XXIX ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Relações entre mobilidade social e desigualdade das oportunidades educacionais: a contribuição de Raymond Boudon Autora: Adriana Maria de Figueiredo (UFOP) Grupo de Trabalho 06 – Educação e Sociedade Coordenadores: Maria Lígia Barbosa (UFRJ) Ana Maria F. Almeida (UNICAMP) Carlos Benedito Martins (UnB) 1 Individualismo e Coletivismo em Sociologia No campo da sociologia são comuns as discussões sobre as possibilidades teóricas de conciliar as abordagens macrossociológicas com as microssociológicas. Em sociologia da educação, esta tendência também pode ser percebida, em especial quando se enfoca as relações entre a mobilidade social e a escolarização. Este texto relata o esforço de Raymond Boudon em proceder a um estudo dessas relações, tendo como pano de fundo a busca de articulação entre os níveis de análise e o estabelecimento de um modelo teórico e metodológico capaz de oferecer respostas pertinentes às questões colocadas à sociologia da educação. Inicialmente, é prudente refletir sobre os termos que informam a discussão sobre os níveis de análise em sociologia. Neste sentido, o livro The Micro-Macro Link, editado por Jeffrey C. Alexander, Bernhard Giesen, Richard Munch e Neil J. Smelser, em 1987 é exemplar no tratamento do assunto. O que chama a atenção na leitura da maioria dos artigos dessa obra é que Boudon parece muito mais ser uma exceção do que uma regra. O que se percebe com muito mais freqüência na sociologia são tentativas de articular diferentes níveis de análise sem referência a nenhum problema substantivo em particular. Alexander, para tratar esse tema da relação entre os níveis de análise, identifica a prevalência de cinco grandes abordagens da relação micro-macro em sociologia. São elas: (1) indivíduos racionais interessados criam a sociedade através de atos contingentes de liberdade; (2) indivíduos interpretativos criam a sociedade através de atos contingentes de liberdade; (3) indivíduos socializados recriam a sociedade como uma força coletiva através de atos contingentes de liberdade; (4) indivíduos socializados reproduzem a sociedade pela tradução do ambiente social existente na realidade micro; e (5) indivíduos racionais interessados aquiescem para a sociedade porque eles são forçados por controle social externo. Para explicar esse leque de possibilidades, ALEXANDER (1987, p.15) argumenta que é vital entender que na teoria sociológica a questão da ação é separada da questão da ordem. 2 Uma posição coletivista pode ser adotada com a negação da primazia da responsabilidade individual. Essa posição pode, contudo, ser associada com dois diferentes modos de compreender a ação: o instrumental-objetivo, ou o interpretativo-subjetivo. A teoria coletiva na qual a abordagem objetiva da ação nega as percepções subjetivas, por exemplo, compele contra qualquer foco particular no nível micro ou individual. Essa é a opção 5. A teoria coletiva que toma uma perspectiva interpretativa, em contraste, faz da percepção subjetiva sua preocupação central, embora insista que os conteúdos dessa percepção estejam relacionados às contingências dos atos individuais. Se a subjetividade individual for concebida como mera reprodução, estaremos diante da opção 4. Se, entretanto, a teoria coletivista subjetivista supõe autonomia do nível analítico micro – ou seja, se a teoria supõe que o indivíduo socializado recria no processo de reprodução –, teremos a opção 3. Paras as posições teóricas que enfocam a completa contingência da ação social, no entanto, qualquer autonomia analítica não é suficiente. O micro é comparado com o individual e depois visto como fonte primária da ordem. Para entender a relevância de qualquer dessas traduções do debate micro-macro não é suficiente o enfoque no problema do individualismo apenas. Concepções individualistas de ordem, bem como as coletivistas, sempre são informadas por diferentes formas de entender a ação. Teorias individualistas podem salientar as características objetivas e racionais da ação, com as quais a microanálise enfoca fenômenos empíricos tais como custos, investimentos e oportunidades, que podem ser remetidas à opção 1. Se, em contraste, a subjetividade da ordem individual é salientada, o enfoque micro é deslocado para os processos de interpretação e para como eles são conduzidos em um modo contingente, essa é a marca da opção 2. Na discussão, Alexander sugere que a economia clássica e o behaviorismo se enquadram na opção 1, enquanto o pragmatismo e a psicanálise abraçam a segunda. Durkheim, a 4 e Marx a 5. E há, ainda, a possibilidade de uma articulação mais sintética. Dependendo do teórico, esses pontos de entrelaçamento combinam várias opções, abraçando a opção 3, ou outras. O trabalho de Alexander mostra que há uma amplitude de opções teórico-metodológicas na sociologia e ponto. Não permite sequer chegar à conclusão à qual chega o