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Marx e a Comuna de Paris1
David Maciel *
RESUMO:
Desde 1871 o debate sobre a Comuna de Paris envolveu não apenas
historiadores e cientistas sociais, mas militantes e lideranças políticas das mais
variadas posições. Para os marxistas a Comuna de Paris é considerada um marco
histórico na luta anti-capitalista; identificada como a primeira revolução
especificamente proletária da História, que inspirou outros movimentos
revolucionários e foi associada positivamente ao conceito de ditadura do
proletariado, como sua primeira manifestação histórica. Neste trabalho
pretendemos apresentar uma leitura alternativa da Comuna tomando por base as
próprias formulações de Marx, para quem esta foi apenas um passo inicial em
direção à ditadura do proletariado, sem porém, constituir-se enquanto tal por ter
sido abortada pela violência contra-revolucionária, impedindo-a de levar a cabo a
expropriação dos capitalistas pelos trabalhadores.
PALAVRAS-CHAVE:
Comuna de Paris, Ditadura do proletariado, revolução social.
ABSTRACT:
Since 1871, the discussion about the Commune of Paris involved not only historians
and social scientists, but militants and politics leaderships from several positions. For
marxists, the Commune of Paris is considered a historic mark on the anticapitalist fight;
identified as the first revolution specific proletariat of Historic, that inspired others
revolutionaries movements and it was associated positively with the concept of
proletariat dictatorship, as your first historic demonstration. In this work we intend to
present an alternative reading of the Commune, taking by basis Marx own
formulations, to whom this was only a first step toward proletariat dictatorship, without
however, built itself while it could have been aborted by the violence againstrevolutionary, preventing it to carry out the expropriation from the capitalists by the
workers.
1
- Artigo publicado no Dossiê Temático “Os 140 anos da Comuna de Paris (1871)” da revista História
Revista, volume 16, nº 2, Goiânia: Programa de Pós-graduação em História/UFG, julho/dezembro de
2011, p. 151-175.
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Keywords: Commune of Paris, Proletariat dictatorship, social revolution
Introdução.
Ao longo das décadas o debate sobre a Comuna de Paris de 1871 envolveu não apenas
historiadores e cientistas sociais, mas militantes e lideranças políticas das mais variadas
posições. Para os marxistas a Comuna de Paris é considerada um marco histórico na luta
anticapitalista, o que foi ressaltado pelo próprio Marx ainda durante sua vigência ao afirmar
em carta a L. Kugelman que “porém, mesmo com tudo isso, esse levante de Paris – ainda que
derrubado pelos lobos, porcos e cães abjetos da velha sociedade - é o ato mais glorioso de
nosso partido desde a Insurreição de Junho em Paris” (MARX, 2011, p. 208).
Identificada como a primeira revolução especificamente proletária da História, a breve
experiência da Comuna não só inspirou outros movimentos revolucionários, como a
Revolução de Outubro, como ainda foi associada positivamente ao conceito de ditadura do
proletariado, como sua primeira manifestação histórica. Tal leitura da Comuna no interior do
marxismo, e que se tornou uma espécie de “senso comum”, inicia-se com as breves
formulações de Engels sobre o assunto, mas deve-se, sobretudo, à teorização de Lênin
apresentada no famoso “O Estado e a revolução” e em outros textos.
Neste trabalho pretendemos apresentar uma leitura alternativa da Comuna tomando por
base as próprias formulações de Marx, para quem esta foi apenas um passo inicial em direção
à ditadura do proletariado, sem, porém, constituir-se enquanto tal por ter sido abortada pela
violência contra-revolucionária. À primeira vista, as formulações de Marx acerca do caráter
da Comuna de Paris a aproximam imediatamente do conceito de ditadura do proletariado. A
verdadeira inversão na relação entre Estado e sociedade promovida pela Comuna, seu caráter
radicalmente democrático e seu conteúdo social proletário permitem sua caracterização como
uma experiência de ditadura do proletariado, ou seja, como a forma política da transição do
capitalismo ao comunismo, como por diversas vezes Marx definiu este conceito. No entanto,
um fato incontornável é que Marx nunca chamou a Comuna de Paris por este nome.
Aqui avançamos a hipótese de que Marx nunca conceituou a Comuna de Paris como
ditadura do proletariado por que ela pouco avançou no processo de expropriação do capital,
de “socialização dos meios de produção”, apesar da ruptura que realizou em relação ao
Estado burguês e da novidade histórica que representou enquanto forma política do governo
dos trabalhadores, enquanto radical socialização da política, abolindo a divisão entre
governantes e governados.
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Os textos de Marx sobre a Comuna.
As primeiras formulações de Marx a respeito do processo político que desembocou na
Comuna de Paris foram a primeira e a segunda mensagens do Conselho Geral da Associação
Internacional dos Trabalhadores (AIT) sobre a guerra franco-prussiana. Marx começa a
primeira mensagem (MARX, 2011, p. 21-25), datada de 23 de julho de 1870, denunciando a
perseguição promovida pelo governo de Louis Napoleão às seções francesas da AIT por estas
posicionarem-se contra o plebiscito convocado pelo governo no ano anterior como uma
manobra para legitimá-lo e escamotear sua crise interna. Em seguida condena a Guerra
Franco-Prussiana recém iniciada como uma guerra meramente dinástica, uma guerra entre
monarquias bonapartistas, não entre as nações francesa e alemã, cada qual interessada em
fortalecer-se politicamente à custa de uma guerra “nacional”, não sem antes denunciar as
manobras entre Louis Napoleão e Bismarck contra a Áustria, em 1866, e em favor da criação
da Alemanha do Norte.
No caso francês, a guerra emergiu como uma reedição do golpe de 1851 ao reunificar
as classes proprietárias, com o apoio do campesinato, contra a classe operária. Classe
operária esta que emergiu no final da década de 1860 como a principal força de contestação
ao governo bonapartista, desencadeando inúmeras greves e radicalizando suas posições
políticas em defesa do socialismo. Apesar disto, “seja qual for o resultado da guerra de Luís
Bonaparte com a Prússia”, vaticina Marx, “o dobre fúnebre do Segundo Império já soou em
Paris” (MARX, 2011, p. 23). Do lado alemão Marx acusa o governo de Bismarck de utilizarse de uma guerra defensiva para unificar o país sob a Prússia e consolidar um regime que
combinasse o velho sistema político prussiano com o seu “verdadeiro despotismo” e o
“democratismo de fachada” (idem, ibidem) copiados do Segundo Império francês, revivendo
o bonapartismo do outro lado do Reno.
Diante desta situação, a mensagem reafirma a posição internacionalista da AIT e dos
operários franceses e alemães contra a guerra dinástica e em defesa da união e da
solidariedade proletárias para finalizar alertando o proletariado alemão para os riscos de a
guerra defensiva tornar-se ofensiva. Nesta situação, tanto a vitória como a derrota seriam
uma desgraça para a causa proletária, pois colocariam a Alemanha aos pés da Rússia,
principalmente no caso do apoio russo contra a França.
A segunda mensagem (MARX, 2001, p. 27-33) é datada de 9 de setembro de 1870,
quando as tropas napoleônicas já haviam sido derrotadas em Sedan, Luís Napoleão estava
preso e a república havia sido proclamada em Paris. Marx inicia seu documento lembrando o
acerto do vaticínio da mensagem anterior de que a guerra franco-prussiana levaria à queda do
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Segundo Império na França e de que poderia levar a Alemanha a abandonar a postura
defensiva e desencadear uma ofensiva contra o povo francês. Logo em seguida passa a
contestar os argumentos do governo prussiano, da burguesia e dos nacionalistas alemães em
favor do desmembramento da república francesa e da anexação de territórios franceses.
