Influxos e Qualidades: a astrologia na medicina de - HCTE

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Scientiarum Historia – UFRJ / HCTE
Influxos e Qualidades: a astrologia na medicina de Lourosa
Carlos Henrique Vólaro Caminha Mota (PG)
[email protected]
Palavras Chave: medicina, Hipócrates, astrologia, Portugal, Lourosa
cotidianos
Introdução
metade final do século XVII e princípios do XVIII, a
Astrologia perde seu estatuto de cientificidade;
passa a ser considerada superstição, afastando-se
irremediavelmente de sua correlata Astronomia.
Antes disso, contudo, o saber astrológico era
considerado uma forma lícita de se entender a
ordem do mundo; tinha por fundamento uma sólida
base filosófica que sustentou sua licitude por
séculos e séculos. Esta base, no entanto, foi
dinâmica o suficiente para se adaptar às mudanças
que a atmosfera intelectual européia sofreu dos
Além de lícito, o saber astrológico forneceu
base filosófica e conceitual para as diversas formas
de intervenção humana na natureza. Neste estudo
analisaremos as relações entre a astrologia de
e
a
medicina
de
tradição
hipocrática no discurso do astrólogo e médico
português
Manoel
Gomez
Galhano
Lourosa.
Objetiva-se com isto demonstrar que o sistema
cosmológico aristotélico-ptolomaico, tal como o
sistema filosófico aristotélico-tomista, não seriam,
de forma alguma, engessados ou avessos a
Dentre
agente
histórico
nos referimos. Assim, os textos clássicos envolvidos
nas diversas discussões que ganham corpo e
intensidade nos séculos XVI e XVII variam em forma
e conteúdo nas diferentes regiões da Europa. Um
tratado Humanista acerca da “Cidade Ideal” será
diferente na Itália e na Espanha. Os escritos de
ordem astrológica serão bastante distintos em
Inglaterra e Portugal. No que tange a Medicina, o
mesmo irá acontecer.
Não é o intuito deste texto, porém, discutir
as inúmeras estratégias utilizadas pelos humanistas
ao reconhecer a autoridade deste ou daquele autor
os
fenômenos
em sua obra, o humanista delega autoridade ao seu
próprio discurso. E essa será uma estratégia
bastante comum durante todo o século XVI
encontrando reflexos ao longo do XVII. Nesta
apresentação será discutida esta filiação em uma
obra em especial: a Polymathia Exemplar, composta
pelo astrólogo e médico Manoel Gomez Galhano
Lourosa.
Em seu Appendis de Contágios ao Tratado
do Cometa, parte integrante da Polymathia, Lourosa
irá discutir as possíveis causas dos chamados
contágios – no caso, as epidemias. O autor utilizará,
qualquer espécie de dinamismo.
II.
esse
antigo. Basta dizer que ao citar um autor clássico
séculos XIII ao XVII.
aristotélica
por
permearão o processo de escolha e resgate a que
I. No paradigma científico que emerge na
matriz
vividos
comumente
associados ao Humanismo, um dos mais reiterados
pela historiografia das mentalidades é o resgate às
teorias clássicas feito pelos novos intelectuais
europeus em seu afã de reinventar o mundo. Essa
reconhecida filiação aos autores gregos e latinos
para isso, os nodos causais contidos na essência
da filosofia aristotélica vigente, a saber: a causa
material, formal, eficiente e final. Decerto que a
filosofia aristotélica é a principal influência na obra
de Lourosa. Mas no que tange à Medicina, outro
autor ganha espaço: Hipócrates.
não se dá de forma equânime, no entanto. O que
define que autor ou que teoria será resgatada são
as vicissitudes características da sociedade em que
o Humanista em questão vive. Os problemas
Resultados e Discussão
O diálogo que pretendemos estabelecer
entre o saber astrológico e a medicina constitui
1º Congresso de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – UFRJ / HCTE – 22 e 23 de setembro de 2008
Scientiarum Historia – UFRJ / HCTE
um complexo de tensões por demais intrincado,
apreensão da História da Ciência. Neste
no que se torna necessária a utilização de
sentido, esta área acaba por se encontrar como
algumas ferramentas. Estabelecidos a priori,
subsidiária da História das Mentalidades, de
esses instrumentos cognitivos nos permitirão
seus métodos e autores principais. Contudo,
uma
uma das diversas visões que orbitam as
aproximação
menos
suscetível
a
equívocos de caráter anacrônico.