autor de que, a 3 distinção analítica da relação entre os diferentes níveis da realidade social – entre micro e macro, entre o problema da ação e o problema da ordem – tem gerado um novo discurso interparadigmático e um novo estabelecimento do problema: o conflito sobre redução de um nível a outro foi substituído pela busca de articulação. Em suas palavras: Nós sugerimos que na presente década uma fase diferente do debate tem emergido,marcada pelo avanço de toda a conquista teórica de ambos os lados da grande divisão em micro e macro perspectivas. Nós não temos a ilusão de que este novo desenvolvimento vai refazer o desacordo teórico com alguma síntese newtoniana, mas nós estamos convencidos de que o escopo e a intensidade dessa busca de articulação é algo sem precedentes na história sociológica. (ALEXANDER, 1987, p. 31)1 Se, por um lado, podemos tomar essa afirmação de Alexander como uma prudente avaliação da direção na qual se move a teoria sociológica contemporânea, por outro, não podemos deixar de indagar se esse movimento tem conduzido a sociologia a alguma saída para o dilema da relação entre os níveis de análise micro-macro, seja essa saída a articulação ou outra. Nesse ponto é que as conclusões não são tão otimistas quanto são as de Alexander. Discussões como a empreendida por Alexander identificam e qualificam como dilema básico da sociologia a tentativa de solucionar o problema das dimensões de análise com as quais a disciplina, necessariamente, tem que trabalhar. No entanto, não promovem a constituição de um programa ou agenda de pesquisa a partir dessas discussões. As discussões acabam por se resumir a um quadro diagnóstico do que acontece com a teorização sociológica e nem sequer esclarecem o rumo ao qual a busca de articulação se inclina. Alexander está claramente correto em um ponto: para a mais recente teoria sociológica, o problema analítico predominante tem sido reintegrar o voluntarismo subjetivo e o constrangimento objetivo. A revisão feita por VAN DEN BERG (1998) de Habermas, Bourdieu, Alexander e Giddens, tornou notória a observação de Alexander. Após mostrar o desdém desses autores por mecanismos sociais, Van den Berg conclui que apesar de os quatro teóricos possuírem uma formação muito variada e contrastante, os quatro se 1 Originalmente em inglês, traduzido pela autora. 4 ocuparam da mesma problemática geral. Eles foram ao encontro do mesmo desafio: formular uma grande síntese que, de algum modo, fechasse ou estreitasse o hiato existente entre as chamadas abordagens micro e macro, entre individualismo e coletivismo, subjetivismo e objetivismo, voluntarismo e determinismo. No entanto se, por um lado, esse desafio de formulação de uma grande síntese integrando as abordagens micro-macro em sociologia pode, à primeira vista, parecer um bom sinal para a disciplina como um todo, um sinal do desaparecimento das fronteiras paroquiais, como deixa transparecer o otimismo de Alexander, por outro, a tentativa de tratar dessas questões em um plano meramente abstrato, cuja preocupação fundamental é com a superação de antinomias – indivíduo versus sociedade; estrutura versus ação – levou a teoria sociológica a uma discussão vazia, no sentido de não explicar substantivamente fenômeno algum. E, nesse sentido, o otimismo de Alexander nos parece injustificado. Na sociologia, a discussão abstrata não fez mais do que informar como a disciplina trataria de analisar o tema da relação entre diferentes níveis de análise. A sensação expressa por Van den Berg, em seu estudo já mencionado, de que a preocupação dos teóricos com antinomias, em um plano meramente abstrato, é uma discussão que não contribui para que a sociologia mude de lugar torna-se, então, particularmente evidente. A preocupação desses autores se concentrou no âmbito da metateoria e eles não se detiveram sobre a tarefa de explicar qualquer mecanismo social. Boudon, em claro contraste com essa tendência, se inclinou em outra direção: ele se debruçou sobre um tema substantivo e foi ao encontro de saídas teóricas e metodológicas para as relações entre mobilidade e escolaridade. O modelo desenvolvido por Boudon parte do individualismo metodológico, mas alcança as explicações macrossociológicas com conceitos integradores dos dois níveis de ação. 5 O individualismo metodológico em sociologia Entender o papel da tradição individualista em sociologia pode contribuir para a compreensão do problema da estrutura e da ação nesta disciplina. Neste tópico, portanto, passamos a discutir a forma que o individualismo metodológico tomou em sociologia tomando como exemplos os trabalhos particularmente ricos de BOUDON (1987), no qual é empreendida uma análise da utilização do paradigma individualista por Tocqueville em sua obra clássica sobre o Antigo Regime e o de COLEMAN (1987), no qual o autor se dedica a uma avaliação do emprego desse paradigma ao estudo de Max Weber sobre as seitas