Primeiramente mostrando a falácia de que o bombardeamento de Estrasburgo e a conquista
da Alsácia e da Lorena garantiriam a segurança alemã contra um futuro ataque francês e de
que, ao contrário dos franceses, os alemães agiam motivados por questões meramente
defensivas e não anexacionistas.
Em segundo lugar, demonstra como a postura ofensiva da Alemanha tornou o czar da
Rússia o árbitro da Europa, reforçando seu prestígio externo num momento em que o
czarismo russo começa a sofrer os primeiros abalos internos. Isto por que se de um lado, a
oposição do czarismo russo à criação do Império Alemão obriga-o a ser um instrumento da
política czarista contra-revolucionária na Europa para apaziguar a situação; de outro lado, o
desmembramento da França obriga-a a buscar uma aliança com a Rússia contra a Alemanha,
criando a possibilidade de uma guerra das raças latina e eslava contra a raça germânica. De
fato, estas duas previsões vieram a se realizar, tanto a política pró-russa adotada por
Bismarck nos 20 anos seguintes, quanto a aliança franco-russa e a Primeira Guerra Mundial,
ocorridas posteriormente.
Em contraposição à postura beligerante dos governos Marx ressalta a posição
internacionalista do proletariado alemão, que defendia uma paz honrosa com a França,
criticava a perspectiva de anexação da Alsácia e da Lorena e exigia o reconhecimento da
república francesa. Em nome da AIT Marx saúda o fim do Segundo Império e a proclamação
da república na França, apesar de reconhecer seus limites afirmando que “esta república não
subverteu o trono, apenas tomou o seu lugar, que havia vacado. Ela foi proclamada não como
uma conquista social, mas como uma medida nacional de defesa” (MARX, 2011, p. 32).
Composta pela burguesia republicana e pelos monarquistas orleanistas, que por sua vez
controlavam os cargos decisivos, o governo republicano possuía o mesmo pavor da classe
operária que o Segundo Império. No entanto, Marx afirma que com os prussianos às portas
de Paris, a tentativa de derrubada do novo governo pelo operariado seria uma “loucura
desesperada” (idem, ibidem), devendo a classe operária francesa aproveitar as liberdades
republicanas para avançar em sua organização política ao mesmo tempo em que deveria
defender o país sem deixar-se iludir pelas recordações de 1792, ou seja, pela perspectiva
jacobina de defesa nacional.
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Nesta avaliação da situação Marx sugere que o enfrentamento aberto da classe operária
contra o governo republicano numa situação em que os prussianos ainda ocupavam
militarmente o país, como viria a ocorrer na Comuna de Paris, seria extremamente temerária,
com riscos enormes para as condições de luta recém conquistadas e de conseqüências
imprevisíveis para a própria sorte da república, pois a restauração monárquica era uma
possibilidade real. A importância desta “casualidade” foi mais uma vez reafirmada por ele
numa carta enviada a L. Kugelman em 17 de abril de 1871, quase um mês após a
proclamação da Comuna de Paris. Segundo Marx, “o ‘acaso’ desfavorável e decisivo não
está, desta vez, nas condições gerais da sociedade francesa, mas na presença da Prússia na
Alemanha e em sua posição próxima à Paris” (MARX, 2011, p. 209).
Mais uma vez, sua análise da situação mostrou-se acertada, como a evolução futura dos
acontecimentos viria confirmar, pois o apoio prussiano à repressão desencadeada pelo
governo republicano foi decisivo para a derrota da Comuna, com o massacre de milhares de
trabalhadores e o desmantelamento do movimento operário francês por uma década.
No entanto, continuou Marx em seguida:
“Disso os parisienses sabiam muito bem. Mas também o sabiam os canalhas burgueses de
Versalhes. Justamente por isso, colocaram aos parisienses a alternativa de ou aceitar a luta
ou sucumbir sem lutar. A desmoralização da classe trabalhadora, no último caso, teria sido
uma desgraça muito maior do que o ocaso de um número qualquer de ‘líderes’. A luta da
classe trabalhadora contra a classe dos capitalistas e seu Estado entrou, com a luta
parisiense, em nova fase. Qualquer que seja o andar das coisas no futuro imediato, o certo é
que se conquistou um novo ponto de partida de importância histórico-mundial” (idem,
ibidem).
Este trecho mostra que apesar de considerar a situação desfavorável para uma
insurreição operária, tese confirmada pelos fatos, Marx também considera que a passividade
diante da ofensiva burguesa é ainda pior para o movimento operário que uma derrota
momentânea, com o sacrifício de suas lideranças. Esta posição se justifica pela leitura que
Marx fazia da revolução de 4 de setembro de 1870, que derrubou o Segundo Império, e do
governo republicano que se lhe seguiu. Para ele o Segundo Império foi a mais adequada
forma política desenvolvida historicamente pela burguesia em favor de sua dominação sobre
os trabalhadores. Em contrapartida sua derrubada foi um feito histórico dos trabalhadores de
Paris, jamais realizado, que não poderiam retroceder desta posição diante de um governo
republicano só tornado possível pelo levante popular de 4 de setembro, mas que em seu
conteúdo de classe, em sua formatação institucional e em sua postura frente aos trabalhadores
era uma edição atualizada do bonapartismo do Segundo Império após a derrota de Sedan.
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Segundo afirma Marx no segundo rascunho de redação de A Guerra Civil na França, terceira
mensagem do Conselho Geral da AIT:
“A revolução operária de Paris de 4 de setembro era o único título legal da Assembléia
Nacional reunida em Bordeaux e de seu poder Executivo. Sem ela, a Assembléia Nacional
teria sido obrigada a dar lugar imediatamente ao Corps législatif eleito por sufrágio
universal e dissolvido pelo braço da Revolução. (...) E Paris era agora pressionada, pelos
gritos insultantes dos escravocratas rebelados de Bordeaux, ou a depor suas armas e
reconhecer que sua revolução de 4 de setembro não tivera outro propósito do que o de
transferir o poder de Luís Bonaparte e sua corja para seus rivais monárquicos, ou a seguir
em frente como a campeã francesa do autossacrifício, que só pode ser salva de sua ruína e se
regenerar por meio da superação revolucionária das condições políticas e sociais que haviam
engendrado o Segundo Império e que, sob sua égide acolhedora, amadureceriam até a
completa podridão” (MARX, 2011, p. 181).
Ou seja, diante da ameaça de restauração da forma mais desenvolvida do poder
burguês, com a reversão das conquistas de 4 de setembro, o proletariado parisiense deveria
lutar para superar a ordem social que sustentava o bonapartismo, mesmo que mediante
intenso sacrifício e sob a ameaça da derrota. Diante disto, a luta de Paris adquiria um
significado histórico-mundial, pois anunciava que a revolução social assumia um novo
conteúdo histórico, alterando a dinâmica da luta de classes daí em diante e não apenas na
França.
Esta leitura contradiz aqueles que, a partir dos alertas e ressalvas levantados por Marx
em relação às condições em que se instalou a Comuna e à sua própria experiência prática,
insistem em acusá-lo de descompromisso ou mesmo de leviandade e oportunismo post festum
diante dessa experiência revolucionária por conta de uma postura política pretensamente
“estadolatra”, dirigista - afinal os membros da AIT na Comuna eram minoria, e mesmo entre
estes haviam divergências com as orientações do Conselho Geral – e/ou contrária às
experiências de auto-gestão. Não faltam ainda aqueles que separam o Marx crítico da
economia política do Marx analista e ativista político, pretendendo “salvar” o primeiro em
relação ao segundo e assim apelando ao economicismo para defender o legado crítico
marxiano. Como se para Marx a tese fundante de sua propositura política – a emancipação
dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios trabalhadores – só devesse ser levada a sério
no papel. O equívoco metodológico, para não dizer político, desta operação é por si evidente,
particularmente à luz do método proposto pelo próprio Marx. Num aspecto ou noutro a
crítica de esquerda à Marx abandona a análise do contexto e abstrai a própria experiência
histórica da Comuna, para limitar-se à denúncia de frases soltas e aos não-ditos de Marx. Os
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críticos esquecem-se de que, afinal, e independente da opinião de Marx, a Comuna foi
derrotada, cobrando um preço altíssimo do operariado francês e de seu movimento,
justamente pelas causas apontadas pioneiramente pela análise marxiana.
