para a especiação. Para que essa
continue, seleção natural e deriva genética devem atuar sobre as mutações de modo a
criar divergência nas populações isoladas. Nesta seção, iremos rever como a deriva
genética e a seleção atuam sobre populações intimamente relacionadas uma vez que o
fluxo gênico entre elas tenha sido reduzido ou eliminado.
Seleção natural
Conforme você já deve ter notado, diferenças genéticas consideráveis devem
ocorrer entre populações intimamente relacionadas para que a especiação aconteça. A
deriva genética (discutida mais adiante) quase sempre desempenha um papel
fundamental em criar tais diferenças quando ao menos uma das populações é pequena.
Mas a seleção natural também pode levar a divergências se uma das populações ocupa
um outro ambiente ou usa um novo tipo de recurso.
Uma pesquisa realizada com moscas nos Estados Unidos ilustra bem o papel da
seleção natural na especiação. Populações dessas moscas estão divergindo em
decorrência da seleção natural sobre as preferências alimentares de cada uma delas.
A mosca da maçã, Rhagoletis pomonella, é encontrada nas regiões nordeste e
centro-norte dos Estados Unidos. Essa espécie é considerada uma praga na agricultura
norte-americana. As mesmas moscas também parasitam os frutos de uma outra espécie
de planta intimamente relacionada às macieiras, conhecida como pilriteiro (Crataegus).
Os machos e fêmeas de Rhagoletis identificam suas árvores hospedeiras pela
visão, toque e cheiro. A côrte e o acasalamento ocorrem sobre ou próximo aos frutos.
As fêmeas depositam seus ovos nos frutos enquanto os mesmos ainda estão nas árvores;
os ovos eclodem em dois dias e então desenvolvem três estágios larvais no mesmo
fruto, levando mais ou menos um mês. Depois que o fruto cai da árvore, as larvas saem
e cavam pequenos furos no solo, onde permanecem durante todo o inverno. No verão
seguinte, elas emergem como adultas, reiniciando o ciclo.
Os pesquisadores desse estudo se perguntaram se as moscas que parasitavam as
macieiras e os pilriteiros pertenceriam a populações distintas. Tanto os pilriteiros quanto
as moscas são nativos da América do Norte, mas as macieiras foram introduzidas a
partir da Europa há menos de 300 anos. Para formular a pergunta, os pesquisadores
partiram da hipótese de que dois grupos geneticamente distintos de moscas teriam sido
criados por seleção natural baseada na preferência por diferentes fontes de alimento. A
hipótese alternativa seria de que as moscas das macieiras e dos pilriteiros são membros
da mesma população, ou seja, elas seriam capazes de se acasalar livremente e a seleção
para explorar diferentes hospedeiros não ocorreu.
Para tentar responder às suas perguntas, os pesquisadores americanos então
analisaram o material genético de moscas coletadas nos dois tipos de árvores. E os
resultados apontaram diferenças significativas nas suas frequências de alelos, o que
reforça a hipótese de que as moscas atualmente formam duas populações distintas.
Embora morfologicamente elas sejam idênticas, elas foram claramente diferenciadas
com base em seu genótipo.
Você teria algum palpite sobre como isso pode ter ocorrido? Como moscas que
ocupam a mesma região geográfica e são morfologicamente parecidas conseguiram
divergir em espécies distintas? Acontece que, ao invés de se isolarem pela geografia, as
moscas das macieiras e dos pilriteiros estão isoladas em função de sua espécie
hospedeira. Como o acasalamento nessas moscas ocorre nos frutos parasitados por elas,
sua preferência de habitat resultou em acasalamentos fortemente não aleatórios, ou seja,
as moscas do pilriteiro tendem a cruzar somente com as moscas do pilriteiro, e as
moscas da macieira, por sua vez, tendem a cruzar somente com as moscas da macieira.
Observou-se que em apenas 6% dos casos totais de acasalamento ocorria cruzamento
entre moscas de hospedeiros diferentes.
Esse exemplo descreve um caso ainda incompleto de especiação, pois estudos
em laboratório demonstram que as formas ainda não estão isoladas reprodutivamente,
embora já apresentem diferenças quanto a suas enzimas digestivas e desenvolvimento.
Talvez o tempo de divergência tenha sido insuficiente, mas não podemos afirmar
com certeza que as duas populações chegarão um dia a formar espécies diferentes.
Entretanto, a existência de amplas irradiações adaptativas em linhagens de insetos
fitófagos, através de colonização de novos hospedeiros, parece indicar que a especiação
simpátrica é uma realidade.
Seleção sexual
Em muitas espécies, machos e fêmeas podem apresentar diferenças na maneira
como eles escolhem seus parceiros sexuais. Esse tipo de seleção é chamado de seleção
sexual, e é visto como um caso especial de seleção natural. Alguns modelos de genética
de populações têm demonstrado que mudanças na maneira com que uma população de
organismos sexuados seleciona ou adquire seus parceiros pode resultar numa rápida
diferenciação da população ancestral. Isso acontece porque a seleção sexual afeta
diretamente o fluxo gênico, e por causa disso pode ser um importante mecanismo
promotor de divergências entre populações.