protestantes. O objetivo de Tocqueville era explicar a questão macrossocial de que, no século XVIII, o sistema agrícola francês se encontrava subdesenvolvido ao passo que a agricultura britânica se tornava moderna, pela alusão às ações individuais dos proprietários de terra franceses que nutriam o desejo de se tornarem servidores civis do Estado. A típica explicação baseada no paradigma individualista é empreendida por Tocqueville. Por causa de um alto grau de centralização administrativa, os proprietários de terra franceses não se encontravam na mesma situação dos ingleses. Poder, prestígio e influência eram atribuídos aos cargos públicos franceses em contraposição ao que ocorria na Grã-Bretanha. Como conseqüência, os proprietários de terra franceses eram estimulados a comprar cargos públicos. Então, como resultado dessa característica do contexto francês, eles compravam cargos públicos, abandonavam suas terras e se estabeleciam na cidade mais próxima. Como conseqüência da falta de motivação dos proprietários de terra franceses em aumentar a produtividade de suas terras, o sistema agrícola francês permaneceu subdesenvolvido em comparação com o britânico. Tocqueville demonstra que o ato de se tornar um servidor civil do Estado é recompensador para o proprietário de terras francês porque traz prestígio, pois o Estado é coletivamente percebido como possuidor de prestígio. Servir ao Estado é uma das atividades mais desejáveis na França ao contrário da Grã-Bretanha, porque na França essa atividade é coletivamente mais respeitada do que outras. A valorização coletiva da importância de se servir ao Estado pode ser explicada em termos individualistas. Boudon explica que Tocqueville sugere que o Estado era mais respeitado na França porque ele era 6 realmente mais poderoso, mais presente na vida cotidiana de qualquer cidadão. Nesse exemplo, pode-se falar de uma racionalidade ligada a um valor coletivo: os valores coletivos contribuem para a realização de um fim particular mais desejável ou recompensador para o ator. O modelo subjacente ao paradigma individualista presente nos estudos de Tocqueville permite a Boudon elaborar o conceito de racionalidade ligada a contexto, que é o conceitochave que vai possibilitar que processos macrossociais sejam explicados por referência às ações individuais. A noção de racionalidade ligada a contexto supõe que a racionalidade da ação individual possa tomar várias formas de acordo com o contexto no qual está inserida, o que implica que ações sociais são sempre, em princípio, compreensíveis, desde que nós sejamos suficientemente informados da situação na qual elas se desencadeiam. A compreensão da ação social em uma situação é o que o autor chama de racionalidade ligada a contexto. Pode haver esse contexto no sentido de que valores coletivos tenham a conseqüência de que a ação “A” levará recompensas ao ator que são fundadas em valores coletivos. Nos estudos de Tocqueville sobre o Antigo Regime, o atraso na agricultura francesa face à britânica se explica pelas ações individuais dos senhores de terra franceses que desejavam se tornar servidores civis do Estado, uma vez que, no contexto francês, servir ao Estado é uma atitude coletivamente valorizada como provedora de status. O exemplo permite também a Boudon definir o paradigma individualista como aquele que, objetivando explicar processos macrossociais, como faz o estudo de Tocqueville – porque a agricultura da Grã-Bretanha é mais desenvolvida do que a da França no século dezoito – devem ser eles deduzidos dos resultados das ações ou comportamentos individuais, no exemplo de Tocqueville, das ações dos senhores de terra franceses. Esse procedimento seria a base do individualismo metodológico. Em outras palavras, de acordo com o paradigma individualista, explicar algum fenômeno macrossocial, digamos M, significa mostrar que ele é resultado de ações, que essas ações podem ser compreensíveis dado o ambiente social dos atores, entendido como a situação na 7 qual eles se movem. Tal como a estrutura da situação, as ações devem ser explicadas como o produto de variáveis definidas ao nível do ambiente social. O exemplo de COLEMAN (1987, p. 154) aplicado ao estudo de Weber sobre as seitas protestantes pode, neste ponto da exposição, ser útil para a compreensão dessa característica do paradigma individualista que estamos querendo mostrar. Coleman argumenta que o problema de Weber é claramente expresso por uma proposição macrossocial: A ética religiosa que caracterizou as sociedades que se tornaram protestantes durante a Reforma (e particularmente as que eram calvinistas) continha valores que facilitaram o crescimento da organização econômica capitalista. Ao longo do estudo, a proposição de Weber se transforma em três: uma tendo uma variável independente caracterizando a sociedade; a segunda com variáveis dependente e independente caracterizando o indivíduo; e a