ESTILO E NÃO-ESTILO NOS PERSONAGENS CONCEITUAIS DA FILOSOFIA Rubens José da Rocha 1 Embora não possa ser abordada satisfatoriamente logo de início, a pergunta sobre o que é a filosofia é condição inelutável para seu estudo. Uma longa trajetória intelectual desempenha papel importante para a formulação adequada da questão. A bibliografia será sempre muito vasta, sendo a necessidade de familiarizar-se com os conceitos de um ou outro filósofo uma tarefa que exige estudo detalhado de alguns poucos textos e problemas. Não por acaso, uma das condições para enfrentar o desafio de elaboração conceitual da leitura será traçar um plano construtivo (imanência), onde conceitos e problemas possam se mover com diferentes direções, diferentes sentidos e velocidades, criando distâncias, encontros, contrastes, colisões, torções e rupturas, permitindo aos conceitos coexistir dentro de uma sempre renovada possibilidade de pensar a filosofia. Proponho encarar,nesta comunicação, a relação entre estilo e não-estilo como uma questão central da filosofia, concentrando a análise na noção de personagem conceitual no livro O que é a Filosofia?, de Deleuze e Guattari.Ao contrário do que possa parecerquando se investiga sociologicamente o nascedouro da filosofia, o caráter supostamente impessoal dos conceitos não provém de uma simples abstração das opiniões públicas. Esta pretensa impessoalidade ocultaria de certa maneira a astúcia com que a filosofia extrai do antagonismo de opiniões diretrizes básicas para a apreensão de um determinado tipo de saber. Os conceitos preservam em sua configuração interna uma força que não se esgota no simples desejo de persuadir, nem aspira encontrar uma unidade para os pontos de vista em conflito, ou instaurar as condições de possibilidade de enunciação da verdade, mas criar uma série de disposições individuais, através da fulguração intensiva da multiplicidade de seus elementos: “Que valeria um filósofo do qual se pudesse dizer: ele não criou um conceito, ele não criou seus conceitos?” (O que é a Filosofia?, p.12). Por outro lado, embora os conceitos não sejam uma criação coletiva, nem uma criação puramente impessoal, eles tampouco são obra de um ou outro autor empírico. Pois existe uma dobra da enunciação que se inscreve no interior do próprio conceito, sendo este o momento de autoposição do sujeito no plano de imanência. À medida que confere aos conceitos traços intensivos de personalidade, o sujeito da enunciação arroga para si uma autonomia filosófica, dando origem a personagens conceituais que atuam conforme a dinâmica interna dos conceitos no plano de imanência. Os personagens conceituais constituem o pensamento filosófico como “heterônimos do filósofo, e o nome do filósofo, [como] o simples pseudônimo de seus personagens” (O que é a Filosofia?, p.78). Neste sentido, eles não podem ser reduzidos a tipos psicossociais, nem considerados como abstração destes, mas como personalidades intensivas que se manifestam através de um determinado estilo. “Os personagens conceituais são pensadores, unicamente pensadores, e seus traços personalísticos se juntam estreitamente aos traços diagramáticos do pensamento e aos traços intensivos do conceito. Tal ou tal personagem conceitual pensa em nós, e talvez não nos preexistia”(O que é a Filosofia?, p.86). Eles “não são mais determinações empíricas, psicológicas e sociais, ainda menos abstrações, mas intercessores, cristais ou germes do pensamento”(O que é a Filosofia?, p.85). O juízo sintético em Kant, a vontade de potência em Nietzsche, a sensualidade estética em Kierkegaard e o capital em Marx são conceitos criados por personagens como o Inquisidor, Dioniso, Don Juan, Capitalistas e Proletariados. Talvez o mais célebre dos personagens conceituais seja o Sócrates de Platão. Não importando à filosofia se existiu realmente como personalidade empírica, ao engendrar a 1 Doutorando PPFGFIL/UFSCar, bolsista CAPES. E-mail: [email protected] LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013 101 ESTILO E NÃO-ESTILO NOS PERSONAGENS CONCEITUAIS DA FILOSOFIA dinâmica interna dos Diálogos, Sócrates relega Platão ao estatuto de um pseudônimo. Ante a presença do mestre, o escritor dos Diálogos esvanece como um nome vazio, sem referente, projetado à sombra do personagem-filósofo. É neste sentido que podemos acompanhar na Apologia de Sócrates uma gênese heteronímica para o famoso personagem conceitual. Informado pelo amigo Querefonte que o oráculo de Delfos anunciara não haver homem mais sábio que Sócrates, o filósofo sai à procura de alguém cuja sabedoria pudesse confirmar sua ignorância, provando assim o equívoco do oráculo. Ao conversar com os mais sábios artesãos, políticos e poetas de Atenas, Sócrates surpreende-se com a arrogância destes homens que se julgam convencidos de saber muito mais do que a arte de seu ofício, orgulhando-se vaidosamente dessa falsa sabedoria. Seus interlocutores ostentam apenas a aparência de sábios, embora não o sejam na verdade. (PLATÃO, Apologia de Sócrates, p. 69). À semelhança