reflexões sobre a astrologia portuguesa se
A historiografia portuguesa laica mais
i
mostrou assaz interessante para nosso intuito;
antiga afirma que o século XVII assiste um
para
declínio da cultura lusa. Particularmente, os
Aristóteles no conjunto de obras que trata da
historiadores da Ciência se debruçavam sobre o
filosofia natural utilizaremos a análise de Luís
século em questão baseados na hipótese de
Miguel Carolino, publicada no livro Ciência,
que a atmosfera cultural portuguesa deste
Astrologia e Sociedade. A Teoria da Influência
período, dominada pela Companhia de Jesus e
iv
Celeste em Portugal (1593-1755) . Além de
pelo movimento conhecido comumente pela
relacionar o conjunto de textos aristotélicos à
ii
conjugar
a
teorização
proposta
por
denominação “Reformas Religiosas” , seria uma
atmosfera intelectual portuguesa desde fins do
época de declínio das letras portuguesas e da
século XVI até meados do XVII, o autor
filosofia praticada no Reino. Esta concepção
demonstra como a astrologia é utilizada para
resulta,
próprio
descrever diversos fenômenos naturais e como
processo histórico da formação desta disciplina.
serve de premissa filosófica para diferentes
A História da Ciência é entendida no século XIX
campos de atuação do intelecto humano no
como o caminhar para a constituição de um
Portugal ao longo do período abarcado em sua
saber
uma
pesquisa. Neste sentido, insere-se em um
historiografia de inspiração romântica. Autores
seleto grupo de importantes historiadores que
como Teófilo Braga, Garção Stockler, entre
se debruçam sobre o tema da astrologia
outros, acabaram por conceber este intervalo
portuguesa: Luís de Albuquerque o faz no que
temporal na vida cultural e científica como um
concerne o século XVI enquanto Rômulo de
período
Carvalho se concentra no século XVIII.
dentre
positivo
de
outras
e
coisas,
alicerçada
decadência
do
em
marcado
pelo
“naufrágio” da pátria na batalha de Alcácer-
A maior parte das obras de referência
no trato dos problemas acerca da astrologia
Quibir e pelas consequências daí resultantes.
Ao longo do século XX, o debate
foram escritas por autores ingleses e italianos –
intensificou outra linha de reflexão. Como forma
tal fato acaba por se configurar em um
de reação a um regime político de natureza
problema,
autoritária, autores como J.S. da Silva Dias e
transladadas
Rómulo de Carvalho afrmavam que a causa
português: enquanto essas obras analisam a
deste pretenso “atraso” cultural e científico
astrologia baseada em um viés neoplatônico,
sofrido por Portugal em relação ao resto da
surgem fenômenos como a magia natural e a
Europa seria a preponderância da Companhia
visão do homem como síntese da Criação. Tais
de Jesus sobre a sociedade e as estruturas de
visões e fenômenos não cabem em um contexto
ensino do Portugal seiscentista. Opuseram-se a
aristotélico.
esta concepção autores inacianos ou de alguma
neoplatônica é muito limitada.
forma ligados à Ordem.
iii
preponderante
no
para
E
Nasce
Podemos dizer que hoje não existe uma
linha
quando
que
concerne
25a Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Química - SBQ
a
estas
o
em
assim
teorias
contexto
Portugal
a
a
são
intelectual
influência
necessidade
de
entendermos um pouco mais a dinâmica interna
do aristotelismo em um contexto humanista.
2
Scientiarum Historia – UFRJ / HCTE
Para tal, utilizaremos a teoria de Charles B.
as entidades manteriam entre si uma relação de
Schmitt, expressa na obra Aristotle and the
independência, nascendo os conflitos quando
v
Renaissance . O autor nos ajuda a entender
suas áreas de influência se sobrepõem.
como o aristotelismo não se configura como um
A autora, enfim, sugere um novo
bloco de idéias engessadas, euforizando uma
método-metáfora: a metáfora da apropriação e
dinâmica
de
tradução. Este método foi construído visando
pressupostos teóricos que definem imagens
enfatizar as influências conceituais entre ambas
distintas derivadas de uma mesma matriz
esferas-entidades, as mesmas vistas como
filosófica. O primeiro ponto tratado pelo autor
estruturas meramente cognitivas, e não como
seria
aristotelismo
blocos monolíticos separados e limitadores.
renascentista não é uma mera cópia de seu
Esta aproximação se baseia em um olhar sobre
antecessor medieval, tendo uma dinâmica
a Teologia e a Filosofia Natural como duas
própria, muitas vezes se reinventando e se
entidades cognitivas inseparáveis, fenômenos
reconstruindo para melhor se adaptar às novas
que emergem de um mesmo “cadeirão cultural”
aspirações
– a sociedade européia dos séculos XVI e XVII.
interna
demonstrar
período.