Deriva genética
O que acontece quando um barco está à deriva? Seu rumo é incerto, não é? Pois
quando falamos em deriva genética, nos referimos a algo parecido, só que acontecendo
com os alelos. Consideremos agora uma população, ou seja, um grupo de indivíduos
capazes de cruzar entre si. Faça um exercício mental imaginando que pegamos todos os
óvulos e todos os espermatozoides produzidos pelos indivíduos adultos dessa população
e os colocamos numa caixa. Um óvulo pode colidir aleatoriamente com um
espermatozoide, ocorrendo então fecundação. Cada um desses gametas carrega um alelo
de um determinado gene.
espermatozóides
A
óvulos
a
A
AA Aa
a
aA
aa
zigotos
Digamos que a frequência do alelo A entre os gametas da população acima seja
de 60% e do alelo a, de 40%. A princípio, tais frequências alélicas se manteriam
constantes de geração para geração. Isso é o que prega uma lei conhecida como lei de
Hardy-Weinberg, a qual você verá mais a fundo quando estiver estudando genética de
populações. Entretanto, observa-se que muitas vezes vão ocorrendo alterações nas
frequências alélicas no decorrer de várias gerações, especialmente se as populações são
relativamente pequenas. A deriva genética refere-se justamente a essas alterações nas
frequências alélicas. Mas o que isso tem a ver com o surgimento de novas espécies?
Em pequenas populações, a deriva genética pode levar a diferenciações
genéticas que, a longo prazo, podem levar ao surgimento de novas espécies.
Efeito do fundador
No arquipélago do Havaí, são encontradas aproximadamente 500 espécies já
descritas de moscas do tipo drosófila (parentes das moscas de frutas), além de uma
estimativa de outras 350 espécies ainda não descritas formalmente. Além do número
relativamente elevado de espécies, outro aspecto que sempre chamou a atenção dos
pesquisadores é a diversificação ecológica desse grupo. As moscas havaianas podem ser
encontradas desde o nível do mar até as montanhas mais altas, e tanto em arbustos secos
quanto em florestas úmidas. Como tamanha diversidade pode ter surgido?
Uma das explicações parte do chamado efeito do fundador, expressão criada
por Ernst Mayr para descrever a alteração inicial por deriva genética nas frequências
alélicas, que promovem uma cadeia de mudanças genéticas em outros locos. Muitas das
moscas havaianas são endêmicas de certas ilhas do arquipélago, ou seja, são
encontradas apenas numa ilha em particular. A hipótese do efeito do fundador sustenta
que tal endemismo surgiu quando uma pequena população de moscas, ou talvez uma
única fêmea grávida, dispersou para um novo habitat ou ilha. Como resultado, os
colonizadores fundaram novas populações fisicamente separadas da espécie ancestral,
as quais foram se divergindo geneticamente por deriva ou seleção.
O efeito do fundador pode ser apontado como um importante mecanismo de
especiação em ilhas oceânicas como o Havaí. Além disso, uma grande variedade de
habitats tais como fontes termais, cavernas, topos de montanhas e lagos com drenagem
restrita também podem ser vistos como “ilhas”, nos quais a ocorrência de espécies
endêmicas pode ser explicada por esse efeito.
VI. Hibridização
Agora suponha que um determinado evento de especiação começa com o
isolamento geográfico de duas populações e consequente redução no fluxo gênico. O
mesmo evento, então, continua, com seleção, mutação e deriva genética causando
divergência nos genes dos dois grupos. O que você acha que aconteceria se essas
populações voltassem a ter algum tipo de contato e pudessem cruzar novamente?
Eventos de hibridização entre populações na situação que acabou de ser descrita
acima são particularmente comuns em plantas. Chamamos de zona híbrida uma região
onde o intercruzamento entre populações divergentes é frequente. Tais zonas são
usualmente produzidas quando ocorre contato secundário entre espécies que divergiram
alopatricamente.
Só para clarear sua memória, estamos considerando como híbrido um organismo
que é resultante do cruzamento entre dois pertencentes a populações de espécies
diferentes ou que, no mínimo, estão em processo de divergência. O destino de tais
híbridos, muitas vezes, determina o curso de um processo de especiação. Apresentando
algumas situações possíveis: 1) os híbridos eventualmente são capazes de cruzar com
indivíduos da geração parental, podendo anular a divergência entre eles; 2) ou, numa
outra possibilidade, os híbridos apresentam características novas e dão origem a uma
população distinta; 3) por fim, os descendentes dos híbridos podem apresentar um valor
adaptativo reduzido em relação à geração parental. Nesse último caso, o destino da zona
híbrida dependerá da intensidade das pressões de seleção natural que ela irá sofrer. Se as
pressões forem intensas, os híbridos têm poucas chances de se manter a longo prazo.
VII. Considerações finais
Como você percebeu, uma série de conceitos de espécies pode existir. Tais
conceitos diferem nos critérios utilizados no reconhecimento de uma “novidade”
evolutiva. De forma geral, porém, assumimos que especiação, ou seja, o surgimento de
novas espécies, consiste na evolução de barreiras genéticas à troca gênica entre
populações. Vimos que a especiação pode ser analisada como um processo de três
etapas: 1) isolamento geográfico entre populações; 2) divergência de características, em
geral relacionadas ao sistema de acasalamento ou uso de habitat; 3) isolamento
reprodutivo. Mas podem existir exceções a essa sequência. Em alguns casos, a seleção
por divergência é forte o suficiente para que populações possam se diferenciar sem que
haja isolamento geográfico (lembra-se da pesquisa com as moscas da maçã e do
pilriteiro?). Além disso, eventuais contatos secundários podem gerar zonas híbridas
estáveis, ou novas espécies que conterão genes de ambos os pais.
A diferenciação das populações em espécies distintas pode ocorrer rápida ou
lentamente através de seleção natural, deriva genética ou por uma combinação das duas.
E, de modo geral, populações pequenas e localizadas podem se diferenciar mais
rapidamente em novas espécies.
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