3366 A distribuição complementar entre a perífrase “estar +gerúndio

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A distribuição complementar entre a perífrase “estar +gerúndio” e o
presente do indicativo em português e espanhol
Talita Vieira Moço (USP)
Introdução
Nesta ocasião apresentaremos algumas das observações que fizemos
num estudo contrastivo das formas de representação de eventos atuais cujo
desenvolvimento, ou parte dele, tem lugar em um intervalo de tempo coincidente com
o da enunciação.
As formas lingüísticas que materializam esse sentido aqui observadas são
as perífrases [estar + gerúndio] e a forma simples do presente do indicativo no
português brasileiro (PB) e no espanhol. O motivo do interesse pela comparação
desse aspecto nas duas línguas foi a percepção de uma equivalência irregular entre
fragmentos de falas de filmes em língua espanhola e suas respectivas traduções ao
português. Como se verá ao longo deste trabalho, ainda que a representação da
atualidade do evento se dê majoritariamente pela forma perifrástica em ambas línguas,
revelando muitos pontos de aproximação entre os sistemas, há também algumas nãocorrespondências, idiossincrasias de cada língua que tentamos descrever.
1. Tempo e aspecto
Nessa tentativa de compreender como se materializa em cada língua a
expressão dos eventos concomitantes ao fazer enunciativo, nos deparamos com uma
das propriedades sintático-semânticas das formas verbais, possivelmente presente no
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sistema cognitivo dos falantes no momento de seleção da forma mais apropriada à
interpretação que fazem do evento que querem expressar, mas pouco ou nada
descrita nos livros escolares. Trata-se do “aspecto verbal”, categoria relacionada à
maneira como o falante concebe ou apresenta a constituição interna da situação
expressada pelo verbo.
Diferenciando-se da categoria do “tempo” — que localiza o evento verbal
em referência a algum outro, relacionando-o como anterior, simultâneo ou posterior ao
momento da enunciação ou ao momento em que ocorre outro evento — o aspecto se
ocupa do tempo enquanto propriedade inerente ou interna a qualquer evento, por mais
breve que seja este, e mostra o evento como tal e como este se desenvolve ou se
distribui no tempo (DE MIGUEL, 1999, p. 2.989).
Para compreender essa categoria, assumimos o conceito de que essa
propriedade verbal está constituída pelas características semânticas dos verbos,
enquanto itens lexicais, em sua interação, no caso das perífrases, com as informações
do auxiliar e com os argumentos do verbo principal, formando uma rede complexa de
elementos sintático-semânticos que permitem ao enunciador adotar diferentes pontos
de vista com respeito ao predicado, algo que se designa com o termo
composicionalidade da categoria aspecto (CASTILHO, 2002, p. 85).
Para as formas de que nos ocupamos, decidimos adotar o termo “aspecto
progressivo”, referindo-nos àquele que representa uma fase do desenvolvimento de
um evento que começou em um momento anterior à enunciação e que coincide com o
instante da fala, podendo, inclusive, superá-lo.
2. Sobre a forma simples
Tanto na bibliografia sobre o espanhol como nos trabalhos sobre o
português, muito já se comentou sobre a menor capacidade expressiva das formas
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simples
para
representação
desse
“desenvolver
durativo”,
estando
essas
encarregadas, principalmente, da orientação de “tempo”, ou seja, de estabelecer a
relação entre o momento do evento referido pelo verbo e o momento de referência
(GROPPI; MALCUORI, 1990, p. 161).
É
justamente
essa
característica
do
presente
simples
de
não
necessariamente expressar com exatidão a coincidência entre o momento do evento e
o momento da enunciação, que o habilita, por exemplo, expressar eventos anteriores
ou posteriores ao fazer enunciativo:
1a) Cervantes publica la primera parte del Quijote en 1605.1
1b) Cervantes publica a primeira parte do Quixote em 1605.
2a) Termino la carrera el año que viene.
2b) Eu termino a faculdade no ano que vem.