O
culturais
autor
a
esse
como
que
conjunto
o
marcariam
prossegue
esse
afirmando
a
De acordo com esse modelo, filósofos naturais
continuidade de trabalhos de cunho aristotélico
e
ao longo do Renascimento, muitos deles de
nascidos no seio da Teologia e da Filosofia
caráter progressista e colaborador à atmosfera
Natural, respectivamente – ou pelo menos
intelectual
comumente utilizados dentro desses limites -,
que
se
desenhava.
O
próprio
teólogos
se
apropriariam
esses
de
conceitos
conceitos
conceito “aristotelismo” englobaria um leque de
traduziriam
para
uma
opiniões e aproximações teóricas por vezes
linguagem típica de seus campos de atuação, e
muito distintas entre si, fato palpável ao
as utilizaram para resolver problemas surgidos
analisar-se os casos de Zabarella e Cremonini.
no contexto limitado por suas áreas. Euforiza-se
Por fim, faremos uso das “metáforas”
assim o papel dos agentes históricos em
propostas por Margaret J. Osler em seu artigo
questão; atores que trabalham dentro de seus
Mixing Metaphors: Science and Religion or
próprios
Natural Philosophy and Theology in Early
culturais.
vi
contextos
sociais,
ideológicos
e
Modern Europe . Ao longo do texto a autora
O trabalho de Osler será utilizado,
apresenta os métodos – “metáforas” – com os
contudo, de uma forma diferente. Pretendemos
quais a historiografia da ciência se aproxima do
estender a aplicação de sua metáfora a outras
debate Teologia versus Filosofia Natural: o
estruturas cognitivas, a saber, à astrologia e à
primeiro, chamado pela autora de metáfora do
medicina no Portugal seiscentista. Tal aplicação
conflito,
será
opõe
as
entidades
supracitadas,
necessária
para
que
se
evitem
fornecendo ao historiador uma relação de
anacronismos,
paradoxo a ser estudada. A metáfora da
astrologia do século XVII como um fenômeno
harmonia se baseia, como a primeira, na
diferente de sua matriz mesopotâmica ou grega.
criação de dois blocos antagônicos, duas
Embora tenhamos estudado atentamente a
entidades. O olhar do historiador seria o
Physica aristotélica, o sistema astronômico-
diferencial: enxerga-se a diferença, enfatizando
astrológico aristotélico-ptolomaico não é uma
porém os traços de semelhança entre as duas
estrutura inerte; sofre mudanças ao longo de
entidades. A terceira metáfora tradicionalmente
sua história e adaptações em suas bases onde
utilizada seria a metáfora da segregação. Nesta,
quer que seja recebida. A prática médica, por
25a Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Química - SBQ
pois
devemos
consider
a
3
Scientiarum Historia – UFRJ / HCTE
outro lado, se apresenta de forma deveras
estudo das relações entre esta base astrológica e a
particular, quando alicerçada pelo aristotelismo
medicina.
– as diferenças entre tal corrente filosófica e a
No discurso de Lourosa, fica evidente a
neoplatônica (que encontra menor resistência
estreiteza entre as áreas. O saber astrológico
em Itália, por exemplo) acabam por revelar a
permea todo o Appendis de Contagios; mesmo
assimetria na prática médica ao longo da
Hipócrates – principal referência de Lourosa no que
Europa.
estruturas
tange a discussão médica – legitima a astrologia
cognitivas como fenômenos emergentes de um
como fundamental no conhecimento dos males que
mesmo panorama sócio-cultural, que possui
assolam a vida humana. Cabe ressaltar aqui o
seus próprios antecedentes e precursores. A
resgate feito por Lourosa a Hipócrates: enquanto
ênfase
agente
autor, o último não entra nos pormenores da ação
histórico é crucial, pois possibilita ao historiador
celeste sobre os humores que compunham o corpo
perceber os efeitos particulares de um discurso
humano. Trata-se, sem dúvida, da dinâmica própria
historicizado, ao invés de impor conceitos
da corrente de pensamento que, associada ao
modernos sobre a coerência das visões de
aristotelismo, ganha novos contornos. Decerto que
mundo destes atores históricos.
a obra de Lourosa não é a única a sintetizar esses
Enxergar-se-ão
no
contexto
tais
particular
do
saberes: outros autores o fizeram ao longo da
Europa nos séculos que antecederam o Seiscentos.