terceira com a variável independente caracterizando o indivíduo e a variável dependente caracterizando a sociedade. As proposições podem ser colocadas como se segue: (1) A doutrina religiosa protestante gera certos valores em seus seguidores; (2) Indivíduos com certos valores (referentes ao item 1) adotam certos tipos de orientações sobre comportamento econômico e; (3) Certas orientações sobre comportamento econômico (referentes ao item 2) em parte dos indivíduos ajudam a produzir a organização capitalista em uma sociedade. Nesse conjunto de proposições, a terceira está se movendo do nível individual para o nível societal. Nesse ponto uma agregação de ações individuais é necessária para gerar um efeito macrossocial. A sutileza do problema da transição do individual para o nível sistêmico aparece nesse exemplo de Coleman. Nas proposições de Weber, a transição é feita simplesmente pela agregação de orientações individuais, atitudes ou crenças. Se o problema teórico é, contudo, um problema envolvendo o funcionamento de um sistema social – a sociedade capitalista, no exemplo – torna-se óbvio que a transição apropriada não pode envolver a simples agregação de comportamento individual. Qual deve ser, então, essa “transição apropriada”? 8 Coleman argumenta que o sucesso da transição depende de uma boa história social, vista por ele como a descrição, por exemplo, estabelecendo a conexão causal entre o advento da doutrina religiosa calvinista e o crescimento da economia capitalista no Ocidente. Mostrando não somente como a doutrina afeta o comportamento dos indivíduos mas como tais comportamentos podem ser combinados, como a organização social toma lugar no empreendimento capitalista para ter como resultado o crescimento do capitalismo, como faz Weber. A discussão de ambos permite concluir que a abordagem individualista não é antagônica às indagações macrossociológicas e que pode ser eficientemente empregada para tratar das questões pertinentes à dimensão societal. No exemplo dos estudos de Tocqueville analisados por Boudon, o conceito de racionalidade ligada a contexto faz essa conexão entre os resultados das ações individuais e o fenômeno macrossocial a ser explicado. No exemplo do estudo de Weber sobre as seitas protestantes, mostrado por Coleman, a transição do nível individual para o nível da sociedade é buscada em dois sentidos: no primeiro, por uma agregação das orientações individuais; no segundo, pela descrição estabelecendo a conexão causal entre o advento da doutrina religiosa calvinista e o crescimento da economia capitalista no Ocidente. A relação entre mobilidade social e oportunidades educacionais O trabalho de Boudon, A desigualdade das Oportunidades (1981 [1973]) lança forte soma de luz à questão da articulação entre níveis de análise. Boudon procede à explicação das relações entre as desigualdades educacionais e mobilidade social – fenômenos macrossociais – por alusão às relações estabelecidas entre variáveis resultantes de ações ou comportamentos individuais, tais como o nível de instrução e a posição social. Boudon constatou que vários estudos realizados por diferentes autores e em contextos nacionais variados chegaram a resultados que questionavam a visão, predominante na sociologia da educação, de que as desigualdades escolares seriam o determinante principal 9 e quase exclusivo das outras formas de desigualdade. Ao contrário, os estudos mostraram que a mobilidade social2 parecia sensivelmente de mesmo nível em países caracterizados por graus variadíssimos de desigualdade de oportunidades perante o ensino 3. Por exemplo, Estados Unidos, Suécia, Noruega e Inglaterra apresentavam uma desigualdade de oportunidades sensivelmente mais fraca (dados relativos à década de 1960-1970) que a Alemanha, França ou Suíça; sendo que não se observa que a herança social seja mais débil nos primeiros países. Ou mostraram, como nos conhecidos estudos de BLAU e DUNCAN (1967), que a relação estatística entre o nível de instrução e a posição social é moderada: nos Estados Unidos, por exemplo, a primeira variável explica por volta de 30% da variação da segunda. Métodos de análise análogos aplicados aos dados europeus, suíços e alemães levaram a resultados similares. Boudon percebeu, então, que os questionamentos impostos à sociologia da educação pelos resultados das pesquisas não encontravam explicação nas teorias correntes. Ao mesmo tempo, evidenciavam o caráter duvidoso da visão, predominante na sociologia da educação, segundo a qual redução das desigualdades escolares conduziria, necessariamente, a uma diminuição da rigidez social, ou possuiria, necessariamente, efeitos redutivos sobre a desigualdade social. Os resultados dos estudos, ao contrário, apontavam para a seguinte conclusão: os cidadãos de toda a sociedade industrial são desiguais entre si do ponto de vista da posição social e da renda, mas tais desigualdades são apenas debilmente determinadas pelas desigualdades escolares. Então, como explicar as relações entre as desigualdades escolares e a mobilidade social? Para proceder à explicação dessas relações, Boudon sugeriu que os questionamentos evidenciados pelas pesquisas resultavam de uma insuficiência dos instrumentos de análise estatística e teórica comumente empregados. O que o levou a desenvolver um modelo baseado em duas grandes linhas. A primeira, relacionada com o fato de que é impossível esperar detectar uma ligação mecânica entre diversas formas de desigualdades. A segunda, 2 Mobilidade social entendida como a diferença, em função das origens sociais, nas probabilidades de acesso aos diversos níveis sócio-profissionais (BOUDON, 1981, p. 15). 