Contos Pouco Contos Pouco Políticos Políticos Organização de Maria Inês de Almeida Ilustrações de Manuel Cruz Introdução Perguntei a uma criança de cinco anos o que era um político. «Um político é um pássaro com muitas cores», respondeu ela. Fiquei espantada com a prontidão da resposta. E fiquei a pensar. A definição até poderia ser a mesma caso lhe tivesse, naquela mesma altura, perguntado o que era um palhaço ou um osciloscópio, mas «o pássaro de muitas cores» não me saiu da cabeça. O político desta criança existiria? Onde se encaixariam os «pássaros» na política? Afinal, eles podem ter muitas cores mas estão longe de ser pássaros. Com este livro tentei responder a esta última questão. Lançando o desafio de escrever uma história para crianças, 9 transformei cada político que participa neste livro num pássaro. O pássaro da sua imaginação à solta. Estes são, pois, os políticos daquela criança, os seus «pássaros de muitas cores». Assim, quando uma criança perguntar aos pais – quem escreveu estes contos? –, eles podem sempre dizer: um político. E quando elas, a seguir, insistirem – o que é um político? –, cada pai saberá de certo o que responder. Maria Inês de Almeida Matilde e as estrelas Olhava o céu todas as noites e contava as estrelas. Eram sempre tantas e sempre em número diferente. A Matilde queria saber quantas estrelas existiam no céu escuro da noite, quem era a estrela-mãe e o pai, quantas estrelas pequeninas eram filhas do céu estrelado e se sabiam voar. Tinham de saber voar. Só outra coisa lhe despertava tamanha curiosidade: os caranguejos, que andam para trás. «Se as estrelas não voam, como é que chegam ao céu?», costumava perguntar. Não podiam nascer lá em cima, no alto, muito alto, onde as suas mãos não chegavam mesmo quando esticava os braços até onde conseguia. A Matilde queria aprender a voar, fazer companhia às estrelas, brilhar muito e conhecer o céu todo, a Lua e a estrela-mãe. Cá em baixo, no quarto onde passava a tarde a brincar sozinha, nada era tão bonito como 87 aquele céu. Cá em baixo a sua mãe demorava sempre muito a chegar, mas no céu a estrela-mãe estava sempre por perto. E as estrelas, tantas, tinham muitas irmãs, companheiras de brincadeiras e de sonhos. Certa noite, a Matilde viu uma estrela a cair sobre a Terra. Quis correr para o sítio onde pensava que a pobre estrela tinha caído, socorrê-la com o seu estojo de médico de brincar. Correu para a sala e pediu à mãe, aflita, que a levasse a procurar a estrela. A mãe da Matilde contou-lhe que a estrela não tinha caído na Terra e não se magoara. Antes decidira viajar pelo céu, que é gigante, infinito, muito grande, sem fim, e nessa viagem passou pela Terra e pela janela do quarto da Matilde. Não havia motivos para aflição, explicou a mãe. A Matilde ficou confusa. Se tinha inveja das estrelas que brincavam todas juntas, tantas, no céu escuro, porque é que elas queriam viajar sozinhas, se podiam perder-se umas das outras? Ela, que se sentia só, sem companhia para as suas brincadeiras excepto as suas bonecas, as comidas de fingir, os sonhos e a contagem de estrelas. E não acreditou que a estrela que vira cair estivesse a viajar sozinha. Acreditou que tinha sido um acidente e chorou, chorou muito porque não podia ir salvar a estrela, coitadinha. Mas nessa noite teve a certeza de uma coisa: as estrelas sabiam voar. Não sabia quantas estrelas estavam todas as noites no céu escuro, 88 mas sabia que elas voavam lá para o alto e desciam quando queriam. E a Matilde prometeu que quando fosse grande ia visitar as estrelas e, se alguma caísse cá em baixo, na Terra, iria a correr salvá-la. Quando fosse grande. Chegou o Verão e a mãe da Matilde levou-a de férias para a praia. Naquela praia cheia de areia até perder de vista e um mar muito, muito grande, os caranguejos brincavam com a água, faziam corridas, escondiam-se em túneis que a Matilde julgava chegarem à outra ponta do mundo. «Porque é que eles andam para trás, mamã?», perguntava a Matilde todos os dias. O Verão era a sua época do ano favorita, porque a mãe estava sempre com ela, o sol fazia cócegas na pele e as suas sardas apareciam, brincalhonas, nas bochechas. Com uma colecção de baldes, pás e moldes de areia, a Matilde passava a manhã e o fim da tarde a brincar e a correr para os caranguejos, e dormia nas horas de maior calor. Apesar daquela maneira esquisita de andar, os caranguejos ganhavam sempre a corrida. Como é que eram tão rápidos? Como é que conseguiam chegar ao mar, se estavam de costas viradas para a água? Será que tinham medo das pessoas que por ali andavam e por isso estavam sempre a olhar para trás? E como é que não caíam, se não viam o caminho? «Mamã, porque é que os caranguejos andam para trás?», voltava a perguntar. A única coisa de que a Matilde não gostava nas férias de Verão era da ausência de resposta da mãe. Nunca lhe explicou porque é 90 que os caranguejos são tão diferentes dos outros bichos e dos humanos na forma de andar. E, por isso, nas horas em que fazia a sesta, a Matilde sonhava com uma explicação. Imaginava um mundo dos caranguejos debaixo da areia da praia, onde eles chegavam através dos túneis pelos quais os costumava ver desaparecer. Imaginava que só vinham cá acima, à praia, para ver o mar e brincar com