Finalmente Marx destaca a postura da classe operária inglesa, que exigiu do seu
governo o reconhecimento da república francesa e a condenação do desmembramento da
França pela Prússia, para conclamar os operários de todos os paises a agirem para evitar que
a guerra franco-prussiana se transformasse no “prenúncio de conflitos internacionais ainda
mais mortíferos” e que conduzisse “a um renovado triunfo sobre os operários pelos senhores
da espada, da terra e do capital” (MARX, 2011, p. 33).
Entre a segunda mensagem do Conselho Geral da AIT, de setembro de 1870, e a
terceira, de maio de 1871, denominada A Guerra Civil na França (MARX, 2001, P. 35-82)
ocorreram as situações que Marx mais temia: a Alsácia e a Lorena foram anexadas pela
Prússia, desmembrando o território francês; o Império Alemão foi proclamado sob a égide da
Prússia e do bonapartismo bismarckiano; o acordo de paz entre o governo republicano e
Bismarck foi baseado na hostilidade brutal à classe operária e a guerra civil entre o
operariado parisiense rebelado e o governo republicano eclodiu com os prussianos às portas
de Paris.
Por proposta do próprio Marx, em 28 de março o Conselho Geral encarregou-o de
redigir uma declaração sobre os acontecimentos franceses, porém, após diversos adiamentos,
alguns justificados pela própria indefinição da situação ou por falta de informações, a mesma
só veio à luz dois meses depois (MCLELLAN, 1990, p. 418-419). Neste período Marx
redigiu dois rascunhos de redação, mais tarde intitulados materiais preparatórios para A
guerra civil na França. O primeiro (MARX, 2011, p. 83-152) com quase o dobro de páginas
da versão final e o segundo (idem, p. 153-184) um pouco menor que esta. No primeiro
rascunho Marx analisa detalhadamente a evolução dos acontecimentos, apresentando os
documentos que utilizou em sua análise (informes jornalísticos, manifestos, decretos e
medidas editados tanto pelo governo republicano e a assembléia legislativa quanto pela
Comuna e a Guarda Nacional de Paris)2, conceituando tanto a Comuna quanto o governo
republicano e seus respectivos vínculos sociais. O segundo rascunho é mais resumido,
complementando o primeiro em termos de informações e sintetizando alguns pontos. Em
ambos Marx desenvolve algumas formulações teóricas que só aparecerão na versão definitiva
de forma sintetizada ou parcial. No entanto, a leitura dos dois rascunhos é fundamental se se
2
- Estas informações aparecem na edição francesa de A Guerra Civil na França. Ver Marx, 1972.
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quiser historiar o percurso reflexivo e teórico desenvolvido por Marx ao longo da experiência
da Comuna e para a discussão que se propõe aqui. A terceira mensagem é uma síntese dos
dois rascunhos de redação, privilegiando os dados e fatos mais importantes, apresentando de
forma sucinta as elaborações teóricas anteriormente desenvolvidas e defendendo as posições
da Comuna e da AIT diante da ofensiva contra-revolucionária e da campanha de difamação
veiculada pela imprensa.
Neste sentido, podemos afirmar que mais do que a falta de informações e a
imprevisibilidade do seu desfecho, a gravidade da situação para a classe operária francesa
talvez explique o fato de que Marx só tenha cumprido a tarefa de redigir a mensagem do
Conselho Geral da AIT depois que a Comuna de Paris foi derrotada, atribuindo a derrota
muito mais à ferocidade da reação da burguesia francesa, com a cumplicidade do governo
prussiano, e às vacilações dos communards do que do que às condições extremamente
desfavoráveis para uma experiência daquele tipo. Não é surpreendente que ainda durante a
vigência da Comuna, entre março e maio, Marx tenha manifestado seu ceticismo quanto às
suas chances de sucesso e ao mesmo tempo reconhecido seu heroísmo e iniciativa histórica
em cartas escritas no período (MCLELLAN, 1990, p. 418).
De fato a terceira mensagem é acima de tudo um documento político, em que Marx
defende a Comuna e a AIT de seus detratores e despeja todo o peso de sua força
argumentativa numa denúncia mordaz das ações da burguesia e dos governos francês e
prussiano. Não à toa, neste texto Marx conceitua a situação francesa como de guerra civil,
muito mais do que a simples oposição de uma cidade contra o governo nacional.
O texto começa com uma catilinária demolidora contra o governo republicano e seus
personagens e contra a “conspiração contra-revolucionária” deste e da Assembléia Nacional
com o governo prussiano para massacrar a Paris rebelada. Marx denuncia tanto o caráter
reacionário e oportunista do governo francês, dirigido pelos republicanos e monarquistas e
composto pelas mesmas frações burguesas que se uniram contra os operários em junho de
1848 e apoiaram e/ou aceitaram o golpe de Luís Bonaparte e a instalação do Segundo
Império; quanto suas negociações espúrias com Bismarck, aceitando a mutilação do território
francês e o pagamento de pesadas indenizações em troca da devolução das tropas
aprisionadas para que estas massacrassem Paris.
Na segunda parte Marx relata o processo que deu origem à proclamação da Comuna de
Paris em 18 de março, caracterizando-a como uma revolução, e seus desdobramentos
posteriores, como a permissão de que parte da Guarda Nacional abandonasse a cidade; a
manifestação burguesa de 22 de março, dispersada à bala pela Guarda Nacional; a eleição
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para os delegados da Comuna; a segunda campanha do governo contra Paris; a inoperância
do decreto da Comuna ordenando represálias contra os agentes de Versalhes e a
intransigência repressiva das tropas governistas. Marx procura contraditar os argumentos dos
detratores da Comuna mostrando como o apelo à violência sempre partiu do governo de
Versalhes e da Assembléia Nacional em sua postura abertamente contra-revolucionária e
anti-popular, e não da Comuna, apesar das promessas de retaliação, raramente cumpridas.
Na terceira parte encontra-se o núcleo da formulação de Marx sobre a novidade
histórica representada pela Comuna e seu caráter fundamentalmente revolucionário. Nesta
operação Marx revela de forma explícita um dos elementos estruturantes de seu método
científico, de acordo com o qual as categorias e conceitos devem emergir dos fenômenos
concretos, historicamente constituídos e, portanto, diretamente determinados pelo movimento
do real para possuírem eficácia explicativa. Primeiro Marx conceitua a Comuna como a
antítese do Segundo Império e da República na França, tanto enquanto regimes burgueses,
quanto enquanto expressão do apogeu do Estado burguês em sua aparelhagem institucional.
Ou seja, a Comuna é a antítese do Segundo Império e da República por que é o governo da
classe operária, a classe contra quem estes regimes foram criados e se sustentaram ao unificar
as frações burguesas e classes proprietárias em torno deste imperativo político. A Comuna
também é a forma positiva da república social anunciada em fevereiro de 1848 e abortada
pelo bonapartismo francês.
O contraponto entre a Comuna e o Segundo Império é decisivo na caracterização que
Marx faz da primeira, pois ela é o inverso deste não apenas por conta de seu conteúdo social,
como também por conta de sua própria formatação política. No primeiro rascunho de redação
de A Guerra Civil na França Marx avança em sua caracterização afirmando que “ela é o
povo agindo para si mesmo, por si mesmo” (MARX, 2011, p. 108), ou ainda que a Comuna
foi “a maior revolução desse século”, quando o drama desta ainda se desenrolava (idem, p.