Outra possibilidade expressiva do presente nas duas línguas é a
representação de eventos mais ou menos desligados do momento preciso do tempo
cronológico, ainda que vigentes no momento da enunciação.
3a) Dos y dos son cuatro.
3b) Dois e dois são quatro.
4a) El aceite flota en el agua.
4b) O óleo bóia na água.
Alguns autores consideram que em casos assim não se trata tanto de
enunciar um ato, falar da ação em si, quanto de expressar um traço que descreve uma
situação, uma característica inerente ao sujeito (MATTE BON, 2004, p. 15). Nesses
exemplos, embora tenhamos o presente do indicativo como tempo flexional, não
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temos necessariamente a categoria de tempo atualizada em presente, ou seja, não se
estabelece relação entre o momento do evento e o momento enunciativo, e sim se
representa a extensão de uma característica (3) e a reiteração de um processo (4) ou
de uma ação, como neste exemplo:
5a) Marta pinta.
5b) A Marta pinta.
Temos, então, diante da baixa informação temporal dessas formas de
presente simples, a forte expressão do aspecto ilimitado ou habitual, que, quando
relacionado a atividades que se repetem, pode, em alguns casos, levar à paráfrase
dos enunciados por orações predicativas: “A Marta é pintora”.
3. Estar + gerúndio e a simetria entre as línguas
No par de orações seguinte, no entanto, além da atualização temporal que
nos permite saber que o desenvolvimento do evento se mantém durante a enunciação,
a informação aspectual nos diz que se trata de um evento específico, em que uma das
fases do desenvolvimento se encontra com o instante da enunciação.
6a) Marta está pintando.
6b) A Marta (es)tá pintando.
Para melhor comparar as duas formas, além dessa análise semântica,
podemos observar os contextos sintáticos em que em geral aparece cada uma delas.
Em relação aos pares de orações (5) e (6), ao observarmos os sintagmas
nominais que em geral aparecem junto ao núcleo, vemos uma regência diferente em
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relação ao grau de determinação de seus complementos. O par (5) seleciona SNs
indeterminados e rege, com pouca ou nenhuma freqüência, ao menos no PB, SNs
determinados quando se pretende transmitir a atualização progressiva, isto é, o
desenvolver de um evento específico:
5a’) Marta pinta cuadros.
reiteratividade
5b’) A Marta pinta quadros.
5c) ?Marta pinta este cuadro [ahora].
5d) *A Marta pinta esse quadro [agora]
?progressividade
*progressividade
Enquanto isso, o par (6) aceita as duas possibilidades expressando, no
entanto, eventos de naturezas distintas:
6a’) Marta está pintando cuadros [últimamente].
reiteratividade
6b’) A Marta está pintando quadros [ultimamente].
6c) Marta está pintando este cuadro [ahora].
progressividade
6d) A Marta está pintando esse quadro [agora].
Em (6ab’), temos a informação de um evento que se dá de maneira
repetida desde um momento anterior à enunciação e que, ainda que não apareça
marcado com adjuntos temporais como últimamente/ “ultimamente”, costuma
relacionar-se a um passado recente, ou seja, é menos ilimitada que a reiteração
expressada pela forma simples. Temos, então, o aspecto reiterativo, do qual não nos
ocuparemos neste trabalho.
Nos outros exemplos (6cd), no entanto, a referência é mais definida: tratase não de reiteração, ou seja, da série de eventos parecidos ou iguais que possa ser
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“pintar”, e sim de um único evento que se desenvolve gradativamente, sendo que uma
das fases que o compõe coincide com o instante em que se representa
lingüisticamente a ação de pintar.
4. Idiossincrasias
Como vimos, a observação do grau de transitividade dos núcleos verbais e
das características dos sintagmas com funções argumentais (por exemplo, o grau de
referencialidade do objeto direto) nos exemplos anteriores nos mostrou grandes
semelhanças entre as duas línguas.