3 A desigualdade das oportunidades perante o ensino se entende pela diferença, em função das origens sociais, nas probabilidades de acesso aos níveis diversos de ensino e particularmente aos níveis mais elevados (BOUDON, 1981, p. 15). 10 consistindo da constatação de que a relação entre desigualdades escolares e herança social é complicada pelo fato de que a última variável pode se achar afetada por toda sorte de outros fatores. Isso implica, seguindo o raciocínio de Boudon, que não se pode estabelecer uma ligação mecânica entre a desigualdade de oportunidades escolares e o nível de herança social, pois não é de todo impossível se observar um nível de herança social mais marcante em uma sociedade X que na Y, mesmo que a desigualdade de oportunidades escolares seja maior em Y que em X. Desde que a defasagem entre a distribuição das competências produzidas pelo sistema escolar e a necessidade do sistema econômico seja mais profunda em Y. A defasagem poderia engendrar uma mobilidade compensadora, além dos efeitos de herança criados por um grau mais alto de desigualdade escolar. O que leva Boudon a concluir, então, que mesmo supondo que a desigualdade de oportunidades escolares seja a única variável capaz de influenciar o grau da herança social, só se pode concluir que a herança social deva ser maior ou menor na medida em que são mais ou menos intensas as desigualdades escolares. Essa conclusão desemboca na segunda linha geral do trabalho de Boudon, relacionada com o fato de que a herança social é afetada por outros fatores, o que complica a relação dessa variável com a das desigualdades escolares. Por exemplo, duas sociedades X e Y, semelhantes em todos os aspectos (mesmo grau de desigualdades escolares, mesma distribuição de competências produzidas pelo sistema de ensino, mesma distribuição de empregos e posições sociais etc.), mas diferentes pelo fato de que a sociedade X recorreu a uma política de imigração para preencher determinadas categorias de empregos. Tal circunstância basta, argumenta Boudon, para tornar distinta a estrutura de herança social de uma sociedade a outra. Na leitura de Boudon, portanto, a sociologia da educação se viu estagnada diante de um impasse: nenhum “fator” (aspas de Boudon) parecia ter influência na desigualdade das oportunidades escolares ou na mobilidade social. Uma das principais razões para esse impasse é a de que, em geral, a sociologia da educação dava uma forma “fatorial” à 11 mobilidade social. O foco da discussão de Boudon é a teoria da mobilidade de DAHRENDORF (1956), que servira de base para a importante pesquisa de BENDIX e LIPSET (1959), e que pode ser resumida da seguinte maneira: O desenvolvimento econômico, a elevação das taxas de escolarização..., a existência ou a inexistência no passado de um sistema de estratificação social juridicamente definido (como os estados da sociedade francesa do Antigo Regime, os Stände por Max Weber analisados), ... , exercem influência sobre a mobilidade social. Formalmente:Os fatores x, y, ..., z, ..., influenciam positiva (ou negativamente) a mobilidade social. (BOUDON, 1981, p. 22). Contrapondo-se à visão fatorial, Boudon introduz a noção de sistema. A visão fatorial concebe a mobilidade como resultante de uma soma de fatores, em que cada um deles exerce sua influência sobre a mobilidade social. A visão sistêmica se sustenta na afirmação de que os fatores da mobilidade não podem ser concebidos independentemente um dos outros. Para desenvolver esse ponto – o de que só a consideração do sistema de fatores que atinge a desigualdade pode chegar a uma teoria satisfatória – Boudon procede a uma reinterpretação da obra de Sorokin sobre a mobilidade, editada em 1927, da qual retira a idéia fundamental para o desenvolvimento do modelo a ser aplicado à teoria da mobilidade: “os mecanismos geradores da desigualdade de oportunidades só podem ser analisados a partir do sistema composto pelas estruturas sociais de um lado e pelo conjunto das instâncias de orientação, de outro” (BOUDON, 1981, p. 24). Essas duas diretrizes, a visão sistêmica e a noção de instâncias de orientação, tornam-se centrais para a análise das relações entre as desigualdades