125). Mais adiante Marx desenvolve uma formulação não contida em toda sua inteireza no
texto que veio à público logo depois do fim da Comuna. No primeiro rascunho ele diz:
“Foi, portanto, uma revolução não contra essa ou aquela forma do poder estatal, seja ela
legítima, constitucional, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o Estado
mesmo, este aborto sobrenatural da sociedade, uma reassunção, pelo povo e para o povo,
de sua própria vida social. Não foi uma revolução feita para transferi-lo de uma fração das
classes dominantes para outra, mas para destruir essa horrenda maquinaria da dominação
de classe ela mesma. Não foi uma dessas lutas insignificantes entre as frações executiva e
parlamentar da dominação de classe, mas uma revolta contra ambas essas formas,
integrando uma à outra, e da qual a forma parlamentar era apenas uma apêndice defeituoso
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do Executivo. O Segundo Império foi a formal fina dessa usurpação estatal. A comuna foi
sua direta negação e, assim, o início da Revolução Social do século XIX” (MARX, 2011,
p. 127).
Além disso, como governo da classe operária, a Comuna não só inverteu o conteúdo
social do Estado, como inverteu sua relação com a sociedade; daí a fórmula de que a Comuna
“foi uma revolução contra o Estado” ou de que é “o início da Revolução Social do século
XIX”, não mera revolução política onde uma nova classe dominante assume o poder para
aperfeiçoar o Estado de acordo com seus interesses. Neste ponto Marx faz uma digressão
sobre a evolução do Estado francês, mostrando como o Segundo Império bonapartista
consuma as tendências centralistas e parasitárias iniciadas ainda durante a formação da
monarquia absolutista francesa. Segundo ele:
“O poder estatal centralizado, com seus órgãos onipresentes, com seu exército, polícia,
burocracia, clero e magistratura permanentes – órgãos traçados segundo um plano de
divisão sistemática e hierárquica do trabalho –, tem sua origem nos tempos da monarquia
absoluta e serviu à nascente sociedade da classe média como uma arma poderosa em sua
luta contra o feudalismo. Seu desenvolvimento, no entanto, permaneceu obstruído por todo
tipo de restos medievais, por direitos senhoriais, privilégios locais, monopólios municipais
e corporativos e códigos provinciais. A enorme vassoura da Revolução Francesa do século
XVIII varreu todas essas relíquias de tempos passados, assim limpando ao mesmo tempo o
solo social dos últimos estorvos que se erguiam ante a superestrutura do edifício do Estado
moderno erigido sob o Primeiro Império, ele mesmo o fruto das guerras de coalizão da
velha Europa semifeudal contra a França moderna. Durante os regimes subseqüentes, o
governo, colocado sob controle parlamentar – isto é, sob o controle direto das classes
proprietárias -, tornou-se não só uma incubadora de enormes dívidas nacionais e de
impostos escorchantes, como também, graças à irresistível fascinação que causava por
seus cargos, pilhagens e patronagens, converteu-se no pomo da discórdia entre as facções
rivais e os aventureiros das classes dominantes; mas o seu caráter político mudou
juntamente com as mudanças econômicas ocorridas na sociedade. No mesmo passo em
que o progresso da moderna indústria desenvolvia, ampliava e intensificava o antagonismo
de classe entre o capital e o trabalho, o poder do Estado foi assumindo cada vez mais o
caráter de poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para
a escravização social, de uma máquina de despotismo de classe. (...) O Império, tendo o
coup d´état por certidão de nascimento, o sufrágio universal por sanção e a espada por
cetro, professava apoiar-se nos camponeses, ampla massa de produtores não diretamente
envolvida na luta entre capital e trabalho. Professava salvar a classe operária destruindo o
parlamentarismo e, com ele, a indisfarçada subserviência do governo às classes
proprietárias. Professava salvar as classes proprietárias sustentando sua supremacia
econômica sobre a classe operária; e, finalmente, professava unir todas as classes
reavivando para todos a quimera da glória nacional. Na realidade, ela era a única forma de
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governo possível num tempo em que a burguesia já havia perdido e a classe operária ainda
não havia adquirido a capacidade de governar a nação. O Império foi aclamado por todo o
mundo como o salvador da sociedade. Sob sua égide, a sociedade burguesa, liberta de
preocupações políticas, atingiu um desenvolvimento inesperado, até para ela mesma. (...)
O poder estatal, que aparentemente pairava acima da sociedade, era, na verdade, o seu
maior escândalo e a incubadora de todas as suas corrupções. (...) O imperialismo
[entendido aqui como forma política do Segundo Império francês – D. M.] é a forma mais
prostituída e, ao mesmo tempo, a forma acabada do poder de Estado que a sociedade
burguesa nascente havia começado a criar como meio da sua própria emancipação do
feudalismo, e que a sociedade burguesa madura acabou transformando em meio para a
escravização do trabalho pelo capital. A antítese direta do Império era a Comuna”
(MARX, 2011, p. 54-56).
A longa citação se justifica pelo fato de que aqui Marx não só analisa sinteticamente a
formação e evolução histórica da maquinaria estatal francesa e a relaciona dialeticamente ao
desenvolvimento do capitalismo francês e ao processo de divisão social do trabalho, mas
evidencia sua perspectiva metodológica ao compreender este processo de modo totalizante.
Isto porque, como este trecho claramente indica, em sua leitura o desenvolvimento de um
poder político baseado na centralização nacional, na hierarquia e na divisão do trabalho no
interior do corpo burocrático ocorria “juntamente”, “no mesmo passo”, não antes, nem
depois, ao desenvolvimento das modernas relações de produção, influenciando-se
mutuamente e de modo dialético. O que, por sua vez, também não implica em descartar a
importância dos processos de ruptura revolucionária, como a Revolução Francesa, em favor
de uma visão “gradualista” da história. Os espíritos pós-modernos ou afins, acostumados a
atribuir a Marx uma visão determinista e economicista do processo histórico, devem se
assombrar com esta síntese, se é que a leram alguma vez, que joga por terra suas críticas
ligeiras ou mal-intencionadas.
Além disso, Marx compara o regime do Segundo Império com os regimes anteriores e o
qualifica como a forma política mais evoluída e, ao mesmo tempo, mais prostituída
desenvolvida pela burguesia para a “escravização” do trabalho, pois baseada no total
parasitismo da burocracia diante da sociedade real. Portanto, os trabalhadores de Paris não
estavam diante de qualquer forma de dominação do capital sobre o trabalho, mas diante do
bonapartismo, a forma política que levou o despotismo de classe do capital ao auge em sua
aparente separação entre economia e política, ou entre sociedade civil e Estado. Uma forma
política com características universais, capaz de se reproduzir em outros países,
principalmente na Europa, como já vinha ocorrendo na Alemanha e na Itália de modo
particular, por ser a mais adequada à dominação burguesa na era do conflito aberto entre
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capital e trabalho. Ou, em suas próprias palavras, na era marcada pelo “início da Revolução
Social”, quando diante do horizonte histórico burguês só restava a perspectiva socialista dos
trabalhadores como alternativa. Como afirma Marx no segundo rascunho de redação para A
Guerra Civil na França:
“A usurpadora ditadura do corpo governamental sobre a própria sociedade, que à primeira
vista dá a impressão de elevar-se por sobre todas as classes e humilhá-las, tornou-se, na
verdade, ao menos no continente europeu, a única forma possível de Estado em que a
classe apropriadora pode continuar a dominar a classe produtora” (MARX, 2011, p. 169).
Ou ainda, mais adiante no mesmo texto:
“O Império não é, como seus predecessores – a Monarquia legítima, a Monarquia
constitucional e a República parlamentar -, [apenas] uma das formas políticas da
sociedade burguesa; ela é, ao mesmo tempo, sua forma mais prostituída, mais
completa e acabada. O Império é o poder estatal do domínio moderno de classe, ao
menos no continente europeu” (MARX, 2011, p. 184).