Há casos, no entanto, em que uma certa assimetria se manifesta, como se
vê nesta tira de Mafalda:
Nela temos um evento progressivo representado pela forma simples em
espanhol, possibilidade restringida pela outra língua, já que uma oração como “O que
você faz?” não corresponderia à intenção do falante de indagar subitamente o que
significa a atitude da menina ao tentar limpar o olho do pai com um lenço de papel.
Nesse caso, provavelmente a pergunta seria: “O que você (es)tá fazendo?”, uma vez
que o uso da forma simples em PB, representa na quase totalidade dos casos o
aspecto ilimitado ou habitual a que nos referimos.
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O exemplo tomado das tiras da Mafalda ilustra um contexto sintático
freqüente na realização da forma simples em algumas construções presentes em
nosso corpus. Alguns dos exemplos que mostravam a forma simples em espanhol em
casos em que a tradução ao PB só admite a forma perifrástica são, além das orações
com o verbo hacer, outras sentenças interrogativas encabeçadas por uma estrutura
que-:
7a) ¿Dé qué te ries?
7b) Do que você (es)tá rindo?
8a) ¿Qué buscas?
8b) O que você (es)tá procurando?
9a) ¿Qué dicen?
9b) O que eles (es)tão dizendo/ falando?
A observação sintática dos exemplos nos levou a considerar também a
baixa transitividade dos lexemas verbais, um possível contribuinte para a manutenção
da forma simples na expressão da progressividade do evento em espanhol. Em alguns
dos exemplos temos um núcleo que não seleciona argumento interno:
10a) Voy.
10b) (Es)tou indo.
10c) Já vou.
E em outro temos uma oração constituída apenas pelo núcleo verbal, ou
seja, uma sentença cujo núcleo não projeta nenhum espaço argumental, característica
comum a alguns verbos meteorológicos.
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11a) Afuera llueve.
11b) Lá fora (es)tá chovendo.
5. Considerações finais
Como se pode ver, é grande a proximidade entre os dois sistemas
focalizados aqui em relação ao uso de ambas formas: tanto em PB quanto em
espanhol o presente simples vincula, em grande parte das ocorrências, o aspecto
ilimitado de um evento que se mantém no momento da enunciação, enquanto a forma
perifrástica expressa, entre outros valores aspectuais não citados neste trabalho, a
reiteratividade de um evento dinâmico que teve início em um instante de tempo
anterior e que se mantém no momento da enunciação, e a progressividade, ou seja, o
desenvolver de uma fase de um evento que coincide com o instante em que está
sendo enunciado.
No entanto, em espanhol, em algumas situações em que a enunciação
permite a atualização aspectual progressiva de um evento dinâmico, a forma simples
assume o lugar que em PB, com lexemas verbais que expressam situações dotadas
de dinamismo, praticamente só é ocupado pela forma perifrástica.
É possível que para uma melhor descrição dessa questão seja necessária
uma ainda maior introspecção nos estudos sintático-semânticos dedicados à categoria
aspecto e suas relações de composicionalidade com os constituintes das sentenças,
uma questão à qual nos estamos dedicando na nova etapa de nossa pesquisa.
Referências
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CASTILHO, Ataliba. O aspecto verbal no português falado. In: CASTILHO, Ataliba
(Org.). Gramática do português falado. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. v. 8. p.
83-101.
DE MIGUEL, Elena. El aspecto léxico. In: BOSQUE, Ignácio; DEMONTE, Violeta.
Gramática descriptiva de la lengua española. Madrid: Real Academia Española/ Ed.
Espasa Calpe, 1999. p. 2979-3035.
MALCUORI, Marisa; GROPPI, Mirta. Un punto de interés para el estudio comparativo:
el presente perifrástico. In: SILVA, P. C. da (Org.). Língua, literatura e a integração
hispano-americana. Porto Alegre: Sec. Ed. da Universidade/ UFRGS, 1989. p. 160168.
MATTE BON, Francisco. Gramática comunicativa del español. Madrid: Edelsa, 2004.
p. 14-17.
Nota
1
Exemplo tomado e adaptado de Matte Bon (op. cit., p. 17).
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