as ondas. Porque, como ela, gostavam de se enrolar na espuma que a água faz quando encontra o princípio da praia. Ou então, como ela, os caranguejos procuravam na praia alguém que queriam muito ver. Apesar de o Verão ser a sua época do ano favorita, as férias roubavam-lhe a companhia do pai, que ficava na casa dele, na cidade. E durante dois meses era só ela, a mãe e os tios que moravam na Casa do Limoeiro. Na Casa do Limoeiro, de que a Matilde tanto gostava, caíam laranjas especiais quando chegava o Verão, que vinham substituir os estalidos da madeira que ardia na lareira durante o Inverno. Ouviam-se as saudades do pai, o riso feliz, as brincadeiras traquinas da Matilde e as folhas do limoeiro a falar baixinho com o vento. Na verdade, não era um limoeiro. Era uma laranjeira especial que dava sombra e laranjas de uma qualidade diferente. Mas não falava, como aquele pé de laranja-lima do livro que a mãe lhe lia na praia para embalar o sono das horas de maior calor. Quando voltavam da praia, já o sol estava quase a ir dormir, a Matilde costumava correr na relva 91 fresquinha depois de tomar banho na banheira do primeiro andar, para tirar o sal do mar da pele. A mãe vestia-lhe vestidinhos brancos e cor-de-rosa, muito leves e frescos, que a Matilde sujava de relva, e a mãe zangava-se. Mas a tia Luísa salvava-a sempre e levava-a para o terreiro ver as estrelas depois do jantar. Um dia a Matilde perguntou à tia Luísa quantas estrelas havia naquele céu muito brilhante da Casa do Limoeiro. E se aquele céu era diferente do céu da cidade onde morava. Se aquelas estrelas eram outras, diferentes mas amigas das estrelas que via da janela do seu quarto, na cidade. A tia Luísa disse-lhe que o céu era o mesmo, infinito. «O que é infinito?» A Matilde sabia que o céu era muito grande, mas não sabia que era «infinito». A tia explicou-lhe que infinito é maior do que tudo, sem fim. E disse-lhe que não sabia quantas estrelas existiam, talvez fossem infinitas, também. E que, quando fosse grande, a Matilde ia descobrir o número de estrelas, aprender a voar com elas e descobrir porque é que os caranguejos andam para trás. A Matilde não acreditou, mas ficou satisfeita com a resposta da tia Luísa, porque a mãe nunca lhe respondia quando ela perguntava estas coisas. E, sem saber que aquele seria o último Verão que passava na Casa do Limoeiro, adormeceu a conversar com as folhas do limoeiro, que na verdade era uma laranjeira especial, que dava sombra e laranjas de uma qualidade diferente. 92 No Verão seguinte, a Matilde passou as férias de Verão com o pai. E, nas outras férias, dois anos depois, a mãe levou-a para uma praia diferente, noutro país, com menos areia mas onde os caranguejos – poucos – também andavam para trás. E no Verão a seguir nasceu o irmão da Matilde, o Vicente. E nunca mais foram para a Casa do Limoeiro passar o Verão, a sua época do ano favorita porque o sol fazia cócegas na pele e as suas sardas apareciam, brincalhonas, nas bochechas. Quando o Vicente já era mais crescido, a Matilde tentou partilhar com o irmão as suas dúvidas e curiosidades sobre as estrelas e os caranguejos. Mas ele nunca lhe ligou nenhuma, e na praia brincavam aos submarinos na água e às corridas na areia. Passaram muitos Verões. Muitos dias, muitos anos. A Matilde cresceu e tornou-se adulta. Já não contava as estrelas e nunca mais pensou nos caranguejos da praia cheia de areia da sua infância. Um dia, estava a jantar em casa da mãe, quando ouviu uma conversa: a Casa do Limoeiro ia ser vendida. Os tios já eram muito velhinhos, e ninguém morava na casa e tomava conta do limoeiro que na verdade era uma laranjeira especial. Era Primavera e o Verão estava quase a chegar. Parou tudo na cabeça da Matilde. Fechou os olhos e de repente estava na praia, a ver os caranguejos andar para trás. E percebeu que nunca encontrou a explicação para aquela forma tão esquisita de andar. Continuou de olhos fechados 93 e ouviu as folhas do limoeiro a cair, ao vento, e a contar estrelas com ela. E lembrou-se, também, de que nunca tinha descoberto o número exacto de estrelas que moram no céu escuro da noite. E que nunca voou com elas. Passaram alguns dias, e a Matilde não conseguia parar de pensar na Casa do Limoeiro. Então, decidiu comprá-la. Foi visitar a tia Luísa à sua casa nova e contou-lhe a sua ideia. A tia perguntou-lhe pelos caranguejos e pelas estrelas, pelas descobertas que teria feito, agora que já não era uma menina mas uma mulher. E como a Matilde baixou os olhos, a tia percebeu que ela tinha crescido e escondido os seus sonhos nos dias que se passam a correr na grande cidade. E que tinha deixado de ter tempo para contar estrelas. A Matilde tinha crescido e esquecera-se de parar para sonhar. Mas, a partir daquele ano, os Verões da Matilde-crescida foram sempre passados na Casa do Limoeiro. Descobriu que as estrelas são realmente infinitas, mas tem a certeza de que sabem voar. E voou algumas vezes com elas, como no dia em que nasceu a sua filha Maria. E percebeu, finalmente, que não interessa se andamos para a frente, de lado ou para trás. O que importa é conseguir chegar aos nossos sonhos, mesmo que para isso tenhamos de andar para trás, como os caranguejos, que conseguem sempre chegar ao mar. Marta Rebelo 94