do conflito entre rivais nos discursos da ágora, os personagens conceituais dividem-se em grupos simpáticos e antipáticos. Será justamente em razão de seu estilo ou não-estilo que os personagens conceituais poderão ser avaliados como falsos ou verdadeiros simpáticos ou antipáticos, adequados ou inadequados à sua filosofia. Sócrates e os sábios são exemplos de personagens antipáticas, pois Sócrates descobre sua identidade filosófica por exclusão das demais personagens. Colocando-se diante dos sábios como quem se coloca diante de seus rivais, Sócrates reconhece sua identidade na ignorância daqueles, mas apenas na medida em que esta ignorância seja o signo de sua sabedoria. Escorado nesta súbita autoconsciência, sintetizada pelo adágio “só sei que nada sei”, Sócrates individua-se como personagem conceitual, cujo não-saber engendra o desejo de livrar-se das formas de ilusão para abrir caminho ao saber autêntico e verdadeiro. Por outro lado, em Marx, capitalistas e proletariados são personagens antipáticas, pois disputam a hegemonia política e econômica dentro de uma sociedade dividida em classes, enquanto comunistas e proletariados são personagens simpáticas, por buscarem compartilhar o poder político-econômico entre si. Esta noção de personagens conceituais da filosofia mostra-se de pleno acordo com a definição de filosofia para o heterônimo Antônio Mora. “Toda a filosofia é um antropomorfismo. O erro fundamental é admitir como real a alma do indivíduo, o erigir a consciência do indivíduo em consciência absoluta e a Realidade em individualidade”. (Obra em prosa. Antônio Mora, p.527). Quando Fernando Pessoa escreve sobre a heteronímia, ele pensa imediatamente no ato de invenção literária capaz de unir, sob uma forma superior de composição, os efeitos dramáticos do fenômeno de despersonalização e as múltiplas formas particulares de estilo das grandes obras poéticas do ocidente. À medida que a heteronímia se compromete a incorporar elementos que encerrem um potencial de individuação para a obra, o estilo aparece sob a forma de um drama subjetivo, no qual senso rítmico e rigor de construção convergem de acordo com uma necessidade imanente à escrita poética. Sem descuidar deste aspecto literal do conceito, podemos considerar o estilo heteronímico como uma inflexão poética do que, meio século depois, Deleuze definirá como personagens conceituais da filosofia. Assim como os conceitos não aparecem como criação de um ou outro autor empírico, mas como criação de um desses personagens, a heteronímia será uma forma de manifestação estilística do pensamento que anima a história da filosofia. Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, personagens conceituais da poesia, constituirão um plano de composição poética no entrecruzamento com os diversos planos de imanência da filosofia. De acordo com a cronologia de nascimento sugerida por Pessoa, Alberto Caeiro será o primeiro e mais importante poeta heterônimo. Mestre dos demais, sua personalidade exprimirá o momento de ruptura estilística com a obra do poeta pré-heteronímico que, na amplidão de suas incursões literárias, alimentava sólida admiração à poesia greco-latina, sem deixar de aspirar apaixonadamente os novos ares da poesia moderna, sobretudo à de origem inglesa. Esta ambivalência culminou numa cisão metafísica entre as formas de pensar próprias às duas tradições. Do ponto de vista clássico, a poesia heterônima assume uma forma ingênua LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013 102 ESTILO E NÃO-ESTILO NOS PERSONAGENS CONCEITUAIS DA FILOSOFIA em Alberto Caeiro e uma forma erudita em Ricardo Reis, enquanto, do ponto de vista moderno, ela origina uma forma romântica para Álvaro de Campos e uma forma simbolista para Fernando Pessoa ortônimo. Dentre os três discípulos imediatos, Álvaro de Campos oferece, por oposição virtual, maior poder de personificação ao mestre Caeiro. A força explosiva de Ode Triunfal, que apareceria apenas algumas horas depois de O Guardador de Rebanhos e de Chuva Oblíqua, definiu os termos psíquicos da cisão estilística que deu origem à escrita dos heterônimos. Em certo sentido, pode-se afirmar que Álvaro de Campos e Alberto Caeiro são personagens conceituais que delimitam os polos extremos de uma figura incerta, que aparece alternadamente, durante a escrita heteronímica, como Fernando Pessoa elemesmo, Fernando Pessoa ortônimo, Fernando Personne, Ricardo Reis, Bernardo Soares, Fausto e demais heterônimos. É a tensão entre estes polos extremos, em jogo na obra dos heterônimos, o que propomos analisar em diálogo com a noção de personagem conceitual de Deleuze. Referências DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. GIL, J. Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações. Lisboa: Relógio d’Água, 1987. PESSOA, F. Obra em Prosa. RJ: Nova Aguilar, 2006. _________. Obra Poética. RJ: Nova Aguilar, 2006. PLATÃO. Apologia de Sócrates. “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 1996. LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013 103