Ao contrário disto, com sua experiência prática a Comuna inscreveu de modo definitivo
a perspectiva histórica dos trabalhadores como uma possibilidade concreta, não mais como
uma simples previsão teórica, posta pela própria dinâmica reprodutiva da sociedade
capitalista, ou conforme ressaltado por Marx, a primeira revolução social em que os
revolucionários não se limitam a tomar para si maquinaria do Estado que encontram,
aperfeiçoando-a e colocando-a ao seu serviço, mas a quebram em função do seu próprio
interesse.
Como Marx afirma na terceira mensagem, em relação a isto a Comuna ...
“era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora
contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para se levar a efeito a
emancipação econômica do trabalho. (...) A Comuna, portanto, devia servir como alavanca
para desarraigar o fundamento econômico sobre o qual descansa a existência das classes e,
por conseguinte, a dominação de classe. Com o trabalho emancipado, todo homem se
converte em trabalhador e o trabalho produtivo deixa de ser um atributo de classe. (...) Ela
visava a expropriação dos expropriadores. Queria fazer da propriedade individual uma
verdade, transformando os meios de produção, a terra e o capital, hoje essencialmente
meios de escravização e exploração do trabalho, em simples instrumentos de trabalho livre
e associado” (MARX, 2011, p. 59-60).
Este “autogoverno dos produtores”, como Marx dirá, não apenas expressa uma
mudança revolucionária no caráter de classe do poder político, “a maior revolução deste
século” (MARX, 2011, p. 125), mas também quebra o moderno poder de Estado ao
expropriá-lo das classes dominantes e inverter sua formatação institucional. Conforme afirma
Marx no primeiro rascunho de redação:
13
“Que a revolução é feita em nome e assumidamente para as massas populares, isto é, para
as massas produtoras, isto é uma característica que esta revolução tem em comum com
todas as outras. O novo elemento é que o povo, após o primeiro levante, não desarmou a si
mesmo e entregou seu poder nas mãos dos velhacos republicanos das classes dominantes;
ao constituir a Comuna, tomaram o comando de sua revolução em suas próprias mãos e ao
mesmo tempo encontraram, em caso de sucesso, os meios para mantê-lo nas mãos do
próprio povo, substituindo a maquinaria estatal, a maquinaria governamental das classes
dominantes, por uma maquinaria estatal própria” (MARX, 2011, p. 138).
A “revolução contra o Estado” representada pela Comuna abole a maquinaria estatal tal
como ela existia, como uma máquina da minoria para a exploração da maioria em nome do
conjunto de ambas - ou seja, do Povo-Nação – e cria uma maquinaria estatal nova, inédita.
Nesta nova maquinaria estatal o poder político não desaparece, e nem a política, mas ganha
novo conteúdo e nova forma, pois fundado no governo da maioria, no governo dos
produtores, que o exercem diretamente, sem separar-se de suas funções produtivas, sem
autonomizar uma camada de burocratas e representantes políticos que passa a sobreviver às
custas do produto social gerado pelos trabalhadores. Como se sabe, poucos anos depois, em
1874-75, Marx reafirma esta tese acerca da necessidade de criação de uma maquinaria estatal
nova para viabilizar e mesmo “acelerar” a emancipação do trabalho nos comentários críticos
redigidos em relação ao livro “Estatismo e anarquia”, de Bakunin (MARX, 2003, p. 149150).
No segundo rascunho Marx vai além identificando a Comuna como forma própria de
autogoverno, independentemente de seu conteúdo de classe, pois mesmo nas cidades e
regiões em que predominam a pequena burguesia e o campesinato no seio das camadas
populares, o governo comunal é o autogoverno destas classes, alavanca de sua emancipação
diante das classes dominantes. Ou seja, a ruptura realizada pela Comuna em relação ao
aparato estatal é tão absoluta que a simples quebra da maquinaria estatal permite às classes
populares exercerem o poder diretamente, sem a intermediação da burocracia e de seus
representantes políticos, como se deduz da seguinte passagem:
“Em sua mais simples concepção, a Comuna visava a destruição preliminar da velha
maquinaria governamental em suas sedes centrais – Paris e as outras grandes cidades da
França – e sua substituição por um verdadeiro autogoverno que, em Paris e nas grandes
cidades, bastiões da classe trabalhadora, era o governo da classe trabalhadora” (MARX,
2011, p. 172).
Por isto, a instalação da forma política comunal, conforme foi desenvolvida em Paris,
também era do interesse da pequena burguesia e do campesinato, não só do proletariado,
conforme Marx vai assinalar na terceira mensagem avaliando as medidas tomadas pela
14
Comuna. No primeiro rascunho Marx ressalta como a experiência da Comuna dividiu a
sociedade francesa entre as classes beneficiárias da máquina estatal bonapartista e as classes
submetidas à sua opressão. Segundo ele:
“Todos os elementos vitais da França reconhecem que uma república só é possível na
França e na Europa como uma “República Social”, isto é, uma república que desapropria o
capital e a classe dos proprietários rurais da máquina estatal para que esta seja assumida
pela comuna, que declara francamente que a “emancipação social” é o grande objetivo da
República e, assim, garante essa transformação social pela organização comunal” (MARX,
2011, p. 137).
Daí a importância histórico-mundial da experiência da Comuna que, por conta de sua
condição de “revolução contra o Estado” e por ter descoberto a forma política da
emancipação do trabalho, adquiria um caráter universal, pois inscrito como possibilidade em
todas as sociedades marcadas pela contradição entre capital e trabalho. Por isto, na avaliação
de Marx “a Comuna de Paris pode cair, mas a Revolução Social que ela iniciou triunfará. Seu
local de nascimento é em toda parte” (MARX, 2011, p. 176).
Entre as medidas da Comuna adotadas nesta perspectiva Marx destaca a supressão do
Exército permanente e da polícia e sua substituição pelo povo armado na Guarda Nacional; a
instalação do sufrágio universal a serviço do povo, não como mero mecanismo de sanção do
poder burguês, como no Segundo Império, com a conseqüente eleição dos delegados da
Comuna por sufrágio universal para mandatos responsáveis e revogáveis em qualquer tempo,
medida esta válida para todos os cargos públicos, inclusive juízes e magistrados; o fim dos
privilégios burocráticos, com a remuneração dos servidores públicos equivalente ao salário
de um operário; a separação entre Igreja e Estado, com a laicização e a democratização do
ensino público. O sufrágio universal, a responsabilidade e a revogabilidade dos mandatos são
os mecanismos que garantem que na nova maquinaria estatal o poder seja exercido
diretamente pelos trabalhadores e que impedem a formação de uma nova camada burocrática
autônoma.