Conclusões
Em nossa pesquisa, analisamos o discurso
de Manoel Gomez Galhano Lourosa sobre o cometa
que singrou os céus lisboetas em fins de 1664 e
início de 1665; discurso este contido na Polymathia
Exemplar. Relacionamos a astrologia de Lourosa a
sua matriz aristotélica, no intuito de perceber a
forma como o aristotelismo continua em voga,
mesmo em meados do séc. XVII. Nesse ponto,
contrapomos
a
tese
tradicional
de
que
No entanto, prova-se importante a análise de um
discurso elaborado em solo português, publicado
em forma de livro por uma oficina portuguesa para
leitores portugueses. Grosso modo, este texto
mostraria como a tese do isolacionismo ibérico não
se sustenta e que Portugal estava integrado com o
resto da Europa no que concerne às discussões
“scientíficas”.
o
Humanismo se configurava como um ataque às
bases
filosóficas
aristotélicas,
por
parte
Agradecimentos
de
neoplatônicos e estóicos, principalmente. Se houve
Gostaria
de
agradecer
às
pessoas
que
me
um ocaso, esse foi da Escolástica medieval – um
ajudaram a seguir adiante e que, sem as quais, não
conjunto de práticas que excede, em muito, o
haveria pesquisa:
aristotelismo. Neste sentido, acreditamos que o
trabalho colabore com uma nova visão sobre o
- Ao Dr. Carlos Ziller Camenietzski, cujo trabalho,
Humanismo, expressa nos discursos de Eugénio
paciência e solicitude culminaram na orientação
Garín, Jose António Maravall e outros.
desta monografia;
Começamos nosso texto analisando o
- Ao Dr. Luís Miguel Nunes Carolino, por me
caráter de cientificidade relegado à astrologia
apresentar a Polymathia Exemplar e seu autor, além
seiscentista, considerada base e ferramenta de
das inúmeras tentativas – frutíferas – de me
análise legítima para os fenômenos naturais, além
encorajar a caminhar pelos intrincados caminhos da
de fornecedora de um arcabouço conceitual e
História da Ciência;
filosófico para as diversas áreas de atuação do
Homem. Com efeito, nossa pesquisa nos levou ao
25a Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Química - SBQ
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Scientiarum Historia – UFRJ / HCTE
- A Bruno Boto Martins Leite, por ser mais que um
companheiro nas investigações acerca da História
da Medicina;
- A Camila Correa, pela amizade e companheirismo
nos dois anos em que pesquisamos e estudamos
juntos, sob a égide do Museu de Astronomia e
Ciências Afins e da Universidade Federal do Rio de
Janeiro;
- Ao MAST, por proporcionar o encontro de pessoas
especiais com fins em comum;
- A minha família, pela paciência e subsídio em
cigarros e copos de café;
- E a todos aqueles que, de alguma forma,
contribuíram com a minha graduação: me aturando,
me ouvindo, me confortando e me ajudando.
i
Um dos mais célebres homem-de-letras do Portugal oitocentista, Antero
de Quental (1842-1891), participou em 1871 na organização das
“Conferências do Casino”, tendo sido o autor do texto “Causas da
Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos”. No texto
o autor discute o “pretenso” atraso português com relação à Inglaterra e
França – países em franca industrialização – alegando que o revés na
batalha de Alcácer-Quíbir (1578), a unificação das coroas lusa e
castelhana (1580-1640) e a influência da Companhia de Jesus levaram a
nação Portuguesa ao cataclisma.
ii
Optamos por inserir neste conceito, cientes da possibilidade de cair em
reducionismo embora evitando-o, as práticas conhecidas por “ContraReforma” ou “Reforma Católica”.
iii
CALAFATE, Pedro. “A historiografia filosófica portuguesa perante o
Seiscentismo”, in.: Revista Portuguesa de Filosofia, nº. 52, 1996. pp.
185-196. e CAROLINO, Luís Miguel. “As fontes de História da Ciência
na historiografia da cultura portuguesa”, in.: GARCIA HOURCADE, J.
L.; MORENO YUSTE, J. M. e RUIZ HERNÁNDEZ, G. (coord.).
Estudios de Historia de las Tecnicas, La Arqueología Industrial y las
Ciencias. VI Congresso de la Sociedad Española de la Historia de las
Ciencias y de las Tecnicas. Segóvia – La Granja, 9 a 13 de setembro de
1996, vol. 1, s. l., Junta de Castela e Leão / Conselho de Educação e
Cultura, pp. 341–350.
iv
CAROLINO, Luís Miguel. Ciência, Astrologia e Sociedade. A Teoria
da Influência Celeste em Portugal (1593-1755). Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2003.
v
SCHMITT, Charles B. Aristotle and the Renaissance. EUA: Harvard
Print, Cambridge Print, 1983.
vi
OSLER, Margaret J. “Mixing Metaphors: Science and Religion or
Natural Philosophy and Theology in Early Modern Europe”, in.: History
of Science. 1998, 36. pp. 91-113.
25a Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Química - SBQ
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