perante o ensino e a mobilidade social empreendida por Boudon. O que particularmente chamou a atenção de Boudon na leitura de Sorokin foi a noção de instâncias de orientação (selection agencies, no original, segundo o tradutor) que se torna o conceito chave que permite a Boudon realizar a transição da visão fatorial para a sistêmica. E, dessa forma, dedicar-se ao exercício de buscar a articulação entre as dimensões relacionadas aos comportamentos e tomadas de decisão individuais e as instâncias sociais da mobilidade e sua relação com as desigualdades de oportunidades. Para Sorokin, a 12 mobilidade pode ser concebida como o resultado complexo da filtragem dos indivíduos por uma seqüência dessas instâncias de orientação de acordo com o seguinte postulado: manifestando as estruturas de uma sociedade determinada continuidade no tempo, ela deve comportar necessariamente mecanismos que mantenham essas estruturas além da natural substituição de indivíduos. Os mecanismos seriam assumidos pelas instâncias de orientação, tais como a família e a escola, que contribuiriam para determinar a posição do indivíduo no sistema social. Cada sociedade, na abordagem sorokiniana retomada por Boudon, comporta uma variação em natureza, número e importância atribuída a essas instâncias de orientação. Por exemplo, nas sociedades tradicionais, a família desempenhava um papel predominante nos processos de mobilidade, enquanto que nas sociedades industriais modernas, embora a família continue a exercer influência sobre a determinação do nível escolar e sobre as expectativas sociais da criança, a escola passa a ser uma instância de orientação fundamental. Ela vai participar do fornecimento das competências necessárias à sociedade e também vai contribuir para selecionar os indivíduos e orientá-los para as posições sociais existentes. O conceito de “instâncias de orientação” é crucial para a articulação das dimensões de análise no estudo das relações entre mobilidade social e educação, como pode ser percebido no trecho que se segue: Ao “penetrar” em cada uma destas instâncias de orientação, todo indivíduo tem determinada faculdade de iniciativa. Mas a posição de saída que obtém não depende apenas de sua vontade ou de suas características individuais. Depende também dos mecanismos de filtragem da instância de orientação, da composição da população que a ela se dirige, e, eventualmente, da distribuição das posições de saída quando essa pode ser considerada, por antecedência, como fixa. Por conseguinte, a mobilidade é o resultado complexo do que se pode denominar características estruturais das instâncias de orientação (BOUDON, 1981, p. 25). A figura 1 ilustra o significado dado por Boudon às instâncias de orientação que são parte central de seu modelo relacionando desigualdade de oportunidades e mobilidade. A figura reproduz o esquema que descreve os mecanismos de filtragem pelos quais uma posição social é atribuída a um conjunto de indivíduos por um sistema composto por duas instâncias de orientação. A primeira dessas instâncias (A) recebe um conjunto de 13 indivíduos a,b,c,.... n dotados de características i. Os indivíduos recebem novas características j que dependem de i , mas também de determinadas características estruturais da instância A, por exemplo, u,v ... Os indivíduos se dirigem para a instância B dotada das características estruturais w,x ...e recebem a característica k: a (i) b (i) c (i) n (i) A (u,v,...) a (i,j) b (i,j) c (i,j) n (i,j) B (w,x,...) a (i,j,k) b (i,j,k) c (i,j,k) n (i,j,k) Figura 1: Esquema que formaliza a teoria sorokiniana da mobilidade social (BOUDON, 1981, p.25). Na figura, “A” pode, por exemplo representar a família, “i” o êxito escolar da criança, “j” a experiência educativa adquirida pelo aluno em determinado momento, “u” e “v”, as diversas características da família (situação na hierarquia sócio-profissional, etc), “B” pode então representar o sistema escolar com suas características “w”, “x”, ...; sendo “k”, por exemplo, o nível escolar atingido pela criança. Como se trata de um esquema indicativo, “A” e “B” simbolizam os processos elementares que podem ser considerados como representação adequada do que realmente se passa nas sociedades. Podem, portanto, referirse a dois anos escolares consecutivos ou a dois ciclos de estudos. Como podem, da mesma forma, representar “A” o sistema de filtragem escolar, e “B”, o sistema de filtragem pósescolar, e assim por diante, aplicando-se à situação que se deseja analisar. O esquema desenvolvido por Boudon toma a forma de um modelo e pode se desvencilhar das teorias fatoriais até então empregadas na grande maioria dos estudos sobre as desigualdades das oportunidades perante o ensino. Pois as características individuais “i”, “j”, “k”, e os dados que caracterizam as instâncias de orientação “u”, “v”, ..., “w”, “x”, ... constituem um sistema. Seus efeitos não se acrescentam, se