O alcance do sufrágio universal - agora um verdadeiro instrumento de poder popular,
não mais instrumento do “democratismo de fachada”, que esconde o “despotismo
verdadeiro” de classe – e da quebra da burocracia são ressaltados por Marx no primeiro
rascunho, quando assinala sua importância para o poder político de novo tipo surgido com a
Comuna. Segundo ele:
“O sufrágio universal, que fora até então abusado – seja servindo para a sanção parlamentar
do Sagrado Poder Estatal, seja como um joguete nas mãos das classes dominantes, tendo
sido exercido pelo povo apenas uma vez em muitos anos a fim de sancionar o (para escolher
15
os instrumentos do) domínio parlamentar de classe -, [é] adaptado aos seus propósitos reais:
escolher, mediante as Comunas, seus próprios funcionários para a administração e
legislação. Cai a ilusão de que a administração e o governo político seriam mistérios,
funções transcendentes a serem confiadas apenas a uma casta de iniciados – parasitas
estatais, sicofantas ricamente remunerados e sinecuristas ocupando altos postos, absorvendo
a inteligência das massas e voltando-as contra si mesmas nos estratos mais baixos da
hierarquia. Elimina-se a hierarquia estatal de cima a baixo e substituem-se os arrogantes
senhores do povo por servidores sempre removíveis, uma responsabilidade de mentira por
uma responsabilidade real, uma vez que eles passam a agir continuamente sob supervisão
pública. (...) Toda a fraude dos mistérios e pretensões do Estado foi eliminada por uma
Comuna que consistia em sua maior parte de simples trabalhadores organizando a defesa de
Paris,
fazendo
a
guerra
contra
os
pretorianos
de
Bonaparte,
assegurando
o
approvisionnement dessa imensa cidade, preenchendo todos os postos até então divididos
entre governo, polícia e prefeitura, executando seu trabalho publicamente, de maneira
simples, sob as circunstâncias mais difíceis e complicadas, e o fazendo, tal como o Milton
no seu Paraíso perdido, por umas poucas libras, agindo à luz do dia, sem nenhuma
pretensão à infalibilidade, sem se esconder atrás de balcões de procrastinação, sem
escrúpulos de confessar seus erros no ato de corrigi-los. Fazendo das funções públicas –
militares, administrativas, políticas – funções de trabalhadores reais, em vez de atributos
ocultos de uma casta treinada; (mantendo a ordem na turbulência da guerra civil)
(implementando medidas de recuperação geral). Quaisquer que sejam os méritos das
medidas singulares da Comuna, sua mais formidável medida foi sua própria organização,
improvisada no momento em que em uma porta estava o inimigo estrangeiro e em outra o
inimigo de classe, provando com sua vida sua vitalidade, confirmando sua teoria com sua
ação” (MARX, 2011, p. 129-130).
Além destas medidas, Marx vislumbra a propagação do regime comunal para o resto do
país, por conta de sua afinidade com os interesses pequeno-burgueses e camponeses,
combatendo a argumentação de que isto significaria o fim da unidade nacional francesa. Ao
contrário, nas cidades e distritos rurais seriam eleitos delegados para as assembléias locais e
regionais e para a assembléia nacional reunida em Paris, com base no sufrágio universal e
nos mesmos princípios de responsabilidade e revogabilidade dos mandatos. Ao invés de
dispersar numa federação de pequenos Estados a unidade nacional, “o regime comunal teria
restaurado ao corpo social todas as forças até então absorvidas pelo parasita estatal, que se
alimenta da sociedade e obstrui seu livre desenvolvimento” (MARX, 2011, p. 59); teria
realizado a promessa não cumprida das revoluções burguesas, um governo barato, pois teria
destruído o Exército permanente e o funcionalismo de Estado, suas duas maiores fontes de
despesa. Por isto a Comuna não era uma tentativa anacrônica de reeditar os governos
comunais das cidades medievais, mas sim uma forma política historicamente nova, resultado
16
das relações sociais atuais. De fato, neste período regimes comunais foram proclamados em
Lyon, Marselha, Creusot, Toulouse e Narbonne, além de outras tentativas infrutíferas e de
manifestações de apoio à Comuna de Paris em diversas localidades, indicando que a
revolução se espraiava pelo país.
Marx ressalta ainda a capacidade de direção política assumida pelo proletariado
parisiense durante a revolução em relação às demais camadas populares e em relação ao
proletariado de outros países, pelo fato da Comuna ser ao mesmo tempo “governo operário e
paladino audaz da emancipação do trabalho” (MARX, 2011, p. 63) e antagônica à burguesia
francesa e seu Estado. Além de afirmar o internacionalismo proletário abrindo-se à
participação protagônica de estrangeiros, como Frankel, Dombrowski e Wróblewski, a
Comuna de Paris atraiu o apoio da pequena burguesia com medidas como a moratória do
pagamento das dívidas e a suspensão dos juros e colocando-se claramente em defesa dos
interesses do campesinato. Em relação à este a Comuna erigiu-se como sua aliada para
emancipar-se da ilusão bonapartista, das hipotecas cobradas pela burguesia, do grande
proprietário rural e da variada fauna de parasitas que viviam do seu suor. O cerco a Paris
imposto pelo governo de Versalhes e pelas tropas prussianas impediu que a aliança com o
campesinato se concretizasse, esparramando o regime da Comuna pelo país todo. Aqui Marx
está se referindo à capacidade de hegemonia demonstrada pelo proletariado parisiense
durante a existência da Comuna, cassando à burguesia o apoio de sua base de massa e
solidificando uma ampla aliança popular em favor do novo regime e das transformações que
anunciava.
De fato, a Comuna adotou medidas de “proteção social”, como a proibição do trabalho
noturno para os padeiros e a abolição das multas impostas arbitrariamente pelos patrões aos
trabalhadores, e de caráter claramente socializante, como entrega das oficinas e fábricas
abandonadas ou fechadas para as associações operárias, porém, sob “reserva de
compensação”, ressalta Marx. Esta última medida mostra que a Comuna “visava a
expropriação dos expropriadores”, conforme as palavras de Marx, porém não houve tempo
para ir além disso. A partir das demandas dos próprios operários a Comissão do Trabalho e
das Trocas criou as “bolsas do trabalho” para receber e encaminhar os pedidos e as ofertas de
emprego e fortaleceu as cooperativas de produção controladas pelas associações operárias,
encomendando-lhes os produtos de que a Comuna necessitava e viabilizando sua existência.
Porém, os projetos da Comissão do Trabalho e das Trocas para a expropriação de todas as
grandes fábricas não chegaram a se efetivar e mesmo o decreto de entrega ao controle
17
operário das fábricas abandonadas ou fechadas foi minimamente aplicado, pois apenas uma
fábrica chegou a funcionar nas novas condições (ROUGERIE, 2001, p. 143-145).
Apesar da positividade atribuída à Comuna, ressaltada não só na terceira mensagem
mas também nas cartas enviadas por ele neste período3, Marx não deixa de pontuar ao longo
do texto o que considerava serem seus erros e vacilações. Neste aspecto os equívocos
atribuídos à Comuna por Marx se devem fundamentalmente à timidez e à “benevolência” de
determinadas atitudes tomadas em situações que exigiam maior radicalidade por tratar-se de
uma guerra civil como a permissão de que seus adversários fugissem para Versalhes e o não
ataque sistemático à mesma Versalhes. Em carta a L Kugelman, datada de 12 de abril de
1871, Marx já havia feito esta última crítica e ainda considerou que “o Comitê Central [da
Guarda Nacional] renunciou ao seu poder cedo demais para dar lugar à Comuna. Novamente
por causa de uma ‘nobilitante’ escrupulosidade!” (MARX, 2011, p. 208). Em nossa avaliação
Marx considera prematura a transferência de poder do Comitê Central da Guarda Nacional
para a Comuna não por qualquer perspectiva política centralista e anti-democrática, mas por
conta da própria situação de emergência militar em que Paris se encontrava, a exigir uma
ação militar coordenada, rápida e isenta de ambigüidades ou duplo comando. De fato, na fase
final da guerra civil surgiu um conflito de autoridade entre o Comitê Central da Guarda
Nacional, o Conselho Militar da Comuna e o Comitê de Salvação Pública no tocante à
coordenação das atividades de defesa que favoreceu a dispersão de iniciativas e o improviso,
contribuindo decisivamente para o sucesso da invasão da cidade pelas tropas do governo
republicano4. Dez anos depois, numa carta a F. D. Nieuwenhuis, fazendo um balanço da
Comuna Marx dirá que:
“além de ter sido a rebelião de uma cidade em circunstâncias excepcionais, a maioria da
Comuna não era de forma alguma socialista, nem poderia ser. Com um mínimo de bom
senso, ela poderia obter de Versailles um compromisso favorável a toda a massa do povo, o
que era, afinal, a única coisa possível” (apud TEXIER, 2005, p. 189).
Marx conclui seu trabalho relatando as manobras pretensamente conciliadoras de
Thiers em relação à Comuna para ganhar tempo, enquanto mantinha sua política de repressão
dura e acertava com Bismarck um acordo de paz onde a França aceitava a mutilação de seu
território e o pagamento de pesadas indenizações em troca da devolução das tropas imperiais
3
- Veja-se as cartas a W. Liebknecht, de 6 de abril e a L. Kugelman de 12 e 17 de abril de 1871 (MARX,
2011, p. 207-209) onde Marx levanta algumas das críticas à Comuna que apresentará em “A guerra civil
na França” e ao mesmo tempo reconhece sua importância histórica e seu caráter proletário.
4
- Na “Introdução” à edição de 1891 de A Guerra Civil na França, Engels ainda levanta o erro da
Comuna em não confiscar o Banco da França, que pagava o soldo das tropas governistas que atacavam
Paris, e assim asfixiar o governo Thiers e forçar a burguesia francesa a negociar com os communards
(ENGELS, 2011, p. 194).
18
aprisionadas pelos prussianos para desencadear o ataque final sobre Paris. A ocasião tornouse propícia para Bismarck elevar-se à condição de árbitro da política interna francesa depois
que o governo de Thiers perdeu as eleições municipais, no final de abril, e aceitou o ditado
prussiano como último recurso para derrotar a revolução. Por sua vez, a política de Bismarck
é violentamente condenada por Marx, que acusa a Prússia de desempenhar o papel de um
“assassino a soldo” em nome da solidariedade de classe da burguesia de todos os países
contra toda e qualquer perspectiva revolucionária do proletariado. Segundo ele:
“que na mais tremenda guerra do mundo moderno o exército conquistador e o exército
conquistado confraternizem no massacre comum do proletariado, esse evento sem paralelo
na história não representa, como pensa Bismarck, a repressão final de uma nova sociedade
que avança, mas a redução a cinzas da sociedade burguesa. A empresa mais heróica de que
ela ainda é capaz é a guerra nacional, a qual se evidenciou agora como pura fraude dos
governos, engendrada para retardar a luta de classes e a ser descartada toda vez que essa luta
de classes desemboque em guerra civil. A dominação de classe já não é capaz de se disfarçar
sob um uniforme nacional; os governos nacionais são um só contra o proletariado” (MARX,
2011, p, 77-78).
Comuna de Paris e ditadura do proletariado.
À primeira vista, as formulações de Marx acerca do caráter da Comuna de Paris a
aproximam imediatamente do conceito de ditadura do proletariado. A verdadeira inversão na
relação entre Estado e sociedade promovida pela Comuna, seu caráter radicalmente
democrático e seu conteúdo social proletário sugerem sua caracterização como uma
experiência de ditadura do proletariado, ou seja, como a forma política da transição do
capitalismo ao comunismo, como por diversas vezes Marx definiu este conceito. No entanto,
um fato incontornável é que Marx nunca chamou a Comuna de Paris por este nome.
Apesar de afirmar em A Guerra Civil na França que a Comuna de Paris era “a forma
política enfim descoberta para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho”
(MARX, 2011, p. 59), Marx não deu o passo para caracterizá-la como ditadura do
proletariado. De fato, nas outras afirmações em que a define de forma mais incisiva,
predomina um tom condicionante, que revela mais as suas potencialidades e pretensões do
que suas realizações concretas, como na afirmação de que ela “deveria servir como uma
alavanca para desarraigar o fundamento econômico sobre o qual descansa a existência das
classes e, por conseguinte, da dominação de classe” ou de que “ela visava (negritos nossos –
D. M.) a expropriação dos expropriadores” (MARX, 2011, p. 59-60).
19
No primeiro rascunho Marx desenvolve teoricamente as possibilidades históricas
abertas com a instalação da Comuna, sendo ainda mais incisivo na sua caracterização como
experiência que “inaugura” a emancipação do trabalho, como “meio racional” para que o
processo da luta de classes promova a abolição das classes de modo “humano” e “pacífico”
favorecendo uma nova organização da produção. Numa longa passagem afirma ele
inicialmente:
“Tal é a Comuna – forma política da emancipação social, da libertação do trabalho da
usurpação dos monopolistas dos meios de trabalho, sejam estes meios criados pelos próprios
trabalhadores ou dados pela natureza. Assim como a máquina e o parlamentarismo estatal
não são a vida real das classes dominantes, mas apenas os órgãos gerais organizados para
sua dominação – as garantias, formas e expressões políticas da velha ordem das coisas -,
assim também a Comuna não consiste no movimento social da classe trabalhadora e,
portanto, no movimento de uma regeneração geral do gênero humano, mas sim nos meios
organizados de ação. A Comuna não elimina a luta de classes, através da qual as classes
trabalhadoras realizam a abolição de todas as classes e, portanto, de toda [dominação de]
classe (porque ela não representa um interesse particular, mas a liberação do “trabalho”, isto
é, a condição fundamental e natural da vida individual e social que apenas mediante
usurpação, fraude e controles artificiais pode ser exercida por poucos sobre a maioria), mas
ela fornece o meio racional em que essa luta de classe pode percorrer suas diferentes fases
da maneira mais racional e humana possível” (MARX, 2011, p. 131).
Nas condições do governo comunal a luta de classes não desaparece de imediato, pois
a resistência contra-revolucionária continua a existir e o processo de emancipação do
trabalho apenas se inicia, mas cada novo intento das antigas classes dominantes apenas
acelera o processo de abolição das classes. Com a instalação da Comuna o processo de
emancipação dos trabalhadores já se inicia simplesmente ao livrá-los dos pesados custos de
manutenção da maquinaria estatal, sustentada pela mais-valia social arrancada de seu
trabalho. A “reforma econômica” originada desta “transformação política” é parte do
processo de supressão da exploração sobre os trabalhadores exercida pela burguesia e seus
funcionários que, obviamente demanda a expropriação econômica do capital para se efetivar.
Aqui a distinção conceitual entre reforma e revolução adotada por Marx tem um significado
fundamental em nossa interpretação.
Dando seqüência à sua formulação Marx afirma:
“Ela pode provocar violentas reações e revoluções igualmente violentas. Ela inaugura a
emancipação do trabalho – seu grande objetivo -, por um lado ao remover a obra
improdutiva e danosa dos parasitas estatais, cortando a fonte que sacrifica a imensa porção
da produção nacional para alimentar o monstro estatal, e, por outro lado, ao realizar o
verdadeiro trabalho de administração, local e nacional, por salários de operários. Ela dá
20
início, portanto, a uma imensa economia, a uma reforma econômica, assim como a uma
transformação política. A organização comunal, uma vez firmemente estabelecida em escala
nacional, as catástrofes que sobre ela ainda poderiam se abater seriam esporádicas
insurreições de escravocratas, as quais, mesmo que interrompendo por um momento o
trabalho do progresso pacífico, apenas acelerariam o movimento ao pôr a espada nas mãos
da Revolução Social” (idem, p. 131).
Finalmente, a Comuna dá início ao processo de transição em direção à economia do
“trabalho livre e associado”, levando a luta de classes a um novo patamar.
“As classes trabalhadoras sabem que tem de passar por diferentes fases da luta de classe.
Sabem que a substituição das condições econômicas da escravidão do trabalho pelas
condições do trabalho livre e associado só pode ser o trabalho progressivo do tempo (essa
transformação econômica), que isso requer não apenas uma mudança na distribuição, mas
uma nova organização da produção – ou, antes, requer a liberação (desobstrução) das
formas sociais de produção no atual trabalho organizado (engendrado pela indústria atual),
libertando-as dos grilhões da escravidão, de seu atual caráter de classe – e o
estabelecimento de sua harmoniosa coordenação nacional e internacional. Elas sabem que
essa obra de regeneração será continuamente atrasada e impedida pela resistência de
direitos adquiridos e egoísmos de classe. Elas sabem que a atual “ação espontânea das leis
naturais do capital e da propriedade fundiária” só pode dar lugar à “ação espontânea das
leis da economia social do trabalho livre e associado” mediante um longo processo de
desenvolvimento de novas condições, tal como ocorreu com a “ação espontânea das leis
econômicas da escravidão” e com a “ação espontânea das leis econômicas da servidão”.
Mas elas sabem, ao mesmo tempo, que grandes passos podem ser dados desde já pela
forma comunal de organização política e que é chegada a hora de iniciar esse movimento
para elas mesmas e para o gênero humano”(idem, p. 131-132).
O fato de a terceira mensagem ser um manifesto da AIT, não um texto de autoria
pessoal, o que poderia ter constrangido Marx a avançar um conceito que não era consensual
em seu interior, não explica esta lacuna; pois nem no primeiro e no segundo rascunhos e
mesmo depois, quando em 1872 assumiu a autoria do texto e o publicou juntamente com a
primeira e a segunda mensagens sob o título de A Guerra Civil na França, e em outros
trabalhos devidamente assinados ele não se manifestou de forma diferente. Por exemplo,
pouco mais de um ano depois, no prefácio à edição alemã de 1872 do Manifesto do Partido
Comunista, ele e Engels reconhecem que o desenvolvimento da grande indústria, a
Revolução de Fevereiro de 1848 e, principalmente, a Comuna de Paris tornaram antiquados
alguns aspectos do programa do “Manifesto” por evidenciar historicamente que a classe
operária não pode simplesmente se apossar da maquinaria do Estado burguês, mas tem que
quebrá-la, porém, a conceituação da Comuna como ditadura do proletariado não é efetuada.
21
Citando uma frase de A guerra civil na França afirmam eles, “a Comuna, nomeadamente,
forneceu a prova de que ‘a classe operária não pode limitar-se a tomar conta da máquina do
Estado que encontra montada e pô-la em movimento para atingir os seus fins próprios’”
(MARX e ENGELS, 1982a, p. 96). Nada mais é dito quanto a isto.
Engels só vai defini-la como ditadura do proletariado vinte anos depois, ainda que
brevemente, na introdução à edição de 1891 de A guerra civil na França, a partir justamente
da constatação de que a Comuna iniciou a quebra da maquinaria estatal burguesa.
Endereçada ao “filisteu alemão”, segundo expressão dele mesmo, a definição da Comuna
como ditadura do proletariado se insere num conjunto de iniciativas tomadas por Engels em
1891 para combater a influência do reformismo e da “estadolatria” lassaleanos no Partido
Social-democrata Alemão, que estava em processo de reformulação do seu programa
(ENGELS, 2011, p. 187-197).
Recorrendo à autoridade teórica e política de Marx e dele mesmo nesta batalha, Engels
reedita A guerra civil na França de Marx com a introdução acima indicada e publica a
Crítica ao Programa de Gotha, realizada por Marx em 1875 e endereçada em caráter
confidencial à direção do partido, texto onde Marx retoma explicitamente o conceito de
ditadura do proletariado e critica a direção social-democrata por não incorporá-lo ao
programa partidário em favor de uma visão “estadolatra” da luta política.
Neste texto Marx afirma:
“entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o período de transformação
revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também o período
político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura do proletariado”
(MARX, s/d, p. 221).
Esta elaboração é uma versão sintética da fórmula desenvolvida vinte e cinco anos
antes, em As lutas de classe em França de 1848 a 1850, quando Marx definiu o conceito de
ditadura do proletariado pela primeira vez e da forma mais acabada desde então. Segundo
Marx:
“a ditadura de classe do proletariado como ponto de trânsito necessário para a abolição das
diferenças de classe em geral, para a abolição de todas as relações de produção em que
aquelas se apóiam, para a abolição de todas as relações sociais que correspondem a essas
relações de produção, para a revolução de todas as idéias que decorrem destas relações
sociais” (MARX, 1982, p. 291).
Já no Manifesto do Partido Comunista Marx havia iniciado sua elaboração sobre o
caráter da revolução proletária e do domínio político do proletariado que se desdobrará dois
anos depois no conceito de ditadura do proletariado. Segundo ele:
22
“o primeiro passo na revolução proletária é a passagem do proletariado a classe dominante, a
conquista da democracia na luta. O proletariado usará o seu domínio político para ir
arrancando todo o capital das mãos da burguesia...” (MARX e ENGELS, 1982a, p. 124).
Se associarmos esta formulação ao conceito de ditadura do proletariado acima exposto,
fica evidente que uma das condições fundamentais do “trânsito necessário para a abolição
das diferenças de classe” é a expropriação da burguesia.
Diante disto, podemos afirmar que Marx nunca conceituou a Comuna de Paris como
ditadura do proletariado, e Engels o fez apenas circunstancialmente, por que apesar da
ruptura e da criação que realizou em termos políticos, quebrando a maquinaria do Estado
burguês, ela pouco avançou em termos econômico-sociais. Em outras palavras, apesar da
Comuna ter promovido uma radical socialização política abolindo a distinção entre
governantes e governados, ter se transformado na “forma política, finalmente descoberta,
com a qual se realiza a emancipação econômica do trabalho”, segundo a definição do próprio
Marx, ela pouco avançou neste último quesito. Pois não houve tempo para levar a cabo a
expropriação dos capitalistas pelos trabalhadores, não houve tempo para a “socialização dos
meios de produção”.
A medida da Comuna que mais avançou nesta direção, e ainda assim pouco efetivada,
foi o confisco das fábricas fechadas ou abandonadas pelos proprietários que fugiram de Paris
e sua entrega às cooperativas de trabalhadores numa situação de emergência ditada pela
necessidade de sustentar materialmente a revolução. Não houve tempo para mais nada em
termos econômico-sociais, com exceção das medidas como a moratória das dívidas e
aluguéis, a criação de direitos trabalhistas e a democratização da educação.
Isto indica que Marx entendia o conceito de ditadura do proletariado de modo integral,
não-politicista, não só como um processo de ruptura política que quebrasse o Estado burguês
e instituísse a democracia direta, mas como uma revolução social que desencadeasse a
abolição das classes e todas as suas conseqüências sociais e ideológicas, por meio da
expropriação do capital, do fim da separação entre capital e força de trabalho. Apesar de dar
início a este processo, a Comuna não avançou muito em sua concretização, o que não implica
dizer que ela não apresentasse na prática uma possibilidade que até então era apenas prevista
teoricamente e nem que não tenha sido um marco político e teórico na luta revolucionária.
Como o próprio Marx afirma na resolução da AIT que celebrou o primeiro aniversário da
Comuna, ela foi “a aurora da revolução social que libertará para sempre a humanidade do
regime das classes” (MARX, 1983b, p. 311). Apesar de apenas dar o primeiro passo na
transição anunciada por Marx, a Comuna de Paris esteve muito mais próxima da ditadura do
23
proletariado do que muitas das experiências assim auto-denominadas, que, no entanto,
ficaram bastante aquém do que ela realizou no curto tempo de sua existência.
Referências Bibliográficas:
BOITO JR., Armando. “Estado e transição ao socialismo: a Comuna de Paris foi um
poder operário?” In: Estado, política e classes sociais: ensaios teóricos e históricos.
São Paulo: Editora Unesp, 2007, p. 89-108..
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* Doutor em História pelo Programa de Pós-graduação em História da UFG e professor
de História Contemporânea da Faculdade de História da UFG.
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