combinam. O modelo de Boudon foi construído com base em dois filtros: o primeiro deles, simulava os mecanismos não igualitários ligando o nível de instrução às origens sociais. O segundo, o 14 processo de atribuição da posição social em função do nível de instrução. O modelo supunha haver em cada nível de instrução um número fixo e predeterminado de vagas entre as quais os indivíduos eram repartidos segundo um processo não igualitário. A primeira de duas aplicações do modelo, tratou da relação entre o nível de instrução relativo e a mobilidade. A segunda procurou saber se o nível social relativo de um indivíduo com respeito a seu pai era ligado a seu nível de instrução. A aplicação conduziu à conclusão de que quando não há a adequação exata entre estruturas sociais e educacionais, uma forte influência do nível de instrução sobre a posição social não se mostra incompatível com uma fraca ligação entre a posição social relativa e o nível de instrução relativo. Em outras palavras, apesar da forte dependência da posição social em relação ao nível de instrução, um nível de instrução relativo superior tem, em tais condições, fortes possibilidades de levar a uma posição social igual ou inferior, assim como um nível de instrução inferior tem fortes possibilidades de levar a uma posição igual ou superior. A segunda aplicação do modelo tratou de responder à seguinte questão: numa sociedade caracterizada por forte desigualdade das oportunidades perante o ensino, uma forte dependência da posição social em relação ao nível de instrução e certa inadequação entre estruturas sociais e escolares, se pode deduzir que o nível social relativo de um indivíduo com respeito a seu pai seja fracamente ligado a seu nível de instrução absoluto? Após a aplicação do modelo, se chegou a uma estrutura4 caracterizada por dependência insignificante da posição social relativa em relação ao nível de instrução absoluto. Quadro 4 Estrutura aqui diz respeito ao tipo de utilização do modelo levada a termo por Boudon: usualmente um modelo é utilizado de maneira numérica, ou seja, trata-se de verificar que as conseqüências deduzidas do modelo acham-se quantitativamente próximas dos dados observados. A aplicação do modelo de Boudon é do tipo chamado de estrutural ou topológico, cujo objetivo subjacente é o de dar conta da estrutura dos dados mais do que de seu conteúdo numérico, partindo de uma estratégia que consiste em considerar como equivalentes conjuntos distintos de dados, contanto que tenham a mesma estrutura. (BOUDON,1981, p.61). Hauser produziu vários trabalhos, em fins dos anos 1970, em que abordava a tabela de mobilidade como um mapa de regiões ocupacionais cujas distâncias e alturas são descritas pelos padrões de movimentação entre elas. A proposta é construir um mapa do espaço da mobilidade, medindo-se a densidade ou a impermeabilidade dos movimentos intergeracionais, considerando, dessa forma, a predisposição ao movimento entre os estratos ou a persistência dentro destes. Esses modelos, que num primeiro momento foram chamados por Hauser de estruturais, receberam de Hout, em 1983 a denominação de modelos topológicos, por sua característica de mapeamento da mobilidade ( SCALON, 1999, p. 139). 15 que não corresponde a uma situação de igualdade das oportunidades em função do nível de instrução. Os resultados da aplicação indicaram que os indivíduos dotados de nível de instrução superior contam, em média, com um pouco mais de oportunidades de perder sua posição de origem do que de alcançar uma posição superior. Mas contam, paradoxalmente, com muito mais oportunidades de conhecer uma mobilidade descendente que os que têm um nível de instrução médio. Os primeiros têm pouco menos de uma oportunidade em três de conhecer uma mobilidade social descendente, enquanto que tal risco é, para os segundos, de um contra quatro. A estrutura resultante da aplicação do modelo permitiu a Boudon mostrar como os indivíduos obedecem a um processo de decisão racional cujos parâmetros são funções da posição social, introduzindo o conceito de espaço de decisão na formalização dos mecanismos geradores de desigualdades sociais perante o ensino: Este espaço de decisão tem como coordenadas determinado número de variáveis, tais como a idade e o êxito escolar. A partir deste espaço de decisão, define-se uma função de decisão cujos parâmetros variam com a posição social, e que depende por conseguinte da posição social. Em resumo, o mecanismo volta a definir uma função f (x, y, ....., s) = w onde x e y representam variáveis que, como a idade ou o êxito escolar, intervêm no processo de decisão e onde s representa a posição social, sendo w, por exemplo, a probabilidade de emprestar um caminho nobre num ponto de bifurcação do sistema escolar (BOUDON, 1981, p.93). A mesma estrutura possibilitou também chegar à conclusão de que a demanda de educação nas sociedades industriais liberais avançadas é determinada em cada momento por mecanismos comparáveis aos de um mercado. Os indivíduos escolhem seu nível de instrução, dada a aplicação do conceito de processo decisório, em função de sua posição no sistema das classes e das expectativas sociais ligadas num momento particular aos diversos níveis de instrução. E, por conseguinte, que não se pode admitir que as estruturas sociais tenham, enquanto tal, um efeito de controle sobre o comportamento dos indivíduos. E, do mesmo modo, não se pode aceitar que a desigualdade de oportunidades perante o ensino se deva à submissão dos indivíduos a regularidades perceptíveis no âmbito da sociedade em seu todo. Os resultados, então, levaram Boudon a conferir ao modelo o efeito de “complexo de bumerangue”: cada um tem interesse, dada a estrutura meritocrática da sociedade, em 16 buscar atingir um nível escolar tão elevado quanto possível. Mas o aumento da demanda global de educação tem como efeito reduzir, por um processo de reação em cadeia, as esperanças sociais ligadas aos níveis escolares inferior e médio. Esta conseqüência contribui para reforçar a demanda de educação de um período a outro e, assim, para provocar novo deslocamento da estrutura das oportunidades sociais ligada aos diversos níveis escolares. O modelo e suas aplicações tornam mais clara a discussão de Boudon e, cremos, também contribuem para o desenvolvimento de nosso raciocínio quanto ao esforço desse autor para proceder à articulação entre as dimensões de análise, dando um tom contundente à possibilidade de conexão entre a micro e a macrossociologia. Ao explicar as relações entre desigualdades escolares e mobilidade social, a partir de variáveis que caracterizam os indivíduos ou os contextos imediatos nos quais se acham situados, Boudon enfrenta o desafio de buscar a articulação entre as dimensões relacionadas aos comportamentos e tomadas de decisão individuais e as instâncias sociais da mobilidade e sua relação com as desigualdades de oportunidades sem assumir, contudo, a visão corrente da sociologia da educação baseada na análise fatorial. Para tanto, esse autor se vale então, como discutimos acima, da visão sistêmica da mobilidade baseada na sociologia de Sorokin. Em sua reinterpretação desse teórico, Boudon toma como conceito chave para a explicação da mobilidade a noção de instâncias de orientação para fundamentar o argumento de que os mecanismos geradores da desigualdade de oportunidades devem ser concebidos como resultantes da filtragem dos indivíduos. Neste exercício o conceito aglutinador é o de instâncias de orientação, como discutido anteriormente. Os resultados da aplicação do modelo permitiram a Boudon promover a articulação da dimensão das vontades e características individuais – expressa, por exemplo, pela variável “êxito escolar” – com a dimensão social dos sistemas escolares – expressa, por exemplo, pela variável “demanda de ensino em determinado nível escolar” –. 17 As instâncias de orientação – na sociologia da educação –, como mecanismos de filtragem das características individuais, permitem à Boudon mostrar que os mecanismos geradores das desigualdades de oportunidades devem ser concebidos como resultantes da filtragem dos indivíduos e, com isso, abandonar a explicação embasada na abordagem fatorial. E, desta forma, ampliar as possibilidades de compreensão, no âmbito da sociologia, do fenômeno da mobilidade social nas sociedades modernas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXANDER, Jeffrey C. e GIESEN, Bernhard. “From reduction to linkage: the long view of the micro – macro link” em ALEXANDER, Jeffrey C. et al (Ed.). The micro – macro link, Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1987; p. 1-42. ALEXANDER, Jeffrey. “Action and its environments” em ALEXANDER, Jeffrey C. et al (Ed.). The micro – macro link, Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1987; p. 289-318. ________________. “A importância dos clássicos” em GIDDENS, Anthony e TURNER, Jonathan H. (Org.) Teoria social hoje.Tradução de Gilson César Cardoso de Sousa. São Paulo: Editora da Unesp, 1999 [1996], p. 23-89. ___________ “O novo movimento teórico”, Revista Brasileira de Ciências Sociais,4(2): 629, junho de 1987. BOUDON, Raymond. “The individualistic tradition in Sociology” em ALEXANDER, Jeffrey C. et al (Ed.). The micro – macro link, Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1987; p. 45-70. _________________. A desigualdade das oportunidades: a mobilidade social nas sociedades industriais. Tradução de Carlos Alberto Lamback. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. 18 COLEMAM, James. “Micro foundations and macro social behavior” em ALEXANDER, Jeffrey C. et al (Ed.). The micro – macro link, Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1987; p. 153-173. SCALON, Maria Célia. Mobilidade social no Brasil: padrões